Emmanuel
Bezerra dos Santos
Militantes políticos assassinado pela
Ditadura Militar
EMMANUEL BEZERRA: A TRAJETÓRIA
E O SENTIDO DE SUA LUTA
Manoel Duarte (MANU) (*)
Todos já haviam dado
entrada na documentação com o pedido de ingresso na Casa do Estudante
do Rio Grande do Norte. Cada um aguardava passar no teste de pobreza.
Uns além de pobres ainda contavam com recomendação de sócios mais
antigos ou pessoas influentes na política do Estado.
Era 1963, entre dezenas
de candidatos estava um jovem raquítico, cabelo encaracolado, rosto, já
àquela altura, marcado por muitas espinhas.
Chamava a atenção dos
mais curiosos ver pendurado no pescoço daquele jovem um grosso rosário
que um Agnus-Dei. Ambos representavam seu profundo sentimento de fé e
de proteção à tentações do mundo.
Aparentemente tímido e
talvez estudando melhor o novo ambiente o jovem externava apenas um
sentimento recatado. Vindo de um lugar simples e pacato mais de convivência
com homens corajosos que embrenhavam-se mar adentro para buscar o
sustento de suas famílias, ele certamente se perguntava: que tipo de
coragem e destemor terão que ter os homens que vivem nesse mundo
agitado?
Os seus padrões
certamente estavam em conflito com essa nova realidade. Filho de mãe
devota e serva de Deus, vereadora pertencente, no seu município, ao
esquema dinartista, inclusive no período da ditadura, não lhe seria
nada fácil equacionar a sua acentuada religiosidade, os valores políticos
herdados e a vida profana e agitada que dominava o coletivo do casarão.
O seu talento,
entretanto, surpreendia desafiando as circunstancias. A sua convicção
de quase coroinha começou a ser testada e abalada com as amizades e
relacionamento que engendrou no interior da Casa do Estudante e no
Atheneu. O gosto pela leitura lhe aflorou com a intensidade e o sentido
de quem desbrava terras virgens buscando a fertilidade oculta em suas
entranhas.
O contato com a
literatura lhe permitia novas incursões no campo do conhecimento
humano. De inicio Jorge Amado, Graciliano Ramos, Manuel Bandeira, Vinícius
de Morais, Carlos Drumond, José Lins do Rego, Machado de Assis, entre
outros, constituíram sua literatura predileta. Daí foi um passo para
Erich Fromm e Roger Garaudy que, no campo da psicanálise e da filosofia
forneciam os elementos teóricos à compreensão mais próxima da
sociedade que vivia.
Todavia, longe de
bastar-se com essa leitura, o jovem buscava a cada dia contato com novos
enfoques sobre o mundo que pretendia compreender. Essa sede de saber o
arrastou para a vida cultural da Casa do Estudante fazendo-o participar
dos concursos de prosa e veros promovidos pelo então Grêmio Lítero-Cultural
"Câmara Cascudo", e, posteriormente, manter seus primeiros
contatos com a filosofia marxista.
Concomitante ao seu
progresso intelectual salientava-se naquele jovem o interesse pela política.
A fé religiosa que herdara de sua mãe foi aos poucos se transformando
em opção política e ideológica. Já não lhe bastava compreender o
mundo, era preciso intervir decididamente. A sua destacada participação
no movimento estudantil secundarista, dentro e fora da Casa do
Estudante, lhe credenciariam a disputar a presidência desta.
Ele havia se temperado
nos embates de lutas estudantis com os verdugos da ditadura. Naquela época,
1964 a 1966, os movimentos operários haviam sido sufocados pelo regime
militar. Era no movimento estudantil que residia a resistência do povo
brasileiro aos golpistas de plantão.
Eleito, em 1967,
presidente da Casa do Estudante. sucedendo o também saudoso companheiro
José Rocha (Kerginaldo), o jovem estudante revelava cada dia, além da
inteligência, coragem e ousadia. Transformou a Casa num bastião de
resistência e liberdade. Muitos foram os lideres estudantis que de lá
saíram e tantos outros que lá iam buscar a base de sustentação de
seus projetos políticos, recrutando em seus filiados os quadros de que
precisavam para integrar os partidos ou movimentos clandestinos.
Antes mesmo de eleger-se
presidente o jovem praieiro já havia ingressado
na vida partidária. Naquela ocasião histórica
a maioria dos militantes estudantis já pertenciam
ao Partido Comunista Brasileiro (PCB). Ele também
fazia parte dos quadros do partido. Outros entretanto,
se engajaram na Ação Popular (AP), organização
política com raízes na doutrina social da igreja.
O Partido Comunista do Brasil (PC do B) não tinha
qualquer expressão, ainda, no estado.
A ousadia do jovem
presidente inquietava até mesmo seus companheiros de partido e de
Diretoria da Casa do Estudante. Passando sempre por crises periódicas a
Casa a exigir a tomada de decisões que respondessem às necessidades de
alimentação e de alojamento para um universo crescente de associados.
Aquele jovem impetuoso não vacilou e mantendo contato com o gerente do
Banco S. Gurgel negociou o financiamento de 10 (dez) veículos que
constituíram o prêmio de um BINGO que seria promovido pela Casa do
Estudante. Muitos temeram e duvidaram da empreitada. Mas o jovem
presidente foi em frente e obteve grande êxito, apesar de um incidente
ocorrido com um veículo do sorteio, substituído por um novo. Foi com o
resultado desse BINGO que se conseguiu construir alguns novos
alojamentos e garantir por algum tempo melhores condições de higiene e
alimentação aos moradores da casa.
A luta travada por ele não
se restringia a administração da Casa do Estudante. Em 1967, aprovado
no vestibular de sociologia, a sua participação no movimento
estudantil universitário era, inegavelmente, da maior importância. Ao
mesmo tempo que promoveu uma grande passeata da Casa até o Gabinete do
então prefeito, Agnelo Alves, visando presioná-lo para liberar mais
verbas para a entidade que dirigia, não lhe faltava tempo para dar
apoio e ajudar o DCE na luta contra o acordo MEC-USAID que tinha como
objetivo divorciar a universidade dos interesses da Sociedade e
transformá-la em mero laboratório a serviço dos grandes grupos
nacionais e estrangeiros.
Também, esteve à
frente, juntamente com outras lideranças estudantis, do movimento em
defesa do aproveitamento dos excedentes de medicina, direitos e
odontologia da UFRN, e do protesto contra a morte do estudante Edson
Luiz, no Rio de Janeiro.
Em 1967 foi eleito
delegado ao Congresso da UNE, realizado em São Paulo.
Quando chegou a Presidência
da Casa do Estudante já havia rompido com o PCB e ingressado no Partido
Comunista Revolucionário (PCR). Partido de caráter regional que
conseguiu atrair para os seus quadros vários militantes do movimento
estudantil de Natal.
Foi nesse novo partido e
em face da prisão por um ano, além das perseguições que lhe foram
impostas pelo regime militar que o jovem líder foi pouco a pouco se
embrenhando na clandestinidade. A sua fé religiosa havia se
transformado em crença político-ideológica. Agora só o partido, o
seu programa e o projeto de construção da sociedade socialista lhe
interessava. E só a clandestinidade e a "verdade absoluta" da
filosofia e da práxis marxista-leninista eram capazes de animá-lo em vôos
mais alto em busca da tomada do poder.
Homem sem vaidades
materiais, gestos simples e muita coragem pessoal. No caminho de sua
luta ou da luta de todos era assim Emmanuel Bezerra dos Santos.
Pretendeu aprender de tudo, da Aliança Francesa à defesa pessoal. Não
lhe constrangia por estar bem ou mal vestido ou calçado. Via de regra
as roupas melhores que usava ou sapatos que calçava não eram seus.
Nada disso lhe afetava. O sentimento de sua consciência e a forma
religiosa como abraçou a militância política e a luta pelo socialismo
era suficiente para faze-lo ir em frente.
Mas Emmanuel Bezerra
sabia os riscos de vida que corria. Todos os militantes das organizações
clandestinas de esquerda sabiam e sofriam revezes que tornava cada vez
mais difícil a sobrevivência subterrânea.
Esse jovem, nascido em
Caiçara do Norte tombou em nome da liberdade. Os seus equívocos não
devem ser invocados para justificar a omissão de muitos. Sua vida deve
servir de exemplo sem que se mistifique a sua luta e os seus ideais.
* Sociólogo e presidente
do SINAI |