Comitê
Estadual pela Verdade, Memória e
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Travessias
Torturadas
Dermi Azevedo
Coleção
Memória das Lutas Populares
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Page de Dermi Azevedo
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Este
livro é, ao mesmo tempo, um registro
autobiográfico e político
do autor e um testemunho sobre os anos de
chumbo na Brasil, entre os anos de 1964/1985.
Esse período marcou profundamente
a situação existencial de
Dermi Azevedo. Ele optou, em plena juventude,
por dedicar-se integralmente à luta
pela dignidade humana e por uma sociedade
justa, fraterna, solidária e democrática.
Pagou conscientemente o duro preço
de sua escolha, como relata nesse livro.
Um preço mais alto ainda foi pago
por centenas de brasileiros e brasileiras
que se empenharam nas lutas contra a ditadura
civil-militar. Eles/elas constituem o grande
universo dos mortos e dos desaparecidos
políticos.
Este livro-memória soma-se a todos
os demais relatos dos/das combatentes contra
o regime fascista que dizimou a Nação
brasileira. E cujas consequências
nunca serão plenamente vencidas.
A linha seguida pelo autor corresponde ao
pensamento emitido por Danton na Revolução
Francesa: “Não tenho rancor.
Tenho memória”.
O autor
Jornalista e Cientista Político,
graduado em Jornalismo pela UFRN (1979);
Especialista em Relações Internacionais
pela Fundação Escola de Sociologia
e Política de SP (FSESP) com estudo
sobre a política externa do Vaticano;
Mestre em Ciência Política
pela USP, em 2001, com dissertação
sobre o tema "Igreja e Ditadura Militar.
Colaboração Religiosa com
a Repressão de 1964". Doutor
em Ciência Política pela USP,
em 2005, com tese sobre "Igreja e Democracia.
A Democracia na Igreja", sob a orientação
do Prof. Dr. Paulo Sérgio Pinheiro.
Exerce o Jornalismo desde 1967, tendo trabalhado
como repórter, redator, editor e
correspondente em várias revistas
e jornais. Fez a cobertura de diversas viagens
do Papa João Paulo II e de importantes
eventos ligados aos Direitos Humanos e aos
Movimentos Sociais. No serviço público,
ocupou vários cargos e funções
nos governos do RN e de SP. Em Natal, dirigiu
a FETAC (Fundação Estadual
do Trabalho e da Ação Comunitária).
Em SP, foi Assessor Técnico da Secretaria
da Justiça e da Defesa da Cidadania.
Presidiu, de 1999 a 2009, o Conselho Deliberativo
do Programa Estadual de Proteção
às Testemunhas (PROVITA), integrou
o Conselho Estadual de Defesa dos Direitos
da Pessoa Humana (CONDEPE). Foi um dos coordenadores
do Programa Estadual de Direitos Humanos
(SP). É um dos fundadores do Movimento
Nacional de Direitos Humanos (MNDH). Foi
preso político em 1968, no XXX Congresso
da UNE, em Ibiúna/SP e em 1974, em
São Paulo/SP. É anistiado
político. Participou como um dos
representantes da sociedade civil brasileira,
da II Conferência Mundial de Direitos
Humanos, promovida pela ONU, em Viena (Áustria),
em 1993. É um dos membros da IEAB
(Igreja Episcopal Anglicana do Brasil).
É portador da Síndrome de
Parkinson.
Travessias
Torturadas - Excertos
Dermi Azevedo
Aos
eternos companheiros e companheiras de luta
Emmanuel Bezerra, Manoel Lisboa de Moura,
frei Tito de Alencar Lima, Maria Nilde Mascellani,
José Luiz Brum, Nelson Martinez,
Vanderlei Caixe, Flávio Canalonga,
João Bittar, frei Giorgio Callegari
e Paulo Freire.
Dedico
em especial este livro ao meu primeiro filho
Carlos Alexandre Azevedo que, com menos
de dois anos, sofreu em seu frágil
corpo de criança a brutalidade da
repressão fascista nos porões
do DEOPS/SP.
Dedico
também aos meus pais José
e Amélia, às minhas irmãs
Sebastiana e seus filhos Walter, Fátima
e Vera, Judy e seus filhos Judson e Josenaldo,
à Cláudia, aos meus filhos
Carlos Alexandre, Daniel, Estevão
e Joana, à minha esposa Elis Regina
Almeida Azevedo e às nossas filhas
Paula, Betânia e Fernanda, a d. Júlia
Almeida e Valdir e aos seus filhos.
A
todos os companheiros de luta por um mundo
mais justo, na pessoa de Roberto Monte e
Maise e aos homens e mulheres decentes que
marcaram a minha vida.
O Povo Como Protagonista
Este
livro tem como protagonista o povo brasileiro.
Isto significa dizer que os fatos aqui narrados
e testemunhados estão intimamente
vinculados ao doloroso processo de emancipação
dos povos originários, dos negros,
dos quilombolas, dos trabalhadores urbanos
e rurais, das mulheres e dos homens, das
crianças, dos jovens e dos idosos
deste país chamado Brasil.
O
autor integra esse povo e sua trajetória
pessoal está diretamente ligada a
essa caminhada histórica. Como dizia
Ortega y Gasset, “o homem é
o homem e suas circunstâncias”.
Talvez se o autor fosse oriundo das classes
sociais que historicamente controlam o poder
no Brasil, suas palavras manifestariam outra
ideologia conservadora elitista, preconceituosa
e legitimadora da violência.
No
entanto, a sua origem de classe e as circunstâncias
favoreceram o seu processo de conscientização
no seio da classe trabalhadora e, portanto,
do povo. Esse universo específico
é representado pelos migrantes nordestinos,
pelos mineradores do interior do Rio Grande
do Norte, pelos paulistanos apressados para
chegar ao trabalho, por todas as vítimas
de qualquer discriminação.
Foi
contra o povo brasileiro que as elites civis
e militares levantaram-se em 1964, com o
apoio do governo dos Estados Unidos. Elas
já haviam percebido que o processo
de reformas democráticas no Brasil
levaria o povo a conquistar espaços
talvez definitivos na afirmação
de seus direitos de cidadania. Deste modo,
a preocupação do autor é
a de resgatar, na sua própria história
pessoal e no testemunho gritante de centenas
de mortos e desaparecidos políticos,
o caráter deste processo.
Outra
ênfase dada pelo autor refere-se aos
aspectos subjetivos da vivência de
uma ditadura fascista e repressora por natureza.
Ninguém consegue descrever, com inteireza,
o impacto desumano e destrutivo da ditadura
de 1964 no plano ideológico. Durante
a Guerra Civil espanhola, a imprensa perguntou
a um general por que o franquismo perseguia
a esquerda: “Porque pensam”.
Os
golpistas de 1964 fizeram exatamente o mesmo:
tentaram extirpar o pensamento crítico
no Brasil, substituindo-o pela ideologia
da segurança nacional. Não
me esqueço da recomendação
que recebia de alguns editores de jornais
e revistas onde trabalhei. De antemão,
eu repórter não poderia, nas
entrevistas, mencionar a expressão
direitos humanos. Muitos homens e mulheres
das Igrejas colaboraram nessa sórdida
tarefa de esmagar o pensamento crítico.
A
história cobra deles hoje a sua responsabilidade.
E o faz por meio das armas democráticas
representadas pelas comissões da
verdade e da memória, embora criadas
muito recentemente (e o Brasil é
um dos países mais atrasados nesse
ponto na América Latina), essas instituições
expressam um avanço na intervenção
da sociedade civil e do povo brasileiro.
O
autor considera que há muito que
fazer, muito mais do que já foi feito.
Os mortos e desaparecidos políticos
esperam a nossa atuação permanente
e firme. O autor reconhece e agradece a
todas as pessoas que colaboraram para que
esse livro fosse publicado. E espera que
cada leitor e cada leitora reveja o seu
papel nesse processo.
A
democracia formal não pode iludir-se
sobre o caráter efêmero e susceptível
das democracias de Estado de Direito. Trata-se
de uma planta bela e fraca, por natureza,
que exige ser cuidada a cada minuto do dia;
do contrário, a falta de água
felicitará a tarefa dos abutres e
todas as nossas serão exterminadas.
No entanto, existem sinais de esperança.
Espero que este livro contribua para reforçar
a esperança em um Brasil justo, e
fraterno, e solidário.
Apresentação
I
Vladimir Platilha*
Os
que lutam,
“Há aqueles que lutam um dia,
e por isso são bons.
Há aqueles que lutam muitos dias,
e por isso, são muito bons.
Há aqueles que lutam anos, e são
melhores ainda, porém há aqueles
que lutam toda a vida.
Esses são os imprescindíveis”.
(Bertolt Brecht)
O
livro do companheiro Dermi Azevedo se enquadra
dentro dessa visão do poeta Bertolt
Brecht. É um livro imprescindível.
Possui uma das poucas características
dentro da autobiografia literária,
que é o equilíbrio humanista
de um esteta com a consciência social
de um jornalista político. Seu livro
nos faz retornar ao tempo tenebroso da ditadura
militar; sua travessia torturada em meio
a um deserto de crimes e de atrocidades
é mais do que uma lição,
é uma reflexão para que todos
os patriotas se unam para barrar as tentativas
fascistas que querem que a juventude esqueça
as barbaridades do passado.
O livro é repleto de um clamor por
justiça. O companheiro Dermi Azevedo
nos transmite uma esperança e uma
fé alicerçada na convicção
de que, apesar das maiores injustiças
que possamos sofrer, nunca devemos desanimar,
mas sempre acreditar que um mundo solidário
e fraterno é o futuro da humanidade.
As futuras gerações serão
feitas de homens como Dermi Azevedo, que
sabem transformar ódio em perdão,
quedas em recomeços. O escritor Stephan
Zweig disse: “Um homem só pode
dizer que já viveu, quando sentiu
na pele as misérias desta vida”.
Dermi Azevedo fez isto, transformou as misérias
da vida em uma travessia para um mundo de
liberdade e amor.
*Vladimir
Platilha
Membro do Diretório Estadual do PPL-PA,
Partido Pátria Livre
Apresentação
II
Dalmo Evangelista
Mestre
Dermi,
Sei que você terá uma surpresa
muito grande ao receber esta correspondência.
Mas, diferentemente de Sofia (GAARDER, Jostein)
não precisa entregar a Hilde Knag!
Afinal, eu sei quem é você!
Na
verdade, a remessa deveria ter sido feita
há meses, no momento em que comemoramos
os 80 anos do Seminário de São
Pedro. Mas atribuo o atraso não à
falta de atenção ou gentileza
para com o inesquecível amigo, mas,
certamente, às atribulações
do dia adia e à própria rotina
espartana comum ao nosso cotidiano.
Mestre,
embora as pessoas nem sempre percorram os
mesmos caminhos, muitas vezes ocorrem momentos
de aproximação. Estes não
devem ser desperdiçados, pois materializam
o resgate de aspectos e lembranças
da história de cada um e ainda produzem
conforto espiritual e sentimentos de alegria
e satisfação. É nesta
perspectiva e com espírito de fraternidade
que envio esta carta para você, mesmo
correndo o risco de alguém já
tê-lo feito e você já
deve ter lido a “Revista Comemorativa”
em anexo.
Talvez
você não saiba, mas você
foi a pessoa que me presenteou um livro,
pela primeira vez na minha vida. E aquilo
serviu para despertar em mim o gosto e o
zelo pela leitura. Você era, à
época, chefe da equipe de Cultura,
no Seminário de São Pedro.
O livro poético da Bíblia,
os Salmos, teria sido uma homenagem de reconhecimento
à apresentação de um
trabalho em um dos Núcleos de Improviso,
então existentes no Seminário.
Sempre
falamos aqui em você. Quis o destino
que eu fosse ensinar em Currais Novos (atualmente
sou professor da UFRN – Curso de Administração),
belíssima cidade, sobre a qual tanto
ouvi comentar, ainda no Seminário,
tanto por você quanto pelos colegas
Ernane e Erli (meus atuais “vizinhos”,
em Natal). Em lá chegando, conheci
Lécia, pessoa amável que dispensa
comentários, e a quem devo oportunidade
deste contato. E sobre você ela tem
sempre elogios!
Mestre
Dermi, a festinha de comemoração
pelos 80 anos do Seminário foi altamente
agradável. Reuniu, no América,
toda a cúpula da igreja local e do
Seminário, tanto as autoridades do
passado, como as de hoje, tendo havido uma
interessante integração com
os atuais e os ex-seminaristas. Sei que
você quer saber, mesmo não
sendo possível citar todos os que
estavam presentes: os mestres Misael, líder
e principal incentivador dos frequentes
encontros das turmas – Adauto, Ernane,
Pedro Avelino, Zé Luís, Lúcio,
Lira, Marcos e Anchieta (irmão),
Campos, Canindé, Cassiano, Zé
Aquino, Zé Gonçalves, Gildenor,
Tarcísio, Zé Gomes, Ivanilson,
João Agripino, Jocelin, Tarcísio
Palhano, Jaime (agora Dom) e muitos outros.
Notou-se a ausência do mestre Ferreira,
também meu vizinho; e ainda a do
pessoal da “Pax et Bonum”, com
todo o respeito que merece!
Dermi,
mesmo à distância, procuramos
sempre ter alguma informação
sobre você. Desde a Editora Vozes,
onde você esteve; nas entrevistas
na televisão com alguma frequência;
e também na Folha de S. Paulo, através
de algumas reportagens suas. Infelizmente,
só leio a Folha aos domingos, pois
aqui o preço do jornal é alto
(R$ 6,00 aos domingos), e completo a leitura
durante a semana pela internet.
Agora
vou preparar o envelope para mandar pra
você, mesmo com o sentimento de que
você esteja até em Currais
Novos hoje, pois estou escrevendo em plena
festa de Santana! Não deverei ir
às festividades, pois passei a semana
em Brasília, onde apresentarei um
trabalho na SBPC, que termina hoje.
A
você muitas felicidades e um abraço
amigo,
Dalmo
Evangelista
Assim
começaram minhas travessias
Eu
tinha apenas 16 anos quando avistei, nos
céus de Natal, dezenas de aviões
que sobrevoavam baixo a cidade. Eu e os
outros alunos do Seminário de São
Pedro fomos convocados pelo reitor, cônego
Lucilo Machado, para a sala de reuniões.
Logo lhe per-guntamos o que estava acontecendo.
Respondeu que eram ”as forças
armadas que estavam derrubando o comunismo”.
O rádio da sala estava ligado no
Repórter Esso e Heron Domingues narrava
o deslocamento de tropas de Minas Gerais
para o Rio de Janeiro, sob o comando do
general Olímpio Mourão Filho.
As notícias do sucesso do golpe chegavam
filtradas aos nossos ouvidos, mas já
eram fortes as informações
sobre a prisão de dezenas e centenas
de pessoas acusadas de “subversão”.
Uma das primeiras memórias que eu
tenho da infância é a de um
caso de injustiça social. Meus pais,
José e Amélia, lembravam sempre,
entre lágrimas, o que aconteceu com
Derci, o único sobrevivente do primeiro
casamento de minha mãe com João
Aprígio de Azevedo, seu parente de
Jardim do Seridó. João havia
deixado para Darci um pedaço de terra
como herança, mas logo depois de
sua morte, um fazendeiro rico da região,
José Ginani, a tomou dele sob ameaças.
O fato ficou por isso mesmo. Anos depois
Derci, sua esposa Iracema e seus filhos
João e Fátima se mudaram para
o Rio de Janeiro, onde ele trabalhou como
motorista e cobrador de ônibus. Depois,
já doente, voltou para Currais Novos.
Morreu moço aos 30 e poucos anos.
Influiu também na minha formação
religiosa a Cruzada Eucarística Infantil
dirigida pela professora Gisela Pereira,
que nos deu, por exemplo, as primeiras lições
sobre o mistério da Eucaristia.
Quando eu tinha nove anos, fiz a minha primeira
confissão com Mons. Paulo Herôncio
de Melo, vigário de Currais Novos.
No confessionário da Igreja Matriz
de Sant’ana, ele me perguntou: “Você
quer entrar no seminário?”.
Eu respondi: “Sim”. Pouco tempo
depois, minha mãe arrumou uma malinha
de madeira e segui para o seminário
de Caicó, a maior cidade da região
do Seridó.
O seminário era dirigido por padres
holandeses, da Congregação
da Missão. Eles nos ensinaram a dividir
o tempo entre o estudo das disciplinas obrigatórias
e a leitura de obras clássicas da
literatura mundial. Tínhamos um especial
apreço pela rainha da Holanda, Juliana,
isto porque, no dia do seu aniversário,
era também feriado para nós.
Alguns seminaristas de Currais Novos formaram
um grupo para uma intervenção
cultural no município durante as
férias. O grupo era integrado por
mim, por Manoel Jaime Xavier Filho, por
José Adailson de Medeiros e por José
Alves Pinheiro. Colaborávamos com
a redação do jornal Tribuna
Estudantil, onde eu escrevia uma coluna
sobre política internacional, e com
os programas da Rádio Brejuí,
da família Salustino, a mais rica
da cidade. Participava também do
grupo o professor Antônio Quintino,
historiador e dono de uma gráfica.
Seu trabalho era muito bem organizado e
isto me ajudou bastante, mais tarde, no
aspecto metodológico da pesquisa
acadêmica.
Encerrado o período de estudos em
Caicó, mudei-me para Natal para fazer
o colegial. A disciplina no Seminário
de São Pedro era rígida. De
manhã bem cedo, íamos sonolentos
para a missa na capela. Depois se iniciavam
as aulas. No almoço, costumávamos
escutar em silêncio a história
dos mártires no Império Romano.
De vez em quando, havia uma hora matinal
de meditação embaixo das mangueiras
e cada um recebia um livro com a história
de um santo. Vários colegas aproveitavam
para ler clandestinamente outros livros
como “A Carne”, do português
Júlio Ribeiro, e “A vida sexual
dos solteiros e casados”, do padre
e médico maranhense João Mohana.
Três anos depois, eu passaria a ser
uma das pessoas perseguidas e procuradas
pela ditadura. Em 1967, fiz o meu primeiro
vestibular e ingressei na Escola de Serviço
Social, da Universidade Federal do Rio Grande
do Norte.
Essa primeira travessia representou uma
dupla mudança qualitativa em minha
vida: de um lado, afastei-me definitivamente
do projeto de ser padre; de outro, passei
a ter um contato direto com uma geração
de intelectuais cuja visão sobre
o ser humano e sua inserção
na sociedade, de forma transformadora, iria
marcar para sempre a minha própria
leitura da realidade. Foram figuras como
o professor Otto de Brito Guerra e as assistentes
sociais do Movimento de Natal (mobilização
reformista da Igreja Católica no
Nordeste) que mais influíram sobre
minha formação universitária.
Em 1967, fui eleito o primeiro presidente
do Centro Acadêmico D. Hélder
Câmara, da Escola de Serviço
Social. Logo comecei a atuar no movimento
estudantil. Iniciamos então os preparativos
para o XXX Congresso da UNE, em Ibiúna,
no interior de São Paulo. Tomei consciência,
cada vez mais, do meu papel de lutar por
uma sociedade livre, democrática
e soberana.
Mesmo fragilizados pela repressão,
os diversos partidos e organizações
de esquerda continuaram a sua luta, agora
toda voltada contra o regime de fato, imposto
ao país. Em Natal, nos reuníamos
regularmente no restaurante universitário,
para análise da conjuntura. Cada
um se encarregava de preparar uma resenha
crítica de suas leituras para o debate
no grupo. Pela primeira vez na vida, tomei
conhecimento mais sistemático do
marxismo, graças a Emmanuel Bezerra,
que me emprestou o livro clássico
Princípios Fundamentais de Filosofia,
do francês George Politzer.
No auge da mobilização, decidimos
ocupar o restaurante universitário.
A alimentação servida aos
estudantes era a pior possível e
a sujeira era generalizada. Durante 15 dias,
os estudantes e a população
uniram esforços para reformar a cozinha
e para melhorar o serviço e a luta
foi vitoriosa.
Os slogans predominantes nas manifestações
variavam de acordo com as organizações
e partidos de esquerda. Contudo, havia consenso
em torno da palavra unitária de ordem
que era: “Desgastar a ditadura e formar
quadros para a Revolução’’.
Epílogo
Camaradas Emmanuel e Manoel Lisboa,
Faz tempo que nós não nos
encontrávamos pessoalmente. Estivemos
juntos em São Paulo, durante o governo
de Luiza Erundina, quando seus corpos foram
trasladados para o Nordeste. Foi cumprido,
assim, o ritual exigido pelos homens e mulheres
justos de todos os tempos: o cerimonial
que indica para toda a sociedade um parâmetro
eterno e imprescritível, o da dignidade
humana. Confesso que chorei discreta e copiosamente
ao ver aqueles ossos e aquelas sandálias
carcomidos pelo tempo. Misteriosamente,
os ossos se juntaram e surpreenderam os
carcereiros e seus chefes, certos que estavam
de que vocês tinham sido esmagados
para sempre...
Emmanuel e Manoel: eles entenderam tudo
errado. Não foram capazes de compreender
que, mais cedo ou mais tarde, vocês
sairão novamente pelas ruas, plenos
de vida, como líderes de uma nova
sociedade de homens e mulheres livres. Aliás,
cama-radas, vocês sabem muito bem
que os corpos podem ser triturados inumeráveis
vezes; a vitória dos inimigos do
povo poderá ser proclamada em decretos,
discursos e festejada em orgiásticas
manifestações.
Mas ninguém será capaz de
aprisionar e de matar a chama de vida permanentemente
acesa no coração de cada criança,
de cada menina, de cada menino, de cada
jovem, de cada mãe, de cada pai...
Depois de todo esse longo período
voltei a encontrá-los em Belém
do Pará, no ato público organizado
pelo Sindicato dos Professores, em parceria
com o PCR. Reencontrei-os na pessoa de Cajá.
Fazia tempo que nós não nos
víamos, mas voltou a ocorrer, nessa
noite, o que acontece entre verdadeiros
amigos: os assuntos estão sempre
na ordem do dia, como se a reunião
anterior tivesse acontecido na véspera...
Anotei na minha memória que a marca
registrada do ato em Belém foi a
da simplicidade. Vocês sabem, aliás,
que foram homens e mulheres simples todos
os grandes revolucionários: Karl
Marx, Rosa Luxemburgo, Zumbi, Che Guevara,
Ho Chi Minh, Ben Bella, Agostinho Neto,
Luiz Carlos Prestes, Carlos Marighella,
Carlos Lamarca, Gregório Bezerra,
Djalma Maranhão, Pedro Pomar, Amaro
Luís de Carvalho, frei Tito, irmã
Dorothy Stang, Margarida Maria Alves, Vladimir
Herzog, entre tantos ou-tros nomes de heróis
e heroínas na história da
humanidade.
O nosso último encontro pessoal,
camaradas, aconteceu numa tarde de sábado
de 1967, numa tosca escadaria entre a Cidade
Alta e a Ribeira, em Natal. Refletimos sobre
a terrível conjuntura que se abatera
no Brasil, desde que o Estado policial,
repressivo e torturador se abateu sobre
a Nação em nome da “segurança
nacional”. Nessa reunião, discutimos
o que poderia ser a melhor estratégia
para o movimento estudantil naquele momento
histórico. Você, Manoel, resumiu
didaticamente a orientação
do Partido: o nosso movimento deveria empenhar-se
na luta para desgastar a ditadura e na formação
de quadros para a Revolução.
Antes desse sábado, eu me encontrara
com você, Emmanuel. E você confiou-me
a primeira tarefa: estudar e fazer um resumo
do livro “Princípios fundamentais
de Filosofia”, do filósofo
marxista francês Georges Politzer.
Lembro-me muito bem o que você me
disse naquele momento: “Procure ler
e estudar esse livro com espírito
revolucionário e não burocrático.
Estude sempre e tenha sempre em mente o
projeto que move a nossa vida, que é
o de construir, na luta, um mundo livre
da exploração do ser humano”.
Ao registrar essas memórias, quero
enfatizar que tenho bem presente, em todo
o meu ser, o significado de todo um processo
existencial. Nele, aprendi as lições
de simplicidade e ternura dos meus pais
José e Amélia; de engajamento
e de firmeza ide-ológica de Emmanuel
Bezerra, Manoel Lisboa de Moura e de outros
companheiros de luta contra a ditadura;
de honestidade e de espírito científico
de professores como Paulo Sérgio
Pinheiro e Benjamin de Souza Netto; de compromisso
evangélico de Antônio Henrique
Pereira Neto, Paulo Evaristo Arns, Pedro
Casaldáliga, Tomás Balduíno
e Sumio Takatsu; de engajamento revolucionário
de Ana Lobo e de sua filha Elsa, de Eliana
Rollemberg, de Isabel Peres e de Maria Sala;
de consciência de classe de Valdemar
Rossi, Nelson Martinez, José Luiz
Brum, Brás Joison, Nilson, Gaúcho;
de engajamento em favor dos direitos humanos
de Roberto Monte, Nilmário Miranda,
Perly Cipriano, Nilda Turra e Marga Rothe.
Aprendi também que não basta
dizer-se de esquerda para proclamar-se militante.
Em muitos casos, sobretudo com respeito
à condição feminina,
as violências acontecem mais no campo
progressista.
Em todas essas andanças, sempre tentei
ser amoroso. Fracassei muitas vezes. Mas
continuo pensando que, sem amor, a vida
se esteriliza. O amor verdadeiro exige um
exercício permanente de busca, paciência
e de recomeço. Poder-se-ia perguntar:
como é possível falar em amor
depois de ter vivido e de relembrar tantas
tragédias? Responderia que o ser
humano não é uma pedra jogada
no espaço. Sua primeira vocação
é a de amorizar o mundo. Isto significa
lutar por relações humanas
autênticas e construir um espaço
vital inspirado na liberdade, na igualdade
e na fraternidade. Significa também
eliminar todos os fatores que levaram a
sociedade a ser um recanto de bem-estar
para poucos e de miséria para bilhões
de seres humanos.
Se fosse preciso recomeçaria tudo.
Voltaria às ruas de Natal para participar
de passeatas estudantis. Reencontraria outros
militantes para a partilha de leituras e
de estudos. Se fosse preciso, pediria de
novo o apoio e o refugio a outros militantes.
E continuaria a sonhar com um mundo novo,
de homens e de mulheres novos.
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