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Militantes
Reprimidos no Rio Grande do Norte
Raimundo Ubirajara de Macedo
Livros
e Publicações
No
Outono da Memória
O Jornalista Ubirajara Macedo
Conta a História da Sua Vida
Nelson Patriota, 2010
Apresentação
Nélson Patriota
Cada
vida humana é, de tal modo única
que começa a se distinguir de todas
as demais, desde antes da sua concepção.
E isso tem uma explicação
simples, na medida em que cada vida nasce
da história que se entrecruza com
outras vidas. Por isso, não se resume
exclusivamente à história
de seus pais biológicos; nela palpitam
os anseios, as esperanças, desejos
e ações de avós, primos,
cunhados, sobrinhos, netos, amigos, numa
teia que parece se expandir em todas as
direções.
Com mais razão, a vida que amadurece
longamente é um encadeamento de vidas
paralelas, compartilhadas aqui, separadas
acolá, mas voltando a se contatarem
com maior ou menor regularidade, de acordo
com as conveniências sociais, familiares,
pessoais...
É assim a vida do jornalista Ubirajara
Macedo na sua longa expansão vital,
cujo núcleo originário se
localiza num humilde distrito do município
de Macaíba(RN), mas cujo vértice
está sempre mais além de um
vértice anterior, que ficou para
trás, n´algum projeto concretizado.
Como não esquecemos a lição
do poeta de Itabira, repetimos: “as
coisas findas/muito mais que lindas/ essas
ficarão”.
Ubirajara Macedo, ou Bira, como é
carinhosamente tratado pelos familiares
mais próximos e pelos amigos mais
chegados, tem muito que dizer, e o diz,
em termos das coisas findas referidas no
poema de Drummond, neste depoimento em primeira
pessoa, que recolhemos ao longo de seis
meses de conversas regulares, obedecendo
a uma cronologia até certo ponto
conservadora, na medida em que o relato
de uma vida assim o exija.
Da infância em Macaíba, a memória
voluntária de Bira (às vezes,
a involuntária também) sai
em busca de uma última lição
de Dona Olímpia, sua mestra de coisas
campestres, preservacionista avant la lettre,
para se deter num verso de Bilac exaltando
a nobreza das velhas árvores; capta
em seguida a figura do Dr. Ubirajara Ferreira,
dentista com veleidades de música
clássica e que gostava de compartilhá-la
em sua casa com os alunos de Dona Olímpia
Ferreira, sua muito digna senhora. Outros
personagens desfilam ante o palco, sendo
paulatinamente chamadas ao proscênio
das lembranças mais caras.
Aí se demoram, por razões
óbvias, figuras que protagonizaram
papéis fundadores dos valores de
Bira, como seu pai, Antônio Corcino
de Macedo, mestre-escola, e sua mãe,
Alice de Almeida Macedo, doméstica.
Ditos assim, encerrados num único
papel, seus genitores poderiam parecer atores
transitórios no drama do narrador.
A leitura do livro mostrará, porém,
que seu pai não se cingiu única
e exclusivamente ao papel de mestre-escola,
tampouco sua mãe ao de prendas domésticas.
No decorrer da narrativa ver-se-á
que, apesar da sua sólida formação
católica, ou melhor, graças
a ela, Bira protagonizou atos de coragem
e civismo que emularam os feitos dos militantes
políticos mais aguerridos de sua
época, quando as sombras do arbítrio
desceram sobre a nação.
O jornalismo, em suas diversas facetas,
constitui um capítulo à parte
na vida de Bira.
Não se deve ignorar que ele revelou
desde cedo uma clara vocação
para essa profissão, a qual, como
sabemos, abre portas e descortina frestas
do mundo que permanecem fechadas à
maioria das pessoas, mas expõe de
forma ostensiva quem a exerce, especialmente
em regimes de força.
De fato, o jornalista Ubirajara Macedo tem
muito que contar. Conviveu com homens rudes,
do agreste e alhures, mas também
com párocos, migrantes e refugiados
políticos que buscaram abrigo na
casa de seus pais, já em Natal, quando
do (desastrado- não seria mais adequado
o termo malfadado?) levante comunista de
1935; estudou no Ateneu Norte-Rio-Grandense
numa época em que o escol da inteligência
natalense nele pontificava. Em seus corredores
era comum um estudante deparar com o professor
Câmara Cascudo ou com seus colegas
Clementino Câmara, Celestino Pimentel,
Hostílio Dantas, Edgar Barbosa, Esmeraldo
Siqueira; ou trocar ideias com Luiz Maranhão,
José Gonçalves de Medeiros,
João Wilson Mendes Melo, Antônio
Pinto de Medeiros, José Hermógenes
de Andrade Filho...
Após uma curta experiência
no rádio, Bira se desloca finalmente
para o centro dos seus interesses: as notícias
do mundo. O veículo que lhe forneceria
essa plataforma seria o tradicional e combativo
jornal A República. O período
que ali passou, nos anos 1960, valeria por
um diploma superior. Na sua redação,
encontrou Veríssimo de Melo, Myriam
Coeli, Celso da Silveira, Sebastião
Carvalho, Josué Maranhão,
dentre outros. Era no tempo em que escritores
militavam na bastilha dos jornais.
Mas a culminância desse processo de
eventos “jornalísticos”
ainda estava em gestação nos
desvãos do tempo. Ou no ovo da serpente.
Para lembrar a metáfora que o sueco
Ingrid Bergman usou para nomear o clima
pré-nazista na Alemanha de Weimar,
assunto de um famoso filme seu.
Em 1º de abril de 1964, Bira estava
à frente da editoria da Tribuna do
Norte quando eclodiu o golpe militar e teve
de dar satisfações aos mandatários
da hora. Não demorou para que guantes
do arbítrio o retirassem do seio
do seu lar. Uma contemporânea sua,
a escritora Mailde Pinto, resumiu esses
acontecimentos sob a rubrica “Aconteceu
em 64”, nome do livro que dedicou
ao tema. Os fatos narrados por Mailde corroboram
amiúde o relato de Bira.
Os longos meses que Bira passou nas masmorras
do regime autoritário pós-64
não conseguiram fazê-lo abjurar
os seus valores cristãos-cívicos,
cristãos-nacionalistas, cristãos-políticos.
Nesse período, ele permaneceu, como
se verá, mais próximo à
visão de mundo dos comunistas com
quem dividiu celas – Luiz Maranhão,
Djalma Maranhão, Carlos Lima, Vulpiano
Cavalcanti, entre tantos outros –
do que com qualquer outra visão de
mundo, inclusive aquela que a Igreja tradicionalmente
pregava.
Os detalhes dessa experiência Bira
os contou no livro “...e lá
fora se falava em Liberdade” (Natal.
Sebo Vermelho: 2001).
Dissipadas as sombras do arbítrio,
Bira está em São Paulo, e
se entrega ao burburinho da Cidade Grande,
com suas ofertas inesgotáveis de
bens concretos ou simbólicos, de
vida luxuriante de prazeres e de trabalho.
E aí o jornalista macaibense, também
funcionário público dos Correios,
se desdobra em rotinas diárias e
noturnas de trabalho, estas últimas,
inicialmente no rádio, em seguida
na prestigiosa Folha de São Paulo.
Dessas experiências, Bira guarda lições
preciosas, como revela neste livro. Guarda
também modos de amizades que ali
começaram ou lá se consolidaram,
bens simbólicos inestimáveis
na contabilidade dos afetos e do crescimento
interior.
Uma dessas amizades responde pelo nome de
Carlos, o livreiro Carlos Lima, da Clima
Editora, e que encontrou em Bira o sócio
ideal para um projeto ousado no campo jornalístico.
O lançamento dos “Cadernos
do Rio Grande do Norte” se tornou
possível com a volta de Bira de São
Paulo, já aposentado dos Correios
e carente dos ares da província.
A experiência, com duração
de três anos, terminaria com a ida
de Bira para o Diário de Natal, jornal
onde, dezessete anos depois, encerraria
suas atividades profissionais em grande
estilo.
Outros apelos que já gestavam no
seu vasto ciclo de amizades logo o colocaram
no centro de um projeto artístico.
O local foi o “Beco da Glória”,
da cantora Glorinha Oliveira, onde se reuniam
jornalistas, poetas, boêmios todos,
evidentemente, fãs da sua voz inconfundível.
O radialista Luiz Cordeiro foi o pai da
ideia. Mas a presença de Bira no
grupo foi fundamental para o nascimento
do Clube dos Amantes da Boa Música,
grêmio que logo ficou conhecido em
toda a cidade pela sua sigla: Clambom. Para
se aquilatar a verdadeira importância
desse clube é preciso se ler o livro
“Clambom: um clube em defesa da boa
música – 16 anos defendendo
a Música Popular Brasileira”,
que Bira escreveu em parceria com o clambonista
Pedro William Cavalcanti, em 2008 que, à
época, dirigia esse clube. O nosso
“A estrela conta”, relato da
vida da cantora Glorinha Oliveira, traz
episódios coincidentes com os desse
livro.
Nesse ínterim, Bira descobriu o pendor
para as viagens, longas viagens que o levaram
a países os mais exóticos,
os mais distantes, os mais corajosos. Algumas
delas deixaram lembranças imorredouras,
como ele destaca em dois capítulos
deste livro; outros foram tão instigantes,
que ele precisou retornar para conferir
um detalhe, uma emoção incompleta,
uma bebida exótica ou um prato tradicional.
Não obstante, o seu grande interesse
pelas viagens guarda distância sensível
do mero “turismo de paisagem”
– aquele que se limita a retratar
monumentos características de determinado
país, juntando a estes a figura do
próprio viajante e/ou de seu grupo
de acompanhantes. Para Bira, a viagem é,
antes de tudo, pesquisa de costumes e comportamentos,
elementos que todo jornalista costuma valorizar
na busca da compreensão das motivações
humanas.
As testemunhas e protagonistas da vida do
jornalista Ubirajara Macedo, seus afetos
familiares, estão todos aqui. A começar
pela primeira esposa, Doralice, com quem
teve os filhos Júlio Mário,
Rosana e Isabela. Na companhia de Doralice
a família cresceu com a “adoção”
de Rodrigo e Marília, filhos do primeiro
casamento de Doralice. Veio depois o divórcio,
e, na sequência, o casamento em segundas
núpcias com Maria de Lourdes Pereira,
viúva e mãe de Viveca e Virna
que, com o passar dos anos, se tornaram
também filhas dele, na medida em
que o cativaram e foram respectivamente
cativadas por ele.
Enfim, teve os amigos, inúmeros,
que aparecem conforme a época e as
circunstâncias, desempenhando, cada
qual, um papel às vezes decisivo
nas mudanças de rota que a vida lhe
abriu, mas nunca o de meros coadjuvantes,
haja vista o significado que Bira atribui
à amizade, valor superlativo em sua
história.
Nessa economia de afetos familiares, há
abundantes provas de amor filial e paternal.
Declarações em prosa e em
verso do próprio narrador e uma carta
da sua filha Rosana, retinta de admiração
e ternura filial, escrita por ocasião
do 85º aniversário de Bira.
Faceta menos conhecida, tendo em vista a
dimensão que o fazer jornalístico
ocupou na sua vida, o poeta Bira também
se revela nesta obra. Ele admite ser um
poeta bissexto, ou seja, episódico,
ocasional, cedendo muito raramente aos apelos
da musa. Mas sua poesia se mostra eclética,
desdobramento natural de suas preocupações
sociais e humanas.
Era previsível que uma obra desta
natureza se encerrasse sob uma atmosfera
de desvelos e desprendimentos em torno do
eixo familiar, confirmando o quanto a família
é verdade, como reza o verso de Pessoa.
Nosso trabalho foi traçar um roteiro
para esse panorama simultaneamente uno e
múltiplo, como o é toda vida
humana. Depois, precisamos questionar suas
possibilidades, explorar suas lembranças,
dar-lhe uma forma coerente e regular até
o seu desfecho, corrigindo e retocando o
texto conforme as exigências nossas,
digo: nossas e do narrador, mas em ordem
inversa de prioridade. Fatos, nomes, datas
e pessoas foram checados por nós,
na medida em que isso foi possível.
Enfim, seguimos um procedimento idêntico
ao que utilizamos na escritura de “A
estrela conta – memórias de
Glorinha Oliveira” (A.S. Livros, Natal:
2003).
Caberiam alguns lugares-comuns neste último
parágrafo, porém preferimos
dispensá-los do leitor, a fim de
não retardar por mais tempo o seu
prazer de conhecer a história do
jornalista Ubirajara Macedo, um homem do
seu tempo. Seria preciso dizer mais a seu
favor? Acrescentaríamos que ele se
mostrou à altura dos desafios que
teve à frente e deu provas de amor
à liberdade.
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