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                                      Estadual pela Verdade, Memória e 
                                      Justiça RN 
                                      Centro 
                                      de Direitos Humanos e Memória Popular 
                                      CDHMP 
                                      Rua Vigário Bartolomeu, 635 Salas 
                                      606 e 607 Centro 
                                      CEP 59.025-904 Natal RN 
                                      84 3211.5428 
                                      enviardados@gmail.com 
                                    
                                       
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                                      da Verdade Brasil | Comissões 
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                                      da Verdade RN 
                                    Inicial 
                                      | Reprimidos 
                                      RN | Mortos 
                                      Desaparecidos Políticos RN | 
                                      Repressores 
                                      RN 
                                     
                                       
                                    
                                    Militantes 
                                      Reprimidos no Rio Grande do Norte 
                                      Raimundo Ubirajara de Macedo 
                                      Livros 
                                      e Publicações 
                                    No 
                                      Outono da Memória 
                                      O Jornalista Ubirajara Macedo 
                                      Conta a História da Sua Vida 
                                      Nelson Patriota, 2010 
                                    5. 
                                      Nos calabouços da “Redentora” 
                                       
                                    Encerrada 
                                      a missa oficiada por cônego Luís 
                                      Wanderley, com suas alusões tímidas, 
                                      mas sempre elogiosas à “Revolução 
                                      de 31 de março”, saí 
                                      com alguns colegas para uma festividade 
                                      nos Correios alusiva à passagem do 
                                      primeiro ano de gestão da nova diretoria 
                                      da instituição. A festa, cujo 
                                      lugar me fugiu de todo da memória, 
                                      transcorreu num clima de descontração, 
                                      apesar do quadro de inquietação 
                                      que reinava lá fora. Lembro até 
                                      que houve quem tivesse dado vivas ao Governo 
                                      João Goulart ( já deposto 
                                      na véspera, pela força), desafiando 
                                      a nova ordem emanada dos quartéis. 
                                     
                                      No fim da tarde, de volta à redação 
                                      da Tribuna, não precisei mais das 
                                      informações privilegiadas 
                                      que o governador Aluízio Alves poderia 
                                      me passar em primeira mão, porque, 
                                      a partir daquele dia 2 de abril, a censura 
                                      passou a viger em todos os meios de comunicação 
                                      do país, a princípio de forma 
                                      tímida e envergonhada. Mas, com o 
                                      passar do tempo, os senhores censores começaram 
                                      a mostrar o rosto autoritário, o 
                                      que, aliás, estava em perfeita sintonia 
                                      com o espírito do establishment, 
                                      cujo núcleo se deslocara das instituições 
                                      clássicas da República, ou 
                                      seja, os Três Poderes, para o interior 
                                      dos órgãos de repressão 
                                      e dos conchavos inacessíveis à 
                                      sociedade civil.  
                                     
                                      Portanto, não fazia diferença 
                                      para mim se a informação de 
                                      caráter nacional fosse política, 
                                      econômica ou o quê; viesse da 
                                      Agência Estado, da UPI ou da Associated 
                                      Press, da Reuters ou da France Presse, porque 
                                      tudo tinha de passar pelo crivo dos censores. 
                                      E nada do que fosse censurado poderia ser 
                                      publicado, sob pena de graves prejuízos 
                                      para o veículo infrator. 
                                     
                                      Mas meus dias de liberdade estavam no fim. 
                                      Na tarde do dia 7 de abril, uma patrulha 
                                      do Exército invadiu a agência 
                                      dos Correios, onde eu trabalhava pela manhã, 
                                      e deu voz de prisão a mim e a outros 
                                      colegas de trabalho, dentre eles, José 
                                      Fernandes Machado, Itan Pereira e José 
                                      Antônio da Silva, este último, 
                                      chefe do setor postal. Dos quatro, só 
                                      eu e Zé Fernandes “fomos em 
                                      cana”. Os demais foram soltos no mesmo 
                                      dia, após prestarem declarações. 
                                       
                                     
                                      No dia 8, começaram a chegar outros 
                                      presos políticos. O primeiro deles 
                                      foi o livreiro Carlos Lima, com quem eu 
                                      trabalhara na “Folha da Tarde” 
                                      como colunista. Na época, uma das 
                                      minhas preocupações era a 
                                      campanha “O Petróleo é 
                                      Nosso”, lançada pelo escritor 
                                      Monteiro Lobato. Esse assunto foi tema de 
                                      algumas colunas que escrevi para o “Folha 
                                      da Tarde”. 
                                     
                                      Em seguida, foi a vez dos irmãos 
                                      Paulo e Guaracy Oliveira, acadêmicos 
                                      de Direito. A primeira reação 
                                      que esboçaram foi a de desconfiança 
                                      com relação às paredes 
                                      das celas. Eles temiam que elas contivessem 
                                      microfones embutidos ou outro sistema de 
                                      escuta. Assim, nos primeiros dias mal falavam 
                                      entre si, temendo novas acusações 
                                      acrescentadas a seus processos.  
                                     
                                      Dali a mais 20 dias, a sorte soprou a meu 
                                      favor, e pude deixar a carceragem do 16º 
                                      Regimento de Infantaria-RI. 
                                     
                                      Mas a ida para casa não foi prá 
                                      valer, porque doze dias depois, novamente 
                                      durante o meu expediente, no horário 
                                      matutino, outra patrulha do Exército 
                                      me recolheria à carceragem do 16º 
                                      RI. Dessa vez, por um período de 
                                      dez longos meses, que só terminaram 
                                      com um habeas corpus impetrado pelo jurista 
                                      Ítalo Pinheiro, no dia 19 de março 
                                      de 1965. 
                                     
                                      As razões da minha prisão 
                                      não divergiram, no essencial, das 
                                      dos demais companheiros que se revezaram 
                                      pelas celas do 16º RI e de outros calabouços 
                                      destinados aos então chamados “comunistas” 
                                      ou “subversivos”. Subversão 
                                      e desrespeito aos militares, participação 
                                      em comitês da campanha “O Petróleo 
                                      é Nosso”, delação 
                                      verbal, não importando se autêntica 
                                      ou forjada. Qualquer um desses motivos era 
                                      suficiente para levar à prisão 
                                      um cidadão brasileiro naqueles dias 
                                      de fúria e intolerância. 
                                     
                                      Tivesse vivido a experiência do cárcere 
                                      em total solidão, creio que ela me 
                                      teria levado ao desespero. Mas, felizmente 
                                      para mim e para meus companheiros de desdita, 
                                      não havia celas suficientes nos quartéis 
                                      para abrigar prisioneiros políticos 
                                      individualmente. E a cada dia que passava, 
                                      duplicava e triplicava o número de 
                                      “subversivos”, genuínos 
                                      ou inventados pelo arbítrio, que 
                                      precisavam ser acomodados nelas. Em vista 
                                      disso, estabeleceu-se desde os primeiros 
                                      dias de reclusão um forte sentimento 
                                      de afinidade e companheirismo entre nós. 
                                      Em alguns casos, esses sentimentos deram 
                                      lugar a grandes amizades. Durante os dez 
                                      meses em que estive prisioneiro no 16º 
                                      RI, em pelo menos seis meses tive alguns 
                                      colegas fixos, como o ex-secretário 
                                      de Educação de Djalma Maranhão, 
                                      Moacyr de Góes. Nesse período, 
                                      discutimos, divergimos, convergimos, debatemos 
                                      os mais diversos assuntos. Daí resultou 
                                      uma amizade que só fez crescer na 
                                      liberdade. 
                                     
                                      Uma crônica típica daquela 
                                      época envolveu o fato de que, ao 
                                      ser preso, a mulher de Moacyr estava com 
                                      gravidez bem avançada. A criança 
                                      nasceu, portanto, com o pai na prisão. 
                                      Esse fato levou Moacyr a uma profunda depressão, 
                                      o que nos preocupou de modo especial. Para 
                                      retirá-lo do torpor, passamos a discutir 
                                      entre nós o nome que deveria ser 
                                      dado ao “herdeiro”, chegando 
                                      alguns a proporem os nomes de Fidel Castro 
                                      ou Che Guevara. Muito católico, Moacyr 
                                      decidiu ali mesmo no cárcere, homenagear 
                                      uma das suas grandes admirações 
                                      francesas, que era o escritor também 
                                      católico Léon Bloy. O filho, 
                                      portanto, ganhou o nome de Léon (atualmente, 
                                      destacado nome no cinema e da televisão). 
                                     
                                      Djalma Maranhão, o prefeito cassado 
                                      e injustiçado que morreria no exílio 
                                      uruguaio em 1971, vítima de uma saudade 
                                      de sua terra que ele não conseguia 
                                      mais suportar, foi nosso companheiro diário 
                                      de cárcere, durante vários 
                                      meses, nos ajudando a compreender a dimensão 
                                      e a magnitude dos acontecimentos que nos 
                                      assaltavam diariamente, graças à 
                                      sua arguta visão política. 
                                      Habitualmente, Djalma nos dava lições 
                                      de vida, nos infundindo ânimo para 
                                      suportar os dias e noites sem liberdade. 
                                     
                                      Quando a essas conversas se somaram companheiros 
                                      como Aldo Tinoco, o pai, Carlos Lima, Paulo 
                                      Frassinetti, Meri Medeiros, Guaraci Queiroz, 
                                      Vulpiano Cavalcanti, Geraldo Pereira (telegrafista 
                                      dos Correios e advogado das Ligas Camponesas 
                                      no Rio Grande do Norte), o líder 
                                      sindical Evlim Medeiros, a cela, que até 
                                      então parecia imensa, de tão 
                                      larga, ficou pequena. Em compensação, 
                                      nossas conversas ganharam nova dimensão 
                                      e profundidade, cada qual apresentando sua 
                                      experiência de vida, dando o seu testemunho, 
                                      reforçando as convicções 
                                      de cada um no acerto das nossas posições 
                                      políticas e nossa visão de 
                                      mundo, que preconizavam um mundo melhor 
                                      para todos os homens de boa vontade. Na 
                                      república com a qual sonhávamos 
                                      e pela qual lutávamos, inclusive 
                                      ali no cárcere, sabíamos que 
                                      a razão da justiça estava 
                                      do nosso lado. Portanto, aquele pesadelo 
                                      também passaria. 
                                     
                                      Eu sabia também que o nosso grupo 
                                      de prisioneiros políticos não 
                                      era o único a lutar pelas liberdades 
                                      democráticas. Nomes como os de Juliano 
                                      Siqueira e Luciano Almeida, entre outros, 
                                      verdadeiros exemplos de heroísmo 
                                      cívico nacional, eu só os 
                                      conhecia por ouvir falar, e sabia que eles 
                                      lutavam nas fileiras de frente da liberdade. 
                                      Sabia também o quanto tinham padecido 
                                      em cárceres mais sombrios do que 
                                      os em que fui enfurnado, juntamente com 
                                      meus companheiros. Eu já os admirava 
                                      desde esse tempo. 
                                     
                                      Quando retornei de São Paulo, aposentado 
                                      dos Correios, pude, finalmente, conhecer 
                                      Juliano e Luciano, e, ao conhecê-los, 
                                      passei a admirá-los ainda mais. Devo 
                                      a ambos, além da honra de tê-los 
                                      entre os meus amigos, o privilégio 
                                      de ter, do primeiro, um posfácio 
                                      no meu “...e lá fora se falava 
                                      em liberdade”, e, do segundo, a orelha 
                                      desse mesmo livro. 
                                     
                                      Voltando aos meus tempos prisionais, vejo 
                                      hoje que esse não foi um período 
                                      marcado só de más lembranças. 
                                      Para ser mais exato, diria que houve lugar 
                                      nele até para uma nota de ironia, 
                                      uma espécie de mote daqueles tempos, 
                                      com evidentes resultados contraditórios. 
                                      Refiro-me ao dia em que fui surpreendido 
                                      na minha cela por um anúncio que 
                                      se fazia lá fora, por meio de um 
                                      alto falante: “Venham todos hoje, 
                                      às 16 horas, em frente à catedral, 
                                      para agradecer a Deus por ter-nos livrado 
                                      do comunismo e nos dado a liberdade”. 
                                      A ironia daquele apelo contraditório 
                                      era flagrante em mim próprio. Mas 
                                      não só em mim. Centenas, milhares 
                                      de brasileiros naquela mesma hora estavam 
                                      impossibilitados de comparecer à 
                                      tal convocação, bem como de 
                                      agradecer a Deus pelo dom da liberdade. 
                                      Exatamente por estarem privados dela. De 
                                      fato, esses excluídos da liberdade 
                                      sofriam sob o jugo de uma ditadura fascista, 
                                      enquanto lá fora se falava em liberdade... 
                                      Essa nota de contradição foi 
                                      a tônica do depoimento que escrevi 
                                      sobre minhas memórias do cárcere, 
                                      publicadas em 2001 e que tiveram o título 
                                      de “...e lá fora se falava 
                                      em liberdade”.  
                                     
                                      Quanto ao que mais me magoou como prisioneiro 
                                      político, digo, sem vacilar, que 
                                      foi a delação de colegas de 
                                      repartição; mais do que a 
                                      delação, o júbilo que 
                                      li nos rostos de alguns deles, quando um 
                                      tenente do Exército veio com a missão 
                                      de me conduzir ao 16º RI, fato que 
                                      foi confirmado por minha mulher na época, 
                                      Doralice Varela, também funcionária 
                                      dos Correios. Como se não bastasse 
                                      o fato de se rejubilarem com minha desgraça, 
                                      ainda se acharam no direito de me tacharem 
                                      de “cínico” por eu ter 
                                      tido a hombridade de dizer, em alto e bom 
                                      som, diante de todos eles, que recebia com 
                                      tranquilidade mais outra prisão, 
                                      por ser um homem limpo, o que não 
                                      acontecia com os que estavam agora “puxando 
                                      o saco dos paus-mandados da repressão”. 
                                     
                                      Em compensação, Dora, como 
                                      eu costumava chamar Doralice, me apoiou 
                                      incondicionalmente e me visitava religiosamente 
                                      todos os sábados, quando tínhamos 
                                      permissão de receber visitas no cárcere. 
                                       
                                     
                                      Em 11 de março de 1966, meu advogado, 
                                      o jurista Ítalo Pinheiro, conseguiu 
                                      um habeas corpus em meu favor, transformando 
                                      a prisão celular em prisão 
                                      domiciliar. Assim, eu tinha de me apresentar 
                                      toda quarta-feira ao quartel-general. De 
                                      volta aos Correios, fui transferido para 
                                      São Paulo, em junho de 1966. Lá, 
                                      eu começaria uma nova fase na minha 
                                      vida profissional, com experiências 
                                      no radiojornalismo, na imprensa escrita, 
                                      mas também no setor empresarial. 
                                       
                                     
                                      Cheguei a São Paulo num dia de São 
                                      João, e embora nenhum balão 
                                      cruzasse os céus, o que seria impensável 
                                      numa metrópole com aquelas dimensões, 
                                      havia um ar de festa junina em toda a cidade, 
                                      o que eu atribuí à grande 
                                      migração de irmãos 
                                      nordestinos para a “pauliceia”. 
                                      Isso me trouxe de imediato à lembrança 
                                      o clima daquelas festas no Nordeste nessa 
                                      época. Havia arraiais, barracas com 
                                      comidas típicas nordestinas, Luiz 
                                      Gonzaga cantando xotes e forrós nos 
                                      sistemas de alto-falantes instalados nas 
                                      praças; não faltou nem mesmo 
                                      uma quadrilha junina imitando a tradicional 
                                      indumentária matuta que rapazes e 
                                      moças costumam usar nessas ocasiões 
                                      no interior do Nordeste. Devido a isso, 
                                      senti-me um pouco em casa.  
                                     
                                      Era noite fechada quando cheguei à 
                                      pensão onde ficaria nos primeiros 
                                      dias paulistanos. Era uma hospedagem popular, 
                                      mas isso não me preocupou, porque 
                                      a localização compensava o 
                                      sacrifício do conforto, por ficar 
                                      nas proximidades da Praça da Sé, 
                                      referência importante para mim, porque 
                                      o prédio dos Correios onde eu iria 
                                      trabalhar jazia naquelas imediações. 
                                      Dias depois, mais familiarizado com a cidade, 
                                      me mudei para uma pensão mais confortável, 
                                      na Rua da Aurora. Quando a família 
                                      chegou, consegui casa no bairro das Perdizes. 
                                    ^ 
                                      Subir 
                                    < 
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