Comitê
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Raimundo Ubirajara de Macedo
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Outono da Memória
O Jornalista Ubirajara Macedo
Conta a História da Sua Vida
Nelson Patriota, 2010
5.
Nos calabouços da “Redentora”
Encerrada
a missa oficiada por cônego Luís
Wanderley, com suas alusões tímidas,
mas sempre elogiosas à “Revolução
de 31 de março”, saí
com alguns colegas para uma festividade
nos Correios alusiva à passagem do
primeiro ano de gestão da nova diretoria
da instituição. A festa, cujo
lugar me fugiu de todo da memória,
transcorreu num clima de descontração,
apesar do quadro de inquietação
que reinava lá fora. Lembro até
que houve quem tivesse dado vivas ao Governo
João Goulart ( já deposto
na véspera, pela força), desafiando
a nova ordem emanada dos quartéis.
No fim da tarde, de volta à redação
da Tribuna, não precisei mais das
informações privilegiadas
que o governador Aluízio Alves poderia
me passar em primeira mão, porque,
a partir daquele dia 2 de abril, a censura
passou a viger em todos os meios de comunicação
do país, a princípio de forma
tímida e envergonhada. Mas, com o
passar do tempo, os senhores censores começaram
a mostrar o rosto autoritário, o
que, aliás, estava em perfeita sintonia
com o espírito do establishment,
cujo núcleo se deslocara das instituições
clássicas da República, ou
seja, os Três Poderes, para o interior
dos órgãos de repressão
e dos conchavos inacessíveis à
sociedade civil.
Portanto, não fazia diferença
para mim se a informação de
caráter nacional fosse política,
econômica ou o quê; viesse da
Agência Estado, da UPI ou da Associated
Press, da Reuters ou da France Presse, porque
tudo tinha de passar pelo crivo dos censores.
E nada do que fosse censurado poderia ser
publicado, sob pena de graves prejuízos
para o veículo infrator.
Mas meus dias de liberdade estavam no fim.
Na tarde do dia 7 de abril, uma patrulha
do Exército invadiu a agência
dos Correios, onde eu trabalhava pela manhã,
e deu voz de prisão a mim e a outros
colegas de trabalho, dentre eles, José
Fernandes Machado, Itan Pereira e José
Antônio da Silva, este último,
chefe do setor postal. Dos quatro, só
eu e Zé Fernandes “fomos em
cana”. Os demais foram soltos no mesmo
dia, após prestarem declarações.
No dia 8, começaram a chegar outros
presos políticos. O primeiro deles
foi o livreiro Carlos Lima, com quem eu
trabalhara na “Folha da Tarde”
como colunista. Na época, uma das
minhas preocupações era a
campanha “O Petróleo é
Nosso”, lançada pelo escritor
Monteiro Lobato. Esse assunto foi tema de
algumas colunas que escrevi para o “Folha
da Tarde”.
Em seguida, foi a vez dos irmãos
Paulo e Guaracy Oliveira, acadêmicos
de Direito. A primeira reação
que esboçaram foi a de desconfiança
com relação às paredes
das celas. Eles temiam que elas contivessem
microfones embutidos ou outro sistema de
escuta. Assim, nos primeiros dias mal falavam
entre si, temendo novas acusações
acrescentadas a seus processos.
Dali a mais 20 dias, a sorte soprou a meu
favor, e pude deixar a carceragem do 16º
Regimento de Infantaria-RI.
Mas a ida para casa não foi prá
valer, porque doze dias depois, novamente
durante o meu expediente, no horário
matutino, outra patrulha do Exército
me recolheria à carceragem do 16º
RI. Dessa vez, por um período de
dez longos meses, que só terminaram
com um habeas corpus impetrado pelo jurista
Ítalo Pinheiro, no dia 19 de março
de 1965.
As razões da minha prisão
não divergiram, no essencial, das
dos demais companheiros que se revezaram
pelas celas do 16º RI e de outros calabouços
destinados aos então chamados “comunistas”
ou “subversivos”. Subversão
e desrespeito aos militares, participação
em comitês da campanha “O Petróleo
é Nosso”, delação
verbal, não importando se autêntica
ou forjada. Qualquer um desses motivos era
suficiente para levar à prisão
um cidadão brasileiro naqueles dias
de fúria e intolerância.
Tivesse vivido a experiência do cárcere
em total solidão, creio que ela me
teria levado ao desespero. Mas, felizmente
para mim e para meus companheiros de desdita,
não havia celas suficientes nos quartéis
para abrigar prisioneiros políticos
individualmente. E a cada dia que passava,
duplicava e triplicava o número de
“subversivos”, genuínos
ou inventados pelo arbítrio, que
precisavam ser acomodados nelas. Em vista
disso, estabeleceu-se desde os primeiros
dias de reclusão um forte sentimento
de afinidade e companheirismo entre nós.
Em alguns casos, esses sentimentos deram
lugar a grandes amizades. Durante os dez
meses em que estive prisioneiro no 16º
RI, em pelo menos seis meses tive alguns
colegas fixos, como o ex-secretário
de Educação de Djalma Maranhão,
Moacyr de Góes. Nesse período,
discutimos, divergimos, convergimos, debatemos
os mais diversos assuntos. Daí resultou
uma amizade que só fez crescer na
liberdade.
Uma crônica típica daquela
época envolveu o fato de que, ao
ser preso, a mulher de Moacyr estava com
gravidez bem avançada. A criança
nasceu, portanto, com o pai na prisão.
Esse fato levou Moacyr a uma profunda depressão,
o que nos preocupou de modo especial. Para
retirá-lo do torpor, passamos a discutir
entre nós o nome que deveria ser
dado ao “herdeiro”, chegando
alguns a proporem os nomes de Fidel Castro
ou Che Guevara. Muito católico, Moacyr
decidiu ali mesmo no cárcere, homenagear
uma das suas grandes admirações
francesas, que era o escritor também
católico Léon Bloy. O filho,
portanto, ganhou o nome de Léon (atualmente,
destacado nome no cinema e da televisão).
Djalma Maranhão, o prefeito cassado
e injustiçado que morreria no exílio
uruguaio em 1971, vítima de uma saudade
de sua terra que ele não conseguia
mais suportar, foi nosso companheiro diário
de cárcere, durante vários
meses, nos ajudando a compreender a dimensão
e a magnitude dos acontecimentos que nos
assaltavam diariamente, graças à
sua arguta visão política.
Habitualmente, Djalma nos dava lições
de vida, nos infundindo ânimo para
suportar os dias e noites sem liberdade.
Quando a essas conversas se somaram companheiros
como Aldo Tinoco, o pai, Carlos Lima, Paulo
Frassinetti, Meri Medeiros, Guaraci Queiroz,
Vulpiano Cavalcanti, Geraldo Pereira (telegrafista
dos Correios e advogado das Ligas Camponesas
no Rio Grande do Norte), o líder
sindical Evlim Medeiros, a cela, que até
então parecia imensa, de tão
larga, ficou pequena. Em compensação,
nossas conversas ganharam nova dimensão
e profundidade, cada qual apresentando sua
experiência de vida, dando o seu testemunho,
reforçando as convicções
de cada um no acerto das nossas posições
políticas e nossa visão de
mundo, que preconizavam um mundo melhor
para todos os homens de boa vontade. Na
república com a qual sonhávamos
e pela qual lutávamos, inclusive
ali no cárcere, sabíamos que
a razão da justiça estava
do nosso lado. Portanto, aquele pesadelo
também passaria.
Eu sabia também que o nosso grupo
de prisioneiros políticos não
era o único a lutar pelas liberdades
democráticas. Nomes como os de Juliano
Siqueira e Luciano Almeida, entre outros,
verdadeiros exemplos de heroísmo
cívico nacional, eu só os
conhecia por ouvir falar, e sabia que eles
lutavam nas fileiras de frente da liberdade.
Sabia também o quanto tinham padecido
em cárceres mais sombrios do que
os em que fui enfurnado, juntamente com
meus companheiros. Eu já os admirava
desde esse tempo.
Quando retornei de São Paulo, aposentado
dos Correios, pude, finalmente, conhecer
Juliano e Luciano, e, ao conhecê-los,
passei a admirá-los ainda mais. Devo
a ambos, além da honra de tê-los
entre os meus amigos, o privilégio
de ter, do primeiro, um posfácio
no meu “...e lá fora se falava
em liberdade”, e, do segundo, a orelha
desse mesmo livro.
Voltando aos meus tempos prisionais, vejo
hoje que esse não foi um período
marcado só de más lembranças.
Para ser mais exato, diria que houve lugar
nele até para uma nota de ironia,
uma espécie de mote daqueles tempos,
com evidentes resultados contraditórios.
Refiro-me ao dia em que fui surpreendido
na minha cela por um anúncio que
se fazia lá fora, por meio de um
alto falante: “Venham todos hoje,
às 16 horas, em frente à catedral,
para agradecer a Deus por ter-nos livrado
do comunismo e nos dado a liberdade”.
A ironia daquele apelo contraditório
era flagrante em mim próprio. Mas
não só em mim. Centenas, milhares
de brasileiros naquela mesma hora estavam
impossibilitados de comparecer à
tal convocação, bem como de
agradecer a Deus pelo dom da liberdade.
Exatamente por estarem privados dela. De
fato, esses excluídos da liberdade
sofriam sob o jugo de uma ditadura fascista,
enquanto lá fora se falava em liberdade...
Essa nota de contradição foi
a tônica do depoimento que escrevi
sobre minhas memórias do cárcere,
publicadas em 2001 e que tiveram o título
de “...e lá fora se falava
em liberdade”.
Quanto ao que mais me magoou como prisioneiro
político, digo, sem vacilar, que
foi a delação de colegas de
repartição; mais do que a
delação, o júbilo que
li nos rostos de alguns deles, quando um
tenente do Exército veio com a missão
de me conduzir ao 16º RI, fato que
foi confirmado por minha mulher na época,
Doralice Varela, também funcionária
dos Correios. Como se não bastasse
o fato de se rejubilarem com minha desgraça,
ainda se acharam no direito de me tacharem
de “cínico” por eu ter
tido a hombridade de dizer, em alto e bom
som, diante de todos eles, que recebia com
tranquilidade mais outra prisão,
por ser um homem limpo, o que não
acontecia com os que estavam agora “puxando
o saco dos paus-mandados da repressão”.
Em compensação, Dora, como
eu costumava chamar Doralice, me apoiou
incondicionalmente e me visitava religiosamente
todos os sábados, quando tínhamos
permissão de receber visitas no cárcere.
Em 11 de março de 1966, meu advogado,
o jurista Ítalo Pinheiro, conseguiu
um habeas corpus em meu favor, transformando
a prisão celular em prisão
domiciliar. Assim, eu tinha de me apresentar
toda quarta-feira ao quartel-general. De
volta aos Correios, fui transferido para
São Paulo, em junho de 1966. Lá,
eu começaria uma nova fase na minha
vida profissional, com experiências
no radiojornalismo, na imprensa escrita,
mas também no setor empresarial.
Cheguei a São Paulo num dia de São
João, e embora nenhum balão
cruzasse os céus, o que seria impensável
numa metrópole com aquelas dimensões,
havia um ar de festa junina em toda a cidade,
o que eu atribuí à grande
migração de irmãos
nordestinos para a “pauliceia”.
Isso me trouxe de imediato à lembrança
o clima daquelas festas no Nordeste nessa
época. Havia arraiais, barracas com
comidas típicas nordestinas, Luiz
Gonzaga cantando xotes e forrós nos
sistemas de alto-falantes instalados nas
praças; não faltou nem mesmo
uma quadrilha junina imitando a tradicional
indumentária matuta que rapazes e
moças costumam usar nessas ocasiões
no interior do Nordeste. Devido a isso,
senti-me um pouco em casa.
Era noite fechada quando cheguei à
pensão onde ficaria nos primeiros
dias paulistanos. Era uma hospedagem popular,
mas isso não me preocupou, porque
a localização compensava o
sacrifício do conforto, por ficar
nas proximidades da Praça da Sé,
referência importante para mim, porque
o prédio dos Correios onde eu iria
trabalhar jazia naquelas imediações.
Dias depois, mais familiarizado com a cidade,
me mudei para uma pensão mais confortável,
na Rua da Aurora. Quando a família
chegou, consegui casa no bairro das Perdizes.
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