Comitê
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Raimundo Ubirajara de Macedo
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Outono da Memória
O Jornalista Ubirajara Macedo
Conta a História da Sua Vida
Nelson Patriota, 2010
4.
Da “Intentona” aos comunistas
A
revolução comunista de 1935
entrou em minha vida quando, do quintal
da casa de meus pais, que ficava na Praia
da Limpa (hoje bairro de Santos Reis), brincando
com uns amigos, ouvi disparos de tiros de
arma de fogo. Eram os soldados do 21º
batalhão que tinham se sublevado
e, guiados por ideais socialistas, tomaram
o quartel da cidade, localizado no bairro
da Cidade Alta. A troca de tiros foi intensa
e durou três dias, resultando na morte
do soldado Luiz Gonzaga, além de
ter deixado muitos feridos de ambos os lados
da refrega.
Em outros pontos da cidade os comunistas
se fizeram conhecer, e, no fim da tarde
do dia 23 de novembro, início do
movimento, um governo popular revolucionário
assumiu os destinos da cidade. Pouco a pouco,
os natalenses foram se refazendo do choque
sofrido pelo inacreditável acontecimento,
do qual muitos se deram conta dentro de
suas próprias casas. Além
do mais, quem poderia prever os desdobramentos
de um fato político daquela magnitude,
sem precedente na história do Estado?
Por essa razão, os três dias
de duração da chamada “intentona”
foram (dias) de pânico, de muita correria
pelas ruas, boatos de toda espécie.
Medo! Sitiado em casa, a nada assisti, porque
meu pai, severíssimo, me manteve
sob ordens estritas de não sair para
a rua, sob nenhum pretexto.
Eu tinha quinze anos de idade em 1935 e,
embora morto de curiosidade para saber dos
acontecimentos que estavam sacudindo o marasmo
da então pacata Natal, não
tinha uma noção muito clara
do que fosse ser comunista. Sabia, apenas,
que não era uma coisa boa, pelas
observações e imprecações
que meu pai dirigia contra eles, fosse respondendo
a uma pergunta da minha mãe, fosse
provocado por alguma visita, aliás,
coisa frequente durante o brevíssimo
“governo popular revolucionário”
que tomou de assalto a cidade.
Meu pai devia estar mais bem informado sobre
tudo o que acontecia de importante na cidade,
até porque ele trabalhava numa repartição
federal, aonde as notícias chegavam
com mais rapidez. Talvez por isso nos passasse,
além do temor dos comunistas, a convicção
de que o movimento não prosperaria,
entre outras razões, porque não
tinha apoio popular. “O povo de Natal
não simpatiza com comunistas e logo
que esse tal de governo popular revolucionário
for deposto, aí é que não
vai querer conversa com eles”, ouvi
meu pai comentar em conversa com um amigo
que o visitou no segundo dia do movimento.
A lembrança mais nítida que
tenho desses três dias é de
uma sucessão de rostos estranhos
– homens, mulheres, meninos e meninas
– que chegavam à nossa casa,
visivelmente nervosos, agitados, temendo
o pior dos cenários: a continuidade
do governo dos comunistas. Meu pai era logo
questionado sobre essa possibilidade e sua
resposta era clara: o movimento não
duraria nem uma semana. Minha mãe,
por via das dúvidas, sempre recorria
aos seus santos e se refugiava nas orações.
De minha parte, eu procurava ouvir o máximo
que podia das conversas dos adultos, principalmente
os comentários que meu pai fazia
à noite, depois de se informar dos
últimos acontecimentos pelo rádio.
Outro fato de que me recordo é que
as aulas foram interrompidas nas escolas
da cidade até que a ordem fosse restaurada.
De minha parte, como nessa época
eu estudava em casa, recebendo lições
do professor Fagundes e que eram reforçadas
por meu pai, que fora professor primário,
preparando-me para o curso de admissão
do Ateneu, não tive mudanças
impactantes na minha rotina, afora o fato
de ter de permanecer em casa “de castigo”.
Não seria de admirar se eu passasse
a ter uma verdadeira ojeriza de comunista.
E isso realmente aconteceu. A partir daquele
acontecimento, comecei a comungar na cartilha
do preconceito político, mas o fazia
por inexperiência, desinformação
e imaturidade, conjugando comunista como
“comedor de fígado de criancinha”
e outras aberrações amplamente
divulgadas pela impressa e pelo “sistema”,
como se dizia naquela época, referindo-se
àquilo que, nos anos 1960, o presidente
Jânio Quadros denominaria de “forças
ocultas”.
Quando passei a conhecer de perto alguns
verdadeiros comunistas, minha opinião
foi se modificando substancialmente. O que
não me convenceria, porém,
do acerto de suas ideias, sobretudo da ideologia
da revolução das massas com
vistas à implantação
de um governo comunista. Eu discordava sobretudo
do método, ou melhor, do meio para
se alcançar o tal estado de coletivização
da propriedade e dos meios de produção
e outros dogmas “vermelhos”:
a revolução das massas.
Mas o fato de ter sido preso, em 1964, e
posto numa cela juntamente com militantes
de esquerda como Djalma Maranhão,
Vulpiano Cavalcanti, Evlim Medeiros, e Aldo
Tinoco, sem falar que a Coluna Prestes se
tornara motivo de admiração
das esquerdas brasileiras, acenando com
uma possibilidade de mudanças sociais,
políticas e econômicas, eu
não poderia ficar indiferente a acontecimentos
como esses, tão significativos na
vida política brasileira. Essas pessoas
me fizeram reconsiderar minhas opiniões
sobre o comunismo, tendo em vista o grande
desprendimento de que eles davam provas,
além de serem um exemplo de dignidade,
coerência e convicção
política. E não demorou a
que eles ganhassem minha mais irrestrita
admiração.
Mas foi com Luiz Maranhão que me
identifiquei mais, politicamente. Ele tinha
um jeito diferente de ser comunista: quase
não fazia proselitismo, o que explica
o fato de pessoas como Ulisses de Góis
e Moacyr de Góes, dois “catolicões”
irredutíveis, o terem entre seus
grandes amigos.
Logo depois de eleito Deputado Estadual
pela Aliança Popular Nacionalista,
em 1958, Luiz Maranhão se envolveu
com uma de suas paixões, o cooperativismo,
que havia conhecido em sua viagem à
União Soviética. Queria dinamizar
a Cooperativa de Pescadores das Rocas, e
convidou para presidente justamente seu
amigo Ulisses de Góis. Não
é pouco dizer que Ulisses era, à
época, presidente da Congregação
Mariana e diretor do jornal católico
A Ordem. A diretoria da entidade ficou com
um católico na presidência
e um comunista na vice! Cheguei a assistir
a posse dessa insólita dupla na cooperativa.
E com quem Luiz discutia filosofia? Com
o outro Góes, o Moacyr, que fora
Secretário de Educação
na segunda gestão de Djalma Maranhão
na Prefeitura de Natal. Luiz conhecia o
filósofo Nietzsche muito antes de
ele virar moda, e costumava fazer comentários
sobre sua obra. Uma das coisas que dizia,
para explicar sua paixão por Nietzsche,
era uma curta sentença: “Tem
um sol brilhando em tudo o que ele escreve”.
Ele refutava com veemência a ideia
de que Nietzsche tivesse inspirado os totalitarismos
de sua época, como o nazismo e o
fascismo.
Recordo que Luiz foi um dos palestrantes
do célebre ciclo de conferências
promovido pelo Ateneu Norte-Rio-Grandense,
no ano de 1943, na gestão do diretor
Alvamar Furtado de Mendonça. O evento
reuniu a nata dos estudantes desse colégio.
Dentre estes, Antônio Pinto de Medeiros,
Rivaldo Pinheiro, João Wilson Mendes
Melo e o próprio Luiz Maranhão,
cuja palestra enfocou a figura de Nietzsche
e sua imortal criação Zaratustra.
Como resultado disso, Luiz passou a ser
visto como um estudante diferenciado, dotado
de conhecimentos que extrapolavam em muito
a média dos seus colegas de estudos.
Meu
catolicismo também não foi
obstáculo no meu relacionamento com
Luiz Maranhão. Encontrei-o nas lutas
da Frente Ampla, a favor da candidatura
do marechal Lott, e logo nos aproximamos
um do outro. Eu gostava de ouvir Luiz repetir
uma frase do filósofo francês
Roger Garaudy, que resumia o conjunto de
suas crenças: “O outro mundo
é apenas este mundo que será
outro”. Para mim, embora católico,
a frase dizia o essencial, ou seja, que
era preciso mudar este mundo, transformando-o
num mundo melhor. Era essa a nossa utopia
coletiva e a perspectiva da minha luta e
da luta de todos os companheiros que passavam
pelos cárceres e grotões infernais
da ditadura, às vezes ao preço
da sua própria vida. Acreditávamos
firmemente que qualquer sacrifício
valeria a pena para se mudar o país.
Nesse ponto, acho que ninguém levou
mais longe a sua luta do que Luiz, nem pagou
um preço mais alto. Leitor de Nietzsche
e de Sartre, de Machado de Assis e de José
Lins do Rego, não conheci outro comunista
com mais cultura do que ele.
Minha visão religiosa significava,
já àquela época, que
eu não concebia que alguém
pensasse em viver sem Deus. Para mim, Deus
era uma referência indispensável,
tanto espiritual quanto filosoficamente.
Além do mais, minha religião
não admitia que se pregasse uma doutrina
declaradamente ateia e que só poderia
se materializar mediante uma grande carnificina
social que era camuflada pelo eufemismo
de “revolução do proletariado”
Aliás, na prisão descobri
que Vulpiano Cavalcanti, por exemplo, não
era ateu; seria, no máximo, agnóstico,
e não se furtava a falar desse assunto
ou de qualquer outro, se manifestando sempre
com ideias claras e firmes. Quem quer que
o conhecesse, de imediato era conquistado
pela personalidade forte que ele tinha e
que fazia dele um dos homens mais corajosos
de quantos passaram pelos cárceres
do fascismo tupiniquim daqueles dias.
Por isso, continuei um livre pensador, posição
política que sempre preservei por
considerá-la a mais condizente com
a minha visão de mundo, além
de mais próxima das minhas convicções
religiosas. Isso não impediu que
alguns “dedos-duros” dos Correios
garantissem que eu era comunista de carteirinha,
o que os levou a me denunciarem aos militares
de 64, até com um certo açodamento,
coisa que terminou sendo mal vista até
pelos agentes da inteligência do Exército,
como fiquei sabendo mais tarde. O coronel
Cleanto Siqueira, por exemplo, chegou a
dispensá-los, argumentando que não
havia necessidade de eles o procurarem.
Já devia estar percebendo que havia
mais armação do que fatos
por trás das denúncias que
faziam contra a minha pessoa.
Em matéria de “deduragem”,
porém, não fui a única
vítima. Pelo contrário, essa
foi uma prática que os algozes fardados
estimularam e que encontrou muitos “talentos”
na nossa fluída sociedade civil.
A sucessão de prisões que
acontecia a cada dia que passava, só
reforçava essa certeza. Creio até,
que a chamada revolução de
64 não teria durado nem dois anos,
quanto mais vinte, sem os dedos-duros voluntários
que atenderam ao primeiro chamado dos quartéis.
Nem por isso deixei de admirar a luta dos
comunistas e o sacrifício que eles
fizeram pelo Brasil em defesa de seus ideais,
pagando, muitas vezes, com a própria
vida.
Com base na minha própria experiência
de preso político, notei que as diferenças
ideológicas entre comunistas e não
comunistas eram pouco a pouco anuladas no
interior das masmorras das casernas. Ali,
todos eram brasileiros, nacionalistas e
internacionalistas, visando unicamente ao
bem do Brasil, embora diferenças
ideológicas os colocassem às
vezes em posições opostas.
Assim, se nunca fui comunista, jamais renunciei
às minhas ideias de homem de esquerda,
razão por que fui preso e perseguido
pela “Gloriosa”. Não
podendo entrar no Partidão, apesar
de todo o glamour que irradiava nacionalmente
o seu líder Carlos Prestes, o “Cavaleiro
da Esperança”, nas palavras
de Jorge Amado, fiz algumas opções
partidárias ao longo da vida. Como
me identificava com a tradição
trabalhista do PTB de Getúlio Vargas
e Leonel Brizola, entrei para esse partido
na época do Governo João Goulart.
O convite me foi feito pelo Deputado Estadual
Clóvis Motta, então presidente
regional do PTB no Estado.
O golpe de 64 conseguiu um feito inédito
na vida pública brasileira: fez a
esquerda não comunista e os comunistas
deixarem de lado suas diferenças
históricas e ideológicas e
se aliarem na defesa da liberdade.
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