Dom
Pedro Casaldáliga
Não
tão conhecido como mereceria, há
no Brasil um santo e herói: Pedro
María Casaldáliga. Santo por
sua fidelidade radical (no sentido etimológico
de ir às raízes) ao Evangelho,
e herói pelos riscos de vida enfrentados
e as adversidades sofridas.
Catalão de Barcelona, onde nasceu
em 1928, a 16 de fevereiro, Casaldáliga
ingressou na Ordem Claretiana, consagrada
às missões, onde foi ordenado
sacerdote em 1943. Impregnado da espiritualidade
dos Cursilhos de Cristandade, veio para
o Brasil e, em 1968, mergulhou na Amazônia.
Em 1971, nomearam-no bispo de uma prelazia
amazônica, à beira do suntuoso
rio Araguaia: São Félix do
Araguaia. Adotou como divisa princípios
que haveriam de nortear literalmente sua
atividade pastoral: "Nada possuir,
nada carregar, nada pedir, nada calar e,
sobretudo, nada matar". No dedo, como
insígnia episcopal, um anel de tucum,
que se tornou símbolo da espiritualidade
dos adeptos da Teologia da Libertação.
São Félix é um município
amazônico do Mato Grosso, situado
em frente à Ilha do Bananal, numa
área de 36.643 km2. Na década
de 1970, a ditadura militar (1964-1985)
ampliou a ferro e fogo as fronteiras agropecuárias
do Brasil, devastando parte da Amazônia
e atraindo para ali empresas latifundiárias
empenhadas em derrubar árvores para
abrir pastos ao rebanho bovino. Casaldáliga,
pastor de um povo sem rumo e ameaçado
pelo trabalho escravo, tomou-lhe a defesa,
entrando em choque com os grandes fazendeiros;
as empresas agropecuárias, mineradoras
e madeireiras; os políticos que,
em troca de apoio financeiro e votos, acobertavam
a degradação do meio ambiente
e legalizavam a dilatação
fundiária sem exigir respeito às
leis trabalhistas.
Dom Pedro tem sido alvo de inúmeras
ameaças de morte. A mais grave em
1976, em Ribeirão Bonito, no dia
12 de outubro - festa da padroeira do Brasil,
Nossa Senhora Aparecida. Ao chegar àquela
localidade em companhia do missionário
e indigenista jesuíta João
Bosco Penido Burnier, souberam que na delegacia
duas mulheres estavam sendo torturadas.
Foram até lá e travaram forte
discussão com os policiais militares.
Quando o padre Burnier ameaçou denunciar
às autoridades o que ali ocorria,
um dos soldados esbofeteou-o, deu-lhe uma
coronhada e, em seguida, um tiro na nuca.
Em poucas horas o mártir de Ribeirão
Bonito faleceu. Nove dias depois, o povo
invadiu a delegacia, soltou os presos, quebrou
tudo, derrubou as paredes e pôs fogo.
No local, ergue-se hoje uma igreja.
Cinco vezes réu em processos de expulsão
do Brasil, Casaldáliga mora em São
Félix num casebre simples, sem outro
esquema de segurança senão
o que lhe asseguram três pessoas:
o Pai, o Filho e o Espírito Santo.
Calçando apenas sandálias
de dedo e uma roupa tão vulgar como
a dos peões que circulam pela cidade,
Casaldáliga amplia sua irradiação
apostólica através de intensa
atividade literária. Poeta renomado,
traz a alma sintonizada com as grandes conquistas
populares na Pátria Grande latino-americana.
Ergue sua pena e sua voz em protestos contra
o FMI, a ingerência da Casa Branca
nos países do Continente, a defesa
da Revolução cubana e, anos
atrás, em solidariedade à
Revolução sandinista ou para
denunciar os crimes dos militares de El
Salvador e da Guatemala. Hoje, inquietam-lhe
a demora do governo Lula em realizar a reforma
agrária e o lastro de miséria
e destruição que o agronegócio
deixa em terras do Mato Grosso.
Dom Pedro tornou-se também pastor
dos negros e dos indígenas, introduzindo
suas riquezas culturais nas liturgias que
celebra. Em sua prelazia habitam os índios
Tapirapé, salvos da extinção
graças aos cuidados tomados pelo
bispo.
Convocado às visitas periódicas
("ad limina") que todos os bispos
devem fazer ao Vaticano para prestar contas,
Casaldáliga faltou a inúmeras,
por considerar os gastos de viagem incompatíveis
com a pobreza de sua gente. No entanto,
remeteu aos papas cartas proféticas,
exortando-os à opção
pelos pobres e ao compromisso com a libertação
dos oprimidos.
(...)
Fundador da Comissão Pastoral da
Terra e do Conselho Indigenista Missionário,
Casaldáliga admite que a sabedoria
popular tem sido a sua grande mestra. Indagou
a um posseiro o que ele esperava para seus
filhos. O homem respondeu: "Quero apenas
o mais ou menos para todos". Pedro
guardou a lição, lutando por
um mundo em que todos tenham direito ao
"mais ou menos". Nem demais, nem
de menos.
(...)
Em 2003, ao completar 75 anos, Casaldáliga
apresentou seu pedido de renúncia
à prelazia, como exige o Vaticano
de todos os bispos, exceto ao de Roma, o
papa. Só agora, em 2005, o Vaticano
nomeou-lhe um sucessor. Antes, porém,
enviou-lhe um bispo que, em nome de Roma,
pediu que ele se afastasse da prelazia,
de modo a não constranger o novo
prelado. Dom Pedro não gostou do
apelo e, coerente com o seu esforço
de tornar mais democrático e transparente
o processo de escolha de bispos, recusou-se
a atendê-lo. O novo bispo, frei Leonardo
Ulrich Steiner, pôs fim ao impasse
ao declarar que dom Pedro é bem-vindo
à São Félix.
Por
Frei Betto |