DIREITOS
HUMANOS ENTRE A REGULAÇÃO E A
AUTONOMIA
Solon
Eduardo Annes Viola
Sumário
Introdução
Os Direitos Humanos
Institucionalizados
Direitos Humanos entre a
Promessa e o Movimento Social
Paradoxos e Dilemas
Referências Bibliográficas
INTRODUÇÃO
O tema dos Direitos
Humanos tem contribuído para um sentimento universal de globalização.
Como o Big-Mac para o paladar, o jeans para o vestuário, o pop para a
arte, o mercado para a economia, os Direitos Humanos são o pano de
fundo para a dimensão de um projeto político que se pretende, não só
hegemônico, mas absoluto. No entanto, serve também para a elaboração
de plataformas democratizadoras presentes em diferentes tipos de
movimentos sociais.
Seu universalismo o
coloca na condição de: 1º) discurso de governantes e de suas agências
publicitárias; 2º) de justificativa para projetos empresariais de tipo
assistencialista; 3) bandeiras políticas para um amplo leque de
movimentos sociais.
Assim pode servir para
garantir e eliminar o que propõem. Pode ser utilizado tanto para
governos e empresas imporem suas políticas econômicas, quanto para
movimentos sociais produzirem suas identidades, definirem seus princípios
e formularem suas estratégias de ação.
O presente artigo
abordará as condições históricas percorridas nas trajetórias
sociais que caracterizam as lutas em defesa dos Direitos Humanos.
Procurará, também, estabelecer os problemas que atualmente dificultam,
ou até mesmo impedem, a implementação de políticas públicas que
transformem em ato os princípios expressos nas múltiplas declarações
existentes. Princípios que só podem se
constituir, autenticamente, através de um amplo universo
cultural produzido pelo movimento social
em constante embate com as estruturas de regulamentação, entre
elas as que dizem respeito aos próprios Direitos Humanos.
As
duas últimas partes do artigo tratarão especificamente dos paradoxos e
dos dilemas enfrentados pelos movimentos sociais, como formas de
organização da sociedade civil, em relações com os Estados
nacionais, bem como, com as contradições que aqueles revelam em suas ações.
OS DIREITOS HUMANOS INSTITUCIONALIZADOS
A
luta pelos Direitos Humanos acompanha a humanidade ao longo de sua história.
Durante a modernidade tornou-se espaço de reivindicações sociais,
declarações universais de intenções e parte dos princípios
constitucionais dos múltiplos Estados.
A
amplitude do tema e o seu significado cultural estão presentes desde as
primeiras declarações de independência das nações americanas até a
declaração dos direitos do Homem da Revolução Francesa.
Revigoram-se, tornando-se cada
vez mais universal a partir da Declaração Universal de 1948, chegando,
mais recentemente a declarações
específicas sobre, gênero, raça e meio ambiente.
Inseridos
nas constituições como direitos sociais e civis, ao longo do século
XIX e a primeira metade do século XX, os Direitos Humanos projetaram um
gradual aumento da participação das populações na produção da
cidadania. Pressionados pelos movimentos dos trabalhadores, no século
XIX, e pelo movimento feminista, no século XX, os governos cederam espaços
para trabalhadores e mulheres que, gradativamente, passaram a organizar
partidos, manifestar pensamentos, elaborar e divulgar programas e
participar dos processos eleitorais, tanto como eleitores quanto como
candidatos.
No
entanto, sempre que os Estados, e seus dirigentes, julgaram-se ameaçados
pela presença das "classes perigosas" não hesitaram em
suprimir suas conquistas utilizando uma parafernália de medidas que
incluem desde a intervenção militar e edição de decretos restritores das liberdades, até atos que eliminam
as garantias legais da cidadania.
Situação
política que pode ser encontrada em diferentes momentos da história
especialmente quando compararmos os princípios das primeiras declarações
em defesa dos Direitos Humanos com o tratamento dado aos escravos, tanto
na situação da independência dos Estados Unidos, quanto nas colônias
americanas da França republicana.
Na
Inglaterra, centro hegemônico do Império Britânico, as lutas em
defesa dos Direitos Humanos, ao longo do século XIX, possibilitaram a
extensão do direito do voto para, somente 1/10 da população
masculina. Mesmo o poderoso movimento social carlista não foi
suficientemente forte para torná-lo direito universal. O Estado agiu na direção de impedir a participação política dos
trabalhadores. Ou no dizer de Silver: " ...manter os pobres
afastados do poder passou a ser visto como precondição fundamental
para o funcionamento do laissez-faire e para a proteção da propriedade
privada" (Silver, 2001, 184).
Já,
na América colonial a questão da escravidão caracterizou
especialmente as rebeliões negras que transformaram o Haiti no único território livre capaz de
dar abrigo a refugiados e de receber rebeldes latino-americanos
exilados, entre eles Símon Bolívar. Capaz, também de derrotar
militarmente as grandes potências européias da época. Potências que
não podiam permitir a existência de uma república negra e muçulmana
em pleno Caribe ocidental.
A
República do Haiti inspirou mudanças em toda a América. Leis
abolicionistas em Nova York (1799) e Nova Jersey (1804), movimentos
sociais abolicionistas no Brasil, a revolta dos Malês em Salvador,
Bahia (1835), quando a população negra rebelada exigia o fim a
escravidão e a organização de uma República aos moldes da de Santo
Domingos. Reprimida com violência a rebelião foi derrotada, seus líderes
executados e os rebeldes perseguidos apesar destas revoltas, ou mesmo em
razão das mesmas a "... escravidão continuaria a existir na
Brasil, em Cuba e no sul dos estados Unidos"
(Silver, 2001,185).
As
lutas pelos direitos sociais continuariam a ser tratados com uma violência
que se manifestaria em múltiplas situações políticas ao longo dos séculos
XIX e XX. Desta maneira os Direitos Humanos, não importando a latitude
para a qual se olhe, em sua dimensão política, transformam-se, ao
longo da modernidade, em promessa não executada, impossibilidade prática
de realização e regulação não transformada em ato.
De
outro modo, no campo sócio-econômico, as políticas que privilegiam o
capital financeiro, orientando-se e orientando a sociedade,
pela prioridade do mercado, ampliam os processos concentradores
de renda que privilegiam as elites empresariais multinacionais ou as
empresas a elas associadas. Assim, atualmente, a qualidade de vida se
deteriora para a grande maioria da humanidade enquanto se concentra de
forma gigantesca para uma minoria privilegiada.
O
atual modelo econômico tem produzido uma sociedade que apresenta as
mais radicais diferenças de oportunidades e de condição de vida que a
humanidade já conheceu. Em alguns casos, a opulência convive lado a
lado com a miséria mais abjeta, a concentração de renda e propriedade
faz divisa com a fome e a falta de serviços públicos básicos.
No
Brasil o empobrecimento econômico produz a perda imediata da tranqüilidade
social colocando em risco os direito políticos. No cotidiano a população
convive com múltiplas formas de medo, entre eles os que Murilo de
Carvalho descreve nos lugares de moradia das classes médias e pobres:
...
a alta classe média
entrincheira-se em condomínios protegidos por muros e guaritas. As
favelas, com menos recursos, ficam a mercê de quadrilhas organizadas
que, por ironia se encarregam da única segurança disponível. Quando a
polícia aparece nas favelas é para trocar tiros com as quadrilhas,
invadir casa e, eventualmente, matar inocentes (Carvalho 200, p.
214).
Nos
múltiplos espectros deste quadro social pode-se observar o rompimento
dos estreitos limites entre civilidade e barbárie, notadamente quando
verificamos o permanente crescimento dos índices de violência nas
camadas empobrecidas da sociedade.
Nas
grandes cidades brasileiras a taxa de homicídios está entre as mais
altas do mundo. Para cada grupo de 100 mil moradores o Rio de janeiro
apresenta uma taxa de 546 homicídios, São Paulo 59 e Vitória a taxa
alcança 70 homicídios/mês. Número que, em toda a América, só é
inferior ao da Colômbia que vive uma longa guerra civil.
Em
um quadro de disparidades econômicas cada vez maior, as diferenças
sociais ampliam-se produzindo tipos diferenciados de cidadania. Em um
extremo, 23% das famílias vivem com uma renda mensal de até dois salários
mínimos o que lhes permite uma vida em condição infra-humana.
Submetida
a viver com baixos salários, ou sem salários, com serviços públicos
insuficientes e cada vez mais precários
e submetidos a freqüentes humilhações por parte das
autoridades responsáveis pela ordem, esta população passa a ser
tratada, preconcebidamente, se compusesse as novas "classes
perigosos" típicas da passagem do século. Elas estão
submetidas a rigoroso controle e suas relações, sociais as colocam
mais como causadoras de violência do que como detentoras de direitos e
participantes da cidadania. Nas suas relações com o sistema de justiça,
estão em permanente embate, e normalmente
submetidos, com o código penal. Politicamente acompanham, com pesar, a
sucessão de governos que escudados no discurso da diminuição dos
gastos públicos e do Estado mínimo se ausentam dos compromissos
sociais que assumem quando em campanha eleitoral.
Esta
parte da população é composta por 63% das famílias que ganham entre
2 a 20 salários mínimos. Olhada com desconfiança e preconceito pelo
restante da população, inclusive pela que divide com ela os mesmos
espaços sociais, as mesmas angústias cotidianas e a mesma expropriação
do trabalho:
...
podem ser brancos, pardos ou negros, tem educação fundamental completa
e o segundo grau em parte ou todo. Essas pessoas nem sempre tem noção
exata de seus direitos e quando a têm carecem dos meios necessários
para os fazer valer, como o acesso aos órgãos e autoridades
competentes, e os recursos para custear as demandas judiciais. Freqüentemente,
ficam a mercê da polícia e de outros agentes da lei que definem na prática
que direitos serão ou não respeitados (Carvalho, 2001, p. 216).
De
outro lado formam-se elites que, não raro, estão acima de qualquer
controle, sejam os mesmos legais ou éticos. Defendem seus interesses
independente do restante da sociedade e influenciam decisões
governamentais pelo poder econômico ou o prestígio social que possuem.
Segundo de Carvalho as elites:
Do
ponto de vista da garantia dos direitos civis, os cidadãos brasileiros
podem ser divididos em classes. Há os de primeira classe, os
privilegiados, "os doutores", que estão acima da lei, que
sempre conseguem defender seus interesses pelo poder do dinheiro ou do
prestígio social. Os "doutores" são invariavelmente brancos,
ricos, bem vestidos, com formação universitária. São empresários,
banqueiros, grandes proprietários rurais e urbanos, políticos,
profissionais liberais, altos funcionários. Freqüentemente, mantém vínculos
importantes nos negócios, no governo, no próprio poder judiciário
(Carvalho, 2001,p. 215).
São,
aliás, estes vínculos que as distinguem do restante da população,
colocando o sistema em benefício da minoria. Uma minoria de 8 % das famílias
que, recebendo mais de 20 salários mínimos mensais, forma uma
sociedade a parte, refazendo as condições sociais que caracterizavam
privilégios como aqueles que possuíam as cortes absolutistas do século
XVIII, ou a aristocracia da moeda do período áureo do Império Britânico.
O fator social que a torna atual e contemporâneas é sua importância
econômica:
...
o seu poder sobre a
economia que a distingue. Ela negocia e decide. Seu conceito não está
mais nas belas aparências, da vida suntuária ou divertida dos cadernos
de variedades dos jornais; está na seriedade, nas páginas de economia.
(Ribeiro, 2000, p. 23)
Esta
situação aponta para uma nova condição política na qual a economia
transforma-se em senhor absoluto da definição das políticas públicas
e as questões de ordem social ficam reduzidas a um lugar menor. Neste
quadro cultural as desigualdades sociais são desconsideradas, ampliando
as historicamente difíceis condições para a implantação de políticas
públicas que sejam capazes de tornar factível as promessas contidas
nas declarações universais e nos princípios constitucionais dos
Estados nacionais.
DIREITOS
HUMANOS ENTRE A PROMESSA E O MOVIMENTO SOCIAL
A
contradição acima referida demonstra os limites efetivos à implantação
de políticas estatais destinadas a superar as desigualdades sociais e a
implementar os direitos da maioria da população. Condição histórica
que já se fazia presente quando das primeiras declarações dos
Direitos do Homem e do Cidadão em oposição, ao direito natural da
igualdade, era proposto o direito social da propriedade, e dela
extraia-se a legitimidade para a participação política, tanto para a
condição de eleitor, quanto para a de eleito.
A
ampliação dos espaços de participação para as mulheres e para os
setores sociais de não proprietários foi conseguida, gradativamente,
através de amplos movimentos sociais realizados ao longo dos dois últimos
séculos. Nos limites deste trabalho entendemos, como BOBBIO (2000),
movimentos sociais como a produção de ações constituídas por
valores comuns e orientadas para influenciar a constituição de novas culturas políticas
no interior de diferentes sociedades e da própria sociedade mundial.
Segundo
este conceito as lutas que possibilitaram as conquistas dos direitos políticos
estão especialmente ligados ao movimento operário clássico do século
XIX e da primeira metade do século XX, e aos movimentos feminista e de
defesa dos direitos civis, ao longo de todo o século XX.
Foram
estas lutas que estabeleceram os direitos de segunda geração. Direitos
que combateram
...as
violações, mesmo indireta ou estruturais, à integridade pessoal ou
social, além de abranger o direitos a um desenvolvimento cultural, econômico
e social autônomo, contra os obstáculos resultante de uma ordem
internacional injusta (Altvater, 1999, p. 116) .
A
conquista destes direitos, no entanto, não se caracterizam por
apresentar uma cronologia de conquistas evolutivas. Ao contrário, foram
suprimidas inúmeras vezes, na Europa ao longo das décadas de
1920 a 1970 ( derrubada do salazarismo e do franquismo )
e ao longo dos Anos de Chumbo na América Latina.
Em
outras circunstâncias os direitos de participação tornam-se meras
formalidades. Estas situações ocorrem, especialmente, quando os
Estados e seus dirigentes apresentam-se indiferentes as condições
sociais da população, quadro que se agrava nas condições históricas
nas quais Partidos políticos, e seus representantes, revelam uma
mesmice entre discursos e práticas políticas impedindo o
estabelecimento de campos ideológicos claramente definidos.
Produz-se,
assim, a ilusão de que só é possível um tipo de solução para os
problemas sociais, aquela que hoje é fornecida, não mais pelo Estado,
mas pela mais ampla
liberdade de mercado. Ilusão política que torna-se quase absoluta
quando faz crer que “...a economia é séria e moderna; o social,
perdulário e arcaico” ( Ribeiro, 2000,p. 21).
O
quadro político, acima descrito, tem remetido a população para
novas formas de construção da cidadania que se caracterizam por
lutas parciais em busca de solução de temas imediatos, como as
lutas por transporte, por moradia, pela terra, por educação e saúde,
por empregos ou melhores condições de trabalho, e não raro, até
mesmo pelo direito a alimentação.
Estas
lutas remontam as condições sociais que estiveram presentes
durante os períodos revolucionários do século XVIII quando se
constituíram, e foram conquistados, os direitos de primeira geração
nas nações centrais do capitalismo. Condição histórica
estabelecida "a partir de reivindicações de indivíduos
contra violações por agentes econômicos, Estados, instituições
políticas e agentes sociais" (Altvater,1999, p. 116)
, e que na regiões periféricas do capitalismo ainda não foram
alcançadas pelos setores empobrecidos.
O
final do século XX acompanhou a diferenciação das lutas sociais.
Enquanto amplos setores médios revelavam uma profunda melancolia e
descrença pelos processos de participação política, os setores
empobrecidos e marginalizados retomaram as lutas por melhores condições
de vida, mesmo quando estas lutas revelavam um caráter particular e
imediato.
Muitas
vezes, em seus particularismos, os movimentos sociais perderam a
dimensão da totalidade ficando
submetidos a um auto esgotamento, seja pelo atendimento de suas
reivindicações, seja pelo exaustão da capacidade de mobilização
de seus integrantes mas, especialmente porque não possuíam uma
proposta mais ampla de modelo social a ser alcançado.
Os
movimentos sociais produziram uma compreensão dos Direitos Humanos
que tornou-se
exclusivista, perdendo a dimensão universal dos mesmos. Na América
Latina, e no Brasil em especial, as lutas pelos direitos da segunda
geração, formaram as bandeiras dos Movimentos Sociais das décadas
de 1960, 1970 e 1980, privilegiando o difícil combate em defesa da
vida e da integridade física dos adversários dos regimes militares
latino-americanos. Já a defesa dos direitos de primeira geração,
caracterizaram as lutas travadas ao longo dos anos 1980 e 1990.
Demonstrando o empobrecimento decorrente da implementação de um
modelo econômico concentrador de renda e capaz de aguçar
os conflitos entre
a população empobrecida e o Estado.
Mesmo
quando buscavam agir em conjunto cada um destes movimentos guardava
suas fronteiras e procurava preservar sua própria identidade, o que
levou, muitas vezes, a um isolamento insuperável. A especificidade
de cada uma das identidades acabava por impedir a construção de
uma identidade social universalizada capaz de produzir propostas
mais abrangentes e unificadoras.
Este
é um dilema que os movimentos sociais em geral, e os movimentos em
defesa dos Direitos Humanos em particular, precisam enfrentar em uma
situação histórica que tem se revelado avessa a participação
social dos dominados e instituído mecanismos jurídicos capazes de
eliminar conquistas seculares.
Política
que, aliás, tem sido implementada sob o manto protetor da chamada
globalização, e que pode ser caracterizada através das medidas
feitas para possibilitar a execução de mudanças administrativas
que produzem a fragilização do Estado de Bem Estar Social e a
perda dos direitos da ampla maioria dos trabalhadores, privilegiando
a economia de mercado, especialmente o capital financeiro
internacional. Ou, como afirma SADER (2000, p. 126)
...
o caráter mínimo do Estado só está presente na deteriorização
das políticas sociais, no caráter de maiores geradores de
desemprego que esses estados assumem, no congelamento dos salários
dos funcionários públicos, no enfraquecimento generalizado da
educação educação pública, da saúde pública, etc. Por isso
falamos num Estado mini-max: máximo para o capital, mínimo para o
trabalho.
A
gradativa e constante perda dos direitos dos trabalhadores amplia-se
e sua dimensão social torna-se ainda mais significativa quando os
lugares perdidos são ocupados por crianças e adolescentes. Assim
as condições de trabalho se precarizam e uma parte gigantesca da
humanidade perde seu futuro. Segundo BLACKBURN (2000, p. 158):
...é
verdade que a escravidão foi abolida, mas continua o trabalho
infantil, uma espécie de “trabalho forçado” que, segundo as
estimativas do UNICEF, afeta cerca de 300 milhões de crianças em
todo o mundo, uma cifra muito superior a do número de escravos que
existia no apogeu do escravismo no século XIX. Este fenômeno do
trabalho infantil pressiona a baixa dos salários não só dos operários
ingleses, mas também dos operários da Índia ou de Bangladesh,
onde as fiações e firmas têxteis substituem o trabalho das
mulheres pelo de adolescentes ou crianças, contratados com salários
muito baixos e atentando irreparavelmente contra suas condições de
saúde.
A
crise econômica atual ameaça não só os direitos sociais, mas
todos os direitos, inclusive os direitos ambientais, os direitos de
terceira geração, Ou, ainda no dizer de ALTVATER (1999, p. 116)
...
a terceira geração inclui os direitos relativos à integridade
ambiental. Além do direito ao desenvolvimento, à justiça social e
ao acesso à riqueza natural, a integridade ambiental tornou-se uma
questão em destaque, em função da crise ambiental aguda.
Os
direitos ambientais tornam-se cada vez mais significativos na medida
em que as questões ecológicas colocam em risco a própria sobrevivência
da humanidade sob o planeta, não só pelo esgotamento das fontes não-renováveis
de energia fóssil, mas pelo geométrico crescimento dos índices de
poluição do ar e da água.
A
crise torna urgente redimensionar as atuais formas de produção e
consumo, na medida em que o desperdício de recursos produzido por
uma parte da humanidade acelera a destruição do meio ambiente
enquanto a maioria da humanidade é submetida a rigorosa escassez.
Em
uma situação de crescimento da ameaça ecológica e da perda de
direitos, como a atual, amplia-se a necessidade permanente do
movimento social na luta pela
superação da crença ingênua de que, uma vez
regulamentados, os Direitos Humanos serão transformados em prática
social emancipadora.
Atualmente,
ao contrário do período político que se seguiu ao final da
segunda grande guerra quando os Direitos Humanos serviam de fundo
ideológico nos embates políticos da guerra fria, a realidade política
demonstra a dificuldade de implantação efetiva de políticas públicas
capazes de garantir a cidadania e a qualidade de vida da maioria da
população. No dizer de Altvater:
...
os processos de globalização - incluindo a dissolução da
soberania política, de um lado, e a crise ecológica, de outro -
prejudicaram as reivindicações voltadas para determinados direitos
substanciais. A ordem democrática passou a enfrentar uma série de
novos dilemas (Altvater, 1999, p. 116).
Dilemas
que encontram sua expressão maior na relação entre movimentos
sociais e o Estado. Os primeiros lutam e defendem os Direitos civis,
sociais e ambientais, no âmbito do Estado estes direitos são
reconhecidos, regulamentados, efetivados ou esquecidos e combatidos.
PARADOXOS
E DILEMAS
No
turbilhão econômico, social e cultural que caracterizam a
atualidade, a temática dos Direitos Humanos tem assumido, o dilemático
e paradoxal lugar de unanimidade mundial.
Paradoxal
na medida em que se transformou em bandeira de luta dos mais
distintos movimentos sociais, como uma aspiração de mudança,
tanto através setores organizados e mobilizados da sociedade civil,
quanto pelos diferentes tipos de Estado, independente de sua orientação
política.
O
paradoxo tem se tornado ainda maior quando os Estados nacionais
institucionalizam os Direitos Humanos como universais, assinam
protocolos internacionais, os transformam em princípios
constitucionais, criam organismos e planos para sua implementação,
e agem exatamente na contramão do que apregoam.
Freqüentemente,
a bandeira dos Direitos Humanos tem servido de justificativa ideológica
para intervenções armadas que eliminam a soberania das nações
ocupadas e retiram as liberdades fundamentais dos povos, entre elas
as de escolher sua cultura e suas formas de organização social.
O
paradoxo se torna ainda mais significativo quando os Estados
nacionais orientam suas ações para políticas econômicas que
privilegiam a hipertrofia do mercado internacionalizado,
especialmente do mercado financeiro mundial
Mercado
financeiro
que, a cada quinze dias, faz circular, através da especulação
eletrônica, um valor de riquezas equivalente a toda produção
agro-industrial do planeta. Estas mesmas práticas
fazem circular, em 24 horas, um valor maior do que a soma
registrada pelo comércio internacional durante um ano (Boron,
2000).
Nestas
condições o paradoxo extrapola o político e transforma-se em
drama social demonstrado pelo aumento da miséria mundial, da qual
as maiores vítimas são as crianças, os idosos, as mulheres, os
trabalhadores desempregados, especialmente aquelas que fazem parte
das populações empobrecidas que vivem no hemisfério sul.
O
grande paradoxo em relação aos Direitos Humanos encontra-se no
fato de que mesmo admitidos pela jurisprudência dos tribunais,
reconhecidos nas constituições dos Estados nacionais, acordados em
tratados internacionais, proclamados
em declarações universais, sua execução esbarra em uma
forma de estrutura sócio-econômica que, em nome da prioridade
absoluta do mercado, elimina direitos historicamente conquistados:
...a
avassaladora tendência à mercantilização de direitos e
prerrogativas conquistadas pelas classes populares ao longo de mais
de um século de luta, convertidos agora em “bens” ou “serviços”
adquiríveis em mercado. A saúde, a educação e a seguridade
social, por exemplo, deixaram de ser componentes inalienáveis dos
direitos de cidadão e se transformaram em simples mercadorias
intercambiadas entre “fornecedores” e compradores à margem de
toda a estipulação política" (Boron, 2000, p. 9)
As
diferenças entre Norte e Sul não impedem que o ideário dos
Direitos Humanos esteja presente nos movimentos sociais dos dois
hemisférios. Algumas das lutas, travadas em sua defesa, revelam-se
como dilemas para toda a humanidade, entre elas situam-se,
especialmente, as lutas por uma economia auto-sustentável, a defesa
de uma economia construída a partir da preservação do equilíbrio
ecológico, e as lutas pela superação das discriminações de raça
e de gênero.
O
dilema se torna ainda mais expressivo na medida em que o Norte detêm
o controle dos avanços da ciência e da técnica, concentra
riquezas e consumo em níveis que não podem ser estendidos a toda a
humanidade sob risco de gerar uma gigantesca falência econômica e
ambiental (Santos, 1995; Arrighi, 2001).
O
segundo dilema está ligado aos limites dos próprios movimentos
sociais na medida em que, muitas vezes, ficam restritos a questões
específicas especialmente aquelas ligadas aos direitos sociais,
esquecendo a amplitude universal dos princípios fundadores dos
Direitos Humanos.
Por
fim o dilema entre os movimentos sociais e os Estados na luta pela
garantia e efetivação dos direitos já legalmente reconhecidos, e
pela implementação de novos direitos, precisa ser entendida como
processo histórico, ou seja, processo de luta que se realiza nos
espaços tencionados entre a autonomia e a regulação.
Tensões que se tornam ásperas na medida em que os direitos
sociais são colocados em risco, os níveis de pobreza crescem na
mesma proporção que os de acumulação de riquezas nas mãos de
poucos, e aumentam as possibilidades de desastres ecológicos.
As
ameaças aos Direitos Humanos, cada vez mais constantes e vigorosas,
precisam ser enfrentadas com a lembrança permanente de suas origens
e de sua constituição como espaços de lutas individuais e sociais
que ampliam sua abrangência e seus objetivos
...
os direitos humanos tradicionais - da "primeira" e da
chamada "segunda" gerações - têm que ser complementados
pelos de "terceira" geração, reivindicação que vem
ganhando cada vez mais força. Portanto, direitos humanos
compreendem também direitos de indivíduos (e povos) em relação
à integridade da natureza, isto é, do meio ambiente em que os
seres humanos vivem (Altvater, 1999, p. 115)
Assim,
os Direitos Humanos revelam-se, de um lado, como um discurso capaz
de legitimar o modelo econômico excludente,
socialmente injusto,
e de outro como capaz de fornecer as bases para a produção
de sociedade mais participativa e
igualitária. A garantia possível de sua aplicabilidade
está intimamente relacionada a capacidade das diferentes
sociedades mobilizarem-se, autonomamente, em busca de uma cultura
política que objetive sua implementação.
De
outra parte, e para finalizar, os Direitos Humanos apresentam-se
como uma possibilidade de mundialização política construída para
além das dimensões de mercado, em permanente relação de conflito
com os Estados nacionais, dos quais
devem exigir reconhecimento, regulamentação, efetivação
e autonomia para sua aplicação.
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
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