1 – Direitos Humanos
1.1
– Os direitos humanos, sua origem e importância
A
noção de Direitos Humanos está totalmente ligado ao contexto
de cada época. Quando não havia escrita e a fala humana se
estruturava como sons guturais, primais, os “direitos
humanos” eram inexistentes como conceito e como prática: a
luta pela sobrevivência era bruta, dura e favorecia os mais
fortes. E assim foi durante séculos.
O
princípio cristão do amor ao próximo representou uma revolução
cultural, uma radical novidade. Mas a idéia mais elaborada,
doutrinária, dos seres humanos como iguais e, portanto, com os
mesmos direitos, é um resultado da luta da burguesia contra o
obscurantismo dos senhores feudais e da aristocracia
absolutista. Já na Declaração de Independência
Norte-Americana, de 1776, os seres humanos eram considerados
“naturalmente iguais, livres e independentes”. Uma novidade!
Na
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, da Revolução
Francesa, lançada em 26 de agosto de 1789, as idéias novas
foram elaboradas teoricamente com mais detalhes: “...todos os
homens são iguais perante a lei” e “a lei deve proteger a
liberdade pública e individual contra a opressão daqueles que
governam”. Essa Declaração ainda mencionava a
transitoriedade das leis, assegurando ao povo “o direito de
rever, de reformar e de mudar a sua Constituição”, além de
afirmar que “uma geração não pode sujeitar as gerações
seguintes às suas leis”. Tudo se altera de acordo com a mudança
da concepção do ser humano. Os valores de uma época podem não
valer para outra.
Por
outro lado, é inegável que, em determinados momentos, a
humanidade avance de modo não linear e não positivo; que
avance entre altos e baixos, entre impulsos progressistas e
recuos (como a Constituição Francesa de 1800, da qual foi
eliminada a Declaração de Direitos).
A
caminhada do ser humano no planeta é ainda errática e marcada
pela estupidez. Civilizamo-nos muito pouco ainda. O homem
estabeleceu regras de convívio social, padrões de
comportamento e limites (nem sempre respeitados),
relacionando-os ao seu desejo de poder e mando. O Direito, pouco
a pouco, vai deixando de ser um privilégio dos poderosos, dos
influentes, dos bem-armados e bem-falantes. Vai deixando de ser
exclusivo de poucos.
A
irracionalidade predomina, mas vozes proféticas, desde há
muito, vão se levantando para denunciá-la. E para reafirmar
que a dimensão política, isto é, do interesse social, da qual
se originam todos os direitos (da Lei de Talião do “olho por
olho” às Tábuas da Lei, do Código de Hamurabi à Constituição
Brasileira), é parte constitutiva e irrenunciável do ser
humano. Somos seres políticos, ecológicos e religiosos. O
processo civilizatório é contraditório: desenvolve a
tecnologia de armas e a ela submete povos inteiros. A humanidade
ainda engatinha. São séculos de paradoxos: tratados de paz em
meio a muitas guerras; produção recorde de objetos e número
recorde de despossuídos; biotecnologia, clonagem e epidemias...
1.2
– A Declaração Universal dos Direitos Humanos
Criada
pela ONU, a Declaração nasceu em 10 de dezembro de 1948,
“como ideal comum a ser atingido por todos os povos e todas as
nações”. O cenário é de um mundo que viu terminar a
Segunda Guerra Mundial e está mergulhado em outra guerra
chamada “fria”, marcada pela bipolaridade das duas superpotências,
EUA e Rússia. À medida que o tempo passava, mais e mais coisas
podiam dar errado, política e tecnologicamente, num confronto
nuclear permanente baseado na suposição de que só o medo da
destruição mútua inevitável impediria um lado ou outro de
dar o sempre pronto sinal para o planejado suicídio da civilização.
Não aconteceu, mas por cerca de quarenta anos pareceu uma
possibilidade diária.
Os
Direitos Humanos contemporâneos foram reescritos nesse clima
tenso, denso, sectário. Daí sua importância e grandeza, daí
sua pouca repercussão prática. Daí também o apelo, no preâmbulo
da própria Declaração, para que “cada indivíduo e cada órgão
da sociedade se esforcem, através do ensino e da educação,
por promover o respeito a esses direitos e liberdades e pela adoção
de medidas progressivas de caráter nacional e internacional,
por assegurar o seu reconhecimento e a sua observância
universais e efetivas, tanto entre os povos dos próprios
Estados Membros quanto entre os povos dos territórios sob sua
jurisdição”.
A
Declaração, que conta com sete preâmbulos e trinta artigos,
é um documento histórico, uma carta de intenções pelo
advento de um mundo em que os homens gozem de liberdade de
palavra, de crença e da liberdade de viverem a salvo do temor
de um novo período sangrento. É também uma denúncia de tudo
o que, ao longo de milênios, a humanidade deixou de fazer. É
palavra em papel impresso: pode transformar, comover e mover.
Mas pode ficar letra morta, como tem ficado em tantos lugares.
Se valesse mesmo, a humanidade certamente estaria melhor.
Embora
universal no nome e em diversos princípios, a Declaração é
histórica, temporal, datada e, por essas razões, tem lacunas.
Ela precisa ser acrescida, complementada, aperfeiçoada. Além
de cumprida, é óbvio.
As
lacunas:
1
– Ela não trata por não existir na época, ao menos com a
evidência e a terminologia de agora, da questão ecológica.
Nada afirma sob o direito de viver num mundo equilibrado,
auto-sustentável, respeitoso em relação a todas as formas de
vida. A consciência ecológica leva à tomada de atitudes, para
que o planeta não pereça.
2
– Não destaca com ênfase necessária o direito das mulheres,
vítimas de secular e específica opressão. O direito da mulher
de ser mulher, reconhecida em sua humana dignidade, exige que o
homem se repense na busca de um novo homem.
3
– Não previu que o desenvolvimento capitalista chegasse à
sua atual etapa de globalização e de capitais voláteis,
especulativos, que entram e saem de diferentes países quase sem
controle, gerando estabilidade permanente nas economias periféricas.
Talvez já tenha chegado a hora de afirmar o direito das nações
de regulamentarem os investimentos externos e de se protegerem
contra a especulação internacional, que fragiliza e subordina
economias nacionais.
4
– A Declaração, no artigo 23, trata do “direito ao
trabalho, à livre escolha do emprego, a condições justas e
favoráveis de trabalho e à proteção contra o desemprego”.
Mas o final do século XX já nos revelou uma situação crítica:
a introdução acelerada e sem critério das novas tecnologias,
liquidando postos de trabalho e até gerando uma nova categoria,
a dos “inempregáveis”. Talvez fosse o caso de afirmar um
direito novo, exigência social provocada pela chamada terceira
revolução tecnológica e industrial de nossa era: o direito à
primazia do trabalho sobre a introdução de novas técnicas,
quando estas gerarem desemprego. Ou, como alternativa, o direito
à redução da jornada, sem redução de salário, sempre que
novas tecnologias forem implementadas. Para o trabalhador, isto
significará mais horas de descanso, de lazer e de aperfeiçoamento
intelectual.
5
– A Declaração redigida antes da massificação da televisão
como veículo de informação, limita-se ao direito à fruição
dos bens culturais. Hoje impõe-se garantir o direito à
diversidade das culturas ameaçadas pela imposição da
ideologia do pensamento único que coloca o cliente no lugar da
pessoa, o consumidor no lugar do criador. As tradições
populares, as culturas locais, os patrimônios regionais vão
perdendo espaço e respeito. Quando muito ficam guardados em prédios
de celebração do que se foi... A preservação e a vivificação
das inquietas culturas de povos subjugados é um direito e um
dever da humanidade. Com essa pluralidade temos muito a
aprender, pelos milênios afora, sobretudo, a respeitar as
diferenças e eliminar os etnocentrismos.
Quem
sabe, já não é chegada a hora de acrescentar à antiga
Declaração uma nova afirmação de propósitos, que poderia
ser a seguinte:
Queremos
construir, desde já, uma sociedade onde as relações sociais
sejam de cooperação e não de competição; onde a cultura
seja a da solidariedade e não a do individualismo; onde o
interesse público ganhe rosto e supere a onipotência aparente
das forças de mercado; onde a diversidade humana planetária
seja respeitada e se contraponha à uniformização consumista;
onde haja crescente comunhão dos seres humanos com a natureza,
da qual fazemos parte, e não uma relação predatória; onde a
paz se traduza na destruição das armas e suas fábricas,
desativadas, sejam substituídas por áreas reflorestadas ou
ajardinadas, que abafem para sempre o pesadelo atômico; onde o
outro seja aquele que tem algo a dizer e não um objeto de
manipulação dos mais influentes; onde o trabalho seja direito
de realização pessoal e coletiva, e não mero emprego, privilégio
de poucos; onde a política, graças à informação democrática,
esteja capitalizada e a cidadania seja horizontal; onde, enfim,
o processo de socialização faça recuar a atual hegemonia do
privado e do individualismo.
“Enquanto
tratamos de estender os horizontes e aprofundar o discurso dos
direitos humanos existentes, necessitamos também de uma nova
geração de direitos humanos. Necessitamos mudar o paradigma
que concebeu os direitos humanos como direitos dos poderosos,
necessitamos escutar as vozes daqueles que não compartilham
esse poder. Necessitamos ver essas violações através dos
olhos das vítimas, vítimas do desenvolvimento, do progresso,
da ciência e da técnica; (...) através dos olhos dos
impotentes, (...) daqueles cuja culturas têm sido destruídas,
daqueles que têm estado nas margens, nos flancos; através dos
olhos daqueles do Sul...”.
é
claro que é preciso agir, assumir a palavra, que é vã se não
se traduz em obras. A sociedade brasileira se diz cansada de
discursos e clama por ações, porém, nem todos já adquiriram
a consciência de que cabe a toda a sociedade e não apenas aos
governos, uma verdadeira mudança.
O
desafio é, no dia-a-dia do trabalho, da escola, da família e
da vizinhança, praticar os novos e os antigos Direitos Humanos,
redescobrindo a dimensão política da nossa existência.
Humanizando-nos mais e mais, forjando uma nova sociedade com um
governo ativo, decisivo e, sobretudo, com o povo se organizando
e participando. Onde o Poder Público seja regulador, evitando
monopólios, mas também seja controlado por uma esfera pública,
fiscalizadora. Sociedade que empurre o Estado a implementar políticas
para as maiorias e que, assim, possa superar a miséria, a
exclusão, a perda de sentido da existência. Sociedade de
pessoas reais, plurais.
1. 3 – A cidadania no Brasil
Nossa
sociedade, constantemente envolta por problemas sociais e econômicos
gravíssimos, ressente-se de traços de solidariedade e do
referencial de cidadania. A cidadania é entendida apenas como
direito ao voto e à participação política. Entretanto,
deveria ser o próprio reconhecimento individual das pessoas
frente às instituições.
No
Brasil, desde o fim da ditadura militar, muitas são as
dificuldades para a consolidação de uma sociedade democrática.
Se no campo político os avanços foram grandes, em outras áreas
as mudanças foram bem menos significativas. O novo regime não
conseguiu reverter a acentuada desigualdade econômica e o fenômeno
da exclusão social expandiu-se por todo o país.
A
despeito da implantação de um Estado de Direito, os direitos
humanos ainda são violados e as políticas públicas voltadas
para o controle social permanecem precárias. Se, formalmente,
pela Constituição de 1988, a cidadania está assegurada a
todos os brasileiros, na prática, ela só funciona para alguns.
Sem dúvida, existe aqui um déficit de cidadania, isto é, uma
situação de desequilíbrio entre os principias ao justiça e
solidariedade. Analisar as causas ao nosso déficit de cidadania
ou as dificuldades para a consolidação da nossa democracia não
é objetivo deste trabalho.
Sabemos
que no Brasil a afirmação da cidadania não obedeceu nem à
mesma sequência nem à mesma lógica de outros países. Aqui,
por exemplo, os direitos sociais foram incorporados por uma
parcela da população nos anos 30 e 40, durante a vigência ao
regime autoritário implantado por Getúlio Vargas, período de
cerceamento dos direitos políticos e civis. Como parte de um
bem articulado projeto político-ideológico, o Estado
brasileiro no pós-30 buscou definir um novo papel e lugar para
o trabalhador na sociedade. Através de uma legislação específica,
outorgou uma série de benefícios sociais para a classe
trabalhadora. Mas, ao outorgar essa legislação, o regime
atrelou o gozo dos benefícios sociais à condição de
trabalhador sindicalizado. Ou seja, ao serem instituídos, esses
diretos sociais eram de abrangência restrita e só se aplicavam
àqueles que tivessem um contrato de trabalho formalizado. Daí
a expressão cidadania regulada. A cidadania está embutida na
profissão e os direitos do cidadão restringem-se aos direitos
do lugar que ocupa no processo produtivo.
Certamente,
esse processo histórico de afirmação da nossa cidadania
acarretou consequêncías na percepção que a população tem
sobre os seus direitos. Uma delas é a frequente associação
que a população brasileira faz entre os direitos de um modo
geral e os direitos sociais. No imaginário do povo, a palavra
“direitos” (usada sobretudo no plural) é, via de regra,
relacionada com aquele conjunto de benefícios garantidos pelas
leis trabalhistas e previdenciárias implantadas durante a era
Vargas. Os direitos sociais são, deste modo, os mais
reconhecidos pela população.
Além
da dificuldade de expressar seus direitos, a precariedade da
nossa cidadania parece transformar os direitos em um bem
escasso, em algo que só pode ser alcançado mediante
determinadas condições. Podem, inclusive, tornar-se objeto de
disputa entre pessoas consideradas merecedoras e não-merecedoras
dos direitos. É como se os benefícios recebidos pelos não-merecedores
representassem uma privação ou um ônus para os demais membros
da comunidade. Sendo assim, contra as pessoas ou grupos sociais
considerados beneficiários indevidos, justificam-se medidas
restritivas para reduzir os benefícios, ou seja, para reduzir
os direitos. Em pesquisa realizada no Rio de Janeiro, pela FGV
(1995-96), mais de 60% da população da Região Metropolitana
concordavam com a afirmativa de que os bandidos não devem Ter
seus direitos respeitados. Outras vezes, diante dessa situação
de carência de cidadania, são determinadas qualidades morais
(ser um bom chefe de família, ser um bom trabalhador ou ser
direito) que podem tornar as pessoas merecedoras dos direitos.
Ora,
se o processo de afirmação da nossa cidadania contribuiu para
firmar no imaginário da população a primazia dos direitos
sociais, provocar um certo descaso pelos direitos políticos e
civis, e acentuar a percepção dos direitos de um modo geral
como favores ou privilégios, esse processo contribuiu também
para que as instituições oficialmente encarregadas de garantir
esses direitos não sejam reconhecidas como instrumentos
eficazes ou capazes de efetivá-los.
Muitas
vezes, ao invés de utilizar os canais institucionais, a população
acredita que o acesso direto às autoridades, apelando-se
inclusive para a sua boa vontade, pode ser o melhor caminho para
a obtenção de direitos.
Apesar
do desconhecimento que uma parte expressiva da população tem
sobre seus direitos ou a dificuldade de enumerar os principais
direitos garantidos pela constituição não significam,
necessariamente, uma postura de indiferença ou conformismo
diante do nosso déficit de cidadania. Ou seja, apesar de não
saber formalmente quais são os principais direitos dos
brasileiros, a população parece questionar a ausência dos
direitos. No caso dos direitos políticos, mesmo que eles não
sejam reconhecidos, mesmo que as instituições e lideranças
político-partidárias não sejam valorizadas nem acessadas, a
política não é vista de forma indiferente pela população.
Em
1996, dados da Revista Veja e pesquisa realizada pela FGV
revelam que: os políticos, a política, o Congresso, o governo,
a corrupção, a violência, a miséria e o desemprego foram
citados como os principais motivos que faziam com que a população
sentisse vergonha de ser brasileira.
Em
relação aos direitos civis, a maioria das pessoas desconhece
suas garantias legais e, quando atingida na sua cidadania civil,
não costuma recorrer à justiça. Entretanto, mesmo
desvalorizando a justiça e conhecendo pouco os direitos civis,
parece existir na população um sentimento de injustiça, uma
forte consciência de que, no Brasil, a lei não é igual para
todos.
No
que diz respeito à polícia, a visão é geralmente negativa. A
maioria dos vitimados a ela recorre, quer por falta de confiança,
quer por medo de represália. Entretanto, se a população não
confia na instituição para resolver seus problemas, essa
confiança parece aumentar quando se trata de combater a violência,
combater a criminalidade.
A
despeito de termos no Brasil de hoje um regime com um desenho
institucional marcadamente democrático, com as regras do jogo e
as instituições poliárquicas bem definidas, percebe-se entre
nós, brasileiros, a ausência de uma “cultura política
participativa”, condição considerada por muitos, essencial
para a consolidação de uma sociedade democrática.
É
necessário que a população conheça, reconheça e possa
usufruir seus direitos. Ainda que não consigamos atingir altas
taxas de participação política e social, é preciso acabar
com o descrédito da população em relação às instituições
capazes de assegurar as diversas dimensões da sua cidadania.
“As instituições, as leis, muitas vezes são vistas com
desconfiança, como um mero instrumento de controle do Estado ou
de manipulação do poder e não como garantia de liberdade ou
acesso aos direitos de cidadania”. É necessário, sobretudo,
que a pessoa deseje e possa transformar-se em um cidadão.
Assim,
o repensar da participação política e da cidadania está na
raiz da discussão sobre a violência no Brasil e, por
conseguinte, da segurança pública.