Paradoxo
dos Direitos Humanos
no Capitalismo Contemporâneo*
Ivete
Manetzeder Keil
“Os
direitos humanos não nos obrigarão
a abençoar o capitalismo”.
Gilles Deleuze
INTRODUÇÃO
Nascidos da
tradição ocidental (mas não inerentes a ela), numa combinação da
filosofia estóica com o iluminismo, como querem alguns, ou no
cristianismo, como querem outros, os direitos humanos, ainda como temas
humanitários estóicos e cristãos, foram acolhidos pela tradição de
mais de dois mil anos do Direito natural, estendendo-se desde a antigüidade
até a jurisprudência racional da era moderna. De lá para cá, Declarações,
Pactos e Intenções de direitos humanos foram sendo aprovados e
ratificados, fazendo parte dos princípios constitucionais de muitos
Estados, ou simplesmente negados (senão retirados) por outros pela
pressão de interesses econômicos, políticos e religiosos. Em outros
termos, tanto no campo das ações quanto no campo das proteções, os
direitos humanos ainda não passam de belas palavras. Muito embora,
desde a Segunda Guerra Mundial, com a experiência do genocídio
praticado pelo nacional-socialismo, sua promoção tenha sido proclamada
como meta obrigatória pela comunidade das nações e consolidada através
da Carta das Nações Unidas.
Hoje, em plena
época de consolidação do processo de modernização capitalista da
economia e da sociedade (fundada na produtividade e competitividade
extremas, totalmente obcecada pelas taxas crescentes de lucratividade
aos menores riscos e prazos possíveis), os modernos direitos humanos
povoam os discursos políticos, midiáticos, sociológicos, e tantos
outros, como se o século que se abre, fatigado das injustiças e dos
sofrimentos do século que se extingue, quisesse conjurar a vergonha ou
responder ao intolerável. Infelizmente, isto não passa de uma miragem
neoliberal na qual os direitos humanos são propagados (mas não
efetivados) como valores e práticas éticas indiscutíveis.
Ora, todos nós sabemos
que persistentes violações dos direitos civis, políticos e sociais são
tristes realidades em todas as regiões do mundo, sobretudo nos países
periféricos nos quais atingem níveis de indecência e monstruosidade.
Estas violações
além
da tortura e dos tratamentos ou penas cruéis, desumanos e degradantes,
incluem as execuções sumárias e arbitrárias, os desaparecimentos, as
detenções arbitrárias, o racismo em todas as suas formas, a
discriminação racial e o apartheid,
a ocupação e dominação estrangeiras, a xenofobia, a pobreza, a
fome e outras denegações dos direitos econômicos, sociais e
culturais, a intolerância religiosa, o terrorismo, a discriminação
contra a mulher e o atropelo das normas jurídicas.
Assim,
embora os direitos humanos tenham de fato contribuído para o aumento da
participação de indivíduos e grupos na produção da cidadania e
possam ser considerados essencialmente como uma conquista das lutas
populares e movimentos sociais que se realizaram ao longo da história
dos homens (sobretudo nos séculos XVIII, XIX e XX), como também foram
uma esperteza para a abstração da continuidade (como na Revolução
Francesa), a experiência cotidiana vivida por nós mostra que neste domínio
surgem hoje novos obstáculos e desafios que se somam aos que já haviam
e que sequer foram superados.
Hoje,
a grande questão que se coloca é o aparecimento dos direitos humanos
como razão central de ações e intervenções planetárias guerreiras,
legitimando guerras, violências e profundas injustiças sociais.
Em realidade, os direitos humanos alimentam a Mão invisível do Mercado
mundial, por um lado, produzindo um imaginário de igualdade e paz
universal, por outro, contribuindo para compor a perversa equação
contemporânea da qual fala Gilles Châtelet ao reclamar uma filosofia
do combate em seu virulento Vivre
et penser comme des porcs, isto é, a equação: Mercado =
Democracia = Homem médio.
Neste
trabalho Gilles Châtelet se debruça sobre as sociedades do dito
Primeiro Mundo, sobre suas democracias-mercado contemporâneas que
clamam o respeito pelos direitos humanos, mas nas quais na realidade se
vive e se pensa comme des porcs.
O autor lembra a impostura pseudo-libertária do caos e da auto-organização
no contexto da Contra-Reforma neoliberal e denuncia o Grande Mercado,
tido por alguns como uma manifestação das virtudes criadoras do caos,
como o grande destruidor do Estado social, herança da segunda onda
industrial, para substituí-lo pela terceira onda pós-industrial
considerada leve, urbana, nômade. Nela nos tornamos seres cibernéticos
que pastam mansamente entre os serviços e as mercadorias ofertadas. Por
ela nos distanciamos da ação política autêntica e fascinados nos
deleitamos com a fluidificação absoluta das fronteiras, dos mercados,
das informações. O homem médio se sintetiza como átomo
produtor-consumidor de bens e serviços. Vive com gozo a volatização
do capital, dos serviços, do trabalho e dele mesmo. O homem fluído, o
trabalho flexível, o capital volátil, a democracia tecno-populista eis
o resultado de nossa fabulosa engenharia social.
Diante
das estratégias de manipulação e da instabilidade que realçam a
fragilidade dos assuntos contemporâneos e da impossível soberania da
multidão, cabe examinar o contexto capitalista da sociedade pós-industrial
ou pós-moderna, e aí repensar os direitos humanos e o seu discurso cínico
que se impõe em escala planetária. E, então, corajosamente recusar o
domínio da globalização liberal que tem substituído progressiva e
aceleradamente a política pelo mercado, como instância privilegiada de
regulação, definição e determinação social. Nos lembra Hannah
Arendt, política e direito são complementares: a política favorece a
diversificação da ação e o direito preserva e protege a sua
especificidade.
Sabemos que não escapamos das conseqüências dos nossos atos, mas
ainda há tempo de recusar o destino de gado cognitivo
e de bucha de consenso,
e construir uma crítica emancipatória.
Com
esta perspectiva crítica, nesta contribuição assumo a tarefa de falar
sobre os direitos humanos no capitalismo pós-industrial e nela defendo
duas teses. Teses estas que já venho discutindo, na nossa Universidade
e fora dela, há muito tempo:
1-
na primeira tese junto-me àqueles que consideram que a nova
ordem mundial promovida pelo capitalismo pós-industrial em grande parte
edifica os fundamentos de sua legitimação através dos direitos
humanos. Os direitos humanos são na realidade absolutamente impotentes
e demasiadamente ornamentais para promover emancipações e liberdades
coletivas e universalistas;
2-
paradoxalmente, a partir de uma linha ética vinda do interior
dos direitos humanos, também está sendo produzido um enorme potencial
de subjetividade política que se opõe à nova ordem mundial.
No
limite de uma intervenção, para ir ao fundo das coisas e de modo
conciso, discuto, em termos gerais, a nova ordem do mundo preparando o
terreno para abordar a questão dos direitos humanos enquanto
legitimador do capitalismo contemporâneo. Em seguida, minha atenção
se volta ao seu paradoxo, isto é, os direitos humanos enquanto locus possível de fecundação de contestações e alternativas
contra as configurações atuais da mundialização e da globalização
liberal e do seu clássico slogan: There
is no alternative.
Antes
de desenvolver os argumentos, considero útil observar que a nova ordem
mundial que agora se configura não expressa a pretensão e o desejo da
multidão e tampouco ela é inevitável, mas aparece como fruto da
vontade político-econômica de alguns que se beneficiam com ela.
Chomsky na Conferência D’Albuquerque, proferida no Novo México, em
26 de fevereiro de 2000, por ocasião do vigésimo aniversário do
Centro de documentação intercontinental, observa que a
ordem
sócio-econômica particular que se impõe é o resultado de decisões
humanas tomadas no interior de instituições humanas. As decisões
podem ser revertidas e substituídas, como pessoas honestas e corajosas,
fizeram ao longo da história.
Portanto,
falar da inevitabilidade das transformações econômicas atuais é no mínimo
insensato.
DEMOCRACIAS-MERCADO CONTEMPORÂNEAS
Seja
como for, e mesmo que se possa argumentar que o capitalismo sempre tenha
funcionado como uma economia mundial, é somente na segunda metade do século
XX que empresas industriais e financeiras multinacionais e
transnacionais começaram de fato a compor biopoliticamente os territórios
em escala mundial. Este novo movimento do capital faz declinar a força
política dos Estados-nação dissipando qualquer dúvida sobre a
possibilidade de que eles ainda possam influenciar os parâmetros do
desenvolvimento econômico. Para
se ter uma idéia, a nível da América Latina, a Carta Econômica das
Américas por determinação dos Estados Unidos, em fevereiro de 1945,
decretou o fim do nacionalismo econômico latino-americano. Está claro
que a nova ordem mundial das democracias-mercado contemporâneas vem
sendo construída há várias décadas, rompendo hoje mais claramente
com os projetos capitalistas de abordagem keynesiana para dar lugar a um
projeto que reúne poder econômico e poder político.
As
relações de poder se reorganizam e adquirem uma configuração
totalmente desnacionalizante. Como lembra Elmar Altvater, “a
desnacionalizacão e o enfraquecimento das fronteiras, que acompanham a
desregulamentação, fixaram marcos de um campo teórico novo”.
Compreender isto é muito importante porque “em termos
constitucionais, os processos de mundialização e de globalização não
são mais simplesmente um fato, mas são também uma fonte de definições
jurídicas, tendendo a projetar uma configuração supranacional única
de poder político”,
que gira em torno dos Estados Unidos. Neste quadro, muitos não
desprezam a idéia de continuidade imperialista (um novo imperialismo),
mas é preciso ir mais além. Toni
Negri e Michael Hardt, referindo-se ao imperialismo, lembram que isto
que habitualmente gerou conflitos ou rivalidades entre várias potências
foi substituído por um poder único. Lembram eles que hoje se consolida
uma nova inscrição de autoridade e um novo projeto de produção de
normas e de instrumentos legais de coerção. Isto é, “novas figuras
jurídicas mostram uma tendência em direção à regulação
centralizada e unitária do mercado mundial”.
Como eles, vários autores, referem-se ao nascimento de uma nova era
imperial. Isto significa dizer que se abre um abismo entre os projetos
anteriores do capitalismo e o projeto do capitalismo pós-industrial.
Claro está que todos estes projetos (ou fases de um mesmo projeto)
constituem o mesmo movimento antagonista do capital e da exploração
social, figurando desde sempre como tendência histórica do
desenvolvimento capitalista. Grandes são as transformações que
ocorrem na passagem do capitalismo industrial ao capitalismo pós-industrial,
só para se ter uma idéia, entre outras, podemos citar:
Capitalismo
industrial
|
Capitalismo pós-industrial
|
1.
Dominante capital nacional.
|
1.
Dominante capital firmas transnacionais e oligopólios
mundiais.
|
2.
Dominante industrialização.
|
2.
Dominante capital financeiro;
|
3.
Poder disciplinar.
|
3.
Poder controle mundializado.
|
4.
Estados nacionais influenciando os parâmetros do
desenvolvimento econômico.
|
4.
Fim da influência dos Estados nacionais nas decisões econômicas,
declínio do Estado-nação.
|
5.
Instituição do Estado de bem-estar como política
acomodadora do trabalho, da pobreza extrema, marginalização.
|
5.
Desmantelamento do Estado de bem-estar: fim sistema proteção
social, pobreza, pobreza e desemprego, precarização do trabalho,
pobreza extrema, exclusão.
|
6.
Exploração força de trabalho.
|
6.
Intensificação da exploração.
|
7.
Geopolítica.
|
7.
Geoeconomia.
|
8.
Pirataria ecológica.
|
8.
Expansão da pirataria ecológica.
|
|
9.
Acelerada degradação das condições de existência.
|
Em
outros termos, como já referi em trabalho anterior, o capitalismo pós
industrial traz ao mundo modificações importantes: 1-dispensa o Estado
de bem estar; 2-acentua o processo de fragmentação dos operários
enquanto classe; 3- transforma a relação salarial, que se estende
agora a uma escala mundial, tornando frágil a relativa força que os
operários gozavam na era fordista; 4- produz uma força de trabalho
flutuante e móvel que tende a acentuar a segmentação social e a
decompor as estreitas relações entre a fábrica e o território que
unifica as categorias populares.
Portanto, desenhado pelo capitalismo, o novo contexto da economia-mundo
se caracteriza pela grande concentração e transnacionalização do
capital, pelo jogo do mercado financeiro, pelo desenvolvimento desigual,
pela produção do desemprego, pela proletarização de enorme
contingente de trabalhadores (nações inteiras) e pela acumulação
flexível. Esta é a realidade da modernização
capitalista planetária.
Em
realidade, a economia mundial foi fortemente submetida aos ritmos e exigências
do capital financeiro, ofertando um mundo mais profundamente organizado
e determinado pelo dinheiro em suas diferentes formas. Ora, nós sabemos
com Marx que o dinheiro, abstrato e privado de sensibilidade, tem um
conteúdo eminentemente de desigualdade e de exploração. Entretanto,
as políticas liberais, no jogo de forças entre o capital e o trabalho,
privilegiam fortemente o primeiro, colocando os homens contemporâneos,
principalmente dos países periféricos, fora do alcance dos ganhos de
produtividade do trabalho. Elmar Altvater não nos deixa esquecer que no
mundo contemporâneo, de acordo com os dados da Organização
Internacional do trabalho (OIT), mais de 700 milhões de pessoas estão
desempregadas ou precariamente empregadas.
Aliás,
os resultados das investigações sobre as novas políticas econômicas
não são nada encorajadoras, ao contrário. Elas mostram que os pobres
sofreram queda absoluta e real de renda enquanto que os mais ricos
tiveram suas rendas aumentadas. Contrariando as informações oficiais,
estudos comparativos do desempenho econômico brasileiro correspondente
ao ano de 92 e 98, realizados na Unicamp pelo economista e professor
Waldir Quadros, mostram que a participação nos ganhos totais da
terceira camada da população brasileira, constituída por indivíduos
pobres, decresceu de 33,4% para 30% enquanto seus rendimentos médios
relativos caíram de 2,1% para 1,9%. A parcela da quarta camada, isto é,
dos mais pobres, teve seu rendimento total decrescido de 8,4% para 6,9%.
A primeira camada, isto é, os mais ricos do país, beneficiados pelas
políticas liberais, tiveram um crescimento real de renda passando de
41,1% para 45,2%. Portanto,
estamos longe de qualquer possibilidade de elevação das taxas de
crescimento econômico, uma vez que as políticas econômicas adotadas
pelo governo brasileiro são extremamente concentradoras e
centralizadoras.
Não
é difícil verificar as proporções com que isto vem ocorrendo, pois o
que se vê atualmente são níveis extremamente elevados de desemprego
de longa duração e violenta precarização do trabalho. Em o Colapso
da modernização Robert Kurz chama atenção sobre o fato de que
hoje o sofrimento do Terceiro Mundo não mais deriva da exploração
capitalista da força de trabalho, mas da ausência desta exploração:
ninguém
precisa da grande maioria dessas massas desarraigadas, levando esta
parte uma vida miserável e improdutiva fora de qualquer estrutura de
reprodução coerente (...) a maioria da população mundial consiste
hoje em sujeitos-dinheiro sem dinheiro, em pessoas que não se encaixam
em nenhuma forma de organização social, nem na pré-capitalista, nem
na capitalista, e muito menos na pós-capitalista, sendo forçadas a
viver num leprosário social que já compreende a maior parte do
planeta:
Não
é mais o homem confinado que
toma a existência, diz Gilles
Deleuze, mas o homem endividado.
De
fato, no plano social, os resultados das políticas neoliberais mostram
um acelerado aumento da pobreza e de surtos de violência em todos os níveis
e um processo regressivo de desmantelamento do Estado de bem estar. Aqui
se faz necessário uma explicação: não faço a defesa do Estado, ao
contrário, pois o Estado, como diz Robert Kurz, é uma “máquina de alienação”.
Na verdade, considero o Estado e sua governabilidade centralizada
nefasto às igualdades sociais e econômicas, entretanto no quadro de
acelerado aprofundamento dos antagonismos sociais que vivemos hoje são
fundamentais as conquistas obtidas pelas lutas operárias que tiveram
como resultado o Estado de bem estar (em alguns países apresentado em
uma forma mais acabada, em outros, em uma forma apenas embrionária). A
rigor o Estado de bem estar serviu apenas para acomodar a pobreza. Cabe
lembrar com Gilles Deleuze que “só se pode pensar o Estado em relação
ao que está para além dele, o mercado mundial, e ao que está aquém
dele, as minorias, os devires, as pessoas. ”
Voltemos
à nova economia liberal, mundializada e globalizada, para dizer que ela
instaura um novo processo de exclusão excluindo totalmente indivíduos
e grupos do processo econômico. Face as contingências históricas do
capitalismo, pode-se afirmar que nunca o mundo produziu, ao mesmo tempo,
tanta riqueza e tanta pobreza quanto agora. Milton Santos em Por
uma outra globalização refere-se a uma pobreza estrutural
globalizada, resultante de um sistema de ação deliberada na qual “os
pobres não são incluídos nem marginais, eles são excluídos”.
Esse
novo universal instaura um modelo universal de exclusão. Aliás não
nos cabe estranhar, porque além desse modelo universal de exclusão
resultado do capitalismo, “só uma coisa é universal, o mercado. Não
existe Estado universal, justamente porque existe um mercado universal
cujas sedes são os Estados, as Bolsas. Ora, ele não é universalizante,
homogeneizante, é uma fantástica fabricação de riqueza e de miséria”.
A
nova ordem mundial deixa sobrar um incômodo contingente de
trabalhadores sem trabalho, abrindo a arena da competitividade na qual
“há, a todo custo, que se vencer o outro, esmagando-o para tomar seu
lugar”.
Esse movimento marca a exacerbação dos individualismos: na vida econômica,
na ordem política, na ordem dos territórios, na relação social e
afetiva, produzindo subjetividades muito perversas e eticamente
fracassadas. O fato de não se ter trabalho numa sociedade salarial (na
qual o universo de referência identitário é o trabalho), a extrema
competitividade, o abandono do compromisso ético-político, tanto no
campo material quanto simbólico, tem implicações extremamente
importantes. Os
comportamentos de inclusão e exclusão social cada vez mais são
interiorizados pelos próprios sujeitos e tornados inquestionáveis.
Como observa Michel Foucault, a vida foi transformada num objeto de
poder.
Interferindo
no sentido da vida e no desejo de criatividade, o poder se exerce hoje
por máquinas que organizam diretamente os cérebros (pelos sistemas de
comunicação, das redes de informação...) e os corpos (pelos sistemas
de vantagens sociais, de atividades enquadradas...) em direção a um
estado de alienação autônomo.
O novo paradigma do poder –
o biopoder – gera e regulamenta a vida social com a finalidade de
privilegiar o capital e organizar o Império, tratando a esfera planetária
como um conjunto sistêmico único. Evidentemente, para isso necessita
de tecnologias específicas: flexíveis e formativas (técnicas de polícia).
Dominar os espaços ilimitados do planeta, penetrar nas profundezas do
mundo biopolítico e afrontar uma temporalidade imprevisível tais são,
para Toni Negri e Michael Hardt, as determinações sobre as quais o
novo direito supranacional deve ser definido.
OS DIREITOS HUMANOS COMO ESTRATÉGIA DO
PODER
No
cenário do capitalismo pós-industrial, portanto, transformados em
estratégias de poder, com poder de polícia, os direitos humanos
funcionam como uma política contra os direitos humanos. Esse movimento
é indissociável da problematização feita por Michel Foucault a
respeito do biopoder, ou ainda de Antonio Negri com o conceito de biopolítico
produtivo, pois que implica no poder de criar, administrar e controlar a
vida produzindo e reproduzindo subjetividades e formas de vida. Ou seja,
os direitos humanos, com a idéia de que acima do direito positivo que
emana dos poderes existe um direito superior que é verdadeiramente o
poder legítimo, funciona como estratégia do novo poder.
O
jogo é simples: a primeira vista, os direitos humanos, enquanto
resultados de conquistas históricas, de fato parecem interferir no
descaso do poder positivo face as precariedades, conflitos e desajustes
das sociedades contemporâneas, na prática afirma a solidez da força
material e simbólica da nova ordem mundial sobre os Estados-nação e
realiza uma política geoeconômica. A legitimidade de suas ações e
intervenções é produzida em razão da carga teológica que carrega
como seu constitutivo – numa sociedade em que, infelizmente, o homem
quer ocupar o lugar de Deus. Edouard Delruelle observa que em colocando
o homem no lugar de Deus, em falando em nome dos direitos humanos e não
mais em nome de Cristo fica assegurado a perpetuação dogmática (que a
própria religião quer livrar-se) como estrutura, como referência
legitimamente organizada em nome de um sujeito universal, central e
superior. Mantém-se a velha idéia teológica que um poder (potestas)
se apoia sempre sobre alguma autoridade (auctoritas).
Em
outros termos, para que possa se estabelecer, o capitalismo pós-industrial
produz em nome dos direitos humanos um novo exercício de forças legítimas,
justamente, no momento em que constrói seus fundamentos. Tendo a
visibilidade planetária, a ética e a paz como argumentos, a eficácia
do uso da força é que funda a legitimidade do novo poder. Razão pela
qual se utiliza de intervenções tanto militares quanto humanitárias.
Os direitos humanos desempenham na sociedade contemporânea a função
de polícia mundial favorecendo os interesse da economia triunfante
passando a ignorar, ainda mais, as violações cometidas pela esfera
econômica. Ora,
na
medida em que geram reivindicações substanciais, certos direitos
materiais não podem ser democratizados. Por exemplo: todos podem
participar de eleições em igualdade de condições, mas não de um
alto consumo de recursos naturais. Eis a tragédia, por assim dizer, do
processo democrático: as regras formais do jogo não se encaixam com as
contingências do jogo.
O
direito ao desenvolvimento, à justiça social e ao acesso à riqueza
natural, dos indivíduos e povos, considerados fundamentais para o
discurso democrático moderno tornaram-se letra morta, fazendo calar a
razão crítica.
Sem
dúvida, a ordem democrática sofre atualmente uma enorme corrosão, uma
vez que sua lógica não é compatível com a racionalidade do mercado
mundial. Pois, “os que decidem na economia negam a territorialidade
política ou então a tomam como uma oportunidade de especulação através
da arbitragem com o câmbio, ou seja, a reduzem ao cálculo econômico”.
A conclusão que se pode chegar mostra que o papel democrático necessário
às tomadas de decisões política, social e economicamente relevantes
para a igualdade social e econômica mundial aparece extremamente
reduzido: qualquer participação nestes termos é desigualmente
distribuída. A desigualdade é a verdadeira essência do capitalismo,
agora exacerbada na nova ordem mundial. Ora, o conceito ocidental dos
direitos humanos, nos lembra Robert Kurz, contém como pré-requisito tácito
saber se o indivíduos tem valor de venda e poder de compra. Quem não
preenche esses critérios na verdade não é mais um ser humano, mas uma
porção de bio-massa.
Interessa
agora para nós destacar a evidência das considerações assinaladas
por Slavoj Zizek em seu artigo Direitos humanos e ética perversa, escrito para o Caderno Mais da
Folha de São Paulo,
nas quais o autor observa que a neutralidade dos direitos humanos é fictícia,
uma vez que os direitos humanos atendem aos interesses da nova ordem
mundial dominada pelos Estados Unidos. Entre suas diversas interrogações
Slavoj Zizek pergunta porque Henri Kissinger, considerado criminoso de
guerra tal qual Pinochet e Milosevic, ainda não está preso. E sugere
como ato político autêntico
a sua prisão argumentando que
este
gesto colocaria o maquinario internacional de direitos humanos à prova,
obrigando seus executores a deixar claro sua posição e a fazer a
escolha: ou o império americano obrigaria esse país a soltar Kissinger,
com isso expondo a grande fraude dos direitos humanos ou....
O
filósofo sloveno solidifica suas críticas utilizando-se de
contundentes argumentos. Pergunta ele a propósito de cada intervenção
específica realizada em nome dos direitos humanos: baseada em que critérios
foi feita essa escolha? Por que os albaneses na Sérvia e não os
palestinos em Israel, os curdos na Turquia? Por que Cuba é boicotada
enquanto o regime norte-coreano, muito mais rígido, recebe ajuda
gratuita para desenvolver capacidades atômicas “seguras”?
Na verdade, a nova ordem mundial produz, sob a máscara dos direitos
humanos, um novo exercício de forças legítimas. Ora, sabemos que as ações
e as intervenções não só militares, mas também as humanitárias,
exercem o poder de polícia sob a denominação de funções éticas.
Este fenômeno da mundialização, povoa os tempos modernos de
crises econômicas, de guerras e torna o capital o grande predador
planetário. Todos sabemos que as destruições ecológicas e a
pilhagem dos recursos naturais, enfim, a pirataria ecológica, foram
acelerados e intensificados com a mundialização.
A
Guerra do Golfo aparece como o grande marco dessa política, através
dela é mostrado mais claramente ao mundo o novo regime específico
de relações mundiais, no qual a guerra sacralizada pelos direitos
humanos, se justifica por ela mesma. O novo poder legitima o
aparelho militar fundando-o na ética e na paz e junto produz um
imaginário no qual o inimigo ameaça esta paz desejada e a ordem ética
mundial. O Império não se constitui a partir da força, mas como
lembram Toni Negri e Michael Hardt, se constitui sobre sua
capacidade de apresentar a força como estando ao serviço do
direito e da paz.
Todas as intervenções são solicitadas por algumas das partes do
conflito já existente fato que legitima a própria intervenção. E
é através delas que a nova ordem mundial (imperial) expande seu
poder e o mantém e, ainda mais, inscrita na idéia de prevenção e
repressão, a nova ordem produz um imaginário de equilíbrio
social: tudo isso é próprio do poder de polícia. Assim, em nome
dos direitos humanos a atividade mundial de polícia demonstra
capacidade e eficácia real para criar e manter a ordem.
No
capitalismo pós-industrial “desenvolvem-se estruturas de poder
propriamente globais. São estruturas que expressam as configurações
e os movimentos, as articulações e as contradições no âmbito da
sociedade global”. Com as novas técnicas de
poder e do poder de polícia mundial, observa-se o nascimento de um
novo ethos de e em dimensões mundiais, impossibilitando o acontecimento da
democracia (da multidão). Entretanto, não há ordem natural, o que
os homens contemporâneos mostram é fruto de uma contingência:
hoje as determinações supranacionais sobredeterminam as determinações
nacionais e locais. O destino do mundo não está sendo regido pelas
vontades coletivas, mas por vontades particulares curvadas ao
dinheiro, à riqueza, ao lucro. São táticas de governabilidade
mundial, nas quais as sociedades aparecem protegidas pelas intervenções.
Todos estão supostamente implicados no interior dessas novas dimensões:
nossa responsabilidade ética, nossa cidadania, nossa potência e
nossa impotência encontram aí sua medida.
O
sintoma mais significativo desta contingência, portanto, é o direito
de intervenção. Os sujeitos dominantes intervém legitimados
pelo imaginário de defesa das urgências e éticas superiores
universais, os sujeitos dominados, portadores de uma essência
desordenadora e perversa, são invadidos, aniquilados, e a realidade
contemporânea vai sendo desastrosamente embrutecida pela guerra,
pela miséria, pelo medo. A constituição da nova ordem planetária
consolida uma nova máquina administrativa e produz novas
hierarquias operantes em escala mundial. Ou seja, o Império emerge
como um centro que ordena a globalização das redes de produção e
tece uma tela extremamente englobante para tentar englobar, por sua
vez, todas as relações de poder na ordem mundial desenvolvendo uma
importante função de polícia ao mesmo tempo contra os novos bárbaros
e contra os escravos rebeldes que ameaçam a ordem.
Toda a contradição que esta nova ordem comporta faz com que a idéia
de poder novamente encontre a idéia de incerteza, observação já
feita por Maquiavel diante da realidade do seu tempo.
Emaranhados
nesta nova perspectiva de mundo, muitos interrogantes povoam nossa
inquietude: quem poderá por um fim às desigualdades sociais? É
possível pensar-se em direitos humanos sem repensar a questão da
propriedade e do poder? Qual é o conceito de paz que agora se
constitui? O sonho da democracia da multidão tornou-se impossível?
Poderão surgir novas subjetividades políticas? Os direitos humanos
serão capazes de construir uma subversão ética contra a nova
ordem mundial?
UM OUTRO POSSÍVEL: A Fecundação
De Uma Nova Subjetividade Política
Eric
Alliez e Michel Feher em Contretemps
trabalham com a idéia de que ao passarmos do capitalismo
industrial ao capitalismo pós-industrial (do imperialismo à nova
era imperial) nós passamos também de um regime de sujeição a um
regime de servidão. Isto significa dizer que ocorre uma enorme
transformação no capitalismo. O argumento utilizado pelos autores
é o seguinte: no sistema de sujeição social o capitalismo
considera os homens como sujeitos livres capazes de se reconhecerem
na produção como a sua essência subjetiva. Ou seja, o capital
trata separadamente homens e equipamentos aos quais esses mesmos
homens vêm sujeitar-se. Não há nenhuma confusão entre eles:
homens são homens e equipamentos são equipamentos. Também aí as
fronteiras entre as esferas produtivas e reprodutivas estão muito
bem demarcadas. A sujeição só pode acontecer a partir da
liberdade de um sujeito, de uma subjetividade livre que só se
atualiza pela livre submissão às condições capitalistas de produção,
de consumo e de circulação. O indivíduo é livre para circular em
diferentes esferas: a fábrica, a casa... exercendo sua liberdade
individual. Os espaços se definem de modo distinto e
compartimentado, como também o tempo: do trabalho, do lazer, do
consumo... o indivíduo os percorre livremente.
É exatamente com esse sistema que o capitalismo pós-industrial
rompe, utilizando-se da nebulosidade das fronteiras.
As
transformações observadas pelos autores indicam que no capitalismo
pós-industrial os dispositivos de sujeitamento dos indivíduos ao
capital são substituídos por uma forma de escravização dos indivíduos
pelo capital. A expansão da esfera produtiva invade a esfera
reprodutiva e a empresa coloniza o tempo livre do trabalhador: o
espaço doméstico torna-se também ele produtivo. Evidentemente, o
que está em jogo é a própria subjetividade do trabalhador. Isto
é,
a
diluição progressiva de todas as diferenças de estatuto entre as
instâncias ocultadas pelo capital constante (meios e objetos de
trabalho) e pelo capital variável (a força de trabalho), em outras
palavras, pela escravização maquínica ‘objetiva’ dos indivíduos
pelo capital, corresponde uma nova relação com eles mesmos que
realiza, subjetivamente, a sua integração no capital – do qual
eles se consideram um pedaço. A nova estratégia capitalista faz
com que a desubjetivação dos trabalhadores deságüe na sua
escravização pelo capital.
Não
será muito dizer que nasce um novo tipo antropológico, na medida
em que a sujeição cuja condição é a liberdade é substituída
por uma contínua servidão, produzindo novas subjetividades às
quais a importância da liberdade parece estar secundarizada.
Lembram
Gilles Deleuze e Felix Guattari em Mille
plateaux que a servidão e a sujeição compõem-se de modos
distintos: a primeira toma existência quando os próprios homens são
peças constituintes de uma máquina, mas a segunda, só ocorre
quando a unidade superior constitui o homem como um sujeito que se
reporta a um objeto tornado exterior. O homem não é um componente
da máquina, mas um trabalhador, um usuário... A diferença reside
no fato de que o homem é servil à máquina, e não é a ela
submetido. Ora, nós todos sabemos o quanto o capitalismo sempre
investiu na subjetividade.
A
subjetividade servil retira o indivíduo da vivência coletiva, do
seu próprio reconhecimento enquanto trabalhador livre e explorado
pelo capital. O indivíduo é levado a pensar-se dotado de uma alma de empresário
e, tomado pelo espírito de empresa, se mistura com o capital, e
é dele parte integrante. Isso fica muito bem explicado quando se
percebe que na dinâmica do processo de globalização liberal, “o
desempenho da economia passa a depender menos dos fatores de produção
baseados no território, como riqueza mineral, qualidade de solo e
disponibilidade de recursos naturais, e mais de fatores não-geográficos,
como o acesso a tecnologia, estratégias de marketing, produção
informatizada, criatividade organizacional, gerenciamento de
sistemas e capacidades de resposta às mudanças no mercado
consumidor, em princípio todos eles baseados na empresa”.
Entre
as diversas conseqüências desse tipo de processo de subjetivação
é que torna-se mais difícil o acontecimento das organizações e
lutas coletivas. Estamos de fato na era do homem convertido à
escravização maquínica. Outra referência não negligenciável à
produção da subjetividade servil é que o homem deixa de ser, não
só um trabalhador livre, mas também um consumidor livre. Como
mostram Michel Feher e Eric Alliez ao longo de sua obra, a concepção
que tem o capitalismo pós-industrial a respeito do homo
economicus consagra o indivíduo como um produtor-consumidor.
Os
direitos humanos institucionalizados (Declarações, Pactos e
Tratados) não problematizam os fundamentos do capitalismo, nem as
produções capitalistas e muito menos suas nefastas conseqüências,
ao contrário. Falar nisso nos suscita a pergunta que não é de
hoje, certamente, mas que ganha uma especial urgência diante da
problemática conjuntura de desigualdades e exclusões que desafiam
a agenda clássica de universalização dos direitos, isto é, onde
estão as reais ações das instituições que dizem promover os
direitos humanos contra essa economia predadora e selvagem que leva
o poder público a se misturar (confundindo-se) com o capital
transnacional a ponto de financiá-lo em detrimento das igualdades
econômicas e sociais? Ora, os direitos humanos sempre agem a favor
do capitalismo legitimando-o, sobretudo, quando não se opõem de
fato contra as violações dos direitos econômicos, políticos e
sociais.
Na
nova ordem mundial, as subjetividades que estão sendo produzidas
tendem ao narcisismo e ao individualismo exacerbados. A rigor não há
lugar para um modo solidário, fraterno e coletivo de vida. A nova
ordem mundial, fecundada pelo capitalismo pós-industrial, com muito
mais tenacidade do que desejava o capitalismo industrial e a ordem
por ele produzida, parece querer bloquear qualquer política de
liberação. Evidentemente, os direitos humanos enquanto política
de sustentação e legitimação, materializam a unidade primordial
que possibilita esta relação entre os indivíduos (enquanto
sociedade civil) e o mercado e tornam possível este bloqueio.
Entretanto,
paradoxalmente, os direitos humanos produzem tanto uma
contra-mundialização quanto uma contra-globalização liberal em
dois movimentos: 1- há no planeta uma grande mobilização,
mostrando uma experiência produtiva comum da multidão: são os
novos nômades do mundo capitalista. Com eles as normas
convencionais das relações humanas, espaciais e temporais, econômicas
e sociais, tendem a se reorganizar numa perspectiva contestatória e
transformadora. Sabemos que, ao contrário do povo, a multidão é
sempre desobediente; 2- Os direitos humanos ao querer legitimar a
nova ordem mundial (imposta pelo capitalismo pós-industrial) e,
portanto, preparar o terreno para as intervenções militares e
humanitárias, traz para o debate valores da vida. É precisamente,
esta problematização dos valores da vida que poderá construir
outra coisa, isto é, uma nova subjetividade política, uma vontade
afirmativa e um contra poder.
Michel
Foucault mostra como a resistência, o contra poder, portanto,
invoca o poder da vida e suas múltiplas forças. Há muitas forças
crescendo contra a servidão, como muitas forças também cresceram
contra a sujeição, a fim de guardar a vida em movimento. Com
efeito, ao longo da história dos homens as fortes pressões que
emergiram das lutas populares e dos movimentos sociais em prol de
direitos emancipatórios, possibilitaram alguns avanços na
perspectiva de uma nova cultura política ligada a participação e
inserção de grupos populares.
Sabemos
que direitos políticos foram conquistados particularmente pelas
lutas operárias do século XIX e início do século XX e pelos
movimentos feministas ao longo do século XX; pressões exercidas
pelos indivíduos desprovidos de bens e pelas mulheres, nos primórdios
do liberalismo (período no qual o direito censitário estava
atrelado à idéia de independência econômica) possibilitaram
algumas conquistas importantes a nível de direitos. A conquista de
direitos traz nela o sentido da invenção de regras de civilidade e
de socialidade democrática.
É
verdade que somente um século e meio após a primeira declaração
de direitos humanos logrou-se alcançar a igualdade dos direitos
civis tanto dos homens quanto das mulheres. Mas todos sabemos que
processos emancipatórios são realizados com avanços, mas também
com grandes recuos. É longa a lista das lutas e reivindicações de
direitos emancipatórios e das conquistas que a partir delas foram e
estão sendo produzidas, serão longas também as lutas e reivindicações
que ainda temos pela frente.
Convém
entendermos que as lutas populares, as denuncias e questionamentos
que realizam, a exigência dos direitos, tornam mais visíveis as
antinomias e contradições da vida social. Lembrar isso pode
parecer banal, mas os sujeitos que se fazem ver e reconhecer na luta
pelos direitos, produzem uma espécie de pedagogia para si mesmos e
para toda a sociedade. Esta pedagogia que vem da palavra pronunciada
e do ato realizado está carregada de positividade. Através dela
trava-se o debate sobre as regras da vida em sociedade, das medidas
de igualdade e das regras de justiça que devem balizar as relações
sociais, definindo-se na arena pública as responsabilidades das
desigualdades e das injustiças sociais. Através dela (refiro-me
ainda à pedagogia) coloca-se em cheque o capitalismo pós-industrial
e a nova ordem mundial, ou seja, a globalização liberal e quer se
subverter as hierarquias reais e simbólicas existentes. Isto
significa dizer que é, justamente, no conflito travado nas lutas
populares e nos movimentos sociais que os princípios universais da
cidadania se singularizam. Assim,
quando os índios, os negros, os sem terra, os
desempregados... falam sobre o que afeta suas vidas e reivindicam
seus direitos, são subjetividades críticas que se inscrevem na
cena pública abrindo o debate. Lembra Vera da Silva Telles na sua
conferência Direitos sociais:
afinal do que se trata? que é nessa tessitura polêmica da vida
política construída no cenário das disputas e antagonismos, das
divergências ou não-convergências em torno de temas pertinentes
ou projetados como tais na vida pública pela própria dinâmica
democrática dos conflitos, que se pode encontrar a chave para
decifrar nossa própria atualidade, seguindo a configuração
necessariamente polêmica e plural de seus dilemas, das questões
abertas e em aberto na cena pública, e dos horizontes de possíveis
que descortinam no campo sempre imprevisível da história.
Mas
nada é fácil, liberdades e direitos nunca estão realmente
garantidos, basta olharmos as ditaduras militares e econômicas
pelas quais grupos e nações inteiras foram e estão sendo
submetidos. Direitos, seja lá quais forem: civis, políticos, econômicos
ou sociais, na maioria das vezes não passam de meras formalidades.
E, entretanto, os direitos humanos, enquanto medida de justiça
funciona como marco referencial, construindo e balizando vínculos
entre indivíduos, grupos e classes.
Em
razão de tudo isso, cabe-nos perguntar quais são essas novas forças
que hoje se contrapõem ao agenciamento do capitalismo contemporâneo?
Ora, se o capitalismo desterritorializa os sujeitos de suas esferas
natais, como refere-se Peter Pál Pelbart, fazendo com que eles
reterritorializem sobre referências identitários arcaicos ou midiáticos,
ao mesmo tempo, essa normalização generalizada pode significar uma
refluidificação aberta a novas composições, novos valores e
novas sensibilidades.
Arcaicos que na minha opinião se transformam em novos significados,
transformando-se eles mesmos em outra coisa, isto é, em
referenciais pós-modernos desejosos de se contraporem à nova ordem
mundial.
Querer
saber quais são as novas forças que hoje se contrapõem ao
agenciamento do capitalismo contemporâneo, lutar contra este
agenciamento, trata-se de uma questão ética. A ética não trata
particularmente de certos valores do bem
e do mal. Mas, nos
lembra Suely Rolnik, a ética é o “caráter criador da vida como
critério de valor e não qualquer espécie de forma que a vida
tenha tomado ou venha a tomar, não pode ser simplesmente o
compromisso com o cumprimento de um conjunto de normas, mas a
consideração daquilo que se impõe como diferença e que exige
criação”.
Sabemos que os direitos humanos, apesar de legitimarem a nova ordem
mundial, paradoxalmente, também servem para produzir subjetividades
críticas capazes de julgar e querer transformar esta mesma ordem
mundial e todas as suas conseqüências.
Essas
subjetividades críticas deixam muito claro que embora tenhamos
a
impressão de estarmos encerrados dentro de uma fortaleza, ou,
antes, dentro de uma cerca de arame farpado, que se estende não
apenas por toda a superfície do Planeta, mas também por todos os
cantos do imaginário (...) o capitalismo Mundial Integrado
(globalização liberal) é, sem dúvida, muito mais frágil do que
parece.
Na
medida em que - por pressão dessas mesmas subjetividades críticas
e, portanto, da “consciência do direito de ter direitos” que elas evidenciam - os
direitos humanos se enraízam nas práticas sociais para dar lugar
à expansão da dimensão ética na vida social e dos territórios
de cidadania. É por esse ângulo, e apesar de estarem legitimando a
nova ordem social, que Declarações, Pactos e Intenções de
direitos humanos, os discursos a seu respeito, podem se qualificar.
Concluo
re-afirmando que a beleza falsa e artificial dos direitos humanos
obrigatoriamente deve ser desmascarada no mesmo instante em que se
desmascara a globalização liberal, nem antes e nem depois. Esta
talvez seja uma maneira de se evitar, por um lado, que as
subjetividades sejam inteiramente moldadas pelo capital, por outro,
talvez seja uma maneira de forçar que os direitos humanos abandonem
seus dilemas deixando de legitimar discursos e ações excludentes e
passem a ser, eles mesmos, protetores dos direitos humanos.
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
NEGRI,
Antonio; HARDT, Michael. Empire.
Paris : Exils,2000.
VAKALOULIS,
Michel. Le capitalisme
post-moderne. Paris : PUF, 2000.
|