| Maria
      Belela Herrera*
      
       O
      advento de um novo século obriga, hoje mais do que nunca, que se examine
      o tema direitos humanos no contexto das vertiginosas mudanças ocorridas
      no século em curso, e dos progressos não consolidados, os quais
      constituem os grandes desafios do próximos tempos.
      
       Entretanto,
      o esforço de se “pensar em termos de futuro” não dispensa uma valoração
      do passado, porque a responsabilidade política e ética impõe que não
      incorramos em erros já cometidos anteriormente.
      
       Este
      é um imperativo histórico para a geração atual, que abriu os olhos
      para a vida, em meio aos horrores do nazismo, que carregou nos ombros os
      efeitos da década perdida, da guerra fria, e que hoje tem a
      responsabilidade histórica de dar novo direcionamento aos métodos
      utilizados, aos equívocos, e também- porque não? - aos sonhos a
      realizar.
      
       Como
      dizem as velhas lendas americanas, estamos diante do desafio de queimar
      nossos navios e olhar o horizonte, a partir daqui e de agora, no
      entendimento de que se não resolvermos nossos problemas, estaremos
      legando graves riscos àqueles que nos sucederão.
      
       A
      partir daí, o primeiro passo da análise deveria concentrar-se numa
      reavaliação da dívida pendente, dos problemas que não fomos capazes de
      resolver e que, querendo ou não, transmitiremos como legado às novas
      gerações.
      
       Em
      seguida, a partir de uma autocrítica, poderemos redimensionar o tema,
      elaborar programas, estabelecer diretrizes, assim como os objetivos políticos
      e sociais destinados a consolidar o respeito aos direitos básicos, para o
      limiar do novo século.
      
       A dívida pendente
      
      Precisamente
      no ano em que se comemora o cinqüentenário da Declaração Universal dos
      Direitos Humanos cabe a pergunta:
      
       O
      que estaria tão próximo de cumprir o ideal comum de todos os povos e nações,
      e obter o respeito inalienável de todos os membros da família humana?
      
       Que
      panorama nos oferece a situação dos direitos humanos no mundo contemporâneo?
      
       O
      ressurgimento da guerra, em conseqüência do ódio étnico, nos tira da
      letargia quando acreditávamos que a intolerância estava superada. O
      cientista político norte-americano Samuel Huntington assinala que,
      durante a Guerra Fria, as pessoas eram perseguidas por causa de suas idéias,
      porém, agora, as pessoas podem ser mortas apenas por serem moradoras de
      um determinado lado da rua.
      
       Definitivamente,
      o racismo tem demonstrado ser, através da história, o exemplo mais eloqüente
      da incapacidade humana de se entender, aceitar ou, ao menos, tolerar as
      diferenças.
      
       Este
      é um dos desafios que nos apresenta o século XXI: fortalecer, a partir
      de estruturas educativas, políticas e sociais, a aceitação das diferenças.
      Reconstruir o conceito de igualdade dentro da concepção humanista e
      assegurar que seja alcançado o paradigma de teóricos como Umberto Eco,
      que defende que “os racistas devem ser uma raça em extinção”.
      
       A
      xenofobia, a discriminação e o racismo passeiam juntos com as propostas
      de partidos direitistas, de novo cunho e velha linhagem, que capitalizam o
      poder na Europa. Essas políticas são acompanhadas pelo renascimento de
      pesquisas pseudo-científicas sobre “racismo genético” e inteligência
      hereditária.
      
       O
      furor racial espalha sua pólvora, atiçando hispânicos e negros nos EUA,
      não-russos na ex-União Soviética, árabes na França, turcos na
      Alemanha, hutus e tutsis em Ruanda, e fazendo com que paquistaneses e
      hindus recorram a bombas atômicas para resolverem suas velhas controvérsias.
      Acrescente-se a isso, o caso da Iugoslávia, dividida e destroçada,
      mostrando os despojos da barbárie.
      
       De
      sua parte, neste lado do mundo, na América Latina, as principais formas
      de discriminação atingem os povos indígenas, as mulheres, os
      imigrantes, as crianças e os pobres.
      
       Diferentemente
      do que ocorreu durante o século XX, quando os imigrantes eram recebidos
      de forma calorosa e de braços abertos, hoje em dia, na maioria das vezes,
      essas pessoas são duplamente vitimadas. Em primeiro lugar, a sociedade
      que eles abandonaram, em busca de proteção e melhores condições de
      vida, os expulsa; e, quando chegam ao destino, são estigmatizados pelo
      corpo social que os recebe.
      
       A
      disputa por bens básicos, emprego, saúde e educação coloca os
      imigrantes em situação de confronto com os que já estavam nesse novo
      destino. Diante disso, a ponte para a xenofobia é curta e ampla. Em
      agosto de 1993, o Sindicato de Trabalhadores na Construção argentino
      cobriu a cidade com os seguintes dizeres: “Que não se apoderem do pão
      nosso de cada dia com importação de mão de obra clandestina”. Tal
      procedimento é uma clara referência às contratações, por parte de
      empresas argentinas, de mão-de-obra paraguaia e boliviana.
      
       Enquanto
      isso, na Alemanha, França e outras nações ocidentais, esses argumentos
      são manipulados contra os imigrantes africanos e latino-americanos; e os
      latino-americanos, por sua vez, discriminam-se entre si.
      
       O
      Professor Rodolfo Stavenhagen escreveu, recentemente: “A
      internacionalização dos conflitos étnicos e a definição das relações
      internacionais com base em critérios étnicos, apenas começaram. À
      medida que se extinguem as disputas ideológicas, que caracterizaram quase
      todo o século XX, aumenta a virulência dos confrontos, que têm origem
      nos problemas de identidade e valores”.
      
       Esse
      é um tema que deve ser encarado dentro do marco dos processos de integração
      regionais, que deverão gerar ampla mobilização de pessoas. Dentro desse
      ponto de vista, observa-se uma preocupação exacerbada sobre o impacto do
      Mercosul, no âmbito político, econômico e comercial. Nesse sentido,
      acreditamos que esteja havendo um descaso com relação à dimensão
      humana do fenômeno, a qual não poderá ficar fora da agenda política.
      
       De
      acordo com nossa opinião, esse aspecto deve ser encarado urgentemente e
      os Estados e governos do próximo século deverão assegurar condições
      para que o desenvolvimento se dê de forma harmônica entre os povos. Sem
      prejuízo de seus objetivos, o marco de integração não poderá
      significar o retrocesso de nenhuma conquista social obtida dentro dos
      respectivos países. Temos que fazer um exercício de sinceridade e
      avaliar quantos resquícios de intolerância perduram dentro das nossas
      realidades cotidianas.
      
       A
      discriminação prima por ter rostos ocultos. Por exemplo, no Uruguai, as
      estatísticas oficiais dos Instituto Nacional de Estatísticas relativas a
      1998,
      revelam que a comunidade negra atravessa condições de miséria, falta de
      educação e desemprego, em claro desequilíbrio com a comunidade branca.
      As mulheres do Uruguai ganham menos que os homens, pelo mesmo trabalho;
      quarenta por cento de cinqüenta e cinco mil crianças nascem em
      localidades com carências básicas.
      
       Apesar
      disso tudo, a discriminação e intolerância que nos circundam não são
      fenômenos mágicos, de instalação espontânea, mas, exatamente o contrário.
      
       Os
      atuais modelos de civilização globalizada e planetária, a lei econômica
      do livre mercado, idolatrada como Deus Supremo, a massificação social e
      a bíblia dos indicadores macroeconômicos têm contribuído para detonar
      esses ódios, sem oferecer qualquer solução aos problemas
      “simplesmente humanos”.
      
       Globalização e pobreza
      
      A
      globalização tem aumentado a distância entre ricos e pobres, e ameaça
      generalizar a indiferença perante a crise social. A persistência do
      crescimento das cifras de desemprego e pobreza em grande escala constituem
      tanto um desperdício intolerável de recursos humanos como uma ameaça
      perigosa para a coesão social e para as relações internacionais, em
      condições de paz.
      
       Em
      seu “Relatório sobre a Saúde Mundial, de 1995”, a Organização
      Mundial de Saúde apresenta indícios preocupantes sobre a amplitude e
      gravidade dos extremos de pobreza no mundo.
      
       Na
      sua “Classificação Internacional de Doenças”, está identificado
      como o carrasco mais impiedoso e a principal causa de sofrimento dos povos
      da Terra, o Código Z 59.5, ou seja, a extrema pobreza. A pobreza é o
      principal motivo por que não são vacinadas as crianças em fase de
      amamentação, nem se disponha de água própria para consumo humano, de
      saneamento adequado e de medicamentos para que as mães não morram de
      parto. É a principal causa da baixa expectativa de vida, das mutilações
      e doenças causadas pela fome. É uma das grandes responsáveis pelas doenças
      mentais, do estresse, da desintegração familiar e da toxicomania. A
      pobreza, enfim, exerce uma influência nefasta em todas as etapas da vida
      humana, desde a concepção até o túmulo.
      
       A
      miséria é o novo “apartheid” dos nossos tempos, conforme afirma, com
      absoluta convicção, o especialista argentino Leandro Despouy. A única
      diferença - sustenta o especialista - é que o “apartheid” foi
      condenado e repudiado, enquanto a miséria passeia impunemente perante a
      indiferença geral.
      
       Na
      América Latina, ainda temos muitas tarefas pendentes. Há uma necessidade
      urgente de se lançar um ataque de larga escala contra a pobreza. É
      responsabilidade de cada país reconhecer as desigualdades que existem
      dentro de suas fronteiras e adotar medidas para corrigi-las.
      
       A
      Comissão para a América Latina calculou que, no princípio dos anos 90,
      196 milhões de pessoas viviam em condições de pobreza, ou seja, 60 milhões
      a mais que na década de 80.
      
       No
      Uruguai, a situação de indigência, ou seja, aquelas pessoas cujas
      rendas não conseguem cobrir uma cesta básica de alimentos, representa 2%
      do total da população urbana, ou cerca de 60 mil pessoas.
      
       Desenvolvimento, um direito que não foi
      consolidado
      
      Nós,
      povos da América Latina e África, ainda não pudemos tornar realidade o
      que foi proclamado na “Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento
      das Nações Unidas, em 1986, ou seja, “reconhecer que o desenvolvimento
      é um processo global econômico, social, cultural e político que visa o
      aprimoramento constante do bem estar de toda a população e de todos os
      indivíduos, baseado na participação ativa, livre e significativa, nesse
      desenvolvimento, e na distribuição justa dos benefícios que dele se
      originam.”
      
       Os
      programas econômicos não poderão ser considerados bons se não forem
      capazes de melhorar as condições humanas, o nível de vida, a qualidade
      de vida, a educação, a saúde e o emprego dos grupos mais estigmatizados
      e excluídos da população.
      
       Os
      esforços internacionais consolidados na Declaração Final da Conferência
      Mundial de Direitos Humanos, de 1993, e da Cúpula sobre Desenvolvimento
      Social de Copenhague, de 1995, a chamada Cúpula da Esperança,
      tornaram-se marcos no caminho do reconhecimento de que a pobreza extrema e
      a exclusão constituem violações visíveis dos direitos humanos.
      
       Com
      sua brilhante maneira de escrever e sentir, meu compatriota, o escritor
      Eduardo Galeano,
      descreve os tempos que correm:
      
       “A
      América Latina vive um período histórico cruel. As contradições da
      sociedade de classes são, aqui, mais ferozes que nos países ricos. A miséria
      maciça é o preço que os países pobres pagam para que seis por cento da
      população mundial possa consumir, impunemente, a metade da riqueza que o
      mundo inteiro gera. É muito maior a distância, o abismo que, na América
      Latina, se abre entre o bem estar de uns poucos e a desgraça de muitos,
      como também são mais selvagens os métodos para salvaguardar essa distância”.
      
       Consequentemente,
      um dos principais desafios que nos acena o futuro é a capacidade de
      podermos eliminar essas desigualdades e trabalharmos juntos, por uma
      distribuição mais justa da renda.
      
       Queremos
      os benefícios de um mundo interconectado, porém é necessário que se
      elaborem políticas visando a erradicação da pobreza e que se promova a
      participação popular na solução do tema social. Um requisito
      importante para a aplicação efetiva dos direitos econômicos, sociais e
      culturais nos países menos desenvolvidos consiste de uma transformação
      pacífica e rápida, a fim de permitir que todos os recursos humanos e
      materiais da nação participem plenamente do processo desenvolvimento.
      
       Democracia e desenvolvimento
      
      Sem
      desenvolvimento político, o desenvolvimento econômico e social não
      poderá ocorrer. É necessário estimular a criação de uma estrutura política
      que se transforme na alavanca das mudanças, e que sua força e dedicação
      sejam transmitidas para o corpo social.
      
       O
      descompasso entre a democracia e as demandas legítimas da população
      acarreta riscos perigosos que colocam em julgamento a própria
      legitimidade do sistema. Não se pode aceitar que os Ministros da Economia
      falem do bom desempenho dos índices macroeconômicos, enquanto as pessoas
      estão desempregadas e sofrendo privações básicas.
      
       Um
      dos principais problemas que afetam o Uruguai são as cifras de
      desemprego. Após a ditadura, essas cifras apresentaram uma queda, mas
      rapidamente voltaram ao nível de dois dígitos no começo dos anos 90,
      fixando-se, atualmente, em cerca de 12,8%, em Montevidéu, e 12,4% no
      interior urbano. Isso implica em que, de acordo com os dados do Instituto
      Nacional de Estatística, 328.000 pessoas vivem com alguma necessidade básica
      insatisfeita, o que representa 11,4 % da população urbana do país, dos
      quais 41,8% são crianças menores de 14 anos.
      
       O
      milênio que se aproxima deverá forjar uma democracia que avance, não em
      função de um Estado “invisível, alheio ao cenário nacional e
      reduzido a um moderno e gerencial administrador de recursos senão de um
      Estado que compense as desigualdades, que assegure a participação plena
      e igualitária da mulher na vida econômica, que nivele as rendas urbana e
      rural, que estabeleça políticas voltadas para eliminar efetivamente a
      discriminação, que descentralize as decisões e que leve adiante um
      plano de desenvolvimento nacional e unificado. Uma reforma educativa que
      enseje não somente aumento da capacidade de alfabetização, como também
      mudanças na qualidade e conteúdo do ensino. No Uruguai, desde 1996, se
      processa uma reforma educativa que pretende ser ampla. Uma das medidas
      adotadas implica na eliminação das escolas rurais que apresentam
      escassez de alunos. Nós discordamos dessa posição, defendendo que a
      educação pode atuar sobre a realidade a fim de modificá-la. Se a migração
      do campo para a cidade é um dos males dos nossos tempos, decisões dessa
      natureza só poderão agravar o fenômeno, ao invés de atenuá-lo ou
      revertê-lo.
      
       Acreditamos
      na força da educação como geradora de desenvolvimento, em homens e
      mulheres dotadas de crítica e preparadas para se lançar em direção ao
      futuro, que sejam protagonistas das mudanças, e não objetos do
      desenvolvimento.
      
       Devemos
      redimir aqueles contidos em si mesmos, e lutar para que tenham um papel
      mais participativo no cenário social.
      
       Não
      somos partidários do divórcio entre crescimento econômico e justiça
      social. Ainda que expondo-nos ao risco de sermos tachados de antiquados, não
      abandonamos o sonho de uma democracia “substantiva”.
      
       Para
      se forjar as mudanças, devem-se multiplicar as formas institucionais que
      permitam a participação direta do povo, na eleição de seus
      representantes, e na tomada de decisões.
      
       Democracia
      não é unicamente a liberdade de protestar e de ser pobre. Nesse sentido,
      participar seria criar as condições econômicas e culturais que garantam
      o completo exercício dos direitos civis e políticos, assim como dos
      direitos econômicos, sociais e culturais.
      
       A
      participação popular, o fortalecimento de uma estrutura jurídica sólida-
      incluindo-se um sistema jurídico que conte com recursos suficientes, com
      juízes e funcionários devidamente remunerados, a criação de instituições
      de mediação entre o indivíduo e o Estado, como os Defensores do Povo,
      ou “Ombudsman”, são ferramentas que assegurarão o respeito pelos
      direitos humanos, no século que se aproxima. Nesse sentido, devemos
      trabalhar em conjunto com as instituições governamentais e as sociedades
      civis, por meio das comunidades, das organizações não-governamentais,
      cooperativas, sindicatos, etc.
      
       Segurança e direitos humanos
      
      Os
      cientistas sociais definem segurança como a confiança, a tranqüilidade
      de espírito resultante da crença de que não existem perigos ameaçando
      o indivíduo.
      
       No
      sentido contrário, a insegurança gera um forte sentimento de desconfiança
      e incerteza. Esse estado de ânimo provoca, na maioria das vezes, uma
      leitura equivocada em relação aos direitos humanos, cujo corolário
      abrange uma situação de confronto entre determinados tipos de direitos e
      outros.
      
       A
      pobreza é geralmente identificada como o caldo cultural da delinqüência.
      Dentro dessa dinâmica, o sentimento de insegurança condiciona o corpo
      social a demandar maior repressão para os delitos, os meios de comunicação
      de massa atacam a benevolência da justiça e a falta de severidade das
      penas, fazendo ressurgir, como por encanto, as teorias que penalizam
      infratores cada vez mais jovens e reacendem o debate sobre as vantagens
      dos castigos extremos, como a pena de morte.
      
       O
      direito à segurança leva ao confronto do devido processo, da independência
      jurídica, tornando o papel social da justiça penal o de penalizar
      eternamente o ladrão de galinhas.
      
       Em
      outras áreas, a insegurança gerada pela crise econômica debilita as
      condições dignas de emprego, que se traduzem pela aceitação de salários
      depreciados, pela perda da capacidade negociadora do conjunto sindical,
      assim como pela própria desarticulação das organizações
      representativas dos trabalhadores.
      
       Na
      prática, em situações de instabilidade econômica, o direito ao emprego
      parece confrontar-se com o direito de livre associação, tornando-se esse
      um obstáculo para a permanência no próprio emprego.
      
       A
      segurança também é abalada quando a opinião pública toma conhecimento
      dos obscuros negócios secretos feitos com recursos públicos, das contas
      não declaradas por funcionários corruptos e outros desvios de poder.
      Nesses casos, o direito à privacidade e à honra acabam saindo feridos.
      Como reação imediata, começa-se a atacar os jornalistas, a ética dos
      meios de comunicação e todas as demais fontes de consulta, colocando-se
      em confronto o direito à honra com o direito à livre expressão e
      comunicação do pensamento.
      
       A
      insegurança afeta o ser humano individualmente, as organizações sociais
      e o Estado.
      
       Neste
      momento, assistimos, impávidos, o confronto armado entre países irmãos
      de nossa América, e nos comove pensar que, outra vez, esse desgastado
      argumento da segurança territorial e soberania possa fazer ressurgir um
      conflito com outras causas e com outros propósitos.
      
       Por
      isso, um dos principais desafios para o século que se aproxima será
      assegurar a segurança e a liberdade das pessoas, em qualquer parte do
      mundo; segurança não só contra os conflitos armados, mas contra a violência
      estrutural geradora de pobreza.
      
       A
      noção de “segurança” deve ser desenvolvida com maior profundidade e
      estudada a partir de outras perspectivas, como também deve ter a
      participação de todos os setores para a busca de uma solução para o
      problema.
      
       A
      própria sobrevivência e o desenvolvimento humano futuro, também deverá
      estar relacionado ao tema da “segurança ambiental”.
      
       Não
      se trata de mera coincidência que a maioria dos pobres vivam em áreas
      mais vulneráveis do ponto de vista ecológico.
      
       Oitenta
      por cento dos pobres na América Latina, sessenta por cento na Ásia, e
      cinqüenta por cento na África vivem em terras marginais, caracterizadas
      por uma alta susceptibilidade à degradação ambiental.
      
       Estamos
      convencidos da indivisibilidade e complementaridade de todos os direitos
      humanos. Dentro do universo de proteção, existe espaço para cada um dos
      direitos, sem sacrificar nenhum.
      
       Democracia e direitos humanos
      
      O
      modelo democrático a que aspiramos passa pela atribuição de um papel
      preponderante ao tema direitos humanos, e pela transformação desse
      reconhecimento em reformas concretas.
      
       No
      Uruguai, apesar de haver uma longa e profusa tradição constitucional de
      reconhecimento e proteção dos direitos civis, políticos e sociais, não
      há um dispositivo que assegure uma hierarquia normativa “supranacional”,
      ou, pelo menos, “quase constitucional”, aos tratados relativos a
      direitos humanos.
      
       Há
      pouco tempo atrás, efetivou-se uma reforma constitucional, propiciada
      pelos dois partidos políticos em exercício, visando a um pacto de
      co-gestão governamental.
      
       Apesar
      dos esforços e cobranças de amplos setores da opinião pública, no
      sentido de se incluir o dispositivo mencionado, nada disso foi
      contemplado.
      
       A
      ausência desse dispositivo coloca ao arbítrio das leis internas, que são
      produtos de conjunturas específicas, todo o regime de garantias elaborado
      a partir do sistema internacional de proteção. Nesse sentido, o Uruguai
      se encontra na retaguarda, e em clara desvantagem em relação ao restante
      do universo constitucional americano. Infelizmente sabe-se que não se
      trata de um ingênuo equívoco, mas, sim, de uma decisão pensada, e
      tomada de forma consciente.
      
       Compromissos
      internacionais impõem a obrigação de implementá-los de ”boa fé”,
      ou seja, os Estados devem ajustar suas condutas às pautas internacionais,
      às quais, livremente, deram consentimento. Isso, exige, entre outras
      coisas, a adequação da legislação interna às obrigações que emergem
      dos tratados e Convenções ratificadas.
      
       Lamentavelmente,
      ainda existe, em muitas partes do mundo bem como no Uruguai, uma dualidade
      de atitudes e discursos nesse sentido.
      
       Ratificamos
      a Convenção sobre Tortura, porém, não se consegue os votos dos
      partidos de centro-direita para se votar uma lei que defina o delito de
      tortura; somos parte da Convenção para a Eliminação da Discriminação
      Racial, porém não existem internamente mecanismos eficazes específicos
      para se denunciar a discriminação; a Convenção Americana de Direitos
      Humanos é lei interna, porém, não há o reconhecimento de sua
      incompatibilidade com a lei da caducidade da pretensão punitiva do
      Estado, que privou de recursos efetivos os familiares das vítimas do
      desaparecimento forçado. Da mesma forma, somos parte do sistema
      interamericano e respeitamos as opiniões da Comissão Interamericana de
      Direitos Humanos, salvo quando, estabelece que a lei de perdão aos
      torturadores deveria ser modificada.
      
       No
      plano nacional, essa é uma tarefa a ser encarada em sua totalidade pelo
      Estado do próximo século. Conciliar o discurso com a prática,
      democratizar a democracia, tornar transparente o nebuloso e atribuir à
      proteção dos direitos humanos o papel decisivo que lhe condiz, como
      coluna vertebral do sistema democrático.
      
       Uma dívida dolorosa
      
      Dentro
      de outra perspectiva, uma herança dolorosa que carrega a América Latina
      nestes últimos anos do século XX é a impunidade.
      
       A
      impunidade que se revelou como uma seqüela dolorosa deixada pela transição
      para a democracia.
      
       As
      leis de ponto final, de obediência devida, e de caducidade da pretensão
      punitiva do Estado são todas máscaras lingüísticas de um instrumento
      perverso, de amnésia obrigatória, de um perdão às cegas, que ignora o
      que se deve perdoar.
      
       E
      foi a lei, o instrumento de aplicação da justiça adotado pelos
      parlamentos democráticos, que serviu para institucionalizar a morte do
      passado, a ocultação do presente e a negativa histórica do porvir.
      
       O
      analista Timothy Garton Ash assinalou corretamente que
      muito além do regime político de que se trate, em um processo de avaliação
      que abranja desde a Espanha pós-Franquista de 1975, até os países da
      Europa Oriental, passando pelas ditaduras centro e sul-americanas, todos
      os novos governantes têm delineado uma linha de fogo entre si próprios e
      o passado.
      
       Isso
      trouxe como resultado que a única via para o futuro é que se diga a
      verdade. Necessitamos de saber a verdade sobre o que se passou, como e por
      que se passou. Necessitamos dessa verdade para transmitirmos às próximas
      gerações, a fim de que elas não cresçam com a idéia de que nós não
      tenhamos feito qualquer esforço para sermos honestos.
      
       As
      leis aprovadas no final dos anos 80 tinham a pretensão de modificar
      pautas culturais de conteúdo ancestral. Tentaram explicar que seria
      correto poder cercear o direito à dor; no caso, esse direito cristão de
      dar o último adeus ao corpo de um ser humano.
      
       A
      impunidade e suas seqüelas colocaram em conflito o direito e a ética, o
      passado e o presente, a razão e a loucura, a verdade histórica e a
      verdade legal.
      
       As
      soluções políticas a que se chegaram, na pretensa resolução de nosso
      passado recente, geraram, necessariamente, um enfraquecimento de fato de
      direitos humanos vertebrais.
      
       O
      respeito à vida, diante das execuções extrajudiciais, os
      desaparecimentos forçados, a privação da liberdade por motivos políticos,
      e a tortura, direitos agredidos e agressores perdoados projetam no corpo
      social uma imagem debilitada e alquebrada do critério de justiça.
      
       As
      anistias constituíram uma expressão de desproteção, com relação ao
      direito à vida das vítimas, quando ampliaram, “sine tempore”, a
      impunidade àqueles que cometeram delitos contra os direitos humanos de
      inocentes, sob o pretexto da repressão ao terrorismo.
      
       O
      pesquisador Peter Haberle,
      a propósito desse tema, comenta o seguinte: “a justiça que transmite
      uma lei deve estar em compasso com os procedimentos específicos da
      democracia, aqui entendida como o conjunto de conflitos que ocorrem dentro
      de uma sociedade, em um determinado momento, e essa lei deve procurar
      centrar-se nos pontos de consenso a que se pode chegar”. Em outras
      palavras, o autor nos diz que a lei justa é, em termos definitivos,
      aquela que traduz pontos em acordo, aceitando a diversidade de opiniões
      de indivíduos e grupos, sem estigmatizá-los, nem excluí-los da resolução
      desse tema.
      
       Por
      conseguinte, o compromisso que enfrentamos no século que se aproxima, será,
      precisamente, dirigido para que, nunca mais, os crimes de lesa humanidade
      sejam protegidos por leis internas.
      
       Nesse
      sentido, deveríamos, a partir do hemisfério sul, lutar para que se
      consolide o esforço da comunidade internacional de se criar um tribunal
      penal internacional. Um tribunal penal que julgue condutas individuais, um
      órgão jurídico eficaz e forte, independente e imparcial, com capacidade
      para julgar e fazer justiça aos responsáveis por graves violações dos
      direitos humanos. Um tribunal que, ao redimir por direito, garanta reparação
      às vítimas e que, lutando contra a impunidade, isente o futuro da repetição
      das atrocidades do passado.
      
       Em direção à cultura da solidariedade
      
      O
      século que se aproxima deve nos encontrar com a sensibilidade aguçada
      para os valores básicos da paz social: a liberdade, a igualdade, a justiça,
      o pluralismo e a solidariedade. A partir desses princípios, será possível
      fomentar-se a cultura da diversidade, a qual implica no respeito ao
      direito de sermos diferenciados. A negação do próximo, índio, mestiço,
      negro, marginal urbano, preso, paciente de AIDS, incapacitado, imigrante
      ou mulher, conspira contra qualquer esforço democrático.
      
       Há
      poucos dias atrás, durante a realização de um cabido aberto, convocado
      pela Intendência Municipal de Montevidéu, para celebrar o cinqüentenário
      da Declaração Universal dos Direitos Humanos, ouvi as palavras do presbítero
      Luis Pérez Aquirre, homem de incansável vocação pelos direitos
      humanos, cabendo por isso citá-las aqui, já que me parece que o próximo
      século também necessita ouvi-las, de preferência aos gritos:
      
       “Olhando
      o futuro, a partir desta comemoração da Declaração Universal dos
      Direitos Humanos, creio que teremos que continuar a ser um pouco
      insensatos para sermos eficazes na tarefa de estabelecer, dentro de nossas
      sociedades, o referencial ético dos direitos humanos. O que nos salva é
      que será sempre inútil apregoar-se e praticar-se o valor dos direitos
      humanos sendo desleais a eles: apregoar a tolerância, por exemplo, sendo
      intolerante...Será necessário envolver-se com a ação de tal maneira
      que signifique uma profunda mudança em nossos conceitos de realidade e de
      direitos humanos. Como isso implica uma boa dosagem de violência para se
      desalojar a velha axiologia, que se encontra profundamente enraizada no
      coração, o objetivo só será atingido por meio de um fenomenal ato de
      amor.
      
       Lutar
      pela vigência da Declaração Universal será isso: tornar-se e converter
      a todos os demais em seres vulneráveis ao amor”.
      
        
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