Maria
Belela Herrera*
O
advento de um novo século obriga, hoje mais do que nunca, que se examine
o tema direitos humanos no contexto das vertiginosas mudanças ocorridas
no século em curso, e dos progressos não consolidados, os quais
constituem os grandes desafios do próximos tempos.
Entretanto,
o esforço de se “pensar em termos de futuro” não dispensa uma valoração
do passado, porque a responsabilidade política e ética impõe que não
incorramos em erros já cometidos anteriormente.
Este
é um imperativo histórico para a geração atual, que abriu os olhos
para a vida, em meio aos horrores do nazismo, que carregou nos ombros os
efeitos da década perdida, da guerra fria, e que hoje tem a
responsabilidade histórica de dar novo direcionamento aos métodos
utilizados, aos equívocos, e também- porque não? - aos sonhos a
realizar.
Como
dizem as velhas lendas americanas, estamos diante do desafio de queimar
nossos navios e olhar o horizonte, a partir daqui e de agora, no
entendimento de que se não resolvermos nossos problemas, estaremos
legando graves riscos àqueles que nos sucederão.
A
partir daí, o primeiro passo da análise deveria concentrar-se numa
reavaliação da dívida pendente, dos problemas que não fomos capazes de
resolver e que, querendo ou não, transmitiremos como legado às novas
gerações.
Em
seguida, a partir de uma autocrítica, poderemos redimensionar o tema,
elaborar programas, estabelecer diretrizes, assim como os objetivos políticos
e sociais destinados a consolidar o respeito aos direitos básicos, para o
limiar do novo século.
A dívida pendente
Precisamente
no ano em que se comemora o cinqüentenário da Declaração Universal dos
Direitos Humanos cabe a pergunta:
O
que estaria tão próximo de cumprir o ideal comum de todos os povos e nações,
e obter o respeito inalienável de todos os membros da família humana?
Que
panorama nos oferece a situação dos direitos humanos no mundo contemporâneo?
O
ressurgimento da guerra, em conseqüência do ódio étnico, nos tira da
letargia quando acreditávamos que a intolerância estava superada. O
cientista político norte-americano Samuel Huntington assinala que,
durante a Guerra Fria, as pessoas eram perseguidas por causa de suas idéias,
porém, agora, as pessoas podem ser mortas apenas por serem moradoras de
um determinado lado da rua.
Definitivamente,
o racismo tem demonstrado ser, através da história, o exemplo mais eloqüente
da incapacidade humana de se entender, aceitar ou, ao menos, tolerar as
diferenças.
Este
é um dos desafios que nos apresenta o século XXI: fortalecer, a partir
de estruturas educativas, políticas e sociais, a aceitação das diferenças.
Reconstruir o conceito de igualdade dentro da concepção humanista e
assegurar que seja alcançado o paradigma de teóricos como Umberto Eco,
que defende que “os racistas devem ser uma raça em extinção”.
A
xenofobia, a discriminação e o racismo passeiam juntos com as propostas
de partidos direitistas, de novo cunho e velha linhagem, que capitalizam o
poder na Europa. Essas políticas são acompanhadas pelo renascimento de
pesquisas pseudo-científicas sobre “racismo genético” e inteligência
hereditária.
O
furor racial espalha sua pólvora, atiçando hispânicos e negros nos EUA,
não-russos na ex-União Soviética, árabes na França, turcos na
Alemanha, hutus e tutsis em Ruanda, e fazendo com que paquistaneses e
hindus recorram a bombas atômicas para resolverem suas velhas controvérsias.
Acrescente-se a isso, o caso da Iugoslávia, dividida e destroçada,
mostrando os despojos da barbárie.
De
sua parte, neste lado do mundo, na América Latina, as principais formas
de discriminação atingem os povos indígenas, as mulheres, os
imigrantes, as crianças e os pobres.
Diferentemente
do que ocorreu durante o século XX, quando os imigrantes eram recebidos
de forma calorosa e de braços abertos, hoje em dia, na maioria das vezes,
essas pessoas são duplamente vitimadas. Em primeiro lugar, a sociedade
que eles abandonaram, em busca de proteção e melhores condições de
vida, os expulsa; e, quando chegam ao destino, são estigmatizados pelo
corpo social que os recebe.
A
disputa por bens básicos, emprego, saúde e educação coloca os
imigrantes em situação de confronto com os que já estavam nesse novo
destino. Diante disso, a ponte para a xenofobia é curta e ampla. Em
agosto de 1993, o Sindicato de Trabalhadores na Construção argentino
cobriu a cidade com os seguintes dizeres: “Que não se apoderem do pão
nosso de cada dia com importação de mão de obra clandestina”. Tal
procedimento é uma clara referência às contratações, por parte de
empresas argentinas, de mão-de-obra paraguaia e boliviana.
Enquanto
isso, na Alemanha, França e outras nações ocidentais, esses argumentos
são manipulados contra os imigrantes africanos e latino-americanos; e os
latino-americanos, por sua vez, discriminam-se entre si.
O
Professor Rodolfo Stavenhagen escreveu, recentemente: “A
internacionalização dos conflitos étnicos e a definição das relações
internacionais com base em critérios étnicos, apenas começaram. À
medida que se extinguem as disputas ideológicas, que caracterizaram quase
todo o século XX, aumenta a virulência dos confrontos, que têm origem
nos problemas de identidade e valores”.
Esse
é um tema que deve ser encarado dentro do marco dos processos de integração
regionais, que deverão gerar ampla mobilização de pessoas. Dentro desse
ponto de vista, observa-se uma preocupação exacerbada sobre o impacto do
Mercosul, no âmbito político, econômico e comercial. Nesse sentido,
acreditamos que esteja havendo um descaso com relação à dimensão
humana do fenômeno, a qual não poderá ficar fora da agenda política.
De
acordo com nossa opinião, esse aspecto deve ser encarado urgentemente e
os Estados e governos do próximo século deverão assegurar condições
para que o desenvolvimento se dê de forma harmônica entre os povos. Sem
prejuízo de seus objetivos, o marco de integração não poderá
significar o retrocesso de nenhuma conquista social obtida dentro dos
respectivos países. Temos que fazer um exercício de sinceridade e
avaliar quantos resquícios de intolerância perduram dentro das nossas
realidades cotidianas.
A
discriminação prima por ter rostos ocultos. Por exemplo, no Uruguai, as
estatísticas oficiais dos Instituto Nacional de Estatísticas relativas a
1998,
revelam que a comunidade negra atravessa condições de miséria, falta de
educação e desemprego, em claro desequilíbrio com a comunidade branca.
As mulheres do Uruguai ganham menos que os homens, pelo mesmo trabalho;
quarenta por cento de cinqüenta e cinco mil crianças nascem em
localidades com carências básicas.
Apesar
disso tudo, a discriminação e intolerância que nos circundam não são
fenômenos mágicos, de instalação espontânea, mas, exatamente o contrário.
Os
atuais modelos de civilização globalizada e planetária, a lei econômica
do livre mercado, idolatrada como Deus Supremo, a massificação social e
a bíblia dos indicadores macroeconômicos têm contribuído para detonar
esses ódios, sem oferecer qualquer solução aos problemas
“simplesmente humanos”.
Globalização e pobreza
A
globalização tem aumentado a distância entre ricos e pobres, e ameaça
generalizar a indiferença perante a crise social. A persistência do
crescimento das cifras de desemprego e pobreza em grande escala constituem
tanto um desperdício intolerável de recursos humanos como uma ameaça
perigosa para a coesão social e para as relações internacionais, em
condições de paz.
Em
seu “Relatório sobre a Saúde Mundial, de 1995”, a Organização
Mundial de Saúde apresenta indícios preocupantes sobre a amplitude e
gravidade dos extremos de pobreza no mundo.
Na
sua “Classificação Internacional de Doenças”, está identificado
como o carrasco mais impiedoso e a principal causa de sofrimento dos povos
da Terra, o Código Z 59.5, ou seja, a extrema pobreza. A pobreza é o
principal motivo por que não são vacinadas as crianças em fase de
amamentação, nem se disponha de água própria para consumo humano, de
saneamento adequado e de medicamentos para que as mães não morram de
parto. É a principal causa da baixa expectativa de vida, das mutilações
e doenças causadas pela fome. É uma das grandes responsáveis pelas doenças
mentais, do estresse, da desintegração familiar e da toxicomania. A
pobreza, enfim, exerce uma influência nefasta em todas as etapas da vida
humana, desde a concepção até o túmulo.
A
miséria é o novo “apartheid” dos nossos tempos, conforme afirma, com
absoluta convicção, o especialista argentino Leandro Despouy. A única
diferença - sustenta o especialista - é que o “apartheid” foi
condenado e repudiado, enquanto a miséria passeia impunemente perante a
indiferença geral.
Na
América Latina, ainda temos muitas tarefas pendentes. Há uma necessidade
urgente de se lançar um ataque de larga escala contra a pobreza. É
responsabilidade de cada país reconhecer as desigualdades que existem
dentro de suas fronteiras e adotar medidas para corrigi-las.
A
Comissão para a América Latina calculou que, no princípio dos anos 90,
196 milhões de pessoas viviam em condições de pobreza, ou seja, 60 milhões
a mais que na década de 80.
No
Uruguai, a situação de indigência, ou seja, aquelas pessoas cujas
rendas não conseguem cobrir uma cesta básica de alimentos, representa 2%
do total da população urbana, ou cerca de 60 mil pessoas.
Desenvolvimento, um direito que não foi
consolidado
Nós,
povos da América Latina e África, ainda não pudemos tornar realidade o
que foi proclamado na “Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento
das Nações Unidas, em 1986, ou seja, “reconhecer que o desenvolvimento
é um processo global econômico, social, cultural e político que visa o
aprimoramento constante do bem estar de toda a população e de todos os
indivíduos, baseado na participação ativa, livre e significativa, nesse
desenvolvimento, e na distribuição justa dos benefícios que dele se
originam.”
Os
programas econômicos não poderão ser considerados bons se não forem
capazes de melhorar as condições humanas, o nível de vida, a qualidade
de vida, a educação, a saúde e o emprego dos grupos mais estigmatizados
e excluídos da população.
Os
esforços internacionais consolidados na Declaração Final da Conferência
Mundial de Direitos Humanos, de 1993, e da Cúpula sobre Desenvolvimento
Social de Copenhague, de 1995, a chamada Cúpula da Esperança,
tornaram-se marcos no caminho do reconhecimento de que a pobreza extrema e
a exclusão constituem violações visíveis dos direitos humanos.
Com
sua brilhante maneira de escrever e sentir, meu compatriota, o escritor
Eduardo Galeano,
descreve os tempos que correm:
“A
América Latina vive um período histórico cruel. As contradições da
sociedade de classes são, aqui, mais ferozes que nos países ricos. A miséria
maciça é o preço que os países pobres pagam para que seis por cento da
população mundial possa consumir, impunemente, a metade da riqueza que o
mundo inteiro gera. É muito maior a distância, o abismo que, na América
Latina, se abre entre o bem estar de uns poucos e a desgraça de muitos,
como também são mais selvagens os métodos para salvaguardar essa distância”.
Consequentemente,
um dos principais desafios que nos acena o futuro é a capacidade de
podermos eliminar essas desigualdades e trabalharmos juntos, por uma
distribuição mais justa da renda.
Queremos
os benefícios de um mundo interconectado, porém é necessário que se
elaborem políticas visando a erradicação da pobreza e que se promova a
participação popular na solução do tema social. Um requisito
importante para a aplicação efetiva dos direitos econômicos, sociais e
culturais nos países menos desenvolvidos consiste de uma transformação
pacífica e rápida, a fim de permitir que todos os recursos humanos e
materiais da nação participem plenamente do processo desenvolvimento.
Democracia e desenvolvimento
Sem
desenvolvimento político, o desenvolvimento econômico e social não
poderá ocorrer. É necessário estimular a criação de uma estrutura política
que se transforme na alavanca das mudanças, e que sua força e dedicação
sejam transmitidas para o corpo social.
O
descompasso entre a democracia e as demandas legítimas da população
acarreta riscos perigosos que colocam em julgamento a própria
legitimidade do sistema. Não se pode aceitar que os Ministros da Economia
falem do bom desempenho dos índices macroeconômicos, enquanto as pessoas
estão desempregadas e sofrendo privações básicas.
Um
dos principais problemas que afetam o Uruguai são as cifras de
desemprego. Após a ditadura, essas cifras apresentaram uma queda, mas
rapidamente voltaram ao nível de dois dígitos no começo dos anos 90,
fixando-se, atualmente, em cerca de 12,8%, em Montevidéu, e 12,4% no
interior urbano. Isso implica em que, de acordo com os dados do Instituto
Nacional de Estatística, 328.000 pessoas vivem com alguma necessidade básica
insatisfeita, o que representa 11,4 % da população urbana do país, dos
quais 41,8% são crianças menores de 14 anos.
O
milênio que se aproxima deverá forjar uma democracia que avance, não em
função de um Estado “invisível, alheio ao cenário nacional e
reduzido a um moderno e gerencial administrador de recursos senão de um
Estado que compense as desigualdades, que assegure a participação plena
e igualitária da mulher na vida econômica, que nivele as rendas urbana e
rural, que estabeleça políticas voltadas para eliminar efetivamente a
discriminação, que descentralize as decisões e que leve adiante um
plano de desenvolvimento nacional e unificado. Uma reforma educativa que
enseje não somente aumento da capacidade de alfabetização, como também
mudanças na qualidade e conteúdo do ensino. No Uruguai, desde 1996, se
processa uma reforma educativa que pretende ser ampla. Uma das medidas
adotadas implica na eliminação das escolas rurais que apresentam
escassez de alunos. Nós discordamos dessa posição, defendendo que a
educação pode atuar sobre a realidade a fim de modificá-la. Se a migração
do campo para a cidade é um dos males dos nossos tempos, decisões dessa
natureza só poderão agravar o fenômeno, ao invés de atenuá-lo ou
revertê-lo.
Acreditamos
na força da educação como geradora de desenvolvimento, em homens e
mulheres dotadas de crítica e preparadas para se lançar em direção ao
futuro, que sejam protagonistas das mudanças, e não objetos do
desenvolvimento.
Devemos
redimir aqueles contidos em si mesmos, e lutar para que tenham um papel
mais participativo no cenário social.
Não
somos partidários do divórcio entre crescimento econômico e justiça
social. Ainda que expondo-nos ao risco de sermos tachados de antiquados, não
abandonamos o sonho de uma democracia “substantiva”.
Para
se forjar as mudanças, devem-se multiplicar as formas institucionais que
permitam a participação direta do povo, na eleição de seus
representantes, e na tomada de decisões.
Democracia
não é unicamente a liberdade de protestar e de ser pobre. Nesse sentido,
participar seria criar as condições econômicas e culturais que garantam
o completo exercício dos direitos civis e políticos, assim como dos
direitos econômicos, sociais e culturais.
A
participação popular, o fortalecimento de uma estrutura jurídica sólida-
incluindo-se um sistema jurídico que conte com recursos suficientes, com
juízes e funcionários devidamente remunerados, a criação de instituições
de mediação entre o indivíduo e o Estado, como os Defensores do Povo,
ou “Ombudsman”, são ferramentas que assegurarão o respeito pelos
direitos humanos, no século que se aproxima. Nesse sentido, devemos
trabalhar em conjunto com as instituições governamentais e as sociedades
civis, por meio das comunidades, das organizações não-governamentais,
cooperativas, sindicatos, etc.
Segurança e direitos humanos
Os
cientistas sociais definem segurança como a confiança, a tranqüilidade
de espírito resultante da crença de que não existem perigos ameaçando
o indivíduo.
No
sentido contrário, a insegurança gera um forte sentimento de desconfiança
e incerteza. Esse estado de ânimo provoca, na maioria das vezes, uma
leitura equivocada em relação aos direitos humanos, cujo corolário
abrange uma situação de confronto entre determinados tipos de direitos e
outros.
A
pobreza é geralmente identificada como o caldo cultural da delinqüência.
Dentro dessa dinâmica, o sentimento de insegurança condiciona o corpo
social a demandar maior repressão para os delitos, os meios de comunicação
de massa atacam a benevolência da justiça e a falta de severidade das
penas, fazendo ressurgir, como por encanto, as teorias que penalizam
infratores cada vez mais jovens e reacendem o debate sobre as vantagens
dos castigos extremos, como a pena de morte.
O
direito à segurança leva ao confronto do devido processo, da independência
jurídica, tornando o papel social da justiça penal o de penalizar
eternamente o ladrão de galinhas.
Em
outras áreas, a insegurança gerada pela crise econômica debilita as
condições dignas de emprego, que se traduzem pela aceitação de salários
depreciados, pela perda da capacidade negociadora do conjunto sindical,
assim como pela própria desarticulação das organizações
representativas dos trabalhadores.
Na
prática, em situações de instabilidade econômica, o direito ao emprego
parece confrontar-se com o direito de livre associação, tornando-se esse
um obstáculo para a permanência no próprio emprego.
A
segurança também é abalada quando a opinião pública toma conhecimento
dos obscuros negócios secretos feitos com recursos públicos, das contas
não declaradas por funcionários corruptos e outros desvios de poder.
Nesses casos, o direito à privacidade e à honra acabam saindo feridos.
Como reação imediata, começa-se a atacar os jornalistas, a ética dos
meios de comunicação e todas as demais fontes de consulta, colocando-se
em confronto o direito à honra com o direito à livre expressão e
comunicação do pensamento.
A
insegurança afeta o ser humano individualmente, as organizações sociais
e o Estado.
Neste
momento, assistimos, impávidos, o confronto armado entre países irmãos
de nossa América, e nos comove pensar que, outra vez, esse desgastado
argumento da segurança territorial e soberania possa fazer ressurgir um
conflito com outras causas e com outros propósitos.
Por
isso, um dos principais desafios para o século que se aproxima será
assegurar a segurança e a liberdade das pessoas, em qualquer parte do
mundo; segurança não só contra os conflitos armados, mas contra a violência
estrutural geradora de pobreza.
A
noção de “segurança” deve ser desenvolvida com maior profundidade e
estudada a partir de outras perspectivas, como também deve ter a
participação de todos os setores para a busca de uma solução para o
problema.
A
própria sobrevivência e o desenvolvimento humano futuro, também deverá
estar relacionado ao tema da “segurança ambiental”.
Não
se trata de mera coincidência que a maioria dos pobres vivam em áreas
mais vulneráveis do ponto de vista ecológico.
Oitenta
por cento dos pobres na América Latina, sessenta por cento na Ásia, e
cinqüenta por cento na África vivem em terras marginais, caracterizadas
por uma alta susceptibilidade à degradação ambiental.
Estamos
convencidos da indivisibilidade e complementaridade de todos os direitos
humanos. Dentro do universo de proteção, existe espaço para cada um dos
direitos, sem sacrificar nenhum.
Democracia e direitos humanos
O
modelo democrático a que aspiramos passa pela atribuição de um papel
preponderante ao tema direitos humanos, e pela transformação desse
reconhecimento em reformas concretas.
No
Uruguai, apesar de haver uma longa e profusa tradição constitucional de
reconhecimento e proteção dos direitos civis, políticos e sociais, não
há um dispositivo que assegure uma hierarquia normativa “supranacional”,
ou, pelo menos, “quase constitucional”, aos tratados relativos a
direitos humanos.
Há
pouco tempo atrás, efetivou-se uma reforma constitucional, propiciada
pelos dois partidos políticos em exercício, visando a um pacto de
co-gestão governamental.
Apesar
dos esforços e cobranças de amplos setores da opinião pública, no
sentido de se incluir o dispositivo mencionado, nada disso foi
contemplado.
A
ausência desse dispositivo coloca ao arbítrio das leis internas, que são
produtos de conjunturas específicas, todo o regime de garantias elaborado
a partir do sistema internacional de proteção. Nesse sentido, o Uruguai
se encontra na retaguarda, e em clara desvantagem em relação ao restante
do universo constitucional americano. Infelizmente sabe-se que não se
trata de um ingênuo equívoco, mas, sim, de uma decisão pensada, e
tomada de forma consciente.
Compromissos
internacionais impõem a obrigação de implementá-los de ”boa fé”,
ou seja, os Estados devem ajustar suas condutas às pautas internacionais,
às quais, livremente, deram consentimento. Isso, exige, entre outras
coisas, a adequação da legislação interna às obrigações que emergem
dos tratados e Convenções ratificadas.
Lamentavelmente,
ainda existe, em muitas partes do mundo bem como no Uruguai, uma dualidade
de atitudes e discursos nesse sentido.
Ratificamos
a Convenção sobre Tortura, porém, não se consegue os votos dos
partidos de centro-direita para se votar uma lei que defina o delito de
tortura; somos parte da Convenção para a Eliminação da Discriminação
Racial, porém não existem internamente mecanismos eficazes específicos
para se denunciar a discriminação; a Convenção Americana de Direitos
Humanos é lei interna, porém, não há o reconhecimento de sua
incompatibilidade com a lei da caducidade da pretensão punitiva do
Estado, que privou de recursos efetivos os familiares das vítimas do
desaparecimento forçado. Da mesma forma, somos parte do sistema
interamericano e respeitamos as opiniões da Comissão Interamericana de
Direitos Humanos, salvo quando, estabelece que a lei de perdão aos
torturadores deveria ser modificada.
No
plano nacional, essa é uma tarefa a ser encarada em sua totalidade pelo
Estado do próximo século. Conciliar o discurso com a prática,
democratizar a democracia, tornar transparente o nebuloso e atribuir à
proteção dos direitos humanos o papel decisivo que lhe condiz, como
coluna vertebral do sistema democrático.
Uma dívida dolorosa
Dentro
de outra perspectiva, uma herança dolorosa que carrega a América Latina
nestes últimos anos do século XX é a impunidade.
A
impunidade que se revelou como uma seqüela dolorosa deixada pela transição
para a democracia.
As
leis de ponto final, de obediência devida, e de caducidade da pretensão
punitiva do Estado são todas máscaras lingüísticas de um instrumento
perverso, de amnésia obrigatória, de um perdão às cegas, que ignora o
que se deve perdoar.
E
foi a lei, o instrumento de aplicação da justiça adotado pelos
parlamentos democráticos, que serviu para institucionalizar a morte do
passado, a ocultação do presente e a negativa histórica do porvir.
O
analista Timothy Garton Ash assinalou corretamente que
muito além do regime político de que se trate, em um processo de avaliação
que abranja desde a Espanha pós-Franquista de 1975, até os países da
Europa Oriental, passando pelas ditaduras centro e sul-americanas, todos
os novos governantes têm delineado uma linha de fogo entre si próprios e
o passado.
Isso
trouxe como resultado que a única via para o futuro é que se diga a
verdade. Necessitamos de saber a verdade sobre o que se passou, como e por
que se passou. Necessitamos dessa verdade para transmitirmos às próximas
gerações, a fim de que elas não cresçam com a idéia de que nós não
tenhamos feito qualquer esforço para sermos honestos.
As
leis aprovadas no final dos anos 80 tinham a pretensão de modificar
pautas culturais de conteúdo ancestral. Tentaram explicar que seria
correto poder cercear o direito à dor; no caso, esse direito cristão de
dar o último adeus ao corpo de um ser humano.
A
impunidade e suas seqüelas colocaram em conflito o direito e a ética, o
passado e o presente, a razão e a loucura, a verdade histórica e a
verdade legal.
As
soluções políticas a que se chegaram, na pretensa resolução de nosso
passado recente, geraram, necessariamente, um enfraquecimento de fato de
direitos humanos vertebrais.
O
respeito à vida, diante das execuções extrajudiciais, os
desaparecimentos forçados, a privação da liberdade por motivos políticos,
e a tortura, direitos agredidos e agressores perdoados projetam no corpo
social uma imagem debilitada e alquebrada do critério de justiça.
As
anistias constituíram uma expressão de desproteção, com relação ao
direito à vida das vítimas, quando ampliaram, “sine tempore”, a
impunidade àqueles que cometeram delitos contra os direitos humanos de
inocentes, sob o pretexto da repressão ao terrorismo.
O
pesquisador Peter Haberle,
a propósito desse tema, comenta o seguinte: “a justiça que transmite
uma lei deve estar em compasso com os procedimentos específicos da
democracia, aqui entendida como o conjunto de conflitos que ocorrem dentro
de uma sociedade, em um determinado momento, e essa lei deve procurar
centrar-se nos pontos de consenso a que se pode chegar”. Em outras
palavras, o autor nos diz que a lei justa é, em termos definitivos,
aquela que traduz pontos em acordo, aceitando a diversidade de opiniões
de indivíduos e grupos, sem estigmatizá-los, nem excluí-los da resolução
desse tema.
Por
conseguinte, o compromisso que enfrentamos no século que se aproxima, será,
precisamente, dirigido para que, nunca mais, os crimes de lesa humanidade
sejam protegidos por leis internas.
Nesse
sentido, deveríamos, a partir do hemisfério sul, lutar para que se
consolide o esforço da comunidade internacional de se criar um tribunal
penal internacional. Um tribunal penal que julgue condutas individuais, um
órgão jurídico eficaz e forte, independente e imparcial, com capacidade
para julgar e fazer justiça aos responsáveis por graves violações dos
direitos humanos. Um tribunal que, ao redimir por direito, garanta reparação
às vítimas e que, lutando contra a impunidade, isente o futuro da repetição
das atrocidades do passado.
Em direção à cultura da solidariedade
O
século que se aproxima deve nos encontrar com a sensibilidade aguçada
para os valores básicos da paz social: a liberdade, a igualdade, a justiça,
o pluralismo e a solidariedade. A partir desses princípios, será possível
fomentar-se a cultura da diversidade, a qual implica no respeito ao
direito de sermos diferenciados. A negação do próximo, índio, mestiço,
negro, marginal urbano, preso, paciente de AIDS, incapacitado, imigrante
ou mulher, conspira contra qualquer esforço democrático.
Há
poucos dias atrás, durante a realização de um cabido aberto, convocado
pela Intendência Municipal de Montevidéu, para celebrar o cinqüentenário
da Declaração Universal dos Direitos Humanos, ouvi as palavras do presbítero
Luis Pérez Aquirre, homem de incansável vocação pelos direitos
humanos, cabendo por isso citá-las aqui, já que me parece que o próximo
século também necessita ouvi-las, de preferência aos gritos:
“Olhando
o futuro, a partir desta comemoração da Declaração Universal dos
Direitos Humanos, creio que teremos que continuar a ser um pouco
insensatos para sermos eficazes na tarefa de estabelecer, dentro de nossas
sociedades, o referencial ético dos direitos humanos. O que nos salva é
que será sempre inútil apregoar-se e praticar-se o valor dos direitos
humanos sendo desleais a eles: apregoar a tolerância, por exemplo, sendo
intolerante...Será necessário envolver-se com a ação de tal maneira
que signifique uma profunda mudança em nossos conceitos de realidade e de
direitos humanos. Como isso implica uma boa dosagem de violência para se
desalojar a velha axiologia, que se encontra profundamente enraizada no
coração, o objetivo só será atingido por meio de um fenomenal ato de
amor.
Lutar
pela vigência da Declaração Universal será isso: tornar-se e converter
a todos os demais em seres vulneráveis ao amor”.
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