Buscando
um Conceito de Políticas
Públicas para a Concretização
dos Direitos Humanos
Maria
Paula Dallari Bucci*
1.
Por que estudar políticas públicas em direito?
1.1. Qual
o ganho, para os estudos jurídicos, em se adotar a perspectiva das políticas
públicas?
As
políticas públicas constituem uma temática oriunda da ciência política.
Por que entre os estudos do direito tem aumentado o interesse por esse
tema? Que vantagem metodológica lhes traz esse novo esquema conceitual?
Não seria suficiente tratar da política pelos ângulos tradicionais da
Teoria do Estado, do Direito Constitucional, do Direito Administrativo
ou do Direito Financeiro?
Definir
como campo de estudo jurídico o das políticas públicas é um
movimento que faz parte da onda, relativamente recente, de
interdisciplinariedade no direito. Alguns institutos e categorias
tradicionais do direito hoje rarefeitos buscam novo sentido ou nova força
restabelecendo contato com outras áreas do conhecimento, das quais
vinha se apartando desde a caminhada positivista que se iniciou no século
XIX. Ter-se firmado como campo autônomo, dotado de “objetividade” e
“cientificidade” — desafios do positivismo jurídico — é hoje
um objetivo até certo ponto superado.
Do ponto de
vista técnico a consagração da figura da pirâmide normativa, com
base nas categorias da validade e da eficácia, além da introdução
dos valores nos sistemas de direito positivo, e todo o aparato jurídico
conceitual construído a partir daí, aparentemente dão conta da operação
cotidiana do sistema jurídico. Entretanto, o desafio atual é enfrentar
o problema da esterilização do direito (em particular do direito público)
em sua missão de organização das relações sociais, processo que
decorre do distanciamento de uma rivalidade cambiante e dinâmica.
1.2.
E qual a vantagem, para as
políticas públicas, de haver uma abordagem jurídica sabre o tema?
Há
uma relação estreita entre direito e política. Será isso sinônimo
de afirmar-se a ligação estreita entre direito e políticas públicas?
O que é política, para o direito? O que são políticas públicas?
No
direito dos Estados Unidos, em que a ciência política está muito próxima
do campo dos estudos jurídicos e as políticas públicas têm uma inserção
mais antiga no direito público, observava William Clune: By definition,
all law is public policy, in that is the collective will of society
expressed in binding norms; and all public policy is law, in that it
depends on laws and lawmaking for at least some aspect of its existence.
(numa tradução
aproximada: “Por definição, todo direito é política pública, e
nisso está a vontade coletiva da sociedade expressa em normas obrigatórias;
e toda política pública é direito; nisso ela depende das leis e do
processo jurídico para pelo menos algum aspecto da sua existência.”).
Isso
faz com que o sistema jurídico dos Estados Unidos esteja mais
familiarizado com os temas das políticas públicas e que as estruturas
de decisão e processo jurídicos estejam mais aptas a lidar com elas.
No
Brasil, no entanto, essa questão é até certo ponto estranha ao
direito. Note-se que a discussão sobre o que é público ou privado um
direito apenas se inicia, especialmente a partir do Plano Diretor da
Reforma do Aparelho de Estado do governo federal (Brasília, 1995, com a
criação de novas figuras jurídicas, tais como as organizações
sociais, ainda de difícil implementação jurídica (para dizer o mínimo)
O conceito de público-não-estatal, expressando uma forma de organização
social paralela ao Estado — que seria um dos espaços por excelência
da geração das políticas públicas — está longe de ter sido
equacionado pelo direito nacional.
Por
outro lado, figuras que tratam da participação popular nus processos
políticos, os conselhos de direitos previstos na Constituição Federal
e em leis que regulamentam direitos sociais, tais como a Lei Orgânica
da Saúde, o Estatuto da Criança e do Adolescente, a legislação
ambiental, a legislação da assistência social entre outros, também
carecem de uma operacionalização adequada. Como notava Celso Daniel ao
tratar dos conselhos gestores de políticas públicas, ‘os Conselhos são
espaços que não são meramente estatais nem meramente comunitários.
Do ponto de vista jurídico, eu não sei sequer se é fácil classificá-los,
porque o nosso sistema jurídico trabalha muito separadamente o direito
privado e o direito administrativo.
Essa
avaliação parece verdadeira, não apenas no que diz respeito à separação
entre direito público e direito privado, mas também um relação ao
entendimento sobre o lugar da participação popular nas instituições
jurídico-políticas tradicionais. E esse lugar é, entre outros, o da
geração e execução das políticas públicas.
2.
A concretização dos
direitos humanos
2.1. As
gerações de direitos. Processo histórico de ampliação do conteúdo
jurídico da dignidade humana
A
necessidade do estudo das políticas públicas vai se mostrando à
medida que se buscam formas de concretização dos direitos humanos, em
particular os direitos sociais. Como se sabe, os chamados direitos
humanos de primeira geração, os direitos individuais, consistem em
direitos de liberdade, isto é, direitos cujo exercício pelo cidadão
requer que o Estado e os concidadãos se abstenham de turbar. Em outras
palavras, o direito de expressão, de associação, de manifestação do
pensamento, o direito ao devido processo, todos eles se realizariam pelo
exercício da liberdade, requerendo, se assim se pode falar, garantias
negativas, ou seja, a segurança de que nenhuma instituição ou indivíduo
irá perturbar o seu gozo.
Já
os direitos sociais, típicos do século XX, que aparecem nos textos
normativos a partir da Constituição mexicana de 1917 e da Constituição
de Weimar, de 1919 (entre nós, com a Constituição de 1934), são, se
podemos assim dizer, direitos-meio, isso é, direitos cuja principal função
é assegurar que toda pessoa tenha condições de gozar os direitos
individuais de primeira geração. Como poderia, por exemplo, um
analfabeto exercer plenamente o direito á livre manifestação do
pensamento? Para que isso fosse possível é que se formulou e se
positivou nos textos constitucionais e nas declarações internacionais
o direito ã educação. Na mesma linha, como se pode dizer que um
sem-teto, que mora debaixo da ponte, exerce o direito á intimidade
(artigo 5º, X, da Constituição brasileira)? Isso será uma ficção
enquanto não lhe for assegurado o direito à moradia, hoje constante do
rol de direitos sociais do artigo 6º da Constituição.
Como
se pode ver, os direitos sociais, ditos de segunda geração, que mais
precisamente engloba os direitos econômicos, sociais e culturais, foram
formulados para garantir o exercício em sua plenitude dos direitos de
primeira geração. Da mesma forma, os direitos de terceira geração,
tais como o direito ao meio-ambiente equilibrado, à biodiversidade e o
direito ao desenvolvimento, foram concebidos para garantia mais extensa
dos direitos individuais, também em relação aos cidadãos ainda não
nascidos, envolvendo cada indivíduo na perspectiva temporal da
humanidade, por isso intitulados “direitos transgeracionais”. O
conteúdo jurídico da dignidade humana vai, dessa forma, se ampliando
na medida em que novos direitos vão sendo reconhecidos e agregados ao
rol dos direitos fundamentais.
A
percepção dessa evolução nos faz perceber que a fruição dos
direitos humanos é uma questão complexa, a qual vem demandando um
aparato de garantias e medidas concretas do Estado que se alarga cada
vez mais, de forma a disciplinar o processo social, criando formas que
neutralizem a força desagregadora e excludente da economia capitalista
e possam promover o desenvolvimento da pessoa humana.
2.2.
As normas sobre direitos: princípios e regras. E políticas
públicas. Um dos pilares dessa visão jurídica centrada nas garantias
é o da afirmação dos princípios nas constituições nacionais.
Paulo
Bonavides sintetiza a caminhada histórica desse processo, em que se
passou da constituição como documento político apenas para a
constituição normativa, isso é, aquela dotada de força jurídica
para a realização dos direitos nela encartados. Sobre o embate entre a
constituição política, a ‘folha de papel’ determinada pelos
fatores reais de poder’ de que falava Lassalle em meados do
século XIX e a constituição jurídica, falou Konrad lesse, em A Força
Normativa da Constituição: “A concretização plena da torça
normativa constitui meta a ser almejada pela Ciência do Direito
Constitucional. Ela cumpre seu mister de forma adequada não quando
procura demonstrar que as questões constitucionais são questões de
poder, mas quando envida esforços para evitar que elas se convertam em
questões de poder".
Em
outras palavras, apesar de a exequibilidade da Constituição depender
de quanto o seu texto corresponde ao equilíbrio real de forças políticas
e sociais em determinada momento — não basta uma Constituição bem
escrita para que ela seja cumprida e obedecida — há possibilidade de
se travar, pelas vias do direito e com base na Constituição, unia
batalha própria, capaz de melhorar as condições sociais, por meio da
garantia do exercício de direitos individuais e de cidadania a todos,
da forma mais abrangente possível. Nesse sentido, uma ordem jurídica
bem estabelecida pode ser instrumento significativo de melhoria social.
Desde
que se admita esse pressuposto, isto é, o de que há uma arena jurídica
para a solução dos conflitos políticos e sociais, e preciso, então,
dotar o direito de instrumentos adequados para a concretização dos
direitos e a promoção social.
A
percepção dos direitos como elementos que fazem parte do sistema jurídico,
mas norteiam o funcionamento do conjunto do sistema, isto é, a aplicação
das demais normas, deu margem a um trabalho de refinamento dos antigos
conceitos jurídicos, de tal modo que se pudesse trabalhar mais
adequadamente com a realidade jurídica, no sentido da concretização
dos valores.
Dentre
as várias classificações possíveis das normas constitucionais, havia
uma que elucidava a diferença de importância, de valor, de permanência
entre as referências de sentido, axiológicas, e as disposições de
conduta. As primeiras constituem os princípios e as segundas as regras
jurídicas ambas espécies do gênero normas jurídicas.
Princípio,
na definição já clássica de Celso Antônio Bandeira de Mello, é
“mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição
fundamental que se irradia sobre diferentes normas, compondo-lhes o espírito
e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência”.
Os
direitos humanos expressam-se mais em princípios que em regras, isto é,
eles em geral são valores que devem “compor o espírito das demais
normas. Os direitos humanos, cristalizados em princípios
constitucionais (tais como os inscritos nos artigos 1º e 5º da
Constituição Federal de 1988), servem de “critério para a exata
compreensão e inteligência” das demais normas.
Se
hoje está relativamente sedimentada na teoria a dicotomia entre regras
e princípios, a questão hoje é dar concretude a esses últimos, aos
quais, numa abordagem mais moderna, atribui-se mais do que mero caráter
programático, garantida a sua juridicidade, isto é, sua força obrigatória
em relação às demais normas do sistema. Um dos grandes dilemas em
relação aos princípios — e o mesmo ocorre com os direitos que
exigem prestações do Estado — diz respeito exatamente á sua
justiciabilidade, isso é, à possibilidade de o indivíduo exercer o
direito de ação e exigir do Poder Judiciário medidas em relação ao
descumprimento do princípio jurídico ou ao desatendimento ao direito.
A
diferenciação entre princípios e regras aponta ainda para um outro
sentido que nos interessa explorar, para demonstrar que a categoria das
políticas públicas precisa e pode ser mais bem definida em direito. Ao
trabalhar sobre a dicotomia princípios e regras, Paulo Bonavides
destacava as contribuições de Robert Alexy, publicista alemão, de um
lado, e Ronald Dworkin, inglês, de outro, que teriam, ambos, contribuído
para a formulação da questão. No entanto, Bonavides enaltece a precisão
de Alexy com os princípios e deixa de lado a descoberta de Dworkin de
que na realidade as normas, como gênero, comportariam três espécies,
e não apenas duas: os princípios, as regras e as policies.
Interessante
notar que Bonavides não traduz o termo policies, referido com base em
Dworkin. De fato, o próprio termo coloca um problema de tradução; o
que seriam policies, “políticas”, “diretrizes”,
“programas”?
A
categoria das normas, como produção legislativa, ê tradicionalmente
definida como associada á generalidade e á abstração. Por outro
lado, as políticas públicas atuam de forma complementar, preenchendo
os espaços normativos e concretizando os princípios e regras, com
vista a objetivos determinados. As políticas, diferentemente das leis,
não são gerais e abstratas, mas, ao contrário, são forjadas para a
realização de objetivos determinados. “Principias são proposições
que descrevem direitos; políticas (policies) são proposições que
descrevem objetivos”.
Há
um paralelo com as normas-objetivo e as normas-programáticas. “Normas
programáticas”, na lição de José Afonso da Silva, seriam aquelas
‘através das quais o constituinte, em vez de regular direta e
imediatamente determinados interesses, limitou-se lhes traçar os princípios
para serem cumpridas pelos seus órgãos (legislativos, executivos,
jurisdicionais e administrativos) como programas das respectivas
atividades, visando a realização dos fins sociais do Estado.’ De
acordo com Eros Roberto Grau, “as normas-objetivo e normas programáticas
obedecem a dois critérios de classificação distintos. Normas-objetivo
predeterminam fins a seguir, enquanto que normas definem princípios e
programas tanto de conduta e de organização quanto atinentes a fins a
cumprir. Os dois conceitos coexistem. Isto significa que uma norma
programática não afasta a possibilidade de ser também classificada
como norma-objetivo e vice-versa.”
As
normas que fixam objetivos permitem reverter o sentido da critica de
CarI Schmitt e explorar a maior aptidão que as normas concretas têm
para se efetivar: “(...) quanto mais fundamental o direito da
liberdade mais fraco e inerme se revelará, enquanto, ao revés, disposições
de teor material secundário, periférico e fortuito, lograrão altíssima
eficácia e o mais subido e sacrossanto caráter de direito fundamental
(reportava-se Schmitt à Constituição de Weimar e ao povo alemão) com
graves danos para o sistema e o principio central de uma Constituição,
posta assim de cabeça para baixo em matéria de direitos fundamentais.
As
políticas públicas atuam num plano, por assim dizer, mais operacional
no direito. Esse caráter resta bem explícito no trabalho de membros do
Ministério Público sobre os meios de exigir e acompanhar a realização
de políticas públicas, como Carlos Alberto de Saltes e Luíza Cristina
Frischeiser).
Entretanto,
o trabalho operacional, não só do Ministério Público, mas de todos
os interessados no processo de concretização dos direitos humanos,
demanda clareza e apuro técnico dos conceitos. O que exigir da
Administração Pública? Como enfrentar a alegação da falta de
recursos para as medidas de concretização de um direito determinado?
O
problema da justiciabilidade dos direitos sociais se alarga muito,
passando a abarcar todo o caminho de efetivação de uni direito, desde
o seu nascimento, quando é previsto na norma, até a sua emancipação,
quando é encartado em determinado programa de ação de um governo e
passa a integrar medidas de execução. Em outras palavras, a
exigibilidade de um direito aparece nas várias fases de organização
temporal da política pública, desde o estabelecimento da agenda
(agenda setting), a formulação de alternativas, a decisão, a
implementação da política, a execução até a fase final, da avaliação.
Fábio
Comparato nesse como em outros temas foi pioneiro, debruçando-se sobre
o problema do controle judicial das políticas, em seu “Ensaio sobre o
juízo de constitucionalidade de políticas públicas”.
A
questão-chave nessa matéria é partir da política pública como
atividade, composta de atos, decisões e normas de natureza heterogênea,
esses submetidos a regimes jurídicos distintos. No entanto, para que se
possa acionar as formas de controle judicial é preciso identificar qual
a expressão jurídica das políticas públicas: “se a política não
se confunde com o ato ou a norma, mas é a atividade que resulta de um
conjunto de atos e normas, o que deve ser submetido ao contraste
judicial: o ato, a norma ou a atividade?
Pode-se
partir de uma definição provisória de políticas públicas como
programas de ação governamental voltados à concretização de
direitos. Considerando-se boje a abrangência dos direitos fundamentais,
que em sucessivos pactos internacionais, depois ratificados e internados
nas ordens jurídicas nacionais, vêm sendo ampliados, a ponto de
abranger hoje o direito síntese do desenvolvimento, deixo de separar
dicotomicamente as políticas públicas das políticas sociais. Para
essa definição, mesmo as políticas públicas relacionadas apenas
medianamente com a concretização de direitos, tais como a política
industrial, a política energética etc., também carregam um componente
finalístico, que é assegurar a plenitude do gozo da esfera de
liberdade a todos e a cada um dos integrantes do povo. Portanto, toda
política pública pode ser considerada, nesse sentido, ao mesmo tempo
política social.
Há
uma estreita relação entre os temas das políticas públicas e dos
direitos humanos. Pois uma das características do movimento de ampliação
do conteúdo jurídico da dignidade humana é a multiplicação das
demandas por direitos, demandas diversificadas e pulverizadas na
titularidade de indivíduos. “(...) essa ativação incessante dos órgãos
estatais engendra fatalmente o caos e a confusão de atribuições se não
for organizada no quadro de um planejamento estratégico, com a eleição
prioritária de fins ou objetivos comuns e a escolha dos meios mais
adequados á sua consecução”.
As
políticas públicas funcionam como instrumentos de aglutinação de
interesses em torno de objetivos comuns, que passam a estruturar uma
coletividade de interesses. Segundo uma definição estipulativa: toda
política pública é um instrumento de planejamento, racionalização e
participação popular. Os elementos das políticas públicas são o fim
da ação governamental, as metas nas quais se desdobra esse fim, os
meios alocados para a realização das metas e, finalmente, os processos
de sua realização.
*Doutora
em Direito da Estado pela USP. Professora do Curso de Mestrado em
Direito da Universidade Católica de Santos.
Procuradora
da Universidade de São Paulo
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