Os Direitos do Homem
Jacques Maritain
Capitulo
II - Os Direitos da Pessoa
O
Humanismo Político
A
concepção da sociedade política esboçada no capítulo precedente é,
ao que acreditamos, baseada sobre a realidade da natureza humana e da
pessoa humana, e procede de seus princípios, por via necessária.
Representa a filosofia política que consideramos verdadeira, e a única
verdadeira. Se se quiser um nome para batizá-la, diga-se que é uma
filosofia política humanista, ou um humanismo político.
Tal
filosofia política é algo de muito mais amplo e mais profundo que uma
forma particular de governo, ou um “regime”, no sentido que possui
esta palavra desde a famosa classificação de Aristóteles. É na
medida em que as exigências essenciais do humanismo político são
realizadas nos diversos regimes, que estes encontram nele um fundamento e
uma justificação: é o caso, notadamente, dos três regimes típicos
definidos por Aristóteles – o regime monárquico, que em sua concepção
do bem comum tende antes de tudo para o vigor e a unidade – o regime
aristocrático, que tende antes de tudo 5 diferenciação dos valores e
para a produção de valores mais elevados e mais raros – o regime democrático
(digamos para ser fiéis h terminologia aristotélica, o regime
“republicano”), que tende matem de tudo para a liberdade. É claro,
com isto, que, abstraindo das circunstâncias e das necessidades
hist6ricas particulares, nas quais tal ou qual povo está colocado em um
momento dado, o regime que o humanismo político considera o melhor em si
mesmo é um regime misto, no qual os caracteres típicos dos três regime.
clássicos, ou melhor, das três representações abstratas, das três
formas puras imaginadas por Aristóteles, do organicamente unidos. Mas não
é só isso que deve ser dito. As três formas clássicas de governo não
realizam igual e univocamente as exigências da filosofia política
humanista. Elas as realizam analogicamente, e de maneira mais ou menos
perfeita. A importância central reconhecida por esta filosofia à pessoa
humana e à conquista progressiva da liberdade, leva a pensar que o regime
monárquico e o regime aristocrático mio normalmente etapas para um
regime misto fundamentalmente republicano, conservando uni sua forma
republicana e assimilando a suas dominantes próprias – que são a
liberdade de expando das pessoas e a libertação progressiva do ser
humano – as qualidades de vigor e unidade, e de diferenciação de
valores, que eram as dominantes próprias dos regimes monárquico e
aristocrático, já agora anacrônicos.,
Uma
falsa filosofia da vida, que fazia da liberdade humana a regra soberana
de toda a ordem moral e social – que tornava a multidão um deus
indolente que a ninguém obedecia, mas inteiramente à mercê do poder
do Estado que o encarnava; que transformava todos os valores humanos, e em
particular o trabalho, numa mercadoria a trocar pela riqueza e pela
esperança de possuir em paz a matéria; que fazia da Democracia ou da
Revolução uma Jerusalém celeste do Homem sem Deus; esta falsa filosofia
da vida alterou tanto o princípio vital das democracias modernas, que
isto deu lugar a que se pudesse algumas vezes confundi-la com a própria
Democracia, transformada em Democratismo. Todavia, o que nossos pais mais
amavam na Democracia, compreendida como uma marcha para a justiça e o
direito, e para a emancipação do ser humano, decorre de tu na filosofia
bem diferente, de fontes evangélicas. Na terrível confusão de nossa época,
é em prol das verdades inseparáveis do princípio autêntico da emancipação
humana que os povos livres estão, por bem ou por mal, empenhados em uma
luta sem piedade. E é muitas vezes ainda através dos erros da falsa
filosofia da Emancipação que eles percebem essas verdades da autêntica
filosofia da participação, pelas quais eles derramam o seu sangue; e
somente à força de sofrimento que seus olhos estão pouco a pouco em
vias de se abrir.
A
palavra democracia tem dado assim lugar a tantas confusões e
mal-entendidos que seria talvez centrada
uma palavra í ova ei ia designar o ideal de uma comunidade de homens
livres. Não são, porém, os filósofos, é o uso dos
homens e a consciência comum que fixam o emprego das palavras na
ordem prática. E o que importa sobretudo é reencontrar o valor inteligível
autêntico das palavras carregadas de grandes esperanças humanas, e a
modulação de tom que lhe empresta ima convicção fundada sobre a
verdade. Afirmemos que a filosofia, a política cujos traços acabei de
esboçar, a filosofia política humanista, e o regime a que acabo de
referir-me, um regime republicano conforme ao espírito dessa filosofia, e
realizando suas exigências de maneira proporcionada às condições e
possibilidades de nossa época, definem ao nosso ver a “nova
democracia” que se prepara no seio da presente agonia.
Resumamos
as notações características de uma sã sociedade política, tal como
indicamos no curso das análises precedentes: Bem comum revertido sobre as
pessoas; autoridade política dirigindo os homens livres para este bem
comum; moralidade intrínseca do bem comum e da vida política. Inspiração
personalista, comunitária e pluralista da organização social; ligação
orgânica da sociedade civil com religião, sem opressão religiosa nem
clericalismo, em outros termos, sociedade realmente, não decorativamente
cristã. O direito e a justiça, a amizade cívica, e a igualdade que ela
comporta, assim como os princípios essenciais da estrutura, da vida e da
paz da sociedade. Obra comum inspirada pelo ideal de liberdade e de
fraternidade, e tendendo para a instauração de uma cidade fraternal em
que o ser humano seja libertado da escravidão e da miséria, tal ideal
sendo como que o seu objetivo superior.
Seria
fácil mostrar que todos esses caracteres de uma sã sociedade política são
negados ou ignorados, segundo pontos de vista opostos, ao mesmo tempo pelo
antigo individualismo burguês e pelos totalitarismos hodiernos, cuja pior
forma é o racismo nazi. É algo novo que os homens deverão construir após
esta guerra, em meio às ruínas, caso prevaleçam neles a inteligência,
a boa vontade e as energias criadoras.
ANIMALISMO E PERSONALIDADE
Antes
de passar a considerações mais particulares, desejaria ainda acentuar
que, se uma sã concepção política depende antes de tudo da consideração
da pessoa humana, ela deve ao mesmo tempo ter em conta o fato de que esta
pessoa é de um animal dotado de razão, e que a parte de animalidade é
imensa em tal mistura. O papel dos instintos, dos sentimentos, do
irracional é menor ainda na vida social e política do que na vida
individual. Segue-se daí que um trabalho de educação, acorrentando o
irracional à razão, e desenvolvendo as virtudes morais, deve realizar-se
incessantemente no corpo político; que este deve ficar em estado de tensão
e defesa contra perpétuas ameaças internas e externas, de desintegração
e destruição; que a autoridade, fora de sua função essencial que é
dirigir homens livres para o bem como, deve exercer funções subsidiárias,
não somente de sanção penal em relação aos que violam as leis da
cidade, mas também de direção moral e educação daqueles que se
comportam ainda como menores; e que muitos males devem ser tolerados,
assim como certos sentimentos coletivos e instintos mais ou menos impuros
do grupo, os quais não seria possível tentar abolir de fora, e
juridicamente, sem provar males maiores.
Por
outro lado, é normal que na comunidade política os costumes, as tradições
estabelecidas, os instintos hereditariamente desenvolvidos, o capital de
experiência acumulado no inconsciente, cooperem com o jogo regular das
instituições para orientar e estabilizar o trabalho da consciência e da
razão, e dispensar os homens das flutuações e dos descaminhos a que é
exposta a sua inteligência, quando não é enraizada em tendências
solidamente fixadas. É natural também que as grandes transformações e
as grandes crises históricas se acompanhem de uma explosão de forças
irracionais. Por isso, certos revolucionários são tentados a desencadear
deliberadamente essas forças irracionais e as más paixões, para dispor
de uma suficiente energia coletiva. A revolução nazista foi até o
extremo por este caminho, e, para atingir seus objetivos, confia na potência
aparentemente sem limites do mal e da corrupção. Isso é fazer a
infelicidade dos homens e deixar-se enganar inteiramente pelo diabo. Toda
revolução fecunda e criadora efetua-se apelando para o que há de melhor
no homem e agitando as paixões corretas e os instintos generosos; as forças
perversas e a potência dos maus instintos por si mesmos, e mui
rapidamente, se lhes aderem – não é necessário provocá-las, mas
combatê-las.
Enfim,
nós emergimos tão pouco da animalidade, a parte da malignidade, da
barbaria latente e da perversão é tão grande em nós, que será
verdadeiro afirmar que as condições históricas e o estado ainda
inferior do desenvolvimento da humanidade dificultam o trabalho da vida
social em atingir plenamente seus finalidade. A fim de que o ideal histórico
de que tratávamos no capítulo precedente se venha a realizar, a fim de
que a marcha da humanidade para a emancipação e a unificação atinja o
seu termo, não é apenas muitos séculos, é toda a extensão da história
humana que se deve tomar em consideração. Podemos apenas esperar para
cada etapa – sem falar das revanches ofensivas da barbaria – uma
realização um pouco melhor, porém ainda parcial e precária.
Relativamente
aos pontos que acabamos de indicar, parece que uma filosofia política
fundada sobre a realidade deva lutar ao mesmo tempo contra dois erros
opostos: de um lado, um pseudorealismo otimista, que vai de Rousseau a
Lenine, que nutriu os homens de falsas esperanças, pretendendo apressar e
deturpando o sentido da emancipação a que aspiram; do outro lado, um
pseudorealismo pessimista que vai de Maquiavel a Hitler, e que verga o
homem sob a violência, retendo dele apenas a animalidade que o escraviza.
O DIREITO NATURAL
É
muito geral o esboço traçado ao correr das nossas reflexões
precedentes. Seria necessário discutir certos pontos essenciais de
maneira mais aprofundada, notadamente os referentes à igualdade humana,
à autoridade em uma comunidade de homens livres, e à organização
pluralista.
Para
tratar de uma maneira filosófica a questão dos direitos do ser humano,
à qual o presente ensaio é consagrado, convém examinar em primeiro
lugar a questão do direito natural. Há pessoas que imaginam que o
direito natural é uma invenção da Independência Americana e da Revolução
Francesa. Os reacionários de todas as categorias muito fizeram para
propagar esse disparate; o pior é que nesse intuito de desacreditar a idéia
do direito natural, eles encontraram aliados, de um lado no pessimismo de
certos pensadores religiosos de tradição luterana ou jansenista; por
outro lado, entre a maior parte dos juristas contemporâneos (sobretudo os
da Escola positivista), que em verdade, aliás, atacaram uma falsa idéia
do direito natural, e, procurando exterminá-lo, o fazem apenas a um
fantasma, criação de alguns péssimos manuais.
A
idéia do direito natural é uma herança do pensamento cristão e do
pensamento clássico. Ela não decorre da filosofia do século XVIII que
mais ou menos a deformou; procede antes de Grotius, e, antes dele, de
Suarez e Francisco de Vitória; e, mais longe, de S. Tomás de Aquino, de
S. Agostinho e dos Padres da Igreja, e de S. Paulo; e, mais longe ainda,
de Cícero, dos Estóicos, dos grandes moralistas da antiguidade e de seus
grandes poetas, de Sófocles, em particular. Antígona é a heroína
eterna do direito natural, a que os Antigos chamavam a lei
não escrita, nome, aliás, que melhor lhe convém.
Não
tendo tempo de discutir disparates (sempre se encontram filósofos bem
inteligentes para defendê-los brilhantemente) pressupondo seja admitido
geralmente que existe uma natureza humana, e que esta natureza humana é a
mesma entre todos os homens.
Pressupondo
seja também admitido que o homem é um ser dotado de inteligência e que,
como tal, age compreendendo o que faz, tendo assim o poder de determinar
por si mesmo os fins que pretende. Por outro lado, possuindo uma natureza,
sendo constituído de tal maneira, o homem tem evidentemente objetivos que
correspondem a uma constituição natural e que são os mesmos para todos
– assim como todos os pianos, por exemplo, qualquer que seja o seu tipo
particular, e em qualquer lugar que estejam, têm por fim produzir sons
que sejam exatos. Se não produzem sons exatos, eles são maus, devem ser
reafinados, ou então abandonados como imprestáveis. Mas, por isto que o
homem é dotado de inteligência e determina os seus próprios objetivos,
cumpre-lhe ficar de acordo com os fins necessariamente exigidos por sua
natureza. Quer isto dizer que há, em virtude mesmo da natureza humana, uma
ordem ou uma disposição que a razão humana pode descobrir, e segundo a
qual a vontade humana deve agir a fim de se pôr de acordo com os fins
necessários do ser humano. A lei não escrita, ou o direito natural, não
é outra coisa.
Os grandes filósofos
da antiguidade sabiam, e melhor ainda o sabiam os pensadores cristãos,
que a natureza deriva de Deus, e que a lei não escrita deriva da lei
eterna, que é a própria Sabedoria criadora. É por isto que a idéia da
lei natural ou não escrita estava ligada neles a um sentimento de piedade
natural, a este profundo respeito sagrado inesquecivelmente expresso por
Antígona. Conhecendo o princípio real dessa lei, a crença nessa lei é
mais firme e inabalável entre os que acreditam em Deus. Basta, no
entanto, acreditar na natureza humana e na liberdade do ser humano para se
persuadir de que há uma lei não escrita, e de que o direito natural é
algo tão real na ordem moral quanto as leis do crescimento e do
envelhecimento na ordem física.
A
lei e o conhecimento da lei são duas coisas diferentes. O homem que não
conhece a lei (se esta ignorância não provém de alguma deficiência) não
é responsável perante a lei. E saber que há uma lei não é
necessariamente conhecer o que é esta lei. É por esquecimento dessa
distinção tão simples que muitas perplexidades têm nascido
relativamente à lei não escrita. Ela está escrita, afirma-se, no coração
do homem. Sem, mas em profundidades secretas, tão secretas a nós, quanto
o nosso próprio coração. Mesmo esta metáfora tem causado muitos prejuízos,
ajudando a se espalhar a crença de que a lei natural é um código
pronto, impresso num rolo de papel depositado na consciência de todos,
cada qual tendo apenas que desenrolá-lo, e todos os homens devendo ter
dele naturalmente um conhecimento igual.
A
lei natural não é uma lei escrita. Os homens a conhecem mais ou menos
dificilmente, e em graus variados, arriscando-se ao erro, como em tudo o
mais. O único conhecimento prático que todos os homens têm natural e
infalivelmente em comum, é que é necessário fazer o bem e evitar o mal.
Este é o preâmbulo e o princípio da lei natural, não é esta lei
propriamente. A lei natural é o conjunto das coisas que se devem e que não
se devem fazer, dele decorrentes de uma maneira necessária
e pelo fato somente de que o homem é homem, abstraindo de qualquer
outra consideração. Que todos os erros e todas as aberrações sejam
possíveis na determinação dessas coisas, isso prova somente que nossa
visão é fraca e que nosso julgamento pode ser corrompido por acidentes
sem conto. Observava Montaigne maliciosamente que o incesto e o latrocínio
têm sido considerados ações virtuosas por certos povos, com o que
Pascal se escandalizava; e nós nos escandalizamos de que a crueldade, a
denúncia dos pais, a mentira ao serviço do partido, o assassínio dos
velhos ou dos doentes sejam levados a conta de ações virtuosas pelos
jovens educados segundo os métodos nazistas. Nada disso prova contra a
lei natural, do mesmo modo que um erro de soma nada prova contra a aritmética,
ou que os erros dos primitivos, para quem as estrelas eram buracos na
tenda que recobria o mundo, nada provam contra a astrologia.
A
lei natural é uma lei não escrita. O conhecimento que o homem tem dela,
cresceu pouco a pouco com os progressos da consciência moral. Esta a
princípio foi crepuscular. Ensinam-nos os etnólogos em que estruturas da
vida tribal e no seio de uma magia de sonhador acordado ela se formou
primitivamente. Prova isto somente que a idéia de lei natural, a princípio
imersa nos ritos e nas mitologias, só tardiamente se diferenciou, tão
tardiamente quanto a própria idéia de natureza; e que o conhecimento que
os homens tiveram da lei não escrita passou por mais formas e estados
diversos do que o acreditaram certos filósofos ou teólogos. O
conhecimento que a nossa própria consciência moral tem desta lei é sem
dúvida ainda imperfeito, e é provável que se desenvolverá e se afinará
tanto quanto dure a humanidade. Quando o Evangelho tiver penetrado até o
fundo da substância humana é que o direito natural aparecerá em sua
flor e perfeição.
A LEI NATURAL E OS DIREITOS HUMANOS
Faz-se
mister levar em conta agora que a lei natural e a luz da consciência
moral em nós não prescrevem somente coisas que se devem e que não se
devem fazer; reconhecendo também direitos, em particular ligados à própria
natureza do homem. A pessoa humana tem direitos, por isto mesmo que é uma
pessoa, um todo senhor de si próprio e dos seus atos, e que por consequência
não é somente um meio, mas um fim, um fim que deve ser tratado como tal.
A dignidade da pessoa humana – seria uma expressão vã se não
significasse que, segundo a lei natural, a pessoa humana tem o direito de
ser respeitada e é sujeito de direito, possui direitos. Há coisas que
pertencem de direito, possui direitos. Há coisas que pertencem de direito
ao homem, simplesmente porque homem. A noção de direito e a de obrigação
moral são correlatas, repousam ambas sobre a liberdade própria aos
agentes espirituais: se o homem é moralmente obrigado às coisas necessárias
à realização de seu destino, é que ele tem o direito de realizar o seu
destino; e se tem esse direito, tem direito às coisas que são para isto
necessárias. A noção de direito é mesmo mais profunda que a de obrigação
moral, pois Deus tem um direito soberano sobre as criaturas e não tem
nenhuma obrigação moral para com elas (ainda que ele deva a si próprio
dar-lhes tudo o que é exigido por sua natureza).
A
verdadeira filosofia dos direitos da pessoa humana repousa pois sobre a idéia
da lei natural. A lei natural que nos prescreve nossos deveres mais
fundamentais, e em virtude da qual toda lei obriga, é a mesma que nos
prescreve nossos direitos fundamentais. Por isso que fazemos parte da
ordem universal, dependendo das leis e regulações do cosmo e da imensa
família das naturezas criadas (em suma, da ordem da sabedoria criadora);
e, ao mesmo tempo, por isto que temos o privilégio de ser espíritos, é
que possuímos direitos em face dos outros homens e de toda assembléia
das criaturas. Em última análise, como toda criatura só age segundo a
virtude de seu Princípio, que é o Ato puro; como toda autoridade digna
desse nome, isto é, justa, só obriga em consciência segundo a virtude
do Princípio dos seres, que é a Sabedoria pura; da mesma maneira todo
direito que o homem tem só o tem em virtude do direito que tem Deus, que
é a Justiça pura de ver a ordem de sua sabedoria nos seres, respeitada,
obedecida e amada com toda inteligência.
Outra
filosofia, inteiramente contrária, tentou basear os direitos da pessoa
humana sobre a pretensão de que o homem não é sujeito a nenhuma lei, a
não ser à da sua vontade e liberdade; e de que ele só deve “obedecer
a si mesmo”, como dizia Jean-Jacques Rousseau, porque toda medida ou
regulação proveniente do mundo da natureza (e, em última instância, da
sabedoria criadora) fazia perecer ao mesmo tempo sua autonomia e sua
dignidade. Esta filosofia não fundamentou os direitos da pessoa humana,
porque nada se fundamenta sobre a ilusão; ela comprometeu e dissipou
esses direitos, porque levou os homens a concebê-los como direitos
propriamente divinos, infinitos portanto. Estes direitos escapariam a
qualquer medida objetiva, repelindo toda limitação imposta às
reivindicações do eu, e exprimindo em última palavra a independência
absoluta do indivíduo humano e um suposto direito absoluto de se
desenvolver o que existe nele. Quando os homens assim instruídos se
chocaram por todos os lados contra o impossível, passaram a acreditar na
falência dos direitos da pessoa humana. Uns se atiraram contra esses
direitos com um furor escravagista; outros continuaram a invocá-los,
sofrendo porém em relação a eles, no íntimo de sua consciência, de
uma tentação de ceticismo que é um dos mais alarmantes sintomas da
crise presente. É uma espécie de revolução intelectual e moral que nos
é exigida, a fim de se estabelecer sobre a base de uma filosofia
verdadeira, nossa fé na dignidade do homem e em seus direitos, e de se
reencontrarem as fontes autênticas dessa fé.
A
consciência da dignidade da pessoa e dos direitos da pessoa esteve implícita
na antiguidade pagã, sobre a qual a lei da escravidão estendia sua
sombra. Foi a mensagem evangélica que, subitamente, chamou a si essa
consciência, sob uma forma
divina e transcendente, revelando aos homens que eles têm por missão ser
filhos e herdeiros de Deus, no reino de Deus. Sob o impulso evangélico, o
mesmo acordar devia propagar-se pouco a pouco , no que diz respeito às
exigências do próprio direito natural, no domínio da vida do homem na
terra e na cidade terrestre.
DIREITO NATURAL, DIREITO DAS GENTES,
DIREITO POSITIVO
Convém
relembrar aqui a distinção clássica, central, para a tradição
civilizada, entre o direito natural, o direito das gentes e o direito
positivo. Como acabei de indicar, o direito
natural diz respeito aos direitos e deveres que decorrem do primeiro
princípio: fazer o bem e evitar o mal, de maneira necessária
e pelo simples fato de que o
homem é homem, fora de qualquer outra consideração. É por isto que
os preceitos da lei não escrita são por si mesmos ou na natureza das
coisas (não digo do conhecimento que o homem tem deles) universais e
invariáveis.
O
direito das gentes é difícil
de definir exatamente, ao menos para os juristas, porque é intermediário
entre a lei natural e a lei positiva. A noção de common
law desenvolveu-se na Inglaterra quase da mesma maneira que a noção
de direito das gentes, jus gentium,
se havia desenvolvido em Roma. Se bem que estas duas noções sejam mui
diferentes para o historiador e para o jurista, o filósofo, todavia, é
forçado a aproximá-las para retirar delas a própria noção da lei
natural ou não escrita, ao ser transferida para além da esfera mesma da
natureza e particularizada pelas condições da vida social. Uma vez
estabelecida esta definição especificamente inglesa, e o termo direito
das gentes, privado de sua significação especificamente romana,
podem ser tomados como sinônimos. Os pensadores cristãos da Idade Média
elaboraram com cuidado a noção de direito das gentes. O direito das
gentes, ou lei comum da civilização, diz respeito, assim como o direito
natural, nos direitos e deveres que decorrem do primeiro princípio de
maneira necessária, desta vez porém supostas certas condições de fato,
como por exemplo o estado de sociedade civil ou as relações entre povos.
É pois universal, também ele, ao menos tanto quanto essas condições de
fato sejam dados universais da vida civilizada.
O
direito positivo, ou o conjunto
das leis em vigor em uma cidade determinada, diz respeito aos direitos e
deveres que decorrem do primeiro princípio, mas de uma maneira contingente, em razão das determinações suscitadas pela razão e
pela vontade do homem, ao estabelecer as leis ou dar nascimento aos
costumes de uma comunidade particular.
É
porém em virtude do direito natural que o direito das gentes e o direito
positivo têm força de lei e se impõem à consciência. São um
prolongamento ou uma extensão da lei natural passando em zonas objetivas,
na determinação da qual a só constituição intrínseca da natureza
humana se mostra cada vez menos suficiente. Pois é a lei
natural ela própria que pede que aquilo que ela deixa indeterminado seja
ulteriormente determinado: ou como um direito ou um dever que exista
para certos em razão das regulações humanas próprias à comunidade de
que fazem parte. Há assim transições insensíveis (ao menos em relação
à experiência histórica) entre o direito natural, o direito das gentes
e o direito positivo; há um dinamismo que impele a lei humana e a torná-la
progressivamente mais perfeita e mais justa no próprio campo de suas
determinações contingentes. Segundo este dinamismo é que os direitos da
pessoa humana assumem forma política e social na comunidade.
O
direito do homem à existência, à liberdade pessoal e à procura da
perfeição da vida moral, decorre por exemplo do direito natural
estritamente entendido. O direito à propriedade privada dos bens
materiais, radicado no direito natural, decorre do direito das gentes, ou
da lei comum da civilização, tanto quanto o direito de apropriação
privada dos meios de produção supõe as condições normalmente
requeridas para o trabalho humano e para a sua organização (que varia
aliás segundo as formas de sociedade e o estado de evolução da
economia); e as modalidades particulares desses direitos são determinadas
pela lei positiva. A liberdade para as nações de viver isentas do jugo
da necessidade e da miséria (“libertação da necessidade”), e a
liberdade para elas de viver isentas do jugo do medo ou do terror
(“libertação do medo”), tais como o presidente Roosevelt as definiu
em seus Quatro Pontos, correspondem a objetivos do direito das gentes, que
devem ser realizados pela lei positiva e por uma organização econômica
e política do mundo civilizado. O direito de sufrágio, reconhecido a
cada qual para a eleição dos dirigentes do Estado, decorre do direito
positivo.
OS DIREITOS DA PESSOA HUMANA
Após
essas explicações filosóficas a respeito do direito natural, desejaria
insistir sobre os direitos da pessoa humana e completar assim as considerações
propostas no precedente capítulo sobre a pessoa humana em suas relações
com a sociedade política. A pessoa humana total, na condição de cidadã,
é uma parte desta sociedade, à qual todavia ela transcende em razão dos
valores absolutos a que se liga e em razão do que nela visa um destino
superior ao tempo.
Já
observamos que foi primariamente na ordem religiosa, e pela súbita irrupção
da mensagem evangélica, que essa transcendente dignidade de pessoa humana
se tornou evidente. Daí porém a consciência dessa dignidade ganhou
pouco a pouco a própria esfera da ordem natural, penetrando e renovando a
nossa consciência da lei de natureza e do direito natural.
Quando
os apóstolos respondiam ao Sinédrio, que queria impedi-los de pregar o
nome de Jesus – “É melhor para nós obedecer a Deus que aos homens”
–, firmavam ao mesmo tempo a liberdade da palavra de Deus e a transcendência
da pessoa humana salva e redimida por Ele, e designada pela Graça a ser
adotada por Deus; mas implicitamente e ao mesmo tempo afirmavam também a
transcendência da pessoa humana na ordem natural, dado que ela é uma
totalidade espiritual feita para o absoluto.
A
transcendência da pessoa, que aparece da maneira mais manifesta nas
perspectiva da fé e da redenção, afirma-se assim a princípio nas
perspectivas filosóficas e diz respeito primeiramente à ordem da
natureza. Isto está além de tudo em completo acordo com a teologia cristã,
que ensina que a graça completa a natureza, e não a destrói. Importa
insistir sobre este fato de que, já na própria ordem natural, a pessoa
humana transcende o Estado, dado que o homem tem um destino superior ao
tempo e põe em jogo o que nele interessa este destino.
Aparece
isto em primeiro lugar nas aspirações naturais do homem à vida
espiritual. Aristóteles e os sábios da antiguidade sabiam que as
virtudes morais são orientadas para uma contemplação da verdade que
transcende a intercomunicação política. Segue-se daí que, se a
humanidade estivesse no estado que os teólogos chamam de pura natureza,
um reino dos espíritos, aparentado àquele no qual Leibniz gostava de
falar, teria normalmente tomado lugar acima da vida política. É-nos lícito
ver na rede espiritual que reúne pelo mundo os artistas, os sábios, os
poetas, os verdadeiros humanistas, todos os que cultivam as obras do
pensamento, os vagos delineamentos de tal reino natural dos espíritos;
tal rede é como que o esboço do que seria uma só família acima das
fronteiras nacionais. Apenas um esboço, é verdade, e o reino leibniziano
dos espíritos não passa de uma hipótese para um mundo possível.
Porque, em realidade, pela graça de Deus é que foi estabelecido, acima
do reino dos imperadores, dos reis e dos parlamentares num reino melhor, o
reino de Deus, a grande cidade do século futuro, do qual, aos olhos dos
cristãos, a Igreja é o começo da terra. Resta que este reino da vida
eterna corresponda, em virtude de um dom que ultrapassa todas as medidas
da natureza, a uma aspiração natural do nosso espírito.
O
fato de que a pessoa humana transcende naturalmente o Estado, na medida em
que envolve um destino superior ao tempo, pode ser verificado de muitas
outras maneiras.
O
universo das verdades – de ciência, de sabedoria e de poesia – para o
qual a inteligência tende por si mesma, diz respeito, por natureza, a um
domínio mais elevado que o da comunidade política. O poder do Estado e
dos interesses sociais não se pode exercer sobre este universo. (Se bem
que possa e deva opor-se à propagação no corpo social de erros que ameaçariam
a ética fundamental da vida comum e os princípios sobre os quais ela se
constituiu). Fizemos notar no capítulo precedente que o Estado pode em
circunstâncias definidas pedir a um matemático que ensine as matemáticas,
a um filósofo que ensine a filosofia – são funções estas do corpo
social. Mas o Estado não pode obrigar um filósofo ou um matemático a
adotar uma doutrina filosófica ou uma doutrina matemática, porque tais
assuntos dependem só e exclusivamente da verdade.
O
segredo dos corações e o ato livre como tal, o universo das leis morais,
o direito da consciência a escutar Deus e a abrir seu caminho para Ele,
todas esses coisas, na ordem natural como na ordem sobrenatural, não
podem ser tocadas pelo Estado, nem cair sob a sua jurisdição. Sem dúvida
a lei obriga em consciência mas é porque ela só é lei quando justa e
promulgada pela autoridade legítima, não porque o Estado ou a maioria
seriam a regra da consciência. Sem dúvida o Estado tem uma função
moral e não somente material; a lei tem uma função pedagógica e tende
a desenvolver as virtudes morais; o Estado tem o direito de me punir se,
minha consciência tenha ficado cega, eu cometo, seguindo minha consciência,
um ato em si mesmo criminoso ou delituoso. Mas, em semelhante circunstância,
o Estado não tem a autoridade de me fazer reformar o julgamento de minha
consciência, do mesmo modo que ele não tem o direito de impor aos espíritos
seus juízos sobre o bem e o mal, nem de legiferar sobre as coisas
divinas, nem de impor nenhuma crença religiosa, qualquer que ela seja.
Ele o sabe muito bem. E é por isto que, toda vez que ele sai dos seus
limites naturais para penetrar, em nome das reivindicações totalitárias,
no santuário da consciência, ele se esforça por violar este santuário
por meios monstruosos de envenenamento psicológico, de mentira organizada
e de terror.
Cada
pessoa humana tem o direito de se decidir por si mesma no que tange ao seu
destino pessoal, quer se trate de escolher seu trabalho, ou de fundar um
lar, ou de seguir uma votação religiosa. Em caso de extremo perigo e
para a salvação da comunidade, o Estado pode requerer pela força o
serviço de cada um de nós e pedir-nos para expor a vida numa guerra
justa; pode também privar de alguns dos seus direitos indivíduos
criminosos (ou melhor, sancionar o fato de que eles mesmos se desfizeram
desses direitos), por exemplo homens julgados indignos de exercer a
autoridade paterna. Mas ele se torna iníquo e tirânico se pretender
fundar o funcionamento da vida civil sobre o trabalho forçado, ou se
tentar violar os direitos da família a fim de se tornar senhor da alma
dos homens. Pois da mesma maneira que o homem, antes de ser destituído
parte da comunidade política, é constituído como pessoa, feita para
Deus e para uma vida superior ao tempo, assim também ele é constituído
parte da sociedade familiar, antes de ser constituído parte da sociedade
política. O fim que explica a existência da família, é produzir e
educar pessoas humanas e prepará-las para realizar seu destino total. E
se o Estado tem, também ele, uma função educativa, se a educação não
está fora de sua esfera, é para ajudar a família a efetuar sua missão
e para completá-la, não para apagar da criança a sua vocação de
pessoa humana, substituindo-a pela de utensílio vivo e de matéria do
Estado.
Em
suma, os direitos fundamentais, tais como: o direito à existência e à
vida; o direito à liberdade pessoal ou o direito de conduzir sua vida
como senhor de si mesmo e de seus atos, responsável por estes perante
Deus e as leis da cidade; o direito à procura da perfeição da vida
humana, moral e racional; o direito à procura do bem eterno (sem a qual não
há verdadeira procura da felicidade); o direito à integridade corporal;
o direito à propriedade privada dos bens materiais, que é uma
salvaguarda das liberdades das pessoas; o direito de contrair matrimônio
segundo sua vontade e escolha, e de fundar uma família, ela mesma
garantida das liberdades que lhe são próprias; p direito de associação,
o respeito da dignidade humana em cada indivíduo, represente ele ou não
um valor econômico para a sociedade – todos esses direitos são
radicados na vocação da pessoa, agente espiritual e livre, às ordens
dos valores absolutos e com um destino superior ao tempo. A Declaração
Francesa dos Direitos do Homem apresentou-os (introduzindo-lhes na mesma
medida o equívoco) segundo a perspectiva inteiramente racionalista da
filosofia das luzes e da Enciclopédia. A Declaração Americana, por
maior que tenha sido a influência de Locke e da “religião natural”,
permaneceu mais próxima do caráter originariamente cristão dos direitos
humanos.
Fazendo
da lei natural, não mais uma derivação da sabedoria criadora, porém
uma revelação da razão a si própria, o racionalismo do Estado, o
racionalismo dos Enciclopedistas transformava a lei natural em um código
de justiça absoluta e universal inscrito na natureza e decifrado pela razão,
como um conjunto de teoremas ou de evidências especulativas; e neste código
da natureza ele absorvia toda lei, tornada doravante tão necessária e
universal quanto a própria natureza. É sem dúvida por causa dessa falsa
perspectiva racionalista, mas também por causa da corrupção dos princípios
cristãos na vida social e política do Antigo Regime, que a afirmação
de direitos, fundados todavia por si mesmos sobre os princípios cristãos,
apareceu como revolucionária relativamente à tradição cristã. “Os Pilgrim
Father, instaurando suas constituições na Nova Inglaterra no século
XVII, eram conscientes da origem cristã desses direitos”. A consciência
dos direitos da pessoa tem na realidade sua origem na concepção do homem
e do direito natural, estabelecida por séculos de filosofia cristã.
O
primeiro desses direitos é o da pessoa humana poder caminhar para seu
destino eterno no caminho que sua consciência reconheceu como traçado
por Deus. Em face a Deus e à
realidade, ela não tem o direito de escolher a seu bel-prazer não
importa que caminho; ela deve escolher o caminho verdadeiro, tanto quanto
estiver a seu alcance conhecer. Mas em face ao Estado,
à comunidade temporal e ao poder temporal, ela é livre de escolher
seu caminho religioso, assumindo seus riscos e perigos, sua liberdade de
consciência sendo um direito natural.
Acabei
de falar do direito da pessoa humana a fundar uma família e do direito da
própria comunidade familiar. Aqui a pessoa não é mais considerada como
pessoa individual, mas é como fazendo parte de um grupo, que direitos
particulares lhe são reconhecidos, tanto a ela quanto ao grupo em apreço.
Os direitos da família, os direitos da pessoa, como pai ou mãe de família,
decorrem do direito natural estritamente entendido.
É
mister dizer outro tanto dos direitos e liberdades das famílias
espirituais e religiosas, que são ao mesmo tempo os direitos e liberdades
da pessoa na ordem espiritual e religiosa. Estes direitos e liberdades
decorrem do direito natural, sem falar do direito superior que a Igreja
invoca em razão de sua fundação divina.
OS DIREITOS DA PESSOA CÍVICA
Quanto
aos direitos da pessoa cívica, isto é, aos direitos políticos, decorrem
estes diretamente da lei positiva e da constituição fundamental da
comunidade política. E dependem independentemente do direito natural, não
somente porque, de uma maneira geral, as regulações da lei humana
realizam um desígnio da lei natural, perfazendo o que a lei natural deixa
indeterminado, mas ainda porque a maneira de como se realiza esse
acabamento é conforme, no caso dos direito políticos, com uma aspiração
inscrita na natureza do homem. Estamos aqui em face desse dinamismo de que
falava há pouco, em virtude do qual o direito positivo tende a exprimir,
em sua esfera própria, exigências que, em um nível mais profundo, são
as da lei natural, de tal sorte que estas exigências se expandem cada vez
melhor na esfera própria da lei humana. É por uma consonância mais
perfeita com as exigências fundamentais da lei natural que a lei humana
passa a graus mais elevados de justiça e perfeição.
A
palavra célebre de Aristóteles, de que o homem é um animal político, não
significa somente que o homem é naturalmente feito para viver em
sociedade; significa também que o homem exige naturalmente viver uma vida
política, e participar ativamente na vida da comunidade política. É
sobre este postulado da natureza humana que repousam as liberdades e os
direitos políticos, especialmente o direito de sufrágio. É talvez mais
fácil aos homens renunciar a participar ativamente na vida política –
e tem acontecido mesmo que, em certos casos, eles tenham vivido mais
descuidosos e mais felizes vivendo na cidade como escravos políticos, ou
abandonado passivamente a seus chefes todo o cuidado de dirigir a vida da
comunidade. Mas então eles abandonavam um privilégio que convém à sua
natureza, um desses privilégios que fazem em certo sentido a vida mais
dura, e carreiam consigo mais ou menos labor, tensão e sofrimento, mas
que correspondem à humana dignidade. Um estado de civilização em que os
homens, como pessoas individuais, designam por uma livre escolha os
detentores da autoridade, é por si mesmo um estado mais perfeito. Pois se
é verdade que a autoridade política tem por função essencial dirigir
homens livres para o bem comum, é normal que estes têm a função de
dirigi-los: eis aí a forma mais elementar de participação ativa na vida
política. É por isto que o sufrágio universal, por meio do qual cada
pessoa adulta tem como tal o direito de se pronunciar sobre as questões
da comunidade, exprimindo seu voto na eleição dos representantes do povo
e dos dirigentes do Estado, tem um valor político e humano absolutamente
fundamental, e é um desses direitos aos quais uma comunidade de homens
livres não deveria em nenhum caso renunciar.
Vê-se
ao mesmo tempo que, dado que toda pessoa como tal deve normalmente poder
manifestar o seu pensamento e sua vontade em matéria política, é normal
também que os membros da sociedade política se agrupem segundo as
afinidades de suas idéias e de suas aspirações em partidos ou escolas
políticas. Tem-se dito muito mal dos partidos políticos, e estas
censuras são justificadas por todos os abusos que viciaram o seu
funcionamento, e que paralisaram e fizeram degenerar a vida política das
democracias à própria noção desses agrupamentos, cuja diversidade
corresponde à diversidade natural das concepções e das perspectivas práticas
entre os membros da comunidade política. Observou-se além disso, com razão,
que o regime de um só Partido instaurado nos Estados totalitários, leva
ao cúmulo, em vez de remediar, os vícios e a tirania que os adversários
da democracia censuram ao regime dos partidos. O regime totalitário de um
só Partido é a pior forma e a catástrofe do regime dos partidos. O que
se exige de uma nova democracia, não é a abolição dos partidos políticos;
é que regule a constituição do Estado, das assembléias legislativas e
dos órgãos de governo, de tal sorte que estes, embora submetidos ao
controle das assembléias nas matérias de interesse maior, sejam subtraídos
ao domínio dos partidos. Este problema não é o da quadratura do círculo,
e tal reforma é perfeitamente concebível em uma nova democracia.
Tenho
insistido acima de tudo sobre os direitos da pessoa cívica, do indivíduo
humano como cidadão. Aí reside a raiz de uma verdadeira democracia política.
Por outro lado, como acentuava há pouco a propósito da família, quando
a pessoa é considerada como fazendo parte de um grupo, os direitos que
lhe são reconhecidos são também e ao mesmo tempo os direitos do grupo
em apreço. Aqui os direitos da pessoa cívica são a mesma coisa que os
direitos do povo. O direito do povo de adotar a constituição e a forma
de governo de sua escolha, é o primeiro e o mais fundamental dos direitos
políticos. É somente às exigências da justiça e da lei natural que
ele é subordinado. Além disso, para que esses direitos do povo sejam
estavelmente garantidos, a forma constitucional do Estado político é
necessária. Todos os povos civilizados têm uma
constituição fundamental, mas ela tem sido muitas vezes no passado
antes assunto de consentimento e tradição do que de instituição jurídica.
Uma constituição juridicamente formulada e instituída, segundo a
vontade do povo, decidido livremente a viver sob as formas políticas
assim determinadas, corresponde a um progresso adquirido, quanto à tomada
de consciência política e à organização política; é este um traço
característico de toda verdadeira democracia. A constituição
estabelecida pelo povo é o direito do povo, assim como os direitos e
liberdades do cidadão são o direito da pessoa cívica.
Há
outros direitos da pessoa cívica, em particular os que se resumem nas três
igualdades: igualdade política, que assegura a cada cidadão seu
estatuto, sua segurança e suas liberdades no Estado, igualdade de todos
perante alei, que implica um poder judiciário independente e assegura a
cada qual o direito de apelar para a lei e de ser reprimido somente por
ela, no caso de que a desafie; igual admissibilidade de todos os cidadãos
aos empregos públicos segundo sua capacidade, e livre acesso para todos
às diversas profissões, sem discriminação racial ou social. Notemos
aqui que as prerrogativas de que gozam os cidadãos de um país
relacionam-se de maneira geral com o seu estatuto propriamente político e
com sua participação (pelo direito de voto por exemplo) na direção do
Estado. Pelo mais, os direitos da pessoa cívica são o privilégio de
todo homem, cidadão ou estrangeiro, que, por sua residência em um país
respeitador do direito das gentes, é chamado a participar da vida
civilizada.
Em
todas as análises precedentes, limitei-me ao essencial. Desejaria somente
propor ainda duas observações concernentes ao direito de associação e
à liberdade de expressão. O direito de associação é um direito
natural que assume feitio político, desde que o Estado o sanciona e o
submete às suas regulamentações referentes ao bem comum (o Estado tem o
direito de interditar e dissolver – não arbitrariamente, mas segundo a
decisão das instituições jurídicas apropriadas – uma associação de
malfeitores ou de inimigos do bem público). O que se chama a liberdade de
expressão, a meu ver, seria melhor designado pela expressão liberdade de
pesquisa e discussão. Tal liberdade tem um valor propriamente político,
porque é necessário ao esforço comum para aumentar e propagar a verdade
e o bem na comunidade. A liberdade de pesquisa é um direito natural
fundamental, pois é da própria natureza do homem procurar a verdade. A
liberdade de propagar as idéias que se acreditavam verdadeiras,
corresponde a uma aspiração da natureza, mas, do mesmo modo que a
liberdade de associação, ela é sujeita aos regulamentos do direito
positivo. Pois não é verdade que todo pensamento como tal, e pelo fato
somente de que nasceu em uma inteligência humana, tem direito de ser
propagado na comunidade política. Esta é que tem o direito de se opor à
propagação da mentira e da calúnia, às atividades que têm por
objetivo a destruição do Estado e dos fundamentos da vida comum. A
censura e as medidas de polícia, em minha opinião, são o pior meio –
ao menos em tempo de paz – de assegurar essa repressão; muitos meios
melhores, porém, são possíveis, sem falar da pressão espontânea da
consciência comum e da opinião pública, que decorrem dos hábitos
quando bem fortemente estabelecidos. Em todo caso, estou persuadido de que
uma sociedade democrática não é necessariamente uma sociedade
desarmada, que os inimigos da liberdade podem tranquilamente conduzir ao
cadafalso, em nome da liberdade. Precisamente porque é uma comunidade de
homens livres, ela deve defender-se com uma energia particular contra os
que repelem por princípios, e trabalham por destruir, os fundamentos da
vida comum em tal regime, isto é, a liberdade e a cooperação, o mútuo
respeito cívico. O que distingue na matéria uma sociedade de homens
livres de uma sociedade despótica, é que esta restrição das liberdades
destruidoras não se realiza em uma sociedade de homens livres, senão com
os garantias institucionais da justiça e do direito.
A
meu ver, esse problema da defesa efetiva da liberdade, contra os que se
prevalecem da liberdade para destruí-la, não pode ser resolvido
convenientemente senão por uma reconstrução da sociedade sobre uma base
orgânica e pluralista. E isto supõe também que se terá encontrado um
regime fundado, não mais sobre a fecundidade do dinheiro e dos sinais da
posse, mas sobre o valor e a finalidade humana do trabalho, no qual o
conflito das classes, instituído pela economia capitalista, tenha sido
superado com essa mesma economia e que tenha na base os direitos sociais
da pessoa operária tanto quanto de direitos políticos da pessoa cívica.
OS DIREITOS DA PESSOA OPERÁRIA
Chegamos
assim a uma terceira categoria de direitos: os direitos da pessoa social,
mais particularmente da pessoa operária. De maneira geral, são os
direitos do ser humano em suas funções sociais, econômicos e culturais
– direito dos produtores e dos consumidores, direitos dos técnicos,
direitos dos que se dedicam aos trabalhos do espírito – aqueles que uma
nova era de civilização terá que reconhecer e definir. Mas é a
respeito dos direitos do ser humano entregue à função do trabalho que
surgem os problemas mais urgentes.
Progresso
na organização e progresso na consciência, estas variedades no
progresso são simultâneos. Eu desejaria repetir aqui o que já deixei
indicado em outro trabalho: o fenômeno capital que se produziu a esse
ponto de vista no século XIX foi a tomada
de consciência de si mesma, realizada pela pessoa e pela comunidade
operária. Embora afete a vida econômica e a ordem temporal, tal
progresso é sobretudo de ordem espiritual e moral e é nisto que reside a
sua importância. É a tomada de consciência de uma dignidade ofendida e
humilhada, e a tomada de consciência da missão do mundo obreiro na história
moderna. Ela significa a ascensão para a liberdade interior e em sua
expressão social, de uma comunidade de pessoas, da comunidade a um tempo
mais próxima das bases materiais da vida humana e mais sacrificada, a
comunidade do trabalho manual, a comunidade das pessoas humanas ligadas a
esse trabalho.
Em
suma, o lucro histórico de que falamos aqui, é a tomada de consciência
da dignidade de trabalho e da dignidade operária, da dignidade da pessoa
humana no trabalhador como tal.
Acentuemos,
ao mesmo tempo, uma das consequências dessa tomada de consciência.
Se
o proletariado pede para ser tratado como uma pessoa maior, por isto mesmo
ele não tem que ser socorrido, melhorado
ou salvo por outra classe social. É a ele, ao contrário, e a seu
movimento de ascensão histórica, que incumbe o papel principal na fase
próxima da evolução. Não é, todavia, retraindo-se do resto da
comunidade para exercer uma ditadura de classe, como o queria o marxismo,
que os povos operário e camponês estarão aptos a desempenhar esse papel
inspirador e renovador. É, ao contrário, organizando-se e se educando,
tomando consciência de suas responsabilidades na comunidade, e unindo à
sua ação todos os elementos, qualquer que seja a classe a que pertençam,
decididos a trabalhar com ele para a liberdade humana.
Ao
mesmo tempo, percebemos melhor como os direitos do trabalho penetraram na
consciência comum e continuam a tomar forma. É a princípio o direito ao
justo salário, pois o trabalho do homem não é uma mercadoria sujeita à
lei da oferta e da procura, e o salário que lhe corresponde deve bastar
para que o operário e sua família vivam com um padrão de vida
suficientemente humano, em relação às condições normais de uma
sociedade determinada. Outros direitos serão sem dúvida reconhecidos ao
trabalho pela lei humana à medida que o regime econômico se for
transformando. Há lugar para se pensar que, nos tipos de empresas em que
isso for possível, um sistema de co-propriedade e de co-gestão operária
substituirá o sistema do salariado, e que, com os progressos da organização
econômica, um novo direito se formará para o operário técnico e
socialmente qualificado: o direito ao que se pode chamar o título
de trabalho, que garanta ao homem que seu emprego lhe pertence
efetivamente, ligado a sua pessoa por um laço jurídico, e que sua
atividade operativa poderá progredir. Estejamos bem certos de que, após
a presente guerra, que representa uma crise revolucionária mundial, as
condições sociais e econômicas da vida humana, o regime da propriedade
e o regime da produção serão profunda e irrevogavelmente modificados, e
que os privilégios atuais da riqueza serão substituídos em todo caso
por um novo sistema de vida, melhor ou pior conforme for animado pelo espírito
personalista ou pelo espírito totalitário. A dificuldade para o
pensamento é ser suficientemente audacioso para compreender, tanto quanto
o conhecimento o for para seguir.
Retornemos
contudo ao nosso propósito, que é a consideração dos direitos da
pessoa operária. Os direitos do operário como indivíduos são ligados
aos direitos do grupo operário, dos sindicatos e dos outros grupos
profissionais, e o primeiro desses direitos é a liberdade sindical. A
liberdade sindical – a liberdade dos trabalhadores de se agruparem em
sindicatos de sua escolha, livres de se federarem como o entendam, sem que
o Estado possa unificá-los à força ou arregimentá-los, sua liberdade
de usar armas naturais que a lei lhes reconhece, em particular o direito
de guerra (tanto quanto não ponha em perigo a segurança pública) –
decorre do direito natural da associação sancionado pelo direito
positivo, e é a condição normal do movimento de transformação de que
sairá uma nova organização econômica.
Em
tudo isto o que está em causa é esse senso da dignidade operária de que
se tratava acima, o sentimento dos direitos da pessoa humana no
trabalhador, em nome dos quais este se mantém, perante aquele que o
emprega, em relações de justiça, e como uma pessoa maior, não como uma
criança ou um servidor. Há aí um dado essencial, que ultrapassa de
muito todo problema de pura técnica econômica e social, pois é um dado
moral, que interessa o homem em suas profundezas espirituais. Se não
fosse construída sobre esse fundamento dos direitos e da dignidade da
pessoa operária, a organização sindical ou cooperativa se arriscaria
por sua vez a degenerar em tirania.
No
que diz respeito aos acontecimentos da hora, é mister observar que em
meio às ruínas acumuladas pela guerra, um fenômeno novo se produz,
notadamente na Inglaterra e entre os franceses que, em França e fora
dela, continuam a lutar pela liberdade. Parece que muitos socialistas e
muitos cristãos estão em vias de rever e renovar suas concepções
sociais, ao mesmo tempo se aproximando uns dos outros. Cada qual tem que
se pôr em guarda contra certas tentações provenientes dos hábitos de
pensamento de outrora.
A
tentação que vem das antigas concepções socialistas é a de conceder a
primazia à técnica econômica, e ao mesmo tempo tender a entregar tudo
à autoridade do Estado, administrador do bem-estar de todos, e à sua
maquinaria científica e burocrática: isto implica, quer se queira ou não,
uma queda no sentido de um totalitarismo de base tecnológica. Não é
esta sorte de racionalismo da organização matemática, mas sim uma
sabedoria prática e experimental, atenta aos fins e meios humanos, que
deveria inspirar a obra de reconstrução. A noção de economia
planificada deveria assim ser substituída por uma noção nova, fundada
sobre o ajustamento progressivo devido à atividade e à tensão recíproca
dos órgãos autônomos, agrupando a partir da base os produtores e os
consumidores; seria melhor dizer então economia ajustada em lugar de
economia planificada. Da mesma maneira, a noção de coletivização
deveria deixar o lugar para a de propriedade societária dos meios de
produção ou de co-propriedade da empresa. À parte certos setores de
interesse geral, cuja transformação em serviços públicos é normal, é
um regime societário, substituindo tanto quanto possível o salariado
pela co-propriedade, que em tal concepção, e no que concerne sobretudo
ao plano industrial, deveria suceder ao regime capitalista; o pessoal operário
participaria assim na gestão da empresa, para a qual, além disso, os
progressos técnicos modernos permitem esperar certa descentralização.
Quando falamos da forma societária da propriedade industrial, queremos
referir-nos a uma sociedade de pessoas (técnicos da direção, nas condições
do regime atual, a noção da co-propriedade poderia fazer pensar; nesta
sociedade de pessoas a co-propriedade da empresa privada, empenhada ela
mesma em uma “comunidade de trabalho” organizada, seria a garantia do
“título de trabalho” de que cogitávamos mais acima, e teria por
fruto a constituição e o desenvolvimento de um patrimônio comum.
A
tentação ligada às antigas concepções outrora muito em voga em certos
círculos cristãos, é a tentação de paternalismo. Ela procura fazer
depender a melhora de sorte da classe trabalhadora das iniciativas do
patronato, e de sua autoridade de pai de família consciente de seus
deveres para com os filhos. Tal concepção tende a tratar o operário
como um menor, e se opõe da maneira mais radical a esta consciência da
dignidade social e dos direitos da pessoa operária, sobre a qual tanto
temos insistido. Outra tentação é a do corporatismo encarado como um
meio de abolir a luta das classes sem sair do quadro da economia
capitalista. Os que se deixam levar por essa tentação são arrastados
para um corporatismo de Estado, radicalmente oposto aos princípios católicos,
e que, por si mesmo, abre caminho para o fascismo, para um totalitarismo
político dedicado a conservar em mãos das classes chamadas possuidoras,
não sua liberdade nem mesmo suas posses, mas ao menos seus privilégios
de autoridade. a noção de corporação, ou melhor, do corpo
profissional, tal como foi apresentada pelo Papa Pio XI em uma das suas
encíclicas, é sem dúvida por si mesma indene de conotações. Mas a própria
palavra corporação está de tal modo deformada e corrompida pelo uso que
dela fizeram os Estados fascistas – que a tornaram sinônima de órgão
do Estado, ao serviço dos interesses totalitários – que é necessários
substituí-la por outra palavra, por exemplo a de comunidade de trabalho
ou de grupo de profissão. E o que é essencial em todo caso, é
compreender que toda organização da economia, concebida à luz de um
princípio estrutural e cooperativo, deve ser estabelecida de baixo para
cima, segundo os princípios da democracia personalista, com sufrágio e
participação pessoal ativa de todos os interesses na base, e também
deve emanar deles e de suas uniões. Como toda ditadura de um Estado
corporatista, paternalista ou coletivista, a liberdade dos grupos e das
associações de nível inferior ao Estado, sua qualidade de pessoa moral
institucionalmente reconhecida, e mesmo certo poder de jurisdição
concedido a cada um em seus limites próprios, devem ser encarados como um
dado primordial da passagem para um regime autêntico humanista.
Quer
se filiem às escolas socialistas ou às escolas cristãs, muitos homens
de boa vontade, instruídos pela terrível prova, estão em vias de
repelir de seus espíritos os preconceitos e as tentações a que acabo de
referir-me. Novas concepções devem desde então ser elaboradas.
Acreditamos que terão de submeter a uma crítica severa a noção clássica
da soberania do Estado, não somente na ordem internacional, em que os
Estados, para entrar em uma federação de povos livres, deverão
renunciar aos privilégios de uma soberania absoluta, mas também na própria
ordem nacional, na qual, em relação a esse domínio particular que é o
econômico, em relação notadamente a uma organização econômica e
social fundada sobre a liberdade das pessoas e dos grupos, o Estado tem
uma simples função de coordenação e controle. Uma verdade fundamental
deve ser aqui salvaguardada, a da distinção entre a ordem política e a
ordem econômica, entre a estrutura política do Estado e a organização
econômica da sociedade. É uma monstruosidade a idéia de um Estado como
empreendedor econômico. Os grupos econômicos e profissionais, com as
estruturas hierarquizadas que comportam, devem ser encarados como órgãos
da comunidade civil, não como órgãos do Estado. A vida e a organização
políticas do Estado dizem respeito à vida comum das pessoas humanas e
sua direção para uma obra comum; esta supõe a força, a paz e a
harmonia do corpo social, e deve tender para a conquista da liberdade, e
para a instauração de uma cidade fraternal, como o seu ideal supremo.
Elas são de uma ordem superior à vida e à organização dos grupos econômicos.
A organização política do Estado implica à sua base, como o indicávamos
na seção precedente, o reconhecimento dos direitos da pessoa humana à
vida política. Ela deve repousar sobre os direitos e liberdades políticas
dos cidadãos. A vida política do Estado deve exprimir o pensamento e a
vontade dos cidadãos, relativamente ao bem comum e à obra comum, que são
de uma ordem não somente material, mas principalmente moral e
propriamente humana. É normal que os grupos, os sindicatos, as instituições
econômicas, os corpos profissionais, tenham os meios regulares de fazer
ouvir sua opinião a este respeito, quer dizer, desempenhar um papel
consultivo. Não lhe compete conduzir a vida política, nem constituir a
estrutura política da ação.
Por
oposições ao princípio totalitário e a todas as perversões que ele
acarreta, as novas concepções de que falo terão que pôr em evidência
o valor fundamental do princípio pluralista. Este princípio estende-se a
todo o campo da vida social e política; é dele que se pode esperar em
particular uma solução razoável dos problemas da escola e da coabitação
harmoniosa das diversas famílias espirituais, com suas concepções
morais específicas, no seio da comunidade temporal. Na ordem econômica,
ele não funda somente esta autonomia dos grupos e das associações de
que se tratava há pouco, mas também a diversidade de regime ou de
organização que convém a diferentes estruturas típicas da vida econômica,
em particular às estruturas da economia industrial e às da economia agrícola.
A
que corresponde enfim o esboço que acabamos de traçar – de maneira aliás
mui imperfeita – dos direitos da pessoa operária e dos direitos dos
grupos e comunidades de que ela faz parte? Não será a outra coisa senão
à idéia de uma evolução democrática das condições do trabalho, não
calcada sobre os métodos de conflito dialético e de irresponsabilidade
paralisantes antes da guerra, mas inspirada nas idéias diretrizes de uma
nova democracia, orgânica e pluralista. Para pôr um termo a esse estudo,
convém voltar, a fim de examiná-lo mais de perto, a um dos direitos
fundamentais mencionados neste capítulo, o direito de cada ser humano à
liberdade pessoal, ou direito de dirigir sua própria vida como senhor de
si mesmo, responsável perante Deus e perante a lei da cidade. Tal direito
é um direito natural, mas diz respeito tão profundamente às aspirações
radicais da pessoa e ao dinamismo que elas acarretam, que toda a história
humana não é demais para que ele possa desenvolver-se completamente.
Implica ele a condenação da escravidão e do trabalho forçado,
particularmente porque o direito à liberdade pessoal assume a forma ainda
mais especial do direito de escolher livremente seu trabalho, o qual
corresponde à obrigação de cada um de incumbir-se de uma parte das
tarefas da comunidade. Todavia, os maiores pensadores da antiguidade não
haviam pensado em condenar a escravidão e os teólogos medievais só
consideravam como absolutamente contrária ao direito natural a escravidão
sob sua forma absoluta, em que o corpo e a vida do escravo e seus bens
humanos primordiais, tal como a liberdade no casamento, estão à mercê
do senhor.
É
que dois fatores – de um lado as condições materiais e técnicas do
trabalho, de outro os obstáculos sofridos pelas energias espirituais na
vida coletiva – contrariam dolorosamente, tal como um castigo, o
desenvolvimento normal do direito fundamental em questão. Este não é
somente oposto à escravidão propriamente dita; comporta além disso uma
aspiração ou um oposto à servidão entendida em seu sentido mais geral,
isto é, a essa forma de autoridade do homem sobre o homem, na qual aquele
que é dirigido não o é no sentido do bem comum, pelo chefe encarregado desse trabalho, porém ao serviço
do bem particular daquele que o
dirige, alienando assim sua atividade e cedendo a outrem o bem (o fruto de
sua atividade) que deveria ser seu; por outras palavras, tornando-se assim
o órgão de outra pessoa. É bem claro que a servidão assim entendida
pode assumir outras formas que não a escravidão propriamente dita; por
exemplo, a forma de servidão do proletariado, e muitas outras ainda.
Essas diversas formas, ligadas às condições do trabalho humano, não
foram, não estão sendo, nem serão eliminadas senão progressivamente,
à medida que as técnicas da produção e da vida social se aperfeiçoem
e que as energias espirituais se libertem na vida coletiva. As transformações
técnicas introduzidas pela máquina na economia moderna podem desempenhar
aqui um papel mais importante e mais decisivo, que outrora a substituição
da tração humana pela tração animal. Se a razão do homem for
suficientemente forte para superar a formidável crise provocada na história
humana pela potência desmedida das técnicas do maquinismo, ela poderá
fazer sair daí uma nova libertação, um regime novo esse que, ainda
assim, ficará no entanto longe de libertar o trabalho humano de toda
forma de servidão.
Relativamente
ao direito natural, a servidão absoluta aparece dessa maneira como contrária
ao mesmo direito, encarado este em suas exigências primeiras; e as outras
formas de servidão, mais ou menos atenuadas, como contrárias ao direito
natural encarado segundo exigências ou anseios mais ou menos secundários
e segundo o dinamismo que ele envolve. Este dinamismo não será
plenamente satisfeito antes que toda forma de servidão tiver desaparecido
– sob os “céus novos” da ressurreição.
Enquanto
se espera, não somente todo progresso na diminuição da servidão deve
ser encarado como conforme ao direito natural, mas os homens, cujas condições
de trabalho deixam ainda presos a qualquer forma de servidão, devem ter
um meio compensador de proteger seus direitos de pessoas humanas. Esta é
uma das funções da organização operária em regime capitalista.
Qualquer que seja a forma do regime novo, essa função deverá continuar
a exercer-se em particular nos setores econômicos em que o sistema do
salariado ainda estiver em vigor. Em um sistema de economia orgânica pode
acontecer, ao demais, que os indivíduos, por esta ou aquela razão, ainda
fora das uniões sindicais e das comunidades de trabalho, ou sem
possibilidade de acesso às garantias e vantagens por elas oferecidas,
constituam uma massa exposta ao pauperismo. Será necessário que eles
recebam assistência e proteção, e se organizem para defender seu
direito ao trabalho.
Enfim
a lei que leva o trabalho humano a libertar-se da servidão não é a única
a considerar-se. A emancipação das misérias físicas da vida humana
corresponde a outros direitos da pessoa social, que as múltiplas formas
de assistência social e organização do seguro para os velhos são
destinadas a garantir; e garantirão sem dúvida melhor se estas instituições
forem de tipo pluralista (reduzindo, e não excluindo, o papel do Estado)
em vez do tipo estatal. E um direito mais profundo ainda reclama que
todos, na qualidade de co-herdeiros do bem comum, participem gratuitamente
dos benefícios elementares, materiais e espirituais, da civilização, na
medida em que a comunidade e seus grupos orgânicos podem dar por
nada o seu uso às pessoas humanas que a constituem, ajudando-se assim
a libertar-se das necessidades da matéria e a progredir na vida da razão
e das virtudes.
Assim
pois encerram esse capítulo as mesmas considerações que o anterior. O
progresso contrariado da humanidade segue o sentido da emancipação
humana, não somente na ordem política, mas também na ordem econômica e
social, de tal maneira que as diversas formas de servidão, pelas quais um
homem está ao serviço de outro para o bem particular deste, e como um órgão
seu, sejam a pouco abolidas à medida que a história humana se aproxima
de seu termo. O que supõe não somente a passagem a melhores estados de
organização, mas também a passagem a uma consciência melhor da
dignidade da pessoa humana em cada um de nós, e da primazia do amor
fraternal entre todos os valores de nossa vida. Assim avançamos para a
conquista da liberdade.
Na
medida em que uma reconstrução autêntica sair da prova mortal pela qual
o mundo passa hoje, é sobre a afirmação, o reconhecimento e a vitória
de todas as liberdades, liberdades espirituais tanto quanto políticas,
sociais e operárias, que ela deverá estabelecer-se. E é dedicando
verdadeira e real confiança no povo, nesse povo que oferece maciçamente
seu trabalho e seu sofrimento, e, se necessário for, seu sangue, que se
pode esperar ver sair das ruínas uma reconstrução autêntica; é na
comunhão com o povo que a civilização tem sua última chance.
RESUMO DOS DIREITOS ENUMERADOS
No
presente estudo, não tratamos dos direitos concernentes à ordem
internacional, cuja consideração faz parte de um domínio especial, e
entre os quais os mais importantes são o direito de cada Estado, grande
ou pequeno, à liberdade e ao respeito de sua autonomia, o direito ao
respeito da fé jurada e da santidade dos tratados, o direito a um
desenvolvimento pacífico (direito que, sendo valido para todos, exige,
para se desenvolver, o restabelecimento de uma comunidade internacional
com poder jurídico e o desenvolvimento de formas de organização. Talvez
não seja de todo inútil dar aqui uma lista sumária dos direitos sobre
os quais acabamos de falar.
Direitos
da pessoa humana como tal –
Direito à existência. – Direito à liberdade pessoal ou direito de
dirigir sua própria vida como senhor de si mesmo e de seus atos, responsável
por eles perante Deus e perante as leis da cidade. – Direito à busca da
perfeição da vida eterna segundo o caminho que a consciência reconheceu
como o que foi traçado por Deus. – Direito da Igreja e das outras famílias
religiosas ao livre exercício de sua atividade espiritual. – Direito de
seguir uma vocação religiosa; liberdade das ordens e agrupamentos
religiosos. – Direito de contrair matrimônio segundo sua escolha e de
fundar urna família, assegurada ela própria das liberdades que lhe são
peculiares – direito da sociedade familiar ao respeito de sua constituição,
o qual é fundado sobre a lei natural, não sobre a lei do Estado, e que
compromete fundamentalmente a moralidade do ser humano. – Direito à
integridade corporal. – Direito de propriedade. – Em suma, direito de
cada ser humano a ser tratado como uma pessoa, não como uma coisa.
Direitos
da pessoa cívica
– Direito de cada cidadão a participar ativamente da vida política, e
particularmente direito de sufrágio igual para todos. – Direito do povo
a estabelecer a Constituição do Estado e a decidir por si próprio a sua
forma de governo. – Direito de associação, limitada somente pela
necessidade juridicalmente reconhecida do bem comum, e particularmente
direito de se agrupar em um partido político ou uma escola política. –
Direito de livre pesquisa e de discussão (liberdade de expressão). –
Igualdade política e direito igual de cada cidadão à sua segurança e
às suas liberdades no Estado. – Direito igual de cada qual às
garantias de um poder judiciário independente. – Igual
admissibilidade aos empregos públicos, e livre acesso às diversas
profissões.
Direitos
da pessoa social, e mais particularmente da pessoa operaria
– Direito de escolher livremente seu trabalho. – Direito de se agrupar
livremente de uniões profissionais ou sindicatos. – Direito do
trabalhador a ser tratado socialmente como uma pessoa maior. – Direito
dos grupos econômicos (sindicatos e comunidades de trabalho) e dos outros
agrupamentos sociais à liberdade e autonomia. – Direito ao justo salário;
e, onde o regime do salariado puder ser substituído por um regime societário,
direito à co-propriedade e a co-gestão da empresa e ao “título de
trabalho“. – Direito à assistência da comunidade na miséria e no
desemprego, doença e na velhice. – Direito a usufruir, gratuitamente,
segundo as possibilidades da comunidade, os benefícios elementares,
materiais’ e espirituais, da civilização.
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