FILOSOFIA
DOS DIREITOS HUMANOS
Fundamentos
de um ethos
de Liberdade Universal
Heiner
Bielefeldt
Tradução
de Dankwart Bernsmüller
1.
A caminho de uma ordem internacional dos direitos humanos?
2.
A nova indefinição na compreensão dos direitos humanos
3.
O pluralismo cultural como desafio à universalidade dos direitos
humanos
4.
O iluminismo de Kant e o discurso normativo intercultural
1.
A caminho de uma ordem internacional dos direitos humanos?
Cinquenta
anos após a aprovação da Declaração Universal elos Direitos Humanos
pelas Nações Unidas (no dia 10 de dezembro de 1948), hoje eles gozam
de aprovação generalizada, difícil de ser imaginada algumas décadas
atrás. As duas abrangentes convenções realizadas em 1966 e que se
baseavam na Declaração o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e
Políticos e o Pacto Internacional sobre Direitos Científicos, Sociais
e Culturais — já foram ratificadas por cerca de dois terços dos países.
Junto com a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, ambos
os Pactos de 1966 constituem o assim chamado International Bill of
Rights, que, por seu lado, foram acrescidos de uma série de amplos
tratados especiais sobre direitos humanos — por exemplo, para a extinção
de todas as formas de discriminação da mulher ou pela proscrição da
tortura. Mesmo aquela minoria de países que até agora não se
convenceu a ratificar os pactos internacionais, está obrigada à
observação de alguns padrões elementares de direitos, como, por
exemplo, a proscrição da escravidão e da discriminação racial. A
Corte Internacional concluiu, em 1970, que aqueles itens se constituem
em obrigações erga omnes (válida para todos), sendo, portanto, sua
observação internacionalmente obrigatória, independentemente da
subscrição numa correspondente convenção (cf. Tomuschat 1992. p.
7).
O
conflito estabelecido na Carta das Nações Unidas, ao determinar, de
um lado, a observação geral dos direitos humanos e das liberdades básicas
para todos” (Art. 1, item 3 da Carta) e, por outro, de proibir a ingerência
em assuntos internos dos países (Art. 2, item 7 da Carta), foi agora
solucionado pela interpretação de que determinados direitos humanos básicos,
cuja abrangência permanece, em verdade, bastante discutível, não
podem ser considerados assunto interno exclusivo de cada nação.
Esses direitos, do ponto de vista jurídico, não integram apenas a
soberania de uma nação, que os reconhece ou garante por vontade
soberana, mas sim, ultrapassam as fronteiras da soberania de cada
Estado, como assunto da comunidade universal das nações (cf.
Buergenthal entre outros 1985, p. 117).
Inexiste,
até o momento, a possibilidade de acionar juridicamente, de forma
individual, ao nível da Organização das Nações Unidos.’ No
entanto, no âmbito do Conselho Europeu, a Convenção Européia de
Direitos Humanos, de 1950, oferece amplas chances de ações judiciais
terem sucesso através da Comissão Européia de Direitos Humanos e da
Corte Européia para Direitos Humanos, em Estrasburgo, que, nesse ínterim,
desenvolveu ampla jurisprudência (cf. Frowein/Peukert 1996). A Organização
dos Estados Americanos (OEA) orientou-se no modelo da Convenção Européia
de Direitos Humanos e de seus instrumentos executivos, para, em 1969,
apresentar para ratificação a Convenção Americana de Direitos
Humanos (cf. Kokott 1986). Um terceiro pacto regional foi aprovado em
1981 pela Organização pela Unidade Africana, através da Corto
Africano de Direitos Humanos e de Direito dos Povos (cf. Lüthke
1988). Apesar de a Carta Africana ter características próprias, até
porque destaca o coletivo nos direitos dos povos, refere-se
explicitamente à Declaração Universal dos Direitos Humanos das Nações
Unidas, atendendo preceito de complementação através de
particularidades regionais, como já ocorrera anteriormente com as
convenções do Conselho Europeu e da OEA.
Do
ponto de vista histórico, o desenvolvimento internacional da proteção
aos direitos humanos é tudo, menos óbvio. E necessário lembrar que
o moderno direito dos povos restringia-se à regulamentação das relações
entre Estados soberanos até há poucas décadas, sendo as pessoas (ou
grupos), quando muito, objeto de acordos bilaterais de proteção, mas
nunca portadores de direitos internacionais (cf. Kimminich 1990, p. 215
ss.). Dessa forma, o reconhecimento dos direitos humanos universais como
parte integrante do direito dos povos, caracteriza-se como velada revolução.
Desencadeadores dessa mudança radical foram experiências
internacionais de agressão, como o genocídio praticado pelo
nacional-socialismo, ao qual o preâmbulo da Declaração Universal dos
Direitos Humanos alude, ao falar em atos de barbárie que feriram
profundamente a consciência da humanidade (citado por Tomuschat 1992,
p. 26). Com razão, Christian Tomuschat designou 1945 como o ano da
‘transição copernicana dos direitos humanos’, pois foi então
que a promoção dos direitos humanos foi reconhecida como meta
obrigatória pela comunidade das nações, sendo consolidada através da
Carta das Nações Unidas. (ob.
cit., p. 5). Avaliação
intermediária das ações internacionais executadas desde então, no
que diz respeito à proteção dos direitos humanos, foi feita na
Conferência Mundial dos Direitos Humanos promovida pelas Nações
Unidas em Viena, em 1993, que, em seu documento final, mais uma vez
reforçou a validade universal desses direitos, contrariando alguns
temores de que isso não ocorreria e opondo-se sobretudo à tentativa de
alguns países asiáticos de relativizá-los. Na parte I, parágrafo 1º
da Declaração de Viena, consta com toda a desejável clareza: “E
inquestionável o caráter universal desses direitos e liberdades”
(cit. na Europäische Grundrechte Zeitschrift 1993, p. 521).
Nesse
ínterim, os direitos humanos alcançaram reconhecimento não apenas
no âmbito de nações, mas também, por exem1910, nas comunidades
religiosas, especialmente nas igrejas cristãs. Isso pode parecer óbvio,
mas não é, pois, até as primeiras décadas do século XX, as
igrejas cristãs da Europa (diferentemente das norte-americanas)
mostravam-se céticas em relação aos direitos, pois, com frequência,
associavam-nos a radicalismo jacobino e anticlerical ou, até mesmo, a
ideologias anti-religiosas. Bastante acentuada era a postura defensiva
da Igreja Católica (cf. Hilpert 1991, p. 138 e ss.). Em uma série de
documentos papais, culminando com o Syllabus Errorum de Pio IX, de
1864, os direitos humanos eram repudiados como expressão do
liberalismo moderno, para o qual a liberdade individual era mais
importante que o bem comum baseado na verdade religiosa. Após demorada
fase de cuidadosa aproximação, ocorreu o reconhecimento definitivo dos
direitos humanos de forma genérica, a princípio, e da liberdade
religiosa, em especial, somente após a metade do século XX, mais
precisamente, através da encíclica Pacem in terris, de 1963, e na
declaração do Concílio Vaticano II intitulada Digniratis humanae, de
1965 (cf. Hilpert 1991, p. 146 e ss.). Também no protestantismo,
especialmente no alemão, predominava ceticismo em relação aos
direitos humanos, ainda em muitos anos do século XX (cf. Hubert/Tödt
1977, p. 45 e ss.). Mudança radical ocorreu após a Segunda Guerra.
Depois de a assembléia fundadora do Conselho Ecumênico das Igrejas,
em Amsterdã, em 1948, ter exigido elementos dos direitos humanos como
base de uma “sociedade responsável”, tanto o Conselho Ecumênico
como as ligas luterana e reformada aprovaram declarações favoráveis
aos direitos humanos na década de 70 (cf. ob. cit., p. 55 e ss.). Assim
como para a comunidade das nações, também para as igrejas cristãs o
ano de 1945 representou marco significativo em relação à afirmação
dos direitos humanos, chegando mesmo, ao final do século, a integrar o
cerne da pregação cristã.
Além
das igrejas cristãs, também outras congregações religiosas
iniciaram o processo de esclarecer e formular suas posições frente
aos direitos humanos. Exemplificando, há uma série de declarações
islâmicas sobre o assunto. Integram esse rol a Declaração Islâmica
Geral dos Direitos Humanos, apresentada à UNESCO em 1981 pelo Conselho
Islâmico paro a Europa, e, mais recentemente, a Declaração dos
Direitos Humanos no Islamismo, aprovada pelos ministros das relações
exteriores da Organização da Conferência Islâmica, em 1990, no
Cairo. Como ainda será demonstrado (cf. acima, cap. V, 7), esses
documentos islâmicos sobre direitos humanos diferem bastante dos padrões
internacionais estabelecidos no âmbito das Nações Unidas. De
qualquer forma, ao lado de outros documentos, são um comprovante de que
esses direitos passaram a influenciar até o pensamento político-religioso
dos muçulmanos.
A
fim de definir mais adequadamente a influência que os direitos humanos
têm exercido na cultura política e jurídica contemporânea, seria
necessário mencionar, ainda, a posição de grupos sociais, como, por
exemplo, partidos políticos e sindicatos, em cujas auto-apresentações
e programas os direitos humanos adquirem, com frequência, especial
relevância. Isso vale de maneira especial para non governamental
organizations (ONGs), que se dedicam prioritariamente a temas
relacionados aos direitos humanos: Amnesty International, Human Rights
Watch, Terre des hommes, Terre des femmes, etc. No que se refere à
proteção internacional dos direitos humanos, ONGs especializadas no assunto
desempenham papel muito importante (cf. Hüfner 1991), ainda mais se
considerarmos que algumas detêm o status de organismo consultivo do
Conselho Econômico e Social das Nações Unidas. Também isso é um fenômeno
relativamente recente na política internacional.
2.
A nova indefinição na compreensão dos direitos humanos
A
quase inquestionável valorização dos direitos humanos na política e
no direito internacional durante as últimas décadas não deve levar à
enganosa conclusão de que hoje realmente eles sejam observados e
respeitados em todo o mundo. Os relatórios anuais da Amnesty
International e de outras organizações semelhantes mostram quadro
diverso: continuam ocorrendo em todos os continentes agressões maciças
aos direitos humanos, como prisões arbitrárias, torturas, condenações
à morte e outras formas cruéis de punição, opressão de dissidentes
políticos, discriminação de minorias, limpezas étnicas, tratamento
desumano de refugiados, racismo e sexismo, exclusão social e miséria.
Considerando essa realidade, surge a suspeita de que, em muitos casos, o
apoio aos direitos humanos não passe de retórica vazia. Até mesmo
ocorre o cinismo de se verem chefes de Estado, cujos regimes são
responsáveis por graves violações dos direitos humanos, assumirem
funções relevantes em organismos das Nações Unidas que se debruçam
sobre o assunto, minando a credibilidade moral dos mesmos.
Depreende-se
que a criação de mecanismos de implementação de controle das
obrigações referentes aos direitos humanos não consegue manter o
mesmo ritmo que a normatização internacional desses direitos. No âmbito
das Nações Unidas, os relatórios dos países membros representam um
dos principais mecanismos de controle. Esses relatórios são
apresentados com determinada periodicidade às comissões formadas para
esse fim, que os publicam junto com sua opinião (cf. Nowak 1993, p.
25 ss.). A eficácia desse sistema de relatórios é bastante restrita,
além de depender do interesse da opinião pública internacional. Tanto
mais importante passa a ser o trabalho das ONGs, que, valendo-se da
formação de opinião pública e de informações, apontam para as
diferenças entre a expectativa e a realidade através de documentação
precisa, contribuindo para a efetividade dos mecanismos de controle
dos direitos humanos (cf. Klein, org., 1996).
A
incapacidade de se conseguir impor a universalização dos direitos
humanos por falta de instrumentação adequada é acrescida da
compreensão cada vez mais difusa de seu significado. Ao que parece, o
relevante papel que os direitos humanos exercem como conceito-chave (Kühnhardt
1987) na ordem política e jurídica contribui para seu desdobramento
cm dialética própria, uma vez que o conceito passa a ter definições
cada vez mais complexas e multiformes. A agregação de valor aos
direitos humanos a ponto de integrarem efetivamente o direito dos povos,
seu significado central para a autocompreensão democrática das
sociedades e sua inclusão na pregação ético-social das igrejas cristãs
e de outras congregações religiosas levam a que, diariamente, ouçamos
formulações diferenciadas e não raras vezes contraditórias nos
mais diferentes níveis. O discurso especializa-se em jurídico, político,
ético e teológico, ficando cada vez mais difícil a harmonização
de todos eles, a ponto de corrermos o risco de perder a unidade na
referência aos direitos humanos. Frequentemente, essa tendência se
agrava pelo fato de haver choques conceituais e de interesses dentro de
cada especialidade. Na medida em que perdemos a unidade da base
normativo dos direitos humanos, corremos o risco de desvanecerem-se os
limites de seu uso consciente: irrefletido e inflacionado emprego para
fins ético-políticos de toda sorte ou estilizada utilização como
promessa pseudo-religiosa transcendem sua validade política e jurídica
(cf. Schwartländer, org., 1979, p. 61). Em resumo, podemos afirmar que,
com o crescente reconhecimento e com a valorização política, os
direitos humanos ameaçam perder seu contorno normativo e de conteúdo.
Possivelmente,
o conceito dos direitos humanas compartilha o mesmo destino de outro
conceito-chave no domínio político e jurídico moderno, qual seja o
conceito de democracia. Conquanto democracia definia uma posição
claramente especial na hierarquia estabelecida pelas constituições até
o século XVIII. somente a partir da Revolução Francesa passou a ser
considerado como principia de legitimização da ordem política e jurídica.
Como consequência, nos debates políticos e jurídicos da atualidade,
democracia não se entende mais como uma forma constitucional legítima
ao lado de outras, por exemplo, monarquia, aristocracia ou as diferentes
variações de um regimen commixtum. A democracia, como princípio de
legitimização da ordem política e jurídica, recebeu, pura e
simplesmente, um significado normativo básico, comparável ao princípio
do bonum commune da tipologia constitucional pré-moderna (cf. Brunner
1979, p. 47 e ss.). Por seu lado, isso tem como consequência o fato de
a tradicional pergunta pelo conteúdo adequado de uma ordem política,
baseada no bonum commune encontrar analogia na hodierna discussão dos
diversos modelos de democracia, ou seja, na concorrência entre
constituições presidencialistas, parlamentaristas, plebiscitaristas e
mistas, todas elas democráticas e, por isso, com pretensões de serem
legítimas. O que torna a compreensão múltipla do conceito democracia
mais complexa ainda é o fato de, ao lado dos diferentes modelos
constitucionais de política, haver diferentes conceitos democráticos
de política e ideologia, a saber, entre outros, liberal, socialista,
republicano, comunista, laico, religioso, emancipacionista, étnico-homogenístico
e universalista, mesmo havendo hoje generalizada aceitação mundial da
democracia, ultrapassando as fronteiras políticas, cultural e de
cosmovisão, não devemos tirar conclusões apressadas de que haja
consenso em questões básicas da ordem política e jurídica. Pelo
contrário: controvérsias políticas fundamentais há, que cem ou
duzentos anos atrás poderiam ser argumentos pró e contra a democracia
e que hoje são manifestações de luta entre concepções concorrentes
(Constituição Federal. Matz 1973, p. 1 e ss).
Depreende-se
que a criação de mecanismos de implementação de controle das obrigações
referentes aos direitos humanos não consegue manter o mesmo ritmo que a
normatização internacional desses direitos. No âmbito das Nações
Unidas, os relatórios dos países membros representam um dos principais
mecanismos de controle. Esses relatórios são apresentados em
determinada periodicidade às comissões formadas para esse fim, que os
publicam junto com sua opinião (Constituição Federal. Nowak 1993,
p.25 ss.). A eficácia desse sistema de relatórios é bastante
restrita, além de depender do interesse da opinião pública
internacional. Tanto mais importante passa a ser o trabalho das ONGs,
que, valendo-se da formação de opinião pública e de informações,
apontam para as diferenças entre a expectativa e a realidade através
de documentação precisa, contribuindo para a efetividade dos
mecanismos de controle dos direitos humanos (Constituição Federal.
Klein, org. 1996).
A incapacidade
de se conseguir impor a universalização dos direitos humanos por falta
de instrumentação adequada é acrescida da compreensão cada vez mais
difusa de seu significado. Ao que parece, o relevante papel que os
direitos humanos exercem como conceito-chave (Kühnhardt 1987) na ordem
política e jurídica contribui para seu desdobramento em dialética própria,
ma vez que o conceito passa a ter definições cada vez mais complexas e
multiformes. A agregação de valor aos direitos humanos a ponto de
integrarem efetivamente o direito dos povos, seu significado central
para a autocompreensão democrática das sociedades e sua inclusão na
pregação ético-social das igrejas cristãs e de outras congregações
religiosas levam a que, diariamente, ouçamos formulações
diferenciadas e não raras vezes contraditórias nos mais diferentes níveis.
O discurso especializa-se em jurídico, político, ético e teológico,
ficando cada vez mais difícil a harmonização de todos eles, a ponto
de corrermos o risco de perder a unidade na referência aos direitos
humanos. Frequentemente, essa tendência se agrava pelo fato de haver
choques conceituais e de interesse dentro de cada especialidade. Na
medida em que perdemos a unidade da base normativa dos direitos humanos,
corremos o risco de desvanecerem-se os limites de seu uso consciente:
irrefletido e inflacionado emprego para fins ético-políticos de toda
sorte ou estilizada utilização como promessa pseudo-religiosa
transcendem sua validade política e jurídica (Constituição Federal.
Schwartländer, org. 1979, p. 61). Em resumo, podemos afirmar que, com o
crescente reconhecimento e com a valorização política, os direitos
humanos ameaçam perder seu contorno normativo e de conteúdo.
Possivelmente,
o conceito dos direitos humanos compartilha o mesmo destino de outro
conceito-chave no domínio político e jurídico moderno, qual seja o
conceito de democracia. Conquanto democracia definia uma posição
claramente especial na hierarquia estabelecida pelas constituições até
o século XVIII, somente a partir da Revolução Francesa passou a ser
considerado como princípio de legitimização da ordem política e jurídica.
Como consequência, nos debates políticos e jurídicos da atualidade,
democracia não se entende mais como uma forma constitucional legítima
ao lado de outras, por exemplo, monarquia, aristocracia ou as diferentes
variações de um regimen commixtum. A democracia, como princípio de
legitimização da ordem política e jurídica, recebeu, pura e
simplesmente, um significado normativo básico, comparável ao princípio
do bonum commune da tipologia constitucional pré-moderna (Constituição
Federal. Brunner 1979, p. 47 e ss.). Por seu lado, isso tem como consequência
o fato de a tradicional pergunta pelo conteúdo adequado de uma ordem
política, baseada no bonum commune encontrar analogia na hodierna
discussão dos diversos modelos de democracia, ou seja, na concorrência
entre constituições presidencialistas, parlamentaristas,
plebiscitaristas e mistas, todas elas democráticas e, por isso, com
pretensões de serem legítimas. O que torna a compreensão múltipla do
conceito democracia mais complexa ainda é o fato de, ao lado dos
diferentes modelos constitucionais de política, haver diferentes
conceitos democráticos de política e ideologia, a saber, entre outros,
liberal, socialista, republicano, laico, religioso, emancipacionista, étnico-homogenístico
e universalista. Mesmo havendo hoje generalizada aceitação mundial da
democracia, ultrapassando as fronteiras política, cultural e de cosmo
visão, não devemos tirar conclusões apressadas de que haja consenso
em questões básicas de ordem política e jurídica. Pelo contrário:
controvérsias políticas fundamentais há, que cem ou duzentos anos atrás
poderiam ser argumentos pró e contra a democracia e que hoje são
manifestações da luta entre concepções concorrentes (Constituição
Federal. Matz 1973, p. 1 e ss.).
Algo semelhante
ocorre em crescente intensidade com os direitos humanos. Seu
reconhecimento mundial como idéia política e jurídica fundamental
produz amplas consequências em todas as áreas da sociedade. As diferenças
políticas, culturais e de cosmovisão emergem na forma de
controvertidas interpretações dos direitos humanos. Assim, ainda há
disputas sobre a relação dos direitos cívico-liberais e econômico-sociais,
embora a maioria dos países tenha subscrito ambos os pactos,
devidamente diferenciados, de 1966. A relação entre direitos humanos e
democracia também causa controvérsia na filosofia política: são os
direitos humanos fundamentalmente uma barreira externa da democracia,
por abranger direitos individuais naturais e pré-políticos, que
deveriam ser protegidos de interferência da política? Ou é assim, que
somente através da política democrática dos direitos humanos ganham
sua forma concreta na história? Há debates, ainda, sobre o sujeito dos
direitos humanos: pode apenas o indivíduo ser portador de garantias de
liberdade na área dos direitos humanos, ou podem também grupos – por
exemplo, minorias culturais – reivindicar esses direitos para si? Há,
finalmente, velha querela em torno da origem histórico-cultural dos
direitos humanos, localizada por vários autores na tradição cristã-ocidental,
por outros na reforma protestante e por terceiros, ainda, no iluminismo
moderno. O esclarecimento dessa questão tem consequências na compreensão
dos direitos humanos, pois, no primeiro caso, abrangeria um cânone de
valores cristão-ocidentais, ao passo que, na última hipótese, seria,
antes talvez, uma contraposição à tradição religiosa. Essas controvérsias
ocidentais sobre as raízes culturais e/ou religiosas dos direitos
humanos têm abrangência maior hoje, pelo fato de terem sido elaboradas
várias declarações islâmicas específicas sobre esses direitos, que
se dizem embasadas no Alcorão e na Suna, enfatizando em seu conteúdo tópicos
políticos e jurídicos específicos.
Fundamentações
e interpretações diversas dos direitos humanos não são importantes
apenas do ponto de vista acadêmico, mas também possuem relevância prática
para a normatização e implementação concreta desses direitos e para
a relação entre eles. Se, de um lado, o direito ao trabalho encontra
dificuldade de reconhecimento na concepção liberal de direitos
humanos, por outro, em concepções socialistas, o direito à
propriedade somente é aceito com fortes restrições. Interpretações
comunitaristas, que derivam os direitos humanos de um contexto histórico-político
e social concreto, tenderão provavelmente à valorização da ordem de
valores éticos tradicionais, em detrimento dos direitos individuais,
contrastando, assim, com o pensamento clássico-liberal individualista.
Contrariamente, o liberalismo de direito individualista corre o risco
de, eventualmente, não interpor obstáculos à discriminação de
minorias culturais, devido à sua (desejada!) cegueira cultural.
Fundamentações exclusivamente cristãs ou islâmicas dos direitos
humanos podem levar a que se tratem minorias religiosas (ou não-religiosas)
no âmbito da tolerância confessional e não pelo princípio da plena
igualdade de direitos. Enquanto isso, concepções laicas podem tender a
colocar atividades religiosas sob suspeita de serem reação política
e, através de interpretação restritiva da liberdade religiosa, tentar
bani-las da vida pública. Interpretações diversas da relação entre
direitos humanos e democracia podem, por exemplo, ter implicações na
determinação de embasamento e limites da liberdade de opinião que, de
acordo com o tradicional pensamento liberal, integram o direito privado
individual, enquanto, na interpretação republicana, também devem
servir de condição para a livre constituição de espaço público do
engajamento civil. Poderíamos continuar citando exemplos de como
aparentes diferenças abstratas da interpretação teórica dos direitos
humanos acobertam conflitos políticos concretos.
Análise mais
apurada do generalizado apoio aos direitos humanos mostra, ainda, que,
muitas vezes, implícita ou explicitamente, esse apoio revela
preconceitos e restrições. Atrás de um unânime sim a esses direitos,
pode esconder-se um mas” que relativiza sua relevância política ou
até os nega, sob certas circunstâncias. Um tal “mas” pode
referir-se a reais ou aparentes obrigações políticas, como a manutenção
da paz interna, à qual se possa dar prioridade sobre a observância dos
direitos individuais, a ponto de os direitos humanos adquirirem validade
apenas como prêmio por uma exitosa concretização da ordem política
interna. A relativização dos direitos políticos por vezes também é
defendida com relação à confrontação de antagônicas opiniões
sobre valores ou até de antagônicos princípios constitucionais, como,
por exemplo, o democrático direito à auto-determinação de um povo.
Ocorre, até, a justificação da restrição de alguns direitos em
nome de outros, como no caso do direito coletivo ao desenvolvimento, ou
do direito à manutenção de características culturais próprias. Sem
uma precisa determinação normativa dos direitos humanos e das relações
entre eles e outros princípios políticos e jurídicos, corremos o
risco de a reivindicação por direitos humanos ser bastante
relativizada por ponderações reais ou implícitas contra princípios
normativos concorrentes, ou até dissolver-se em difusa retórica
sobre o assunto.
Além
desses problemas de conteúdo para a determinação dos direitos
humanos, surgem cada vez mais questões institucionais, decorrentes da
crescente complexidade do debate sobre o assunto. Entre elas está a
questão de como garantir a proteção política e jurídica dos
diversos direitos. As dificuldades surgiram, quando, cm 1948, iniciou-se
a transposição dos direitos contidos na Declaração Universal em
acordos compulsórios de Direito Internacional dos povos. Enquanto na
Declaração arrolam-se conjuntamente direitos liberais, políticos e
sociais, decidiu-se, mais tarde, que a formulação compulsória desses
direitos para os povos dar-se-ia em duas convenções distintas, ou
seja, nos dois pactos de 1966, um sobre direitos civis e políticos e
outro sobre direitos econômicos, sociais e culturais (cf. Lüthke
1993). Desde os anos 70, demandas inovadoras têm sido feitas dentro dos
debates acerca dos direitos humanos, especialmente no que se refere
ao direito ao desenvolvimento. Esse direito é o exemplo mais claro do
assim chamado direito de terceira geração, complementando os das
gerações anteriores, quais sejam o cívico-liberal e o econômico-social
(cf. Riedel 1989). No documento de encerramento da Conferência
Mundial sobre Direitos Humanos, ocorrida em 1993, em Viena, o há muito
discutido direito ao desenvolvimento foi reconhecido como “parte
integrante dos direitos humanos fundamentais”. No entanto, continua
em debate como promotores, conteúdo e fiadores desse direito possam ser
definidos e compulsoriamente institucionalizados de forma concreta do
ponto de vista político e jurídico.
Percebemos
que hoje os direitos humanos são um conceito-chave político e jurídico,
que teve agregada complexidade, tanto em conteúdo como em
institucionalidade (cf. Brugger 1989). De um lado, essa complexidade é
expressão do desenvolvimento progressista da discussão sobre
direitos humanos, na qual, hoje, tomam parte diversas posições políticas
e de cosmovisão e que gerou uma série de instrumentos políticos e jurídicos,
cuja compreensão fica restrita a alguns especialistas. Por outro lado,
com essa complexidade cresce, também, o perigo de que a demanda
normativa do pensamento sobre direitos humanos se perca num emaranhado
de posicionamentos políticos e ideológicos e que a proteção jurídica
e institucional desses direitos seja solapada pelo incremento das exigências.
A fim de antepor-se a essa ameaça, é necessário assegurar
criticamente as idéias geradoras de consenso e extrair delas o
embasamento e os limites para as demandas filosóficas, de maneira a
dar suporte à complexidade alcançada. Para tanto, a presente pesquisa
deseja dar uma contribuição.
3.
O pluralismo cultural como desafio à universalidade dos direitos
humanos
O
pluralismo cultural, já diversas vezes mencionado, constitui-se em
aspecto essencial no novo emaranhado do debate acerca dos direitos
humanos. Neste estudo, daremos atenção especial a este assunto,
destacando sobretudo desdobramentos da interpretação islâmica dos
mencionados direitos.2 Referente à moderna tendência de
caracterizar a cultura e suas diferenças em um novo paradigma de análise
de conflito político tanto interno como externo (cf. Huntington 1993),
é necessário destacar, inicialmente, que não é manifestação
totalmente nova a controvérsia intercultural sobre direitos humanos. Não
surgiu com o final da guerra fria, em 1989, mas deve ser quase tão
velha como a discussão sobre os próprios direitos humanos. Por
exemplo, já na interpretação de Hegel da Revolução Francesa
surgem categorias culturalísticas, emanadas do espírito católico-romano
dos povos, aos quais contrapõe a liberdade espiritual protestante dos
alemães. Na preleção sobre a filosofia da história, Hegel afirma:
“A pura cordialidade da nação germânica foi o solo do qual brotou a
libertação do espírito; as nações românicas, todavia, no íntimo
de sua alma, na consciência de seu espírito, mantiveram a bipolaridade:
originaram-se da miscigenação do sangue romano e germânico e ainda
preservam esta heterogeneidade dentro de si” (Hegel 1970, p. 501).
Ainda segundo este pensador, já que, sem a passagem pela reforma, nem a
liberdade espiritual nem a política poderiam vingar, por isso, assim
conclui, ‘com a religião católica não é possível a elaboração
de uma constituição razoável” (ob. cit., p. 531), pela qual, ‘o
mundo românico manteve indissolúvel a servidão religiosa â falta de
liberdade política”, apesar da Revolução Francesa (ob. cit., p.
535), recaindo na condição de poder despótico pré-revolucionário.
Contra
essa penetrante associação dos direitos humanos à Revolução
Francesa, Geog Jellinek contrapôs, ao término do século XIX, a tese
de que a declaração de direitos humanos dessa revolução tenha sido
baseada no Virginia Bill of Rights, de 1776, e em outros documentos
americanos.3 Dessa forma, facilitou-se para a opinião pública
alemã a adesão aos direitos humanos que, até então, eram vistos não
só como manifestação do radicalismo jacobino, mas também como
parte do repertório cultural alheio, do pensamento francês (cf. Huber/Tödt
1977, p. 52). Embora já tenha sido revista a tese de que a liberdade
religiosa seja historicamente o direito inato do ser humano, baseado na
doutrina reformadora da liberdade dos cristãos, Jellinek afirmava serem
os direitos humanos parte da herança cultural protestante. “A idéia
de fixar em lei direitos individuais invioláveis, inerentes e sagrados,
tem origem religiosa, não política. O que até aqui se considerava
obra da Revolução é, na realidade, fruto da Reforma e de suas
lutas” (citado por Schnur, org., 1974, p. 53 e seg.). A polêmica réplica
do francês Emile Boutmy, de que Jellinek desejava repassar a idéia de
que “a mais destacada manifestação do espírito românico no século
XVIII tenha origem alemã’ (ob. cit., p. 79), foi rebatida pelo próprio
JeIlinek, ao destacar que a reforma era não só alemã, mas — através
de Calvino — também uma conquista francesa (ob. cit., p.1 13).
Interessante observar, ainda, que a controvérsia entre Jellinek e
Boutmy constitui-se em exemplo de como a disputa política sobre
direitos humanos, há cem anos atrás, já podia descambar, por vezes,
em disputas sobre herança intercultural.
Desde
meados do século XX cresce tendência, dentro da Igreja Católica, de
contrapor, tanto à interpretação iluminista como à idéia de origem
protestante dos direitos humanos, o pensamento tipicamente católico
de derivá-los do direito natural escolástico, de maneira especial
dos ensinamentos de Tomás de Aquino (cf. Merks 1981). Também a
interpretação católica dos direitos humanos contém algumas vezes,
portanto, uma componente de disputa cultural, pois destaca sobremodo
elementos da continuidade da tradição católica do direito natural,
procurando solapar ou restringir, assim, pretensões monopolistas do
pensamento secular ou protestante.
A
discussão intercultural sobre direitos humanos tem tradição e
remonta, pelo menos, ao século XIX. Com a fixação desses direitos na
Carta das Nações Unidas, a questão da validade intercultural ganhou
relevância, pois ampliou-se seu horizonte além da tradição cultural
e religiosa européia e norte-americana. Coloca-se, agora, o problema
de torná-los possíveis e harmônicos com a tradição islâmica,
budista, confucionista e outras.
Um
pólo dessa controvérsia é formado por posições que dão relevância
ao cultural, posicionando-se de maneira cética ou até contrária aos
direitos humanos. Pouco antes da aprovação da Declaração Universal
dos Direitos Humanos, foram apresentadas dúvidas do ponto de vista da
relativização cultural sobre a adequação de se normatizarem padrões
jurídicos para todo o Mundo através de documento da American
AnthropologicaI Association (1947), que chamava a atenção para a
contingência cultural e a intransponível particularização de
normas orientadoras. Assim, foi criado um lei-motiv da crítica aos
direitos humanos, o qual, com variações, emerge sempre de novo. Por
exemplo, Lévi-Strauss, em texto elaborado em 1951 para a UNESCO, afirma
a diversidade cultural dos diversos povos como argumento contra a
propalada igualdade básica de todos as pessoas: “.. .a simples
proclamação da igualdade natural de todas as pessoas e da
fraternidade, que deveria uni-las sem observância de raça e cultura,
é intelectualmente frustrante, pois atropela as diferenças factuais
que se impõem pela observação
(Lévi-Strauss 1996, p. 177). Não é na ‘humanidade abstrata”,
mas nas ‘culturas tradicionais’ que ocorre a prática humana (ob.
cit.). Segundo Lévi-Strauss, reconhecer a multiplicidade de culturas
significa abrir mão de todo o evolucionismo, pelo qual as diversas
culturas podem ser hierarquizadas como etapas de um desenvolvimento histórico
de toda a humanidade e, talvez, possam ser degradadas a objeto de uma
política desenvolvimentista de missão civilizatória, na qual,
aparentemente, vê também a aplicabilidade dos direitos humanos
universais (cf. ob. cit., p. 178). A restrição própria da perspectiva
relativístico-cultural a um imperialismo cultural baseado nos
direitos humanos é mais solidamente apresentada por Adamantia PoIlis e
Peter Schwab, de acordo com os quais esses direitos não passam de ‘a
Western construct with limited applicability’ (um constructo ocidental
com limitada aplicabilidade) (1979, p. 1 e ss.). Ainda de acordo com
sua tese, os direitos humanos são expressão do pensamento
individualista e antropocêntrico ocidental e não podem, em princípio,
ser transferidos para culturas e religiões não-ocidentais, baseadas
em tradições de orientação comunitária.
Complementarmente
à repulsa aos direitos humanos por parte da corrente de relativização
cultural, outros realçam o universalismo desses direitos contra possíveis
questionamentos políticos de um pluralismo cultural. “Voltaire
contra Herder’, generaliza Alain Finkielkraut esse conflito básico
que, em sua opinião, de momento está em andamento sobre o conceito
cultura (1989, p. 16). O conceito iluminista de cultura — que a
considera como a liberdade de pensar e agir —, Finkielkraut o vê ameaçado
por um culturalismo romântico que, à custa da liberdade, quer prender
as pessoas a posturas de valor e a papéis preestabelecidos. A
identitidade cultural, apregoada também por multiculturalistas de
esquerda e terceiro-mundistas, representa, em sua opinião, nada mais
que uma variação moderna ou pós-moderna do espírito popular (Volksgeist)
de Herder: “Portanto, Herder é onipresente. Agora, quando se superam
os tabus do pós-guerra, ele triunfa irrestritamente
(ob. cit., p. 97). Quando os direitos humanos pareciam ter
trazido a libertação do indivíduo “às custas de sua cultura’
(ob. cit., p. 112), na opinião de Finkielkraut, o pluralismo cultural pós-moderno
visa a encaixar as pessoas em formas premoldadas e, consequentemente, a
escravizá-las. Para de há uma alternativa clara: “ou os direitos
humanos ou as pessoas são normatizados” (ob. cit. p. 111).
Finkielkraut formula, assim, a antítese exata à crítica da relativização
cultural dos direitos humanos e, por seu lado, coloca a tese da
diferença cultural ou da identidade cultural sob suspeita de
autoritarismo antiiluminista.
E
verdade que há vozes que querem omitir-se sobre esse posicionamento
alternativo, buscando uma mediação entre o universalismo e o
pluralismo cultural. Em Alison Dundes Renteln essa mediação ganha
forma de acordo. Ela deseja manter o conceito do universalismo cultural
dos direitos humanos, preenchendo-o ao mesmo tempo com algo novo com
base intercultural. Consegue
-
fazê-lo, valendo-se do auxílio de pesquisas empírico-antropológicas
sobre concordâncias factuais, ou, por assim dizer, de denominadores
comuns na orientação por valores das diferentes culturas mundiais (cf.
Dundes Renteln 1990, p. 110). No entanto, o consenso normativo global
alcançado dessa forma fica muito aquém das normas dos direitos humanos
válidas no momento. Reduzido a um consenso mínimo intercultural, a
proposta de universalismo dos direitos humanos de Dundes Renteln não
vai muito além da irrestrita negação do genocídio por todas as
culturas (cf. ob. cit., p. 136). Por vezes Abdullahi Na-Naim, líder de
facção islâmica liberal de direita, cita esse princípio. Na
tentativa de intermediar o universalismo dos direitos humanos e o
pluralismo de culturas, Na-Naim defende um etnocentrismo esclarecido,
que tolera os direitos à diferença (1992, p. 24). Concretamente,
entre outras coisas, isso tem por consequência que Na-Naim se
preserva ao derivar de sua interpretação do Alcorão noções de
direito, de estigmatizar as penas de amputação como prática cruel e
contrária aos direitos humanos. Por outro lado, ele almeja a adoção
de condições realmente restritivas para a aplicação dessas penas,
chegando a criticar rigorosamente alguns países islâmicos Cd. ob.
cit., p. 35 e ss.).
4.
O iluminismo de Kant e o discurso normativo intercultural
Em
minha própria tentativa de assegurar a universalidade intercultural dos
direitos humanos, considero o pluralismo cultural como sério desafio,
que deve motivar a precisa definição desses direitos. Não me
preocupo com a dicotomia “Voltaire versus Herder”, nem de chegar a
um acordo entre universalismo e relativismo, mas, sim, de alcançar
uma consciência critica na base normativa e nos limites normativos dos
direitos humanos, tendo em vista a comprovada multiplicidade cultural de
interpretações e orientações. Do debate intercultural, destaco três
questões. Primeiramente, surge a pergunta pela origem ocidental dos
direitos humanos: estão eles atrelados necessariamente às condições
culturais da tradição ocidental ou a um racionalismo ocidental específico,
por terem surgido na Europa e na América do Norte? Consequência desse
pensamento poderia ser que sua validade universal seja ou ilusória ou
ligada à tendência imperialista-cultural de negar a multiplicidade
cultural. A segunda questão refere-se à acentuada valorização da
liberdade como direito individual: devem os direitos humanos ser
entendidos como expressão de uma imagem humana individualista que,
novamente, está carregada de traços específicos do ocidente?
Finalmente, a terceira pergunta relaciona-se com o fato de que os
direitos humanos podem ser chamados de antropocêntricos, visto que somente
o ser humano é o sujeito dos direitos: uma cosmovisão antropocêntrica,
possivelmente de cunho ocidental e que se oponha às tradições teocêntrica
ou cosmocêntrica, é condição para a consecução desses direitos?
Antes
de tematizar essas três perguntas na segunda parte deste trabalho,
quero analisar, na primeira parte, as definições filosófico-legais
dos direitos humanos. Para tanto, fundamento-me, principalmente, no
iluminismo kantiano. Não se cogita em uma exegese dos textos
de Kant, nem numa escola filosófica kantiana, que teria visão filosófica
muito limitada para as restrições doutrinárias, que por vezes também
ocorrem na filosofia kantiana. O que se deseja é tomar a filosofia
kantiana como base para um esforço de análise autocrítica, na qual
a razão volta-se sistematicamente sobre si própria, a fim de
esclarecer da forma mais precisa possível o fundamento e os limites da
validade científica e/ou normativa. Dessa forma, Kant transfere
concisamente as idéias básicas do modernismo para esse termo, qual
seja, a autonomia moral da pessoa. Essa se coloca como exigência por
maioridade política e jurídica, assumindo a forma do direito à
liberdade e à participação republicana de auto-gestão. Ao mesmo
tempo, no entanto, Kant destrói completamente a idéia de uma ratio
absoluta e auto-constituinte, que também surgia com frequência na
esteira do iluminismo moderno. O pensamento autocrítica apresentado por
Kant funda-se no pensamento socrático, que procura sistematizar
aquilo que as pessoas há muito já conheciam — se possível, sem
filosofar.
O
filósofo da revolução copernicana, cuja ética e doutrinação jurídica
refletiu conceitualmente a mudança normativa do modernismo, possibilita
uma continuidade na tradição do pensamento ético e jurídico. Essa
perspectiva nem sempre é observada nas análises contemporâneas das
obras de Kant. Ocorre que na filosofia kantiana os velhos temas da ética
e da filosofia jurídica são reencontrados de forma iluminista, ou
seja, a incondicionalidade da afirmação consciente, a
indisponibilidade do direito ou, também, a doutrina do bem supremo,
na qual se unem a moralidade e sua correspondente bem-aventurança.
Questões metafísicas e religioso-filosóficas referentes à
imortalidade da alma e à existência de Deus têm no pensamento
iluminista de Kant seu devido lugar, o que leva o pensamento pós-metafísico
contemporâneo, sustentado no universalismo de Kant, a restringir
significativamente a filosofia deste.
Justamente
nessa perspectiva dupla, de modernidade revolucionária e de
esclarecimento socrático do já conhecido, parece-me residir a
utilidade do filosofar kantiano para a compreensão intercultural dos
direitos humanos. Isso pode surpreender, num primeiro momento, pois a
interculturalidade como tal não foi abordada por Kant. Um dos problemas
principais do colóquio intercultural sobre os direitos humanos, e que
frequentemente leva à interrupção do diálogo, consiste na compreensão
muito restrita do iluminismo moderno que, em discussão antitética
abstrata, num primeiro momento, permanece insensível até para o pensamento
ético-religioso da próprio tradição, sem falar nos pontos de vista
de outras tradições. Como resultado, a comunicação esbarra, então,
em dicotomias aparentemente intransponíveis, tais como, por exemplo:
possíveis confrontações sobre direito divino e direito humano, tradição
e movimento iluminista, lealdade e emancipação, indivíduo e
comunidade, direito e dever, teocracia e secularismo. O filosofar com
o espírito do pensamento de Kant afasta criticamente essas dícotomias
através do esclarecimento reflexivo desses conceitos. Sem
simplesmente harmonizar as contradições existentes, contribui não só
para conciliar tradição (próprio) e iluminismo, mas abrir também
espaço categorial para uma discussão intercultural sobre os direitos
humanos, sem abrir mão da característica maior do iluminismo: sua
sagacidade.
A
perspectiva iluminista dos direitos humanos opõe-se criticamente a um
culturalismo, que elege a figura deturpada pela história da
coletividade política, cultural ou religiosa como parâmetro normativo
máximo e, a partir disso, restringe a liberdade política e jurídica
das pessoas, junto com sua liberdade criativa. Pode ser considerado
exagero impetrar, junto com Finkielkraut, recurso contra a identidade
cultural per se sob suspeita de parecer contra-iluminismo. Mas o certo
é que a evocação da autenticidade cultural pode, facilmente, ser
transformada em instrumento autoritário e político de manutenção
da ordem, de forma que se aconselha a vigilância. Depois que, nos últimos
anos, o conceito soberania do Estado perdeu parte de seu conteúdo para
justificar a defesa da intervenção nos direitos humanos, corre-se o
risco de elevar a identidade cultural como substitutivo dessa perda.
Esse aspecto patenteou-se durante os preparativos da Conferência
Mundial de Viena, em 1993, quando regimes ditatoriais, como os da Indonésia,
Myanmar e Irã apresentaram argumentos de relativismo cultural para
justificar o abrandamento da validade internacional de normas jurídicas
relativas aos direitos humanos (cf. Deile 1993). A fim de não deixar
cair em demasiada abstração a discussão sobre pluralismo cultural e
identidade cultural, devemos verificar quem define ou propaga
politicamente certas identidades culturais, com quais interesses e com
qual legitimização. Muitas vezes vamos perceber que, consideradas as
diferenças culturais, a restrição feita ao imperialismo cultural dos
direitos humanos seja “pouco mais que um golpe de misericórdia dado
pelas elites dominantes do período pós-colonial, na busca da legitimação
de estratégias adequadas” (Kössler/Melber 1993, p. 115).
Abstraindo
de uma crítica ideológica concreta, cabe, de maneira geral, libertar o
conceito cultura de leituras tendenciosas. A cultura não se manifesta
em áreas culturais fechadas, ou, até, em mundos culturais que possam
ser cartografados geográfica ou demograficamente. Dessa hipostação
nem Clifford Geertz consegue se liberar, ao atribuir determinado caráter
a culturas e civilizações que, na sua essência, seria imutável:
“Talvez valha para civilizações o mesmo que para pessoas, ou seja,
que os traços básicos do caráter, a estrutura das possibilidades no
seio das quais sempre se movimentam, sejam imutáveis por causa de uma
fase formadora, apesar das transformações por que possam passar
posteriormente” (Geerta 1991, p. 28). Se esse pressuposto de
imutabilidade de caráter das culturas se aliar à idéia de que cada
ser humano pertence fatalmente a sua própria cultura, surge como
resultado um culturalismo contrário ao iluminismo, que, em casos
extremos, pode servir de base para novas formas de apartheid ou racismo
(cf. van Hensbroek 1991). Aziz AI-Azmeh endossa a tendência
antiiluminista dessa interpretação de culturalismo ao escrever:
“Este culturalismo considera processos históricos como
desenvolvimento natural das culturas, consideradas como sujeitos
absolutos dentro de seus bastiões de isolamento, retirando-se da
universalidade da razão crítica. A própria razão passa a ser
atributo específico de alguma cultura, vivendo e multiplicando-se
dentro dela’ (AI-Azmeh 1996, p. 10).
Conquanto
os direitos humanos queiram propiciar ã liberdade das pessoas
discurso razoável e luta política, necessariamente incorrem em
contradição em face de conceitos fechados de identidade cultural. Por
isso, é de se concordar com Rhoda Howard, quando ela formula de maneira
específica: “Human rights may sometimes require cultural rupture”
(Direitos humanos talvez devam, por vezes, requerer ruptura cultural)
(1995, p. 9). Esse caráter crítico-cultural do pensamento iluminista
de direitos humanos também entra em conflito com conclamações
demasiado inocentes por tolerância, que almejam criar coexistência
multicultural com base em reconhecimento despreconceituoso de diferentes
orientações de valores culturais, ou que almejam reduzir o necessário
consenso normativo intercultural a um simples acordo entre posicionamentos
normativos factuais existentes.
Por
isso, não parece possível alcançarmos definitivo irmanamento entre
os direitos humanos e o pluralismo cultural e, talvez, nem seja desejável,
porque em tal situação perderíamos a sagacidade do iluminismo. Algo
diferente ocorre com relação à intermediação crítica entre
direitos humanos e as diferentes tradições culturais, através das
quais poderia ficar claro que direitos humanos poderiam vincular-se às
necessidades humanas das mais diversas (se não todas) tradições
culturais e religiosas, abstraindo de sua natureza específica como
ethos moderno de liberdade político-jurídica. A constatação de que
as pessoas das mais variadas tradições culturais e religiosas
conseguem identificar nos direitos humanos, em roupagem moderna, idéias
normativas de sua própria tradição, comprova que se pode superar não
só a idéia de que esses direitos sejam uma padronização caricatural
universal, com uma cultura uniforme de origem ocidental e, portanto,
imperialista. Ao abrirem-se múltiplas possibilidades de leitura dos
assuntos relacionados aos direitos humanos, com manutenção de sua
validade estrutural política e jurídica, introduzem-se,
concomitantemente, novos impulsos iluministas para uma adequada
compreensão desses direitos. Assim, Ute Gerhard acredita que,
analogamente à crítica feminista aos preconceitos e às restrições
dentro do atual discurso androcêntrico dos direitos humanos, também a
crítica intercultural ao universalismo desses direitos possa levar a
desmascarar cobranças e preconceitos particularísticos e, talvez até,
a superá-los (cf. Gerhard 1994, p. 71).
Em
função da universalidade dos direitos humanos, o debate
intercultural é inevitável. A fim de evitar o perigo da banalização
culturalista do conceito do intercultural, é bom entendê-lo da maneira
mais ampla possível. A interculturalidade não se refere a áreas
culturais dentro de linhas demarcatórias preestabelecidas. Muito pelo
contrário. Em última análise, o prefixo inter-refere-se àquilo que
está dentro do entre das culturas, uma vez que cultura só pode
desenvolver-se no encontro com outra. Cada cultura é uma miscigenação”,
assinala Norbert Brieskorn com razão (1993, p. 658). A idéia de uma
cultura voltada completamente para si mesma seria tão hipotética e
abstrata como a de uma cultura mundial única. Helmuth Plessner destacou
que cultura surge, desenvolve-se e modifica-se permanentemente na dialética
entre o familiar e o desconhecido. Nessa dialética, o desconhecido do
outro surge, ao mesmo tempo, aos nossos olhos como o último
desconhecimento de nós próprios, de forma que a diferença entre próprio
e outro, embora não desapareça, sempre de novo é rompida (cf.
Plessner 1981, p. 197 e seg.). Por isso, familiaridade e
desconhecimento sempre estão intensamente entrelaçados (cf.
Waldenfels 1997, p. 66 e ss.). Pode haver diferentes graus de contato
com o desconhecido. O sistema político do Japão pode parecer mais
estranho a um observador alemão que o sistema francês; o diálogo de
uma protestante alemã com uma descendente muçulmana alemã ou com
uma adepta da religião Baha’i continua sendo menos óbvio e tem menos
tradição na Europa que o movimento ecumênico católico-protestante;
as estruturas familiares do Egito parecem menos familiares ao europeu
do norte que as grandes famílias da Sicília. Mesmo assim, para haver
intercâmbio cultural, a percepção das diferenças não deve
banalizar-se em dicotomias entre mundos culturais fechados —Oriente e
Ocidente, Europa e Ásia, etc. —, com a consequente negativa
concepcional ao espaço para o intercâmbio comunicativo e o desafio mútuo.
Algo
semelhante vale igualmente para o discurso intercultural sobre os
direitos humanos. E inegável que as pessoas falem idiomas diferentes,
que se refiram a outras experiências históricas e que expressem sua
expectativa por honra e direito através de múltiplos símbolos
religiosos e culturais. Mesmo assim, a diferença só pode tornar-se
produtiva se ela for transmitida comunicativamente. Por isso, o que
vale é o poder de convencimento dos argumentos e dos pontos de vista básicos
contidos neles. Dessa perspectiva, discurso normativo intercultural não
se contrapõe a esclarecimento, também não a complementariedade de
ambos, mas, sim, sua perspicaz continuidade. A disposição para autocrítica,
crítica e justificação comunicativa, colocadas como condição para o
entendimento, implica também estar disposto a superar diferenças
culturais, religiosas e de cosmovisão. Representa levá-las a sério,
sem se fixar em dicotomia estéril do próprio e do outro.
Este
trabalho abarca duas partes, cada uma dividida em três capítulos.
O
pensamento da primeira parte (Capítulos II a IV) é dedicado ao ethos
da liberdade política, no qual se embasam os modernos direitos
humanos. A ambivalência do moderno será destacada em alguns aspectos
como justificativa para a não-colocação desses direitos em uma
ideologia progressista de ponta. Os direitos humanos integram essa
indissolúvel ambivalência, pois, de um lado, dão resposta a crises e
injustiças modernas e, por outro, querem que se reconheça um ethos
de liberdade político e jurídico que, em sua pretensão por
validade, também se considera especificamente moderno (II). A estrutura
do ethos de liberdade será, então, melhor definido com base na
filosofia de Kant. No centro está o entendimento moderno de dignidade
humana, como Kant a define na autonomia moral e a relaciona
normativamente à liberdade e igualdade quanto a direitos humanos (III).
Como conclusão, será estudada a implicação do princípio de liberdade
solidária nos direitos humanos dentro de uma pluralidade de diversos
direitos humanos. Isso ocorre tanto no referente aos conteúdos quanto
aos aspectos jurídicos e institucionais (IV).
A segunda parte
(Capítulos V a VII) dedica-se às possibilidades de entendimento
intercultural no que diz respeito aos direitos humanos. A princípio,
cabe esclarecer a relação entre esses direitos e a cultura ocidental.
Contrapomos a crença de que os direitos humanos provêm
exclusivamente da tradição ocidental e da interpretação moderna, que
os entende abstratos e sem tradição, com a afirmação de que o
desenvolvimento dos direitos humanos ocidentais pode servir
exemplarmente de possibilidade interpretativa para análogas mediações
críticas da idéia de direitos humanos em outras tradições
culturais ou religiosas, utilizando, para tanto, a posição do
islamismo com relação aos direitos humanos como exemplo.
Posteriormente, coloca-se em debate a relação entre indivíduo e
comunidade. Aqui, deve ficar claro que a reivindicação
emancipacionista dos direitos humanos não pode ser colocada em
igualdade com o individualismo, mas que também possibilita o livre
comunitarismo (VI). Finalmente, abordamos o problema, que no momento está
em franco debate dentro do islamismo, sobre a possibilidade e a
maneira de como harmonizar a secularização do moderno direito antropocêntrico
com a necessidade de obediência ao direito divino. Tendo essa questão
como exemplo e, com a definição crítica dos conceitos secularização
e antropocentismo. queremos demonstrar como alguns empecilhos ao
entendimento podem ser removidos (VIl). As ponderações concluem com
breve resumo (VIII).
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