DIREITOS
HUMANOS E MEDO
Marilena Chaui
É
interessante observar que, do ponto de vista histórico, houve
coincidência entre a mutação sofrida pelo conceito e pelo sentimento do
medo e a discussão filosófico-poética sobre os direitos do homem.
De
fato, nas sociedades aristocráticas, o medo sempre foi articulado à
covardia, diante dos perigos da guerra, e contraposto à coragem, como
virtude própria dos guerreiros, ou seja, da aristocracia. O medo, vício
dos covardes, aparecia como algo excepcional e vergonhoso entre os
aristocratas, mas como algo natural e essencial à plebe. O advento da
sociedade burguesa introduz a mudança dos valores éticos e sociais,
transformando também a maneira de definir e de localizar o medo, que
deixa de ser o vício característico da plebe para tornar-se um
sentimento comum a todos os homens.
A
distinção anterior entre virtudes e vícios dos grandes e virtudes e
vícios dos pequenos vai se apagando e surge em seu lugar a imagem dos
indivíduos iguais, sujeitos por natureza às mesmas paixões, capazes dos
mesmos vícios e virtudes. Isso é compreensível numa sociedade onde a
divisão social tende a ser ocultada pela imagem da igualdade natural de
seus membros e onde a realidade passa a alojar-se não mais na figura da
comunidade, mas na do indivíduo.
Tal
como Descartes universaliza a razão, ao afirmar que “o bom senso é a
coisa melhor”, a sociedade burguesa faz o universalismo alcançar as
paixões, os vícios e as virtudes, resultando na afirmação de que, por
natureza, todos os homens estão sujeitos ao medo. Mas não é só isto. A
sociedade moderna, sabemos, nasce quando desaparece tanto a imagem quanto
a realidade da comunidade. Uma comunidade pressupõe e afirma: 1) sua
indivisão interna; 2) a comunhão de destino, idéias, crenças e
valores; 3) a identificação de todos os seus membros com a figura do
governante encarnando em sua pessoa o ser mesmo da comunidade que nele se
espelha, donde a idéia de que as virtudes e os vícios da comunidade
dependem inteiramente das qualidades morais do governante, que é espelho
e guia da comunidade; 4) a indivisão, figurada pelo governante e pela
comunidade de destino, fazendo com que se creia numa na existência de uma
ordem comunitária natural, fixa, imutável, estabelecida não pelos
próprios homens e sim por uma força divina, sábia e transcendente que
decidiu para e pelos homens qual a melhor forma de sua existência em
comum; 5) o poder assegurado pela fonte divina externa, que, ao garantir a
ordem, define o lugar fixo de cada membro da coletividade, designa sua
função e sua virtude própria e estabelece a hierarquia interna à
comunidade, hierarquia que é encarnada como realização da vontade
divina, como algo natural e necessário e que homem algum pode alterar; 6)
a lei concebida como doação à comunidade por Deus, que usa o governante
como intermediário, isto é, o governante ou o detentor do poder é
aquele que, em nome da divindade, faz a lei segundo a sua vontade
própria, ou como diziam os juristas medievais: “o que apraz ao rei tem
força de lei”. A marca da majestade do poder está nesse fazer a lei e
em julgar a todos segundo a lei, mas ele próprio permanecendo acima e
fora da lei, não podendo ser julgado por ninguém. Assim, uma comunidade
indivisa, encarnada na vontade e na razão da majestade do governante,
desconhece a figura dos indivíduos, só conhecendo os seres humanos pelo
lugar e pela função que ocupam no interior da ordem comunitária a
serviço do bem comum, pois não há bem individual, não havendo
distinção entre o público e o privado. A comunidade é uma realidade
organizada, divinizada, naturalizada e praticamente imóvel ou imutável,
dirigida por forças que lhe são transcendentes.
É
isso que desaparece com o advento da sociedade moderna ou burguesa. A
marca própria da sociedade é que sua referência não é mais a ordem
divina ou a ordem natural, mas a imagem da indivisão, nem a hierarquia de
cargos, lugares e funções, nem a pressuposição de um bem comum, nem a
coletividade vista como uma grande família cujo pai é o governante,
representante do poder do Pai divino. A sua referência é o indivíduo
como átomo isolado, tornando-se necessário saber como os indivíduos
isolados vieram a viver em comum, isto é, de como surge a sociabilidade
(donde o desenvolvimento das teorias modernas do contrato social e do
pacto social).
A
indivisão como referência da sociedade é substituída pela divisão
interna ou, como diz Maquiavel em O Príncipe, toda cidade é constituída
pela divisão em dois desejos opostos: o desejo dos grandes de comandar e
oprimir e o desejo do povo de não ser oprimido nem comandado. O mais
importante, porém, é que a sociedade já não pode explicar sua origem,
sua força, a existência das desigualdades e dos conflitos referindo-se a
uma força externa transcendente que os teria produzido. Ou seja, a marca
fundamental da sociedade moderna está em que não pode colocar sua origem
na vontade de Deus, mas é forçada a reconhecer que as relações
sociais, o poder e a lei são produzidos pela própria sociedade ou pela
própria ação social dos homens divididos, seja como indivíduos
isolados, seja como indivíduos separados em grandes opressores e o povo
que não deseja ser oprimido.
No
contexto da passagem da comunidade à sociedade compreendemos porque o
medo muda de sentido e por que será um motivo central na constituição
do pensamento político moderno. De fato, enquanto existia a comunidade,
os homens dispunham de referências para pensar sua realidade como algo
necessário, bom, imutável, e também havia referências para os seus
medos: não precisavam temer mudanças sociais, mas tinham o medo da
existência de forças maléficas que quisessem mudar a comunidade, isto
é, os homens temiam o tirano e o diabo, aliás, consideravam o diabo um
tirano e o tirano, um homem diabólico. Além do medo do tirano e do
diabo, os poderes perversos, os homens também tinham medo de Deus, a
força que criou e que conserva a comunidade e os próprios homens. Não
é casual, por exemplo, que o cristianismo defina o ateu como aquele que
não tem o temor de Deus. Poder-se-ia dizer que, enquanto existia a
comunidade, os medos eram muito precisos: tinha-se medo do fim da
comunidade por obra do tirano e do demônio; de perder os favores de Deus;
de perder a alma na eternidade; dos detentores do poder político e
teológico, já que estes podiam julgar alguém culpado sem direito à
defesa, e se aquele que fosse julgado culpado pelos representantes de Deus
na comunidade estava condenado; enfim de tudo quanto pudesse surgir como
obra do inimigo de Deus, isto é, do demônio – feiticeiras, magos,
bruxos, hereges, ateus, livre-pensadores, tiranos, pestes, fomes,
cataclismas.
O
que muda com o advento da sociedade? Agora, porque o social, o político e
a história são percebidos como obras dos próprios homens, verifica-se
também que as relações sociais não foram ordenadas por Deus ou pelo
Diabo (não nos esqueçamos de que, para Santo Agostinho, a comunidade dos
Justos – Igreja – é ordenada por Deus, enquanto a cidade dos injustos
é ordenada pelo Diabo, pelo pecado, por Caim), mas nasceram da ação
social de grupos divididos e sobretudo d e indivíduos isolados. Assim, ao
lado do medo de Deus e do Diabo e do medo à Natureza, os homens passam a
ter um medo fundamental: têm medo uns dos outros enquanto seres humanos.
Donde as teorias políticas modernas do “homem lobo do homem” e da “guerra
de todos contra todos”. O medo, que antes era teólogico-político,
torna-se medo social-político e medo do humano ou como dizia Riobaldo:
“Tenho medo de homem humano”.
Não
só isto. Antes, o tempo quase era imperceptível, não só porque as
mudanças ocorriam muito lentamente, mas também e sobretudo porque a
história era interpretada teologicamente, isto é, o curso dos
acontecimentos era visto como seguindo um percurso pré-ordenado,
estabelecido desde toda a eternidade pela providência divina. Dessa
maneira, o aspecto natural, necessário, orgânico e imutável da
comunidade, a lentidão das mudanças e a teologia da história
providencial tornaram o tempo pouco perceptível e pouco temível. Agora,
porque a vida social e política é percebida como resultando das ações
humanas e porque a marca fundamental do modo de produção capitalista é
a velocidade temporal, a rapidez das mudanças e a perda contínua de
referenciais fixos, o tempo e a história também provocam medo. Assim,
desde a Renascença, ganha maior importância a idéia de Fortuna com a
sua roda, representação do tempo como aquilo que altera
inexplicavelmente a vida de cada um e da sociedade. Fortuna, como dissera
Boécio, é o nome da inconstância e do inesperado; e, conforme
Maquiavel, é o nome que damos à adversidade e à nossa própria
fraqueza. Apresenta-se também o esforço da ideologia burguesa para
recuperar, de maneira laica, a teologia da história providencial, isto
é, a ideologia do bom tempo, a ideologia do progresso.
O
surgimento da modernidade significa o advento do social como social, do
político como político e do histórico como histórico. Confirmando o
homem como sujeito social, político e histórico, desloca o medo
fundamental para o interior da própria sociedade, e faz com que nasça,
simultaneamente, o pensamento moderno sobre os direitos do homem.
Consequentemente, as teorias modernas do direito pensam o direito como
garantia jurídica, social e política contra o medo que os sujeitos
sociais têm dos outros sujeitos sociais.
Sob
esse aspecto, podemos traçar um paralelo entre o advento moderno do
direito e a criação dos tribunais na Grécia Clássica, particularmente
em Atenas, com o nascimento da democracia. Sabemos que as tragédias
gregas são uma reflexão da pólis acerca de sua própria origem como
cidade dos homens e cidade democrática. Nessa reflexão, as tragédias
demarcam a diferença entre o presente democrático e o passado
aristocrático neste, regido pela lei da família e do sangue, o crime é
crime intrafamiliar, crime de sangue que os deuses exigem seja vingado com
um novo crime sangrento, o qual pede nova vingança e assim
indefinidamente. O mundo aristocrático é o da vendetta pessoal ordenada
pelos deuses. Ora, as tragédias nas quais a última peça é uma
reflexão sobre o desaparecimento da vendetta e o nascimento do poder
democrático.
Assim,
na Oréstia de Sófocles, Atena e Apolo, convocados para discutir com
Eríneas se Orestes deve ou não matar sua mãe Clitmenestra, consideram
impossível decidir pelo herói como este deverá proceder e declaram: “Que
os humanos julguem os humanos”, afirmação que vem legitimar o
nascimento do direito e dos tribunais. No caso da modernidade, o que se
afirma é que o medo recíproco entre os homens e os crimes que cometem
uns contra os outros, carece de um fim e requer para isso uma instância,
separada deles, 1a qual se possa conferir o direito de
exercício da vingança como vingança social, que, para se realizar,
depende da clara definição dos direitos e deveres dos homens enquanto
indivíduos vivendo em sociedade, ou seja, dos direitos do homem enquanto
homem e enquanto cidadão. A definição aqui é condição sine Qua non
para os homens, livrando-se do medo recíproco, não caiam nas garras de
um medo ainda mais forte, isto é, o medo da arbitrariedade do poder.
Isto
não significa que antes da modernidade não houvesse teoria dos direitos
humanos – sabemos que existiu a teoria do direito natural entre os
estóicos, a do direito subjetivo dos teólogos e juristas do final da
Idade Média e a teoria da distinção entre direito natural e direito
civil em São Tomás de Aquino, por exemplo. A diferença não está em
desconhecer ou conhecer os direitos do homem e sim na inscrição desses
direitos no real. Podemos constatar que, na versão teológico-política
dos direitos subjetivos e objetivos, os homens são ditos portadores de
direitos por vontade de Deus, de sorte que Deus é origem e causa dos
direitos dos homens desde antes da comunidade e para que venham a viver em
comunidade. Em contrapartida, na versão moderna dos direitos do homem, os
homens são ditos portadores de direitos, por natureza ou por efeito da
lei positiva, isto é, os direitos são naturais ou civis, sendo estes
últimos criados pelos próprios homens. Essa diferença é de grande
envergadura porque nos permite compreender uma prática política
inexistente antes da modernidade e que se explicita, significativamente,
em ocasiões muito precisas: trata-se da prática da declaração dos
direitos. de fato, quando os direitos subjetivos eram vistos como
resultando da vontade de Deus, não havia por que declará-los. existiam
como um fato. A prática de declarar direitos significa, em primeiro
lugar, que não é um fato óbvio para todos os homens que eles são
portadores de direitos e, por outro lado, significa que não é um fato
óbvio que tais direitos devam ser reconhecidos por todos. A declaração
de direitos inscreve os direitos no social e no político, afirma sua
origem social e política e se apresenta como objeto que pede o
reconhecimento de todos, exigindo o consentimento social e político.
Dissemos
que a prática política da declaração de direitos ocorre em ocasiões
muito precisas. De fato, na modernidade, encontramos declarações de
direitos em situações revolucionárias: as revoluções inglesas de 1640
e 1688; a independência norte-americana; a Revolução Francesa de 1789;
a Revolução Russa de 1917. Também encontramos a declaração de
direitos no período posterior à Segunda Guerra Mundial, isto é, no
fenômeno do totalitarismo nazista e fascista, que conduzem à
Declaração dos Direitos Humanos de 1948. Dessa forma, a afirmação de
que os direitos do homem se tornaram uma questão sócio-política está
no fato de que as declarações dos direitos ocorrem nos momentos de
profunda transformação social, quando os sujeitos sociais têm
consciência de que estão criando uma sociedade nova ou defendendo a
sociedade existente contra a ameaça de sua extinção. Enfim, o fato de
que os direitos precisem ser declarados e que sejam declarados nessas
ocasiões, indica relações profundas entre os direitos humanos e a forma
do poder, a definição da violência e do crime e do medo.
II
Retornemos
ao nosso ponto de partida.
Dissemos
que o advento da sociedade moderna altera o sentido do medo, que se torna
muito mais difuso do que antes, assume um conteúdo não só psicológico,
mas ainda sócio-político e se manifesta como medo da violência dos
indivíduos contra os indivíduos, medo do poder e medo do tempo. É nesse
contexto que a teoria do direito natural nasce, afirmando que os homens
são dotados de direitos por natureza e que os direitos naturais são:
direito à vida ou à autoconservação dos indivíduos e direito ao
pensamento e à palavra. Os autores clássicos afirmam que, por natureza,
os homens são iguais e livres, mas ressalvam que, em estado de natureza,
os homens não conseguem garantir seus direitos naturais; para
garanti-los, recorrem ao contrato social, a partir do qual os homens
decidem alienar seus direitos naturais a uma instância soberana que os
transforme em direitos civis positivos, através das leis. Essa instância
é o Estado. Não cabe aqui examinarmos as diferentes concepções
clássicas da teoria do direito natural e civil, da teoria do contrato
social e da teoria do Estado como legislador e os teóricos modernos
tendem a identificar o estado de natureza com o estado do meio
generalizado e a idéia de que a criação do direito civil e do Estado é
um feito racional, ditado pelos interesses dos homens face ao medo da
violência. Esse ponto nos interessa porque a admissão do Estado como
instância racional capaz de, pelas leis e pelo direito positivo, garantir
a vida, a igualdade e as liberdades dos homens, articulará a teoria
jurídica a três vertentes políticas antagônicas:
-
vertente republicano-democrática: julga que o direito civil só poderá
garantir os direitos naturais se mantiver os dados que constituem tal
direito, isto é, a igualdade e a liberdade;
-
vertente da monarquia constitucional: que considera que somente o poder
legal centralizado no monarca e nas instituições monárquicas é capaz
de assegurar os direitos naturais;
-
vertente absolutista: que tende a apagar os direitos naturais e os civis e
a assumir, assim, perante o constitucionalismo moderno, as
características da tirania.
Em
outras palavras, a moderna teoria dos direitos desemboca numa concepção
jurídico-constitucional da política que se torna o padrão para avaliar
os regimes políticos e serve para redefinir a tirania: esta, longe de ser
encarada como resultado da ação demoníaca de um homem vicioso e
perverso, aparece como política na qual os direitos naturais
desapareceram, os direitos civis não se constituíram e a regra
sócio-política é a da opressão, entendida como apropriação privada
daquilo que seria público e comum a todos os membros da sociedade. A
avaliação não se refere mais às qualidades do governante e sim às das
instituições sócio-políticas. Assim, a noção de direito natural e
civil, natural e positiva serve de medida para avaliar os regimes
políticos e não será casual que muitos teóricos distingam esses
regimes segundo a presença ou ausência de medo. Dirão muitos que um
regime político é livre ou republicano quando nele os cidadãos agem em
conformidade com a lei porque se reconhecem como origem ou como autores
das leis segundo seus direitos; e, será tirânico o regime político no
qual os cidadãos obedecem às leis por medo dos castigos, sendo por isso
tomados como escravos, uma vez que, perante o direito, é escravo aquele
que vive sob o poder de um outro homem e realiza os desejos de outrem como
se fossem os seus próprios.
A
existência das três vertentes do pensamento político é importante para
compreendermos o ressurgimento e o fortalecimento das teorias do direito
natural e do direito civil nas discussões do pensamento da Ilustração,
no século XVIII, que permitiram, com a Revolução Francesa, afirmar que
os regimes não-constitucionais eram o Antigo Regime. Este, caracterizado
como opressão e violência, é definido como regime fundado no medo. Ao
mesmo tempo, podemos compreender um fenômeno interessante, qual seja a
posição de alguns teóricos, como é o caso de Rousseau, que tenderão a
ver na simples existência do poder de Estado a destruição dos direitos
naturais e seu desvirtuamento pelos direitos civis que nada mais seriam
senão a transformação em lei e em direito positivo da desigualdade
social, da opressão e da violência. Dessa forma, ao otimismo dos
teóricos clássicos do século XVII que viram no Estado a impossibilidade
de concretizar os direitos humanos, pois o Estado seria instrumento de
opressão dos mais fracos pelos mais fortes.
Antes
de retomarmos essa problemática, que será a terceira parte de nossa
exposição, examinaremos o otimismo dos humanistas da Renascença e dos
pensadores clássicos do
século XVII. Humanistas e clássicos tenderam, como vimos, a acompanhar a
dessacralização da realidade sócio-política e a conceber a sociedade a
partir de suas divisões internas; vimos que Maquiavel falava na divisão
originária da sociedade entre os Grandes e o Povo e podemos mencionar o
pensamento de Espinosa, o qual toma como ponto de partida os indivíduos e
afirma que todo indivíduo, por natureza, deseja governar e não ser
governado. Quer sejam contratualistas como Hobbes, Grotius, Locke, quer
não sejam contratualistas como Maquiavel e Espinosa, os pensadores dos
séculos XVI e XVII estão convencidos de que a possibilidade de vencer o
medo reinante entre os homens encontra-se na satisfação de três
condições: 1) no desenvolvimento da razão como vitória contra
preconceitos e superstições, liberando o espírito dos homens de medos
trazidos sobretudo pela religião e pela ignorância; 2) na criação do
poder como poder público e legal que, nascido do consentimento de seus
criadores, seja por eles respeitado e obedecido segundo padrões que eles
próprios estabeleceram; 3) no reconhecimento por parte de cada homem e de
todos eles, assim como pelo poder público, de que todo indivíduo nasce
com direitos invioláveis, os quais ele pode ou não alienar a outros, e
cujo desrespeito configura violência e opressão que os homens têm o
direito de combater e vencer. Por isso, com muitos humanistas e
clássicos, nasce a idéia do direito de resistência à opressão e à
violência. E uma das características mais interessantes das teorias
modernas está no fato de conterem dentro de si mesmas uma teoria do
direito como direito a resistir à violência. Finalmente, um outro ponto
importante nessas teorias é que, em sua maioria, não constituem teorias
jurídicas da política e sim teorias políticas que carregam em seu
interior um forte componente jurídico, pois colocam os direitos naturais
e os direitos civis no centro da ação política e sobretudo conferem à
noção de lei o papel de eliminar o medo social e político. Isto
significa, donde o otimismo desses pensadores, que a posição de um pólo
político separado da sociedade, no qual esta possa superar suas divisões
internas e perceber-se unificada, confere à legalidade o estatuto da
legitimidade: a lei se anuncia como a visibilidade sócio-política da
justiça. Nessa perspectiva, onde houver medo haverá injustiça, onde
houver injustiça haverá ilegalidade, onde houver ilegalidade haverá
tirania e onde houver tirania haverá o direito de resistência por parte
dos cidadãos que poderão restaurar a igualdade e a liberdade que os
define naturalmente. Esse otimismo republicano que vigorará na
Revolução Francesa e que sustenta a declaração dos direitos do homem e
do cidadão, isto é, os direitos naturais e os direitos civis, é o que
desaparecerá quando, no século XIX, os movimentos populares e
proletários revelarem a injustiça das leis e a inexistência concreta
dos direitos declarados nas várias revoluções.
III
Sabemos
que um dos pontos mais importantes da discussão de Marx sobre a sociedade
moderna encontra-se na questão relativa ao poder. Marx indaga: Como se
dá a passagem da relação pessoal de dominação à dominação
impessoal por meio do Estado e, portanto, da lei e do direito? Como se
explica que a relação social
de exploração se apresente como relação política de dominação
legal, jurídica e impessoal? E como se explica que vivemos em sociedades
nas quais as desigualdades econômicas, sociais, culturais e as
injustiças políticas se ofereçam como não sendo desigualdades nem
injustiças porque a lei e o estado de direito afirmam que todos são
livres e iguais? Como explicar que as desigualdades, a exploração e a
opressão, que definem as relações sociais no plano da sociedade civil,
não apareçam dessa maneira nas relações políticas definidas a partir
do Estado pela lei e pelo direito? Como explicar que o direito produza a
injustiça? Como explicar que o direito funcione como aparato policial
repressivo, cause medo, em vez de nos livrar do medo?
Evidentemente,
não cabe aqui discutirmos as respostas que Marx e outros depois dele
deram ao problema. Cabe porém lembrarmos o centro da colocação de Marx,
porque esclarece questões obscuras. Uma das respostas de Marx às suas
próprias perguntas é bastante conhecida: a sociedade capitalista,
constituída pela divisão interna de classes e pela luta entre elas,
requer para seu funcionamento a fim de recompor-se como sociedade, embora
inteiramente dividida, aparecer como indivisa. A indivisão se propõe de
duas maneiras. Em primeiro lugar, no interior da sociedade civil, pela
afirmação de que há indivíduos e não classes sociais, que esses
indivíduos são livres e iguais, relacionando-se através de contratos;
assim, a sociedade civil, isto é, o mercado, se define pela existência
de indivíduos ordenados por relações jurídicas, o que nega a
existência das divisões sociais, estas aparecendo como diferenças de
interesses entre indivíduos privados. Em segundo lugar, o ocultamento da
divisão de classes se faz pelo Estado, que está encarregado, através da
lei e do direito positivo, de garantir as relações que regem a sociedade
civil, oferecendo-se como pólo de universalidade, generalidade e
comunidade imaginárias. A resposta de Marx enfatiza que o estado de
direito é uma abstração, pois a igualdade e a liberdade postuladas pela
sociedade civil e promulgadas pelo Estado não existem. Nessa perspectiva,
os direitos do homem e do cidadão, além de serem ilusórios, estão a
serviço da exploração e da dominação, não sendo casual mas
necessário que o Estado se ofereça como máquina repressiva e violenta,
fazendo medo aos sem-poder, uma vez que o Estado e o direito constituem-se
no poderio particular da classe dominante sobre as demais classes sociais.
A
verdade das colocações de Marx transparece quando examinamos tanto a
declaração dos direitos de 1789 quanto a declaração dos direitos
humanos de 1948, pois em ambas a propriedade privada é declarada um
direito do homem e do cidadão. Ora, vivemos em sociedades onde esse
direito não pode, por natureza e por definição, ser cumprido nem
respeitado. Mais do que isto: em nossas sociedades, a lei e o Estado, que
devem proteger a propriedade privada, porque esta é um direito do homem e
do cidadão, só poderão defendê-la contra os sem propriedade, de sorte
que a defesa do direito de alguns significa a coerção, a opressão, a
repressão e a violência sobre os outros, no caso, sobre a maioria. Em
outras palavras, a partir do momento em que a propriedade privada é
defendida como um direito que, abstratamente, é de todos e,
concretamente, exclui desse direito a maioria, a exclusão faz com que a
propriedade privada se ache ameaçada, e não será casual que o crime
(violação de direito) em nossa sociedade seja preferencial e
primordialmente defendido como crime contra a propriedade, uma vez que
mesmo a vida é defendida como propriedade privada da pessoa. Assim, somos
forçados a reconhecer que as declarações modernas dos direitos humanos
trazem consigo a violência e produzem o medo. São fonte de medo, em
lugar de serem fonte de emancipação.
Mas
não só isto.
As
declarações dos direitos do homem e do cidadão afirmam que os homens
são seres racionais e que é seu direito o uso da razão, a liberdade de
pensamento e de expressão, a liberdade de opinião. Deixemos de lado o
problema óbvio da censura em países democráticos, autoritários e
totalitários. Indaguemos se nas sociedades contemporâneas esses direitos
podem ser respeitados. Não mencionemos também a manipulação das
consciências pelos meios de comunicação de massa, pelo consumo, pela
indústria da opinião pública. Indaguemos se, no modo mesmo como se
organiza a divisão social do trabalho, o trabalho fabril, o trabalho nas
instituições de serviço público ou privado (como na saúde e na
educação), esse direito pode ser respeitado. A resposta será negativa.
De fato, sob os imperativos da divisão social do trabalho em manual e
intelectual, sob os imperativos da divisão dita científica do trabalho
fabril, sob os imperativos técnico-administrativos e burocráticos que
regem a administração dos serviços públicos e privados, os cidadãos
são diferenciados em duas grandes categorias: a dos dirigentes, que sabem
e que têm o direito ao uso da razão, e a dos executantes, que,
considerados como os que não sabem, não têm direito ao uso da razão.
Essa divisão social entre competentes e incompetentes não fere apenas as
declarações dos direitos humanos, mas também um dos mais importantes
princípios na concepção moderna dos direito: o que afirma que somente
graças à razão e ao pensamento esclarecido os homens podem livrar-se do
medo resultante da ignorância e da superstição. Em nossas sociedades, a
articulação entre direito e propriedade privada e entre direito e
apropriação privada do saber e da razão condena a maioria da sociedade
ao medo. Não por acaso, muitos estudiosos mostraram como, sob a
aparência da democratização do pensamento pelos meios de comunicação
e de informação, o que se produziu foi uma das mais poderosas máquinas
de intimidação social, pois os sujeitos sociais são, ao mesmo tempo,
excluídos do direito de produzir conhecimentos ou de exprimir seus
conhecimentos, e forçados a aceitar regras de vida ditadas pelos
especialistas, possuidores dos conhecimentos, correndo o risco, caso não
aceitem tal imposição, de serem considerados associais, detrito, lixo ou
perigo para a sociedade.
No
entanto, é preciso perceber a contradição posta para a sociedade a
partir do momento em que os direitos são declarados e considerados como
universais.
Com
efeito, para que a propriedade privada possa ser tida como um direito, é
preciso que os outros direitos sejam também declarados para legitimá-la.
É preciso, por exemplo, que os não-proprietários sejam considerados
também proprietários – do seu corpo, de sua pessoa e da força de seu
trabalho.- sem o que os indivíduos não se acham validados para as
relações firmadas em contratos, pois a relação contratual exige que as
partes sejam livres e iguais, consistindo o contrato em ato livre e de
consentimento entre as partes. Por outro lado, para que o mercado receba
mão-de-obra qualificada é preciso assegurar o aprendizado, daí
declarar-se que os homens são todos seres racionais – lembrando que a
razão afirma o direito de pensar, falar e opinar – é livre; portanto
têm o direito à liberdade de pensamento, de opinião, de crença e de
expressão. Poderíamos prosseguir, mas isto já é bastante. Observamos,
assim, que cada direito, uma vez proclamado, abre campo para a
declaração de novos direitos e que essa ampliação das declarações de
direitos entra em contradição com a ordem estabelecida. Podemos, então,
dizer que as declarações de direitos afirmam mais do que a ordem
estabelecida permite e afirmam menos do que os direitos exigem, e essa
discrepância abre uma brecha para pensarmos a dimensão democrática dos
direitos. nessa brecha poderemos também ver a nova relação entre medo e
direitos humanos.
IV
Numa
sociedade como a brasileira podemos falar numa divisão social do medo,
isto é, as diferentes classes sociais têm medos diferentes. A classe
dirigente teme perder o poder e seus privilégios; a classe dominante teme
perder riquezas, bens, propriedades; a classe média teme a pobreza, a
proletarização, a desordem; a classe trabalhadora teme a morte
cotidiana, a violência patronal e policial, a queda vertiginosa na
marginalidade, na miséria absoluta, a arbitrariedade dos poderes
constituídos. Essa diferença do medo é reveladora. Revela, em primeiro
lugar, que os medos dos que estão no alto político, econômico e social
são os de perda de privilégios, medos que dizem respeito aos seus
interesses. Em comtrapartida, os medos dos que estão no baixo político,
econômico e social são de queda na desumanização, medos de perder a
condição humana e por isso medos que dizem respeito aos seus direitos.
mais do que isto. As classes populares não chegam a falar em nome dos
direitos, falam em nome de algo que é pressuposto pelos direitos e que
por estes deve ser concretizado, falam em nome da justiça. A diferença
social do medo revela, em segundo lugar, que o contraponto se realiza
entre manutenção de privilégios e perda de direitos, entre o medo de
perder poderio e o medo da injustiça, e esse contraponto é, por seu
turno, revelador da natureza da sociedade brasileira, isto é, que vivemos
numa sociedade profundamente autoritária.
O
que é a sociedade brasileira enquanto sociedade autoritária?
É
uma sociedade que conheceu a cidadania através de uma figura inédita: o
senhor-cidadão, e que conserva cidadania como privilégio de classe,
fazendo-a uma concessão regulada e periódica da classe dominante às
demais classes sociais, podendo ser-lhe retirada quando os dominantes
assim o decidirem (como durante as ditaduras).
É
uma sociedade na qual as diferenças e assimetrias sociais e pessoais são
imediatamente transformadas em desigualdades, e estas, em relação de
hierarquia, mando e desobediência (situação que vai da família ao
Estado, atravessa as instituições públicas e privadas, permeia a
cultura e as relações interpessoais). Os indivíduos se atribuem
imediantamente em superiores e inferiores. Ainda que alguém superior numa
relação possa tornar-se inferior em outra, dependendo dos códigos de
hierarquização que regem as relações sociais e pessoais. Todas as
relações tomam a forma da dependência, da tutela, da concessão, da
autoridade e do favor, fazendo da violência simbólica a regra da vida
social e cultural. Violência tanto maior porque invisível sob o
paternalismo e o clientelismo, considerados naturais e, por vezes,
exaltados como qualidades positivas do “caráter nacional”.
É
uma sociedade na qual as leis sempre foram armas para preservar
privilégios e o melhor instrumento para a repressão e a opressão,
jamais definindo direitos e deveres. No caso das camadas populares, os
direitos são sempre apresentados como concessão e outorga feitas pelo
Estado, dependendo da vontade pessoal ou do arbítrio do governante.
Situação que é claramente reconhecida pelos trabalhadores quando
afirmam que “a justiça só existe para os ricos”, e que também faz
parte de uma consciência social difusa, tal como se exprime num dito
muito conhecido no país: “para os amigos, tudo; para os inimigos, a lei”.
Como consequência, é uma sociedade na qual as leis sempre foram
consideradas inúteis, inócuas, feitas para serem violadas, jamais
transformadas ou contestadas. E onde a transgressão popular é
violentamente reprimida e punida, enquanto a violação pelos grandes e
poderosos sempre permanece impune.
Nessa
sociedade não existem nem a idéia nem a prática da representação
política autêntica. Os partidos políticos sempre tomam a forma
clientelística (a relação entre inferiores e superiores sendo a do
favor), populista (a relação sendo a da tutela) e, no caso das
esquerdas, vanguardistas (a relação sendo a de substituição
pedagógica, a vanguarda “esclarecida” tomando o lugar da classe
universal “atrasada”).
Situação
que marca profundamente a vida intelectual e artística, os intelectuais
– na maioria, oriundos das classes médias urbanas – oscilando entre a
posição de ilustrados (definindo para si próprios o “direito ao uso
público da razão”, isto é, a opinião pública) e de Vanguarda
Revolucionária (definindo para si próprios o papel de educadores da
classe trabalhadora), mas sempre fascinados pelo poder – identificado ao
Estado – e pela tutela estatal, reduzindo-se a “funcionários do
universal”, para usarmos a expressão de Hegel (isto é, à burocracia,
como lembra Marx), embora desejassem a posição de funcionários da “Razão
na História”.
É
uma sociedade, consequentemente, na qual a esfera pública nunca chega a
constituir-se como pública, definida sempre e imediatamente pelas
exigências do espaço privado, de sorte que a vontade e o arbítrio são
as marcas do governo e das instituições “públicas”. Donde o
fascínio dos teóricos e dos agentes da “modernização” pelos
modelos tecnocráticos que lhes parecem dotados da impessoalidade
necessária para definir o espaço público. Donde também a esdrúxula
designação do autoritarismo brasileiro (e latino-americano, em geral)
pelos cientistas políticos como “novo autoritarismo”, porque a figura
do caudilho carismático está ausente, sem que se perceba que é a
estrutura do campo social e do campo político que se encontra determinada
pela indistinção entre o público e o privado. E donde, também, o
equívoco daqueles que apresentam o “novo autoritarismo” como
divórcio entre sociedade civil e Estado, sem levarem em conta que a
sociedade civil também está estruturada por relações de favor, tutela
e dependência, imenso espelho do próprio Estado, e vice-versa.
Consequentemente,
é uma sociedade na qual a luta de classes é identificada apenas com os
momentos de confronto direito entre as classes – situação na qual é
considerada “questão de polícia” - , sem que se considere sua
existência cotidiana através das técnicas de disciplina, vigilância,
repressão, realizadas por meio das próprias instituições dominantes
– isto é, quando a luta de classes é encarada como “questão de
política”.
As
disputas pela posse da terra cultivada ou cultivável são resolvidas
pelas armas e pelos assassinatos clandestinos. As desigualdades
econômicas atingem a proporção do genocídio (está prevista a morte de
mais de 5 milhões de pessoas no Nordeste, vítimas da desnutrição e da
fome absoluta). Os negros são considerados infantis, ignorantes, raça
inferior e perigosos, representados pela cultura letrada branca na imagem
do Arlequim, e assim definidos numa inscrição gravada na Escola de
Polícia de São Paulo: “Um negro parado é suspeito; correndo é
culpado”. Os índios, em fase final de extermínio, são considerados
irresponsáveis (isto é, incapazes de cidadania), preguiçosos (isto é,
mal-adaptáveis ao mercado de trabalho capitalista), perigosos , devendo
ser exterminados ou, então, “civilizados”(isto é, entregues à sanha
do mercado de compra e venda da mão-de-obra, mas sem garantias
trabalhistas porque “irresponsáveis”). E, ao mesmo tempo, desde o
romantismo, a imagem índia é apresentada pela cultura letrada como
heróica e épica, fundadora da “raça brasileira”. Os trabalhadores
rurais e urbanos são considerados ignorantes, atrasados e perigosos,
estando a polícia autorizada a parar qualquer trabalhador nas ruas,
exigir a carteira de trabalho e prendê-lo “para averiguação”, caso
não esteja carregando identificação profissional (se for negro, além
de carteira de trabalho, a polícia está autorizada a examinar-lhe as
mãos para verificar se apresentam “sinais de trabalho” e prendê-lo,
caso não encontre os supostos “sinais”). Há casos de mulheres que
recorrem à justiça por espancamento ou estupro, e são violentadas nas
delegacias de polícia, sendo ali novamente espancadas e estupradas pelas
“autoridades”. Isto para não falarmos da tortura, nas prisões, de
homossexuais, prostitutas e pequenos criminosos. Numa palavra, as classes
ditas “subalternas” de fato o são e carregam os estigmas da suspeita,
da culpa e incriminação permanentes. Situação ainda mais atentadora
quando nos lembramos de que os instrumentos criados para repressão e
tortura dos prisioneiros políticos foram transferidos para o tratamento
diário da população trabalhadora e que impera uma ideologia segundo a
qual a miséria é causa de violência, as classes ditas “desfavorecidas”
sendo consideradas potencialmente violentas e criminosas
Preconceito
que atinge profundamente os habitantes das favelas, estigmatizados não
só pelas classes média e dominante, mas pelos próprios dominados. “Sem
sombra de dúvida, o padrão de moradia reflete todo um complexo processo
de segregação e discriminação presente numa sociedade plena de
contrastes acirrados. De uma forma mais ou menos acentuada, este processo
perpassa todos os patamares da pirâmide social em que os mais ricos
procuram diferenciar-se e distanciar-se dos mais pobres. Mas a favela
recebe de todos os outros moradores da cidade um estigma extremamente
forte, forjado de uma imagem que condensa todos os males de uma pobreza
que, por ser excessiva, é tida como viciosa e, no mais das vezes, também
considerada perigosa: a cidade olha a favela como uma realidade
patológica, uma doença, uma praga, um quisto, uma calamidade pública”
(Kowarick L,).
Curiosamente,
tais situações não são designadas por seu verdadeiro nome, isto é,
como luta de classes (pois se trata da dominação de classe por meio das
instituições e da ideologia; isto é, a luta de classes reduzida pela
classe dominante). Fato significativo do autoritarismo social que encara
essa situações como naturais ou, quando muito, na linguagem dos
universitários, como “anomia”. Não menos significativo é o fato de
que os políticos e jornalistas empreguem a expressão “luta de classes”
no singular, isto é, “luta de classe”, indicando que a luta e o
conflito, quando se exprimem abertamente, são um feito da violência
trabalhadora ou popular.
É
uma sociedade na qual a população das grandes cidades se divide entre um
“centro” e uma “periferia”, o termo periferia sendo usado não
apenas no sentido espacial-geográfico, mas social, designando bairros
afastados nos quais estão ausentes todos os serviços básicos (luz,
água, esgoto, calçamento, transporte, escola, posto de atendimento
médico), situação, aliás, encontrada na “centro”, isto é, nos
bolsões de pobreza, as favelas. População cuja jornada de trabalho,
incluindo o tempo gasto em transportes, dura de 14 a 15 horas e, no caso
das mulheres casadas, inclui o serviço doméstico e o cuidado com os
filhos. Os serviços públicos – hospitais, previdência, creches –
sendo considerados favor e concessão estatal, quando existentes.
Num
estudo sobre leituras feitas por operárias, Eclea Bosi verificou que a
maioria das mulheres casadas desejaria ler, mas elas não podem realizar
esse desejo por absoluta falta de tempo, em decorrência da dupla jornada;
ora por fadiga, que as fazem adormecerem sobre livros e revistas; por
deficiência visual causada pelo cansaço e pela rotina do serviço
fabril; pela falta de recursos financeiros para comprar livros, revistas e
jornais.
É
uma sociedade na qual a estrutura da terra e a implantação da
agroindústria criaram não só o fenômeno da migração, mas figuras
novas na paisagem dos campos: os sem-terra, volantes, bóia-frias,
diaristas sem contrato de trabalho e sem as mínimas garantias
trabalhistas. Trabalhadores cuja jornada se inicia por volta das três
horas da manhã, quando se colocam à beira das estradas à espera de
caminhões que irão levá-los ao trabalho, e termina por volta das seis
horas da tarde, quando são depositados de volta à beira das estradas,
devendo fazer longo trajeto a pé até a casa. Frequentemente, os
caminhões se encontram em péssimas condições e são constantes os
acidentes fatais, em que morrem dezenas de trabalhadores, sem que suas
famílias recebam qualquer indenização. Pelo contrário, para substituir
o morto, um novo membro da família – crianças ou mulheres – é
transformado em novo volante. Bóia-frias porque sua única refeição –
entre as três da manhã e as sete da noite – consta de uma ração de
arroz, ovo e banana, já frios, pois preparados nas primeiras horas do
dia. E nem sempre o trabalhador pode trazer a bóia fria, e os que não
trazem se escondem dos demais, no momento da refeição, humilhados e
envergonhados.
Por
fim, é uma sociedade que não pode tolerar a manifestação explícita
das contradições, justamente porque leva as divisões e desigualdades
sociais ao limite e não pode aceitá-las de volta, sequer através da
rotinização dos “conflitos de interesses” (à maneira das
democracias liberais). Pelo contrário, é uma sociedade onde a classe
dominante exorciza o horror às contradições produzindo uma ideologia da
indivisão e da união nacionais, razão pela qual a cultura popular tende
a ser apropriada e absorvida pelos dominantes através do
nacional-popular.
Nesse
contexto, não só podemos compreender por que existe o que chamei de
divisão social do medo, mas também algo peculiar, isto é, o fato de que
o Brasil, até hoje, não se conseguiu ultrapassar naquilo que foi a
tônica do processo inicial da industrialização capitalista: a visão
das classes populares como classes perigosas que não são caso de
política e sim de polícia. Na medida em que vivemos numa sociedade
autoritária – na qual não se instala a dimensão pública e coletiva
da lei; os direitos são entendidos como privilégios e interesses dos
dominantes; o poder jamais se constituiu como poder público e instância
coletiva de definição do justo e do injusto, do possível e do
impossível, do permitido e do proibido, do presente, do passado e do
futuro; mas se reduz ao exercício privado da força e do privilégio –
compreende-se que o medo assuma duas direções principais: o alto teme o
baixo como perigo de perda de força, privilégio, prestígio e domínio;
o baixo teme o alto por pura violência, arbítrio e injustiça. A luta de
classes se exprime como medo. Os grandes têm medo de perder o privilégio
da violência e por isso afirmam que o povo é violento e perigoso – as
classes populares são vistas como agentes do medo. Os pequenos têm medo
de que a injustiça aumente, que os grandes não tenham freios no
exercício da violência, e percebem, com clareza ou confusamente, que os
grandes são os agentes do medo. E é compreensível que assim seja.
De
fato, quando se lê a Declaração dos Direitos Humanos de 1948 percebe-se
que a carta dos direitos humanos pressupõe a existência de repúblicas
democráticas (mesmo que seja a democracia formal proposta pelo
liberalismo), tanto assim que cada um dos direitos declarados tem como
referência a existência de um poder público generalizador que opera
segundo a lei, e também pressupõe que os homens, com seus direitos ali
declarados, são cidadão. Ora, o autoritarismo brasileiro torna
impossível a existência de cidadãos, torna inexistente a figura do
poder e da lei exigidos como pressupostos de Declaração dos Direitos
Humanos; consequentemente, no Brasil, ocorre uma espécie de
impossibilidade estrutural para o estabelecimento, o respeito e a
manutenção dos direitos humanos.
Havíamos
dito que uma contradição perpassa a idéia de direitos do homem e do
cidadão nas sociedades modernas, qual seja a contradição entre o fato
de que o poder do Estado é, na verdade, poderio particular de uma classe
social, enquanto os direitos se referem aos homens universalmente, devendo
ser garantidos como tais por um poder que, de fato, não tem condições
de garanti-los, em sua universalidade. Dissemos também que essa
contradição é essencial para a história dos direitos humanos e civis
porque, se é verdade que o Estado está preso aos interesses de uma
classe, também é verdade que, contraditoriamente, não pode deixar de
atender aos direitos de toda a sociedade, pois não o fazendo perde
legitimidade e se mostra como puro exercício da força e da violência.
Essa contradição é a chave da democracia moderna, pois a classe
dominante moderna, liberal ou conservadora, jamais foi nem pode ser
democrática, e, se as democracias fizeram um caminho histórico, isto se
deve justamente às lutas populares pelos direitos que, uma vez tendo sido
declarados, precisam ser reconhecidos e respeitados. A luta popular pelos
direitos e pela criação de novos direitos tem sido a história da
democracia moderna. Disso gostaríamos de retirar duas consequências:
Em
primeiro lugar, observamos que a Declaração dos Direitos Humanos de 1948
é, afinal, uma declaração de direitos civis, pois, embora se refira a
direitos universais da pessoa humana, sua referência é a existência de
poderes públicos que possam garantir esses direitos, de sorte que o
pressuposto da garantia política dos direitos humanos os transforma em
direitos civis – o que é compreensível, pois, como dissemos no início
desta exposição, a marca da modernidade é a descoberta da origem, da
forma e do conteúdo sociais-históricos do poder e dos direitos. essa
confluência dos direitos humanos e dos direitos civis significa que a
luta por eles não se separa da luta popular pela cidadania. E isto tem
ocorrido no Brasil.
Seria
injusto e parcial desconsiderarmos os esforços feitos por uma parte da
sociedade brasileira no sentido de superar o autoritarismo. O insucesso de
muitas lutas sociais e políticas não invalida esses esforços, pelo
contrário, revela o conjunto de obstáculos à transformação. As lutas
pelas conquistas da cidadania têm se efetuado, nos últimos anos, em
três níveis simultâneos e diferentes:
como exigência do estabelecimento de uma ordem legal de tipo
democrático, na qual os cidadãos participam da vida política através
de partidos políticos, da voz e do voto, implicando uma diminuição do
raio de ação do Poder Executivo em benefício do Poder Legislativo ou
dos parlamentos. Nesse nível, a cidadania está referida ao direito de
representação política, tanto como direito a ser representado como
direito a ser representante;
como exigência do estabelecimento de garantias individuais,
sociais, econômicas, políticas e culturais cujas linhas gerais definem o
estado de direito onde vigorem pactos a serem conservados e respeitados e
o direito à oposição. Neste nível a ênfase recai sobretudo na defesa
da independência e liberdade do Poder Judiciário, a cidadania estando
referida aos direitos e liberdades civis;
como
exigência do estabelecimento de um novo modelo econômico destinado à
redistribuição mais justa da renda nacional, de tal modo que não só se
desfaça a excessiva concentração de riqueza e seja modificada a
política social do Estado, mas sobretudo na exigência de que as classes
trabalhadoras possam defender seus interesses e direitos tanto através
dos movimentos sociais, sindicais e de opinião pública, quanto pela
participação direta nas decisões concernentes às condições de vida e
de trabalho. Neste nível, a cidadania surge como emergência
sócio-política dos trabalhadores (desde sempre excluídos de todas as
práticas decisórias no Brasil) e como questão social e econômica.
Assim,
representação, liberdade e participação têm sido a tônica das
reivindicações democráticas que ampliaram a questão da cidadania,
fazendo-a passar do plano político institucional ao da sociedade como um
todo. Quando se examina o largo espectro das lutas populares, nos últimos
anos, pode-se observar que a novidade dessas lutas se localiza em dois
registros principais. Por um lado, no registro político, a luta não é
pela tomada do poder identificado com o poder do Estado, mas a luta pelo
direito de se organizar politicamente e de participar das decisões,
rompendo a verticalidade hierárquica do poder autoritário. Por outro
lado, no registro social, observa-se que as lutas não se concentram
apenas na defesa de certos direitos ou sua conservação, mas são lutas
para conquistar o próprio direito à cidadania e constitui-se como
sujeito social, o que é particularmente visível nos movimentos populares
e dos trabalhadores.
A
Segunda consequência que gostaríamos de assinalar decorre das anteriores
e se relaciona com a existência da Justiça e Paz.
Dissemos,
no início, que a marca fundamental da modernidade é a passagem da
comunidade à sociedade e que essa passagem é a descoberta de que o
social e o político são obras históricas. Em outras palavras, dissemos
que a modernidade é a descoberta de que não há fundamentos
transcendentes para a sociedade e para a política e que a destruição do
Antigo Regime e o nascimento do Estado Moderno representaram a
dessacralização e desnaturalização da sociedade e do poder. Isto
significou, historicamente, o desaparecimento do poder
teológico-político, o cruzamento entre o Estado e a Igreja – ou as
igrejas, uma vez que o processo inclui os promotores da separação
Igreja-Estado, separação que não era desejada nem pelos líderes
protestantes nem pela Igreja de Roma. Vimos também que tal separação,
ao laicizar o poder, modificou o conteúdo do medo e fez nascer a idéia
moderna dos direitos. Diante do processo histórico, como explicar a
existência de uma instituição como a Justiça e Paz? Ela se explicaria
em decorrência da fraqueza institucional da sociedade brasileira e da
inexistência de um Estado republicano? Ou pelo fato de que a Igreja
Católica não é monolítica, surgindo de sua divisão interna a
possibilidade de parte de seus membros colocarem o problema da injustiça
e consequentemente o dos direitos? por outro lado, sendo Justiça e Paz
uma instituição de origem religiosa, como se realiza em seu interior a
dessacralização e desnaturalização dos direitos, condições para o
surgimento da moderna cidadania? Finalmente, se os direitos nascerem no
momento em que o medo à transcendência divina deslocou-se para o medo à
transcendência do poder político, e se os direitos se puseram contra o
medo, qual a compatibilidade entre a concepção moderna dos direitos
humanos e o fundo teológico que caracteriza o fiel ou a pessoa religiosa
como temente a Deus? Em suma, como uma sociedade e uma política laicas
podem ser compatíveis com uma concepção religiosa dos direitos do
homem? Essas são perguntas que deixo para o nosso debate.
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