Globalização,
Estado
e culturas criminosas
Cláudio
Luiz Zanotelli
Resumo
Esse texto
busca passar em revista as relações entre o fenômeno da globalização,
as corporações e os Estados na perspectiva do fato criminoso. Ele
discute os aspectos da construção das leis como mecanismos de negociação
da corrupção e descreve uma tipologia das diversas culturas que
atravessam a sociedade e a política e que se combinam na apropriação
que fazem os dominantes dos mecanismos do Estado-nação e de seus
territórios.
O global, a
cidade e as corporações
O atentado do World
Trade Center denota a importância que têm as cidades no mundo
contemporâneo como lugar de comando dos territórios e nó das redes
materiais e imateriais.
As seguradoras, as
financeiras, os bancos e todas as empresas presentes no lugar foram
atingidas não somente em sua forma material, mas também, e sobretudo,
na sua forma imaterial, pois as ações, os títulos de especulação na
bolsa, entraram em colapso, conjuntamente com a queda das ações das
companhias aéreas e das companhias de seguro. Essas últimas vivem da
especulação no mercado financeiro e são, muitas vezes, seguradoras do
seguro, do seguro, do seguro de alguém....
A fragilidade da
economia, das redes e das cidades e empresas em rede é exemplificada
pela destruição das torres.
As cidades são esses
espaços frágeis e articulados onde a segregação e a auto-segregação
são levadas ao paroxismo. O centro financeiro mundial depende
profundamente de bases materiais apesar da ficção sobre a qual é
fundada a bolha financeira. Assim voltamos à velha necessidade sempre
reiterada da relação intrínseca entre o abstrato e concreto, entre o
material e o imaterial. Finalmente, todos, em última instância,
dependem da Terra transformada pelo homem interagindo com ele e sobre
ele, interferindo, no nosso caso, sobre os artefatos humanos que são as
cidades e o território das nações de maneira mais geral.
A abstração e a
articulação excludente dos mercados e das cidades são paralelas e se
reforçam. As pessoas vivem em “mercado fechado” como em condomínios
fechados, mesma camada arqueológica produtora de uma sociedade em redes
horizontais, mas hierarquizadas, fragmentadas, mas globalizadas.
As cidades nem sempre
foram assim, na Roma antiga os termos relacionados à cidade denotavam
educação, cultura, bons costumes e elegância: urbanidade vem do latim
urbs ; a polidez, da polis grega (Le Goff, 1997). Mas a promiscuidade
muitas vezes era desagradável, os engarrafamentos, os esgotos, o
barulho já eram um problema na Roma Antiga (Tuan, 1980).
As cidades conheceram
com o Renascimento e o início dos Tempos Modernos uma primeira Revolução
: o desenvolvimento da perspectiva permitiu uma nova representação e
produção do espaço (Lefebvre, 2000). Elas vivenciaram em seguida, com
a revolução industrial e a dinâmica econômica, social, técnica e
política, uma Segunda Revolução. A indústria e as grandes lojas (grands
magazins) tomaram as cidades e a transformaram, se apoiando
sucessivamente sobre a máquina à vapor, a eletricidade e o motor à
explosão. Esses fatores modificaram não somente o tamanho das cidades,
sua forma, a estrutura socio-técnica, os modos de vida, mas também as
modalidades de concepção e de funcionamento. A cidade se desenvolve em
torno do automóvel e da fordização da sociedade: produção em
série, massiva, mito do crescimento infinito, consumo acelerado e
utilização intensa dos recursos energéticos. O apogeu dessa Segunda
Cidade aconteceu na Europa nos anos 60/70 (Ascher, 2000).
No Brasil a expansão
das cidades se deu forma diferenciada e tardia: nossa urbanização se
funda muito mais sobre a não modernização das relações de trabalho
no campo do que sobre a industrialização. Assim, o Brasil é o exemplo
da maneira subordinada pela qual nos inserimos no movimento da
economia-mundo e do que hoje chamamos globalização: fornecendo matéria-prima
para os países do Norte ou mercado cativo para o consumo de produtos
industrializados e mais tarde serviços desses mesmos países, com
aparente paradoxo de que muitas multinacionais aqui investiram para
garantir uma “nacionalidade” a sua produção. Nossa industrialização
foi seletiva, excludente e orientada para os segmentos das classe médias,
fundada em uma exploração da força de trabalho dos segmentos menos
qualificados que foram excluídos do acesso ao consumo e à cidade
“formal” (Oliveira,1978).
O projeto nacional de
industrialização conseguiu uma relativa independência pela própria
forma como se deu, comandado por um Estado populista, burocrático e
autoritário, fundado sobre uma certa idéia de nacionalismo que
perpassava diferentes camadas sociais. Nossas cidades guardaram os traços
do período colonial na sua localização, na forma excludente como se
desenvolveram em seguida, mas na sua fragmentação crescente ela foi
religada pela hegemonia clientelista-paternalista que garantirá o
desenvolvimento de um Estado populist, burocrático e autoritário, como
veremos mais adiante.
As transformações
econômico-sociais, técnicas e culturais atuais são tão, se não mais
profundas, que aquelas da Revolução industrial. Elas engendram
verdadeiras mutações nas relações entre a sociedade e o espaço em
geral e a cidade em particular, as tecnologias da informação tendo um
papel importante e análogo àquele ocupado pela eletricidade
anteriormente.
A aceleração da produção,
difusão e consumo das imagens e de informações numerizadas, a
proliferação dos serviços em rede, o desenvolvimento exponencial das
redes informáticas – mesmo que, como sempre, bastantes limitadas nos
países do Sul - tem levado a uma nova configuração do espaço e das
cidades. Essa difusão em rede que engloba a própria denominação cada
vez mais utilizada das cidades–redes, distritos industriais em rede ou
sociedade em rede (Castells, 1999, Benko, 1999) tem mudado a natureza
das relações socioespaciais, aumentado a integração entre os grandes centros financeiros e econômicos mundiais
e, deixando à margem, ou integrando de maneira subordinada, os centros
dos países do Terceiro Mundo e os centros de importância menor dos países
do Norte.
Essa
arquitetura das redes de Metrópoles mundiais que se funda na produção
da antiga ordem industrial e de serviços que elas comandam, é, hoje,
de natureza diferente. A economia se baseia cada vez mais na prestação
de serviços e nos fluxos de “experiências”, nos conteúdos
culturais, na biodiversidade. A aceleração
do tempo de produção e do tempo de comunicação, tem provocado uma
baixa tendencial da taxa de lucro e uma multiplicação, aceleração e
diversificação da produção, que tem provocado desemprego e crises
societais acentuadas. O trabalho como valor estruturante da vida em
sociedade é questionado. O trabalho, no período anterior, como
utilidade geral era fundamentalmente social, era uma obra realizada
coletivamente, era a mediação maior e o verdadeiro meio de comunicação
entre os indivíduos que não produzem de maneira alienada (Meda,1995).
Em contrapartida se aplica aos tempos atuais aquilo que
Hannah Arendt dizia:
uma sociedade fundada sobre o trabalho, mas que não oferece aos seus
membros aquilo pelo qual ela se estruturou e organizou seu discurso (Arendt,
1983).
Paralelamente
à crise social e à crise do trabalho ou à crise das formas socioeconômicas,
a valoração das empresas capitalistas nas bolsas obedece a um
mecanismo invertido em relação ao período anterior, aquelas empresas
que supostamente detêm maior diversidade de conteúdos nas redes
(cinema, teatro, música, publicações, ciência, informações de toda
sorte) com penetração junto a certos segmentos da sociedade têm suas
ações hipervalorizadas, não necessitando para tal dos sólidos ativos
das emppresas tradicionais apesar de uma crise de reorganização que o
NASDA (bolsa de New York dos papéis das empresas da “nova
economia”) conheceu há pouco. As grandes multinacionais se voltam
para o controle dos conteúdos culturais, para a lei das patentes, para
o patenteamento das diversidades. Os setores ligados à comunicação e
à informação, que controlam as televisões, os cinemas (as formas de
difusão) são aqueles que também querem controlar a produção e a
circulação das informações (o
conteúdo) ou que querem transformar a cultura em coisa, a cultura como
mercado e não o mercado inserido na cultura, aquele da necessidade da
troca e da dádiva como cimento social .
As diversidades culturais são
ameaçadas com projetos do tipo AMI (Acordo Multilateral de
Investimento), defendido há algum tempo pela OCDE, que visava impedir
todo e qualquer tratamento diferente da cultura, bem como
ser contra as subvenções dos Estado-nação para a produção
cultural local e regional e buscava ainda a impor regras draconianas de
comércio desfavoráveis aos países do Sul.
Assim, a nova
onda do crescimento econômico associa cultura, comunicação e informação,
os mercados baseados na “Nova Economia”
fazem parte de lutas estratégicas de grandes grupos para o
controle desse setor e, diretamente, do controle
da produção cultural.
Esses setores
comunicacional-informacional estão associados direta ou indiretamente
às grandes multinacionais, como Monsanto, que buscam patentear o vivo e
introduzir os OGM (Organismos Geneticamente Modificados), bem como
introduzir uma indiferenciação cada vez maior entre o homem e os
animais e as plantas, pois busca-se também patentear descobertas ou
sequenciamentos de genes. Quer-se produzir medicamentos já dentro dos
animais para fornecer as moléculas necessárias juntamente com o leite
do animal manipulado geneticamente. Busca-se contratualizar as doenças
e a morte através das companhias de seguro que asseguram laboratórios
que fazem contratos para garantir a saúde dos pacientes, etc. (Rifkin,
2001). O escândalo do monopólio de uma certa molécula importante no
tratamento da AIDS por um grande laboratório americano que explora a
morte sem vergonha, pôde ser atestado recentemente na batalha travada
entre a Africa do Sul, país do mundo mais tocado pela doença, e a
Universidade de Yale (Instituição de origem dos pesquisadores que
identificaram os benefícios da molécula para os doentes da AIDS e
fizeram um acordo de cessão dos direitos de exploração da molécula
para esse grande laboratório).
Esse conjunto de
interesses econômicos das corporações em rede provoca uma desrealização
do espaço e uma aceleração do tempo (Virilio, 1993). Esses mecanismos
se inscrevem no desenvolvimento do que Milton Santos chamou de
Tecnoesfera e estruturam cada vez mais o espaço através de sua inércia
dinâmica.
Muitas cidades viraram
as costas para seus centros (deslocação de Centros Comerciais e Condomínios
Fechados em distantes subúrbios) e/ou expulsam dos centros os
habitantes para acolher escritórios, sedes de
grandes empresas ou hotéis, museus, etc. As cidades se
especializam no atendimento à cultura-mercadoria, à sociedade do espetáculo
(centros das cidades antigos como que uma casca de ovo vazia mantém as
fachadas dos imóveis, transformando-os em um lugar especializado para
receber turistas e difundir a cultura-espetáculo). Acentua-se a
fragmentação do período anterior de desenvolvimento das cidades
paralelo à industrialização, constrói-se nos países do primeiro
mundo guetos de cultura e de imagem e difundisse a bandização do
espaço periférico, onde vivem os mais pobres, os imigrantes, os operários,
os trabalhadores de Macdonalds e prestadores de serviços diversos para
a “Nova Economia”.
O trabalho como obra é
desvalorizado ou perde sua
função integradora e a cidade como obra é desconstruída.
Esse processo não
acontece em todos os lugares nem tem a mesma intensidade onde ocorre,
porém ele é tendencial e mostra a ligação intima entre os processos
socioeconômicos e os processos socioespacias.
Em conseqüência, os
processos de globalização estão associados às relações de
trabalho, à organização produtiva e à sua cristalização no espaço
da cidades mundiais fragmentadas . A proliferação territorial do fenômeno
de desenvolvimento econômico está, portanto, associada às estratégias das grandes
empresas que por sua vez se encontram associadas às estratégias geopolíticas
dos Estado-nação através das cidades mundiais e das redes que elas
comandam, isso é o que veremos na próxima parte.
Globalização x Estado-nação
As sociedade do lazer
que se desenvolve no Ocidente é irmã da sociedade do espetáculo, as
representações do mundo e o simulacro do real em rede, a apropriação
indébita de saberes coletivos e a rapinagem da cultura e da
biodiversidade são os leitmotiv das grandes corporações. Assim,
vender uma guerra que serve à certas corporações (no caso do
Afeganistão a questão do petróleo) serve, também, de formatação de
consciências e de extração de lucros certos nas paranóias
estabelecidas coletivamente pela repetição infinita de imagens de
destruição, brincando com
o imaginário coletivo.
As empresas são
protegidas e/ou defendidas pelos Estados de origem de seus acionários
majoritários, em colaboração, claro, com outros grandes grupos
criando oligopólios da comunicação e da informação, cartéis dos
laboratórios, da produção de filmes, conteúdos musicais, etc.
Associados muitas vezes em uma grande holding que controla armamentos,
química e petróleo.
Mas, os interesses econômicos
das grandes corporações não se restringem ao mundo das imagens, das
redes, dos conteúdos culturais e dos serviços generalizados, pois o
mundo ainda vive da dependência da energia do período anterior.
Estamos ainda na fase do petróleo, do carro, do avião, temos ainda
muitas fábricas e o fim do trabalho e da cidade não é para amanhã.
Mesmo porque devemos tomar cuidado com as aspirações utópicas sobre o
fim do trabalho, pois poderemos cair nos braços do neoliberais que
falam de um mercado sem regras onde cada um faria o que quer e estaria
livre para não trabalhar, sem especificar que muitos estão
“livres” porque na realidade não encontram trabalho e estão
prontos a se submeter na maioria das vezes a salários aviltantes.
Os “libertarianos” , anarquistas de direita ou neoliberais
radicais, assim pregam a expropriação daqueles que nada tem e que
continuarão nada tendo estando fora do trabalho. Políticas públicas
de rendas mínimas destinas aos desempregados somente estão criando
pessoas assistidas e excluídas, em parte, das lutas sociais. Claro um mínimo
é necessário para se evitar o aprofundamento da desafiliação social,
mas é a política de trabalho e a política com P maiúsculo ou
a Economia Política que deve mudar.
As estratégias dos
Estados por meio de seus serviços secretos é de manter a influência
econômica de suas firmas em setores chaves para dar continuidade à
acumulação do capital e ao controle dos territórios. Assim, a
intervenção no Afeganistão que é a resposta dada à destruição das
torres símbolos do capitalismo financeiro e da “Nova Economia”, é
um momento oportuno para se afirmar a presença americana no centro da
Ásia, bem como de buscar desestabilizar ainda mais a Rússia, mesmo se
o discurso americano e europeu parecem dizer o contrário. Os Russos,
quanto a eles, encontraram um bom motivo para apoiar a intervenção
americana: a guerra da Tetchenia, tentando cortar as bases de apoio ao
movimento independentista desse país. Mas, os interesses petrolíferos,
tanto dos americanos como dos russos se encontram em filigrana das
guerras que promovem nessas regiões. Porém, associados a esses
interesses petrolíferos, encontramos um desejo americano de uma certa
desestabilização do continente europeu e também da Ásia e
particularmente da Índia e da China, duas nações que se sobressaem no
mundo atualmente. A CEE (Comunidade Econômica Européia) apresenta uma
ameaça séria à hegemonia americana, mesmo se eles desenvolvem uma
colaboração conflituosa com os americanos. Há de toda evidência uma
busca de imposição pelas armas do Império capitalista e em boa medida
americano. E os que pagam o pato são os mais pobres, como sempre, os
conflitos pipocam nas periferias para preservar o centro de uma destruição
massiva que justifique uma reconstrução material baseada em antigos
preceitos de re-acumulação capitalista, ainda de atualidade
(infraestruturas, reconstrução do país, etc.).
Esse apartheid
social onde aqueles que são colocados fora da sociedade de consumo, mas
que constituem sua base e portanto o terreno sobre a qual o reino do
valor mercadoria prolifera, são a parte inferior da pirâmide sobre a
qual se funda o sistema globalitário da forma-mercadoria e do dinheiro.
A base de acumulação do capital tem sido reduzida contraditoriamente
deixando de lado milhões de pessoas, mas essas pessoas estão, digamos
assim, subintegradas ao sistema global da economia e portanto o que
acontece com eles tem seus reflexos sobre a parte superior da pirâmide
e da crise que se repete infatigavelmente, Como nos diz Kurtz:
“ [...]Isto
significa que o que, por um lado, num pólo, aparece como uma degradação
social, aparece no outro pólo como uma crise do dinheiro, como crise da
própria forma do capital. E, nesse sentido nós estamos no fundo de uma
ironia involuntária quando essa situação histórica é designada como
uma vitória do capitalismo”.
Assim, a crise é
global, é total, e não podemos pensar os problemas da base sem o topo,
no entanto isso não pode nos servir como consolo para deixar o barco
afundar, pois os sofrimentos e as hecatombes se repetem, sem retorno,
pelo mundo afora e cada vez mais de maneira acentuada.
Desse modo o sistema
econômico mundial se passa cada vez mais dos Estado-Nação e mostra a
sua lógica integradora global, de um lado
“[...]
o sistema dos Estados Nacionais continua sendo o terreno no qual as forças
da crítica se aglutinam. Por outro lado, o Estado Nacional não pode
mais ser para essas forças o único e essencial sistema de referência.
Deveríamos, portanto, refletir sobre o papel que o Estado Nação
desempenha na crise do sistema global. A medida em que este Estado
Nacional ainda desempenha um papel, este papel parece essencialmente ser
o papel da externalização, vale dizer da transferência dos custos da
crise para os outros Estados Nacionais.”
Ora,
a importância contraditória do Estado-Nação, demonstrada na citação
acima, aponta para o fato que ele é instrumento da crise e do processo
de mundializacão, portanto apesar de tudo continua sendo a referência
para as sociedades no mundo atual, mas não devemos e nem o movimento
social deve se conformar a suas fronteiras para levar a diante uma luta
que se tornou global, daí a importância de espaços de articulação e
mobilização social como o do Fórum Social Mundial de Porto Alegre.
Se inscrevendo na
externalização indicada por Kurtz mais acima, podemos pensar que a lógica
que tomou conta do Estado americano parece ser a lógica bandida. Mas
essa lógica encontra ressonância na própria forma como se estrutura a
economia de pirataria do patrimônio ecológico, cultural e biodiverso
da humanidade. Ela se respalda na forma mesmo como os chamados mercados
se organizam, onde há uma conivência e uma reversibilidade entre o
dinheiro “sujo” e o dinheiro “ limpo”.
Os
circuitos econômicos-financeiros “legais” se sobrepõem aos
circuitos “ilegais”. Há uma associação entre os capitais oriundos
dos tráficos e contrabandos diversos, desvio de dinheiro público e
corrupção, reciclados nos paraísos fiscais e invertidos na economia
“legal”, e os capitais especulativos chamados “legais”.
A própria forma de comportamento e a relação com o Estado dos
segmentos ligados às corporações e ao capital financeiro, é
organizada sob a estrutura de bando de pressão, o que se chama de
lobby. A maneira como o Estado intervem em favor dessas empresas por
meio da espionagem, da organização de golpes de Estado, da
desestabilização territorial, etc. está ligada à forma como os
“crimes” contra o bem público são cometidos. Assim, as intervenções
dos Estados em nome das corporações está intimamente associada à
criminalidade, os circuitos por onde circulam o dinheiro do chamado
mundo “ilegal” estão em estreita relação com o mundo “legal”.
Finalmente o exemplo de New York nos demonstra que as redes
“terroristas” se organizam no mercado
financeiro, são paridas pelas redes internacionais estabelecidas pelos
Estados e as corporações.
O Estado de Direito, os territórios da
lei e os territórios fora da lei
Há depois do
que descrevemos anteriormente algumas questões que podemos nos colocar
: então o que é o Estado contemporâneo? Quais as funções que o
Estado-nação deve cumprir? Até que ponto a lei serve de divisor de águas
nas ações levadas adiante pelo Estado contra o crime organizado ou o
terror? Quais são os diferentes tipos de cultura que devemos investigar
para ver as diferentes formas de apropriação/utilização/penetração
do Estado pela sociedade ou partes da sociedade? Há um Estado ideal? Há
uma forma de Estado ou uma cultura democrática que possa suportar as
pressões que o Estado sofre de toda parte notadamente com a globalização
e os fenômenos econômicos-espacias que descrevemos? O Estado deve ser
historicamente ultrapassado na ordem da teoria e da prática dos
movimentos sociais?
Existe de toda evidência
uma crença, ou se preferirmos uma vontade política comum na base do
Estado, é isso que leva as populações a viverem juntas num mesmo espaço,
em um mesmo território. Como dizia C. Geffray :
“A existência do
Estado não resulta da violência, mas bem da crença das populações
segunda a qual o exercício do poder do Estado procede de uma figura
qualquer do ideal do bem público, onde somente pode se encontrar sua
legitimidade”(C. Geffray, 2000).
Segundo esse raciocínio
toda legitimidade, de uma certa forma, diz respeito à fé. Porém não
podemos esquecer o monopólio da violência legitima que é instituinte
do Estado Moderno e que está de uma certa maneira associado à crença
nas instituições inculcada nos agentes sociais. O Estado moderno
segundo essa linha de raciocínio veio substituir o Estado Patrimonial,
nesse último o poder estava encarnado na pessoa de um Imperator,
garantia o bem público ao mesmo tempo que o tesouro donde ele tirava o mana
devolvido a seus sujeitos. O rei encarnava a idealidade das leis, era a
natureza divina do rei que garantia e fundava a legitimidade do Estado.
Mas, hoje, o tesouro do Estado moderno é distribuído segundo uma outra
lógica, a sua repartição legal é desencarnada, os cidadãos
reivindicam a atribuição de sua parte do bem comum, esta parte não é
apresentada a eles como um favor mas como um direito. Com o Estado
Moderno não há mais Rei, esse último teve sua cabeça cortada. O que
veio se colocar no lugar do Rei foi o povo soberano. Esse povo tem uma
existência simbólica, é um sujeito
fictício, objeto de crença como aquela do Rei soberano. Mas essa última
crença é da ordem do político e não do religioso. Essa crença tende
a subverter todas as ordens, pois ela proíbe toda encarnação da lei
ideal e arruína toda legitimidade dos Imperatores.
Segundo Geffray, O
Estado de Direito é o nome de um ideal de Estado (simbólico) e de um
Estado ideal (imaginário), é um jogo na luta social e política e uma
realidade institucional. Mas as populações que acreditam, ou que podem
viver um pouco nesse Estado de Direito relativo, são aquelas Mestres do
Mundo.
Em geral esses
Estados, principalmente a Europa Ocidental e os Estados Unidos da América
do Norte, calcados em sua forma de controle econômico e militar do
mundo desenvolvem também as representações da verdade e da melhor
forma de acessar a Democracia e o Estado de Direito. Ora, o que podemos
constatar é que estamos diante de lei do lobo; os Impérios, os Estados
dominantes, tem tendência a impor sua lógica de dominação pelas
armas, pela hegemonia da representação cultural, etc. Essa lógica
interna de respeito à Democracia e externa de poder autorizar tudo e
qualquer coisa tinha perdido muito de sua facilidade na Europa do pós-segunda
Guerra e todo os processos traumáticos de descolonização. Muitos
Estados renunciaram pelo menos abertamente a levar adiante uma política
colonialista, mas esse discurso e essa prática não funcionaram muito
tempo, notadamente quando aplicado aos Estados Unidos da América do
Norte. Dessa forma, o respeito ao Estado de Direito nos países onde a
maioria da população é de confissão muçulmana , e também em outras
partes do mundo, não é estimulado pelos Estados Unidos da América do
Norte. Mesmo no Estados Unidos as garantias formais do Estado de Direito
estão sendo postas em cheque já há um certo tempo e tomaram um rude
golpe com as últimas medidas adotadas contra os suspeitos de
terrorismo.
Na busca de
fazer valer os interesses supremos de oligopólios e de apelo a uma crença
coletiva no papel do Presidente como encarnação da Ordem Pública e do
Bem Público, o presidente americano Bush busca como os antigos tiranos
gregos se apropriar da Democracia e para isso invoca, como os Imperatores
de outrora a religião, a Lei divina.
O paradoxo da
modernidade que descrevemos mais acima é que ela associa assim lutas
pelo Estado de Direito, notadamente no pós-queda do muro de Berlim,
nos Estados do “ resto do mundo” que são a América Latina,
passando pela África, pela Ásia e pela Europa Oriental, mas na prática
não apóia profundamente essas iniciativas, ou as apóia de maneira
diferente segundo seus interesses. Então, a resposta a essa modernidade
capenga: controle econômico e militar, monopólio da representação
cultural mundial por um conjunto limitado de potências; é a volta ao
religioso. A crença em um Estado de Direito, no política laica, começa
a não surtir mais efeito face à pobreza e à percepção de dois pesos
e duas medidas nas relações entre Estados e entre povos. Diante de uma
injustiça flagrante, de guerras e disputas destruidoras estimuladas ou
deixadas em estado pelos dominantes do mundo, os povos se encontram na
busca de uma crença que os una, que os proteja da idéia do fim, que
justifique essa vida de misérias e privações sobre a Terra.
Essa geopolítica do
Estado de Direito à geometria variável nos remete à própria noção
da lei, do que está dentro da lei e do que está fora da lei, ou dos
territórios que se encontram na lei ou fora da lei,
pois a lei que é valida em um certo sentido não o é em outro. Se a
lei é uma vontade coletiva fundada em uma crença ela não é, então,
eterna, e como instrumento simbólico e imaginário pode ser operacional
para fundar as dessimetrias entre os países, seus territórios e/ou
entre classes sociais no interior de um mesmo país. Dessa maneira há
uma reversibilidade dos termos da lei dependendo do ator que a institui
e do local onde ela é aplicada. A própria lei pode servir de limite
pelo qual sua aplicação favorece sua não aplicação. Assim, a aprovação
de certas leis em muitos Estados serve de instrumento de pressão e da
negociação por parte daqueles que se encontram em posição dominante
no campo do Estado. A disputa simbólica e material pelo controle e
aplicação da lei é um dos campos sociais onde a luta é sanguinária
e sem tregua.
Assim, a definição
do crime é sempre conjuntural e está submetida a uma estrutura social
que usa da lei para punir àqueles que não se encontram dentro das
normas. Essa estado de punição está intimamente associado a uma
generalização no mundo da criminalização dos movimentos sociais
contestatórios. Tem se buscado despolitizar os crimes cotidianos e
tem-se criminalizado a política.
O
assassinato recente do prefeito de Santo André (São Paulo), Celso
Daniel ,é um exemplo típico dessas tentativas de despolitização do
crime, se tentou a todo custo despolitizar esse crime hediondo. Ora,
independente dos motivos torpes que cercaram a execução do prefeito não
se pode varrer para baixo do tapete os crimes em série contra prefeitos
e homens políticos de esquerda e contra os líderes de movimentos
sociais, particularmente, nesses últimos tempos
em São Paulo. Crimes que diga-se de passagem acontecem desde
sempre no Brasil. Esses crimes têm haver com a política no sentido de
luta de poder e de eliminação de pessoas representando movimentos
sociais e certas práticas sociais, eles se inscrevem, também, numa
busca aparente de desestabilização da ordem social e finalmente são
reflexos de um laisser faire
da polícia do Estado, incapaz ou, em parte, conivente com o estado
atual das coisas. Os crimes ditos comuns, cotidianos, que atingem
dezenas de milhares de brasileiros todos os anos, as execuções
capitais cotidianas nas grandes cidades, são crimes políticos também.
Esses crimes atingem preferencialmente os pobres, os moradores das
periferias das cidades, os negros e jovens homens. Eles são uma forma
de controle social, de inculcação do
medo nas classes trabalhadores ou desempregadas desse país.
De outro lado, pode-se
pensar na criminalização da política com homens políticos envolvidos
em escândalos, em corrupções as mais diversas e na maioria das vezes
com impunidade garantida no fim da linha, depois de um esquecimento
voluntário da mídia, os processos acabam, os presos, se houve presos,
são soltos. Essa impunidade e banalização do crime é ajudada pelos
grupos dominantes da imprensa que perpetuam o medo como forma de
controle social. Tudo se passa como se quisessem realmente desmoralizar
a política para que os que controlam o Estado continuassem dominado-o e
a população abandonasse toda e qualquer esperança na política.
Porém, o mais grave, e
que funciona como um jogo de espelho invertendo termos com relação a
categoria dos políticos criminosos, é a fabricação artificial e
estrutural da criminalização de movimentos sociais como o MST
(Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra). Tenta-se invocar a lei para se
impedir qualquer contestação legítima e política da ordem
estabelecida. Uma sociedade pode ser interpretada como um campo de forças
onde as classes sociais se disputam espaços e onde esses espaços são
mais ou menos conquistados, simbólica e materialmente, através do
controle dos conteúdos e dos meios de comunicação, bem como dos meios
de difusão de cultura, como também do controle dos meios de produção
e do aparelho armado da polícia e da ordem socioespacial como um todo.
Ora, essa ordem das coisas não é eterna, não está inscrita nas
coisas. Portanto, é legitimo todo aquele movimento que a questiona,
mesmo se para tal ele utiliza expedientes insólitos como a ocupação
de terras, de prédios ou bloqueia a circulação, etc... Esses
mecanismos são parte constitutiva de uma sociedade democrática que
deve viver com as diferenças e pressões de toda ordem, a garantia do
direito de manifestação, de pensamento e de contestação da ordem
estabelecida fazem parte da plena democracia.
Dessa maneira,
movimentos que se opõem politicamente a ordem vigente de maneira não
violenta são classificados como possíveis criminosos. De outro lado os
crimes comuns são fetichizados e erguidos em estado de barbárie, são
substantivados e individualizados, descontextualizando-se a sociedade
que os produziu e onde eles foram produzidos. As noções de fato
social, de que todo ato humano é de natureza social, nos ajudam a
entender a busca desesperada que os dominantes tem feito para encobrir a
razão social da violência.
Para melhor entender,
de maneira desalienada, as junções entre o legal e o ilegal, o dentro
e o fora da lei, entre o corruptor e o corrompido, a relação entre o
indivíduo e o social, entre o Estado e a sociedade, tentaremos a seguir
estabelecer uma tipologia parcial para separar os diversos fios que
atravessam as diferentes classes sociais e são o pano de fundo das práticas
sociais dentro e fora do Estado. Essa tipologia é fundada no termo
cultura que aqui não tem a acepção “culturalista”, poderia antes
até ser chamada de práticas sociais. Porém mantive o termo cultura
primeiramente porque utilizei, para efeito dessa demonstração, as posições
teóricas de um sociólogo francês (Jean Rivelois), em segundo lugar,
porque cultura é uma expressão que já se consagrou como definição
de práticas sociais dos diversos grupos e classes que compõem as
sociedades
As culturas criminosas
Por dentro e
através do Estado, fora do Estado e com a cumplicidade de seus membros,
se desenvolve à escala mundial, regional e local, através de territórios
mais ou menos fluídos, redes criminosas à geometria variável e de
diversas ordens e interesses. Essas redes estão intimamente associadas
à natureza dos Estados e à própria crença nas leis estabelecidas
pela sociedade através do Estado, elas têm se desenvolvido e tem
exercido seu poder graças a periclitação da ação do Estado e à própria
forma como a cultura neoliberal têm permeado a sociedade e desenvolvido
seus preceitos fundamentalistas de todos contra todos e cada um por si
baseados na crença de um paraíso terrestre do ganho e do lucro,
preceitos que tem uma estranha ressonância religiosa (busca de um paraíso,
crença dura na verdade do interesse, mão invisível, etc. que com
certeza tem suas raízes nas seitas americanas que favoreceram, dentre
outras determinações, o desenvolvimento do capitalismo no século
XIX).
Porém, essa
cultura não é unívoca, não acontece de maneira igual em todos os
lugares, pode estar presente de maneira combinada no interior das
sociedades e dos Estados. Assim :
“Diferentes
culturas políticas, geradoras de valores, de status sociais, de práticas
e de socialização, estão na base dos sistemas políticos nacionais e,
quando elas transcendem as fronteiras, podem fundar as relações entre
atores de diferentes países”.
Desse
modo o que caracteriza as diferentes culturas políticas é que
elas atravessam diferentes classes sociais. Assim, uma cultura política
dominante promovida pelas classes políticas dominantes com
vistas à defesa de seus interesses particulares pode ser interiorizada
pelas classes políticas dominadas. Realiza-se por meio desse expediente
a inculcação nos dominados das práticas sociais dos dominantes, exercício
e prática da violência simbólica realizada através dos diversos
mecanismos de representação e reprodução social controlados pelos
dominantes (Bourdieu, 1997).
Como exemplo do
que foi dito podemos constatar que o apelo a atacar o Afeganistão da
parte do presidente americano é feito como uma vingança da nação
inteira contra aqueles que ousaram desafiar o centro financeiro mundial,
que como todos sabem, apesar dos trabalhadores que ali estavam e
morreram, não representa os interesses de toda as classes dos Estados
Unidos da América do Norte ou do mundo. O apelo à nação e a invocação
de uma vingança ligam as pessoas em uma espécie de instinto de
sobrevivência, como se essa nação fosse una, monolítica. Nesse
sentido essa ação nos lembra que os princípios religiosos e
corporatistas se encontram na base mesmo do Estado-Nação contemporâneos.
A ordem nacional-territorial é uma ideologia justificadora da reação
do “corpo da pátria” contra o inimigo externo(Lacoste, 1989).
Dessa forma o
apelo à Nação, ao Estado, serve para amalgamar as classes, escamotear
os conflitos internos e externos e por uma ascese fazer nascer um
sentimento de pertencimento a um destino comum que nada tem a ver com
uma prática política que se constrói e é produzida em sociedade: a
grande política nascida na Grécia e que se estabelece na autodeterminação
e na autoinstituição da comunidade política citadina que determina
seus próprios destinos.
Rivelois,
nos apresenta seis ordens de culturas políticas dominantes que podem se
mesclar e serem reversíveis nos diversos Estados e sociedades do mundo:
patrimonial-paternalista, clãnica, comunitarista, burocrática, democrática
e liberal. As redes criminosas que se servem ou penetram o Estado
agiriam, segundo o autor, em consonância com essas diferentes
“culturas”.
É bom que se
diga que essas culturas não visam nenhum essencialismo culturalista do
crime, mas antes servem como ferramenta analítica da reprodução
social e das relações de forças inscritas no campo social.
Rivelois, na
sua tipologia, nos diz que as duas primeiras culturas tem como centro o
quadro da socialização pela família originária de um território
local ou regional dominado por poderes étnicos ou feudais
(patrimonial-paternalista e clãnica); a terceira (comunitarista) tem
por centro um quadro de socialização, o pertencimento à uma
comunidade, um grupo local ou transnacional baseados no estabelecimento
de contratos que repousam sobre a confiança, a ética (ONG) ou os
valores profissionais (as corporações) ou sobre valores étnicos,
religiosos, mafiosos ou sectários; a quarta (burocrática),
valoriza o Partido como instância nacional de socialização
contribuindo para afirmação do Estado, tolera a ingerência de poderes
clãnicos e paternalistas nos níveis locais e regionais, e pode acabar
em ditadura burocrática
(civil ou militar); a quinta (a democrática) tem como centro o quadro
de socialização do indivíduo em sociedade, submetido à transcendência
da lei e do desenvolvimento dos valores políticos ligados à aquisição
da sua cidadania no interior de um sistema de direito e,
finalmente, a última (liberal) tem como centro o quadro da socialização
do indivíduo no mundo, submetido à transcendência do mercado e
desenvolvendo valores econômicos ligados à aquisição de riqueza
financeira e material a partir das empresas.
As três
primeiras culturas (patrimonial-paternalista, clãnica e comunitarista)
se fundam sobre valores universais transcendentes (o reino de Deus ou a
vida depois da morte, o costume a moral); as três últimas (burocrática,
democrática e liberal) se fundam, predominantemente, sobre valores
universais imanentes (a soberania, a legitimidade, o povo, os direitos
do homem, o livre comércio).
No que se segue
descreveremos e comentaremos essas culturas, buscando fornecer exemplos
locais e nacionais e seus efeitos sobre o Estado.
Cultura
Clientelista-paternalista
Uma das
características dessa cultura é a dívida: comunitária, das famílias,
interindividual, entre Estados, dos Estados em relação à organismos
internacionais e aos bancos e dívidas entre máfias. Essa cultura da dívida
é difundida no mundo, notadamente em relação a divida que os países
do Terceiro Mundo tem com os países do Norte. Dívida, que nunca é
paga: entre 1980 e 2000 em toda a América Latina, os bancos privados e
seus associados receberam 192 bilhões de dólares a mais do que eles
emprestaram aos Estados. Os anos 1999 e 2000 foram particularmente rentáveis
para os bancos, pois 45% dessa transferência líquida foi realiza nesse
período ou seja, 86,2 bilhões de dólares reembolsados a mais do que a
quantia recebida pelos Estados.
Se nos reportarmos aos jornais brasileiros recentes que afirmavam que
mais da metade do lucro dos bancos instalados no Brasil foram realizados
em 2001 com títulos da dívida pública, podemos concretamente ver onde
estão passando os juros estratosféricos dessa dívida. Somente o maior
banco privado brasileiro lucrou em 2001 perto de 2 bilhões de dólares.
Esse mesmo
estado de endividamento é representado nas relações escravistas de
produção pelo Brasil a fora onde as pessoa fechadas dentro de fazendas
tem uma divida infinita que não acaba nunca, nem com a morte ou a fuga.
Da mesma forma dívidas são contraídas pelos empregados de grandes
empresas ou por empregadas domésticas, dívidas materiais e morais que
muitas vezes levam meses e anos para serem pagas, mantendo os
trabalhadores sob controle. A dívida é um dos suportes arcaicos das
relações de dominação, ela pode ser simbólica e/ou real ela cria
obrigações entre os indivíduos e instituições e está na base das
relações clientelistas e paternalistas. Os grupos que a controlam,
controlam também partes e/ou a totalidade das corporações e dos
Estados.
A cultura
paternalista-clientelista se manifesta no Brasil sob a forma da vingança,
da morte sob encomenda, da pistolagem ou do que poderíamos chamar de
jagunços rurais ou urbanos encarregados de cobrar dívidas de dinheiro
ou dívida de sangue que se paga com o sangue.
Cultura Clãnica
A cultura clãnica
pode se insinuar por meio
da tomada do poder por clãs políticos nacionais, que se substituem aos
clãs éticos ou locais ou regionais, associados de uma maneira mais ou
menos pontual à clãs criminosos locais ou regionais. Assim em Estados
burocráticos ou liberais, o clanismo político pode ser colocado a
serviço de relações de poder e do Estado (exemplo do México, de
algumas figuras clãnicas brasileiras que controlam a política regional
e parcialmente nacional: Antônio Carlos Magalhães e Jader Barbalho.
Contrariamente à cultura democrática do mérito que se conquista pelo
trabalho, a cultura clãnica valoriza o roubo, seja por meio da apropriação
forçada de riquezas, segundo a lei do mais forte, seja pelo jogo que
permite ao jogador, vítima da paixão, de arriscar seus bens, sua
reputação e sua vida para dominar a fatalidade do acaso. A gente pode,
segundo Rivelois, interpretar as corrupções burocráticas e liberais
como uma forma de combinação do roubo e do jogo que leva à mudança
das regras desse mesmo jogo para se apropriar dos bens dos outros.
Nesse último caso o risco não depende mais do acaso de um
jogador comum, mas da influência dos jogadores, o que permite, então,
de se falsear o jogo e revelar as relações de dominação através do
endividamento (financeiro e moral) dos beneficiários do jogo em relação
àqueles (atores políticos pela corrupção burocrática ou atores
empresários pela corrupção liberal) que permitiram à eles de
ganharem. Jogo que podemos perceber nas relações de dependência onde
se enredaram os tráficos de influência nas negociações de isenção
e do pagamento de dívidas do ICMS (Imposto Sobre a Circulação de
Mercadorias e de Serviços) do Estado do Espírito Santo, com a apropriação
por certos clãs políticos e empresariais de parte das receitas ods
impostos pagos pela população.
Esses jogos e essas dívidas podem levar até a morte dos atores
endividados que não pagam a dívida ou não devolvem a mesma quantia
que foi recebida. Isso explica o
porque dos clãs criminosos e as máfias terem tendência a controlar as
casa de jogos que parecem ser feitas à imagem de sua cultura clãnica,
aproveitando, de passagem, para lavar uma parte de seus benefícios.
Em resumo, a
cultura clãnica está ligada à constituição da máfias criminosas
que tendem seja a se autonomizar, seja a
infiltrar o poder político, ou a concluir alianças com certos
clãs que constituem esse último (como diversos casos no Estado do Espírito
Santo mas também em outros Estados brasileiros como o Rio de janeiro,
Acre, Amazonas, ...).
Como diz
Rivelois, não há dúvidas que numa situação de dependência em relação
ao exterior ou de ameaça interna (desestabilização por guerrilhas
revolucionárias), um Estado Burocrático ao seio do qual a cultura clãnica
é dominante e onde os clãs políticos integram os clãs criminosos ou
são infiltrados por eles se produzira um sistema político autoritário,
militar ou totalitário. Poderíamos acrescentar que uma forte
desestabilização social no Brasil poderia levar esse país burocrático-liberal
infiltrado pelos mais diversos clãs, à golpes políticos autoritários.
A Cultura
comunitarista
O modo de vida
comunitarista pode ser considerado como uma ultrapassagem do quadro
familial que preserva a família como unidade de socialização e
valoriza a sociedade civil contra o
Estado. A comunidade, segundo Rivelois, é um reagrupamento local
que se reproduz de maneira mais freqüente por endogamia e que pode ser
ligada, por rede a outros reagrupamentos (regionais, nacionais ou
transnacionais) fundados sobre os mesmos critérios de pertencimento,
por exemplo como alguns grupos das diásporas (judeus, curdos,
libaneses, etc.). Esse tipo de cultura, que transporta ao nível da vida
cotidiana as relações paternalistas assim que as relações religiosas
ou étnicas de socialização (como no caso do Espírito Santo algumas
comunidades de Italianos, de Pomeranos, de Tiroleses, de Libaneses,
etc.), caracteriza, também, as organizações mafiosas, assim que
certas ONG e grupos sectários no seu modo de funcionamento
interno.
Os modos de ação
político mais comuns ligados ao comunitarismo são o Nepotismo (como
forma de reprodução de famílias dominantes), a usagem de uma violência
defensiva, assim que a organização de grupos de pressão. Esses grupos
de pressão, destinados a assegurar a defesa das comunidades junto aos
responsáveis políticos locais, regionais ou nacionais, são freqüentemente
apoiados sobre associações influentes que podem praticar a corrupção,
a estratégia do complô e a Omerta para ligar seus aderentes e chegar a
impor suas visões ao poder (cf. a organização religiosa influente no
Vaticano, o Opus Dei,b e certos movimentos da maçonaria). Aqui podemos
fazer uma reflexão a propósito do Brasil, onde as comunidades dos países
de origem dos imigrantes são fortes e importantes, mesmo se não temos
um comunitarismo segregacionista à moda americana do norte.
No Brasil, se
os indivíduos não se conformam aos quadros religiosos ou comunitários
existentes (seja étnico, seja por reagrupamento local ou grupo
religioso) e/ou exista uma incompatibilidade entre a cultura comunitária
excludente e a cultura democrática includente, ou, com a cultura burocrática
controlada por certos clãs excludentes, haverá uma diminuição do
sentimento de culpabilidade, que se não é compensado pela adoção de
uma cultura cívica laica, favorecerá o aparecimento de múltiplas
formas de transgressão. Essas formas de transgressão se concretizam
nas violências cotidianas incontroladas, na banalização da vida e da
morte.
A cultura
liberal, que tende em direção da atomisação dos indivíduos e dos
grupos, se impregnou ela mesma de cultura comunitarista, esta última não
se destina mais simplesmente às minorias, mas se impõe como uma norma
não somente para os dominantes, mas para o conjunto da população
integrada socio-profissional e que tem tendência a se excluir da
sociedade em adotando modos de vida separados (autosegregação) em
condomínios fechados associados à centros de lazer ou centros
comerciais que são destinados por cooptação à população
“escolhida”. Como diz Rivelois, em nome do respeito das diferenças
(inversão do direito à diferença integrador) , as políticas liberais
do “tudo privado” tiveram tendência não somente a reabilitar o clãnismo
político ou criminoso (lavagem e reciclagem de dinheiro), mas também a
promoverem as culturas paternalista e comunitárias e a destruir os
fundamentos da cultura democrática baseada na construção de serviços
públicos (controle dos grupos privados sobre a educação, a saúde ou
a comunicação). Acentua-se, assim, as desigualdades sociais e as
dissociações socio-territoriais.
A Cultura
Burocrática
Associando
cultura paternalista e cultura clãnica em uma mediação que desemboca
sobre um outro nível de governo, a cultura política burocrática,
fundada sobre o favoritismo e as lealdades regionais orientadas para a
construção do Estado-Nação, associa o mundo do trabalho ao espírito
de família e leva a se dar somente valor aos engajamentos pessoais ou
às solidariedades de partido em detrimento do respeito da legalidade e
dos direitos do homem. Um exemplo seria o mundo asiático com a cultura
confuceana modernizada que busca preencher o vazio sociopolítico com os
famosos “valores asiáticos” para
garantir a estabilidade e a
ordem social. Esses “valores” seriam apresentados como incompatíveis
com o individualismo, o hedonismo e os valores universais ligados
ao debate público que caracteriza alguns países ocidentais, mas, também,
como possíveis de ultrapassar o declínio do Ocidente. Na China o
partido e o exército buscam encarnar essa realidade, bem como as tríades,
as famosas sociedades secretas.
A perversão da
cultura burocrática republicana é manifesta nos Estados que são
governados por um partido único ou dominante no seio de clãs políticos,
colocados ao serviço da construção nacional. O poder é concentrado,
personalizado e fundado sobre a utilização da corrupção
institucional: se alicerçando nos monopólios econômicos do Estado ou
na hierarquia: representantes
da administração que são habilitados a contornar ou transgredir a lei
e os regulamentos, violência ilegal, culto da conspiração. Podemos
citar, dentre outros países que são constituídos por essa cultura a
Turquia, O Egito, a China, a Coréia do Norte, o Vietnam, Cuba, as
ex-republicas comunistas da Europa do Leste, o México do PRI (Partido
Revolucionário Institucional), a Tunísia de Bem Ali e o Ouzbékistan.
Esses Estados são
no mais das vezes corporatistas, como o Estado no Brasil sob Getúlio
Vargas, sob os militares e até hoje em uma certa medida. Conta-se com
certas máfias e grupos criminosos que colaboraram com os representantes
do poder político em fornecendo pistoleiros para tomar o poder dos
sindicatos ou de administrações municipais/estaduais afim de assegurar
um poder político, econômico e social permitindo de captar uma
clientela (caso de um momento recente no Espírito Santo onde se
controlava diversas municipalidades por meio do crime como o desvio de
verbas públicas e em troca se assegurava o poder através da clientela
, do empreguismo, etc.).
A Cultura
Democrática
No quadro
democrático, a legitimidade se impões, igualmente, em virtude da
legalidade, da crença em uma competência fundada sobre o mérito e
regras estabelecidas racionalmente (Weber). O exercício da violência
é delegado, pois é o Estado que assegura o monopólio da violência
legal ou legitima, o que, teoricamente, deveria garantir a “paz
civil”.
A Cultura
democrática se distingue da cultura burocrática republicana quando
aparece um corte entre o povo e os seus representantes, o povo exigindo
de participar mais das decisões públicas, invoca contra-poderes para
reduzir o arbitrário do Estado; esses contra-poderes serão
considerados como a expressão de uma cultura democrática. Assim, afim
que a palavra do povo não seja monopolizada pelos representantes, a
cultura democrática favorece a expressão de corpos intermediários múltiplos:
o sindicatos, as igrejas, os partidos, as associações o mass média.
Uma relação de força com conseqüência sobre a captação de
clientelas, subvenções, controles de territórios. Mas, a cultura
liberal espera na virada a
cultura democrática com seu apelo a diminuição e o enfraquecimento do
Estado como garantia da unidade nacional. Assim como fazem os
neoliberais de plantão e seus acólitos por meio do apelo à redução
dos investimentos do Estado destinados aos setores sociais, bem como
pela ação incessante que realizam contra o papel de redistribuidor de
riquezas, por meio dos impostos, desse mesmo Estado.
O
planejamento e organização dos territórios também devem segundo
esses novos apóstolos serem deixados ao encargo da livre iniciativa,
encobrindo o fato que as infraestruturas não são fragmentáveis e
apropriáveis ao infinito pela iniciativa privada, pois devem ser um
continuum que atravessa o
território e que sem a sua unidade pode se transformar num verdadeiro
empecilho à circulação das mercadorias, das informações, da
comunicação e portanto da própria acumulação do capital. Mais uma
vez aqui está demonstrada a contradição insolúvel da fase atual do
capitalismo que sem freios busca retirar todo o lucro possível de espaços
de investimentos conquistados ao espaço público, à exemplo da empresa
Enron, negociadora de energia elétrica, e empresa ícone da Nova
Economia, nos Estados Unidos da América do Norte, que fundou seu império
sob uma falcatrua jamais vista nos Estados Unidos e sobre a prática de
preços abusivos nas tarifas de eletricidade em diversos estados
americanos, com a cumplicidade dos poderes constituídos, notadamente os
membros do Partido Republicano e do Partido Democrata americanos.
Essas situações
podem nos levar a submeter o interesse geral e o bem comum aos interesse
particulares dos corpos intermediários – dentre os quais certos
grupos criminosos e máfias – e assim aparecerão novas rupturas e
marginalizações econômicas e dissociações socioespaciais mais
profundas que as produzidas pelo Estado burocrático. Isso parece estar
acontecendo em diversos países do Norte à exemplo dos Estados Unidos
da América do Norte onde as associações criminosas dentro da própria
economia oficial são inúmeras, bem como na França com as grandes
empresas de petróleo e de infraestruturas presentes em diversos lugares
do planeta que estão envoltas em escândalos de desvio de fundos públicos
associadas à partidos políticos e muitas vezes ao mundo do jogo, do
futebol e, evidentemente, à criminalidade financeira. Mas em alguns países
do Norte o peso da sociedade civil é importante e as redes criminosas vêem
limitado o seu campo de ação ou desbaratados seus esquemas, mesmo se
importantes personalidades políticas são acusadas formalmente de
falcatruas e não são trazidas diante dos juízes, como o caso do
presidente francês Jacques Chirac. Sobre ele pesam diversos indícios
de desvio de verbas públicas na concessão de obras públicas quando
era prefeito de Paris, mas sua posição de presidente da República o
protege de um processo aberto da parte do judiciário.
Nos países do
Sul onde a população é na maior parte pobre, a
cultura democrática pode se impor à condição que seja
combatida e limitada a influência dos clãs e dos grupos de pressão
que não dispõem de uma legitimidade eleitoral e conservam
um controle sobre a administração e a economia. Supõe, também,
uma autonomia do aparelho judiciário e uma reciclagem e novas contratações
nesse setor, bem como da policia, para que a lei seja aplicada contra
todos aqueles que utilizam
a função pública para fins pessoais através da corrupção (caso dos
secretários e de diversos membros do governo do Espírito Santo na
atualidade), ou usam as instituições de violência do Estado ou a ele
associadas ao serviço de interesses privados ou pela conservação do
poder arbitrário dos atores da margem (caso dos policiais envolvidos em
crimes ou trabalhando para certos homens públicos ou para o setor
privado, caso de complacência com o sindicato do crime da parte do
judiciário, da polícia ou da administração).
Rivelois, nos
diz que a cultura democrática é fundamentalmente oposta ao
comunitarismo (xenófobo, integrista, segregacionista ou de bandas), o
que aparece como alternativa face à mundialização liberal e às
desestruturações socio-profissionais que ela provoca. Por isso a
cultura democrática é inseparável das práticas e valores universais
de cidadania e de laicidade republicana.
A cultura
democrática é em muito compatível com a cultura liberal, que prega a
transformação do mundo em um vasto mercado como condição de liberação
do individuo e do desenvolvimento
das sociedade pelo crescimento econômico, o que explica o crescimento
das desigualdades com a evolução da violência nas democracias
ocidentais e fora delas.
A cultura
Liberal
É a atual
cultura dominante de terceirização do político à serviço da
economia, caracterisa os países do Norte ou emergentes que reúnem os
critérios de Estado de Direito, de quase-ausência de barreiras
comerciais e um nível fraco de impostos. Os países do Norte constroem
a sua prosperidade, nos diz Rivelois, aceitando de comercializar com
outros países cujos sistemas políticos são permeáveis à violência
arbitrária do Estado, à banalização da corrupção ou a uma redução
de seus espaços públicos por causa de criminalização de certas
partes do território. A
cultura liberal dos países do Norte aplicada aos países do Sul
desemboca muitas vezes sobre o reforço da cultura clãnica nos últimos.
A cultura liberal contribui, igualmente, a reduzir os espaços públicos
nos países do Norte, dando livre curso às reivindicações de
identidades fechadas ou artificialmente construídas, o que a torna
compatível com a cultura comunitarista. Ela consiste a valorizar os
critérios de competência comercial, de competição entre os homens
(violência interindividual, flexibilidade e precarização do trabalho)
e de concorrências entre as empresas, o que conduz a privilegiar como
práticas dominantes o espírito de empresa e o driblar a lei através
da organização de grupos de pressão. Ela tem como valor dominante o
culto do dinheiro fácil e rapidamente ganho (especulação financeira e
delinqüência). Ela está ligada à imposição de um modelo econômico
que, em numerosos países do Sul, sob cobertura de busca de vantagens
comparativos ligados ao dumping social, leva ao aprofundamento de
desigualdades sociais, à interdição ou à repressão do direito de
greve nas empresas e à ausência de proteção social legal para os
trabalhadores, o que constitui uma regressão a modos de organização
do tipo paternalista. O Brasil pode se exemplificar em diversos setores
e lugares do território com a aplicação desses preceitos.
Uma das formas
mais insidiosas e desestruturadoras da sociedade que a evolução atual
do liberalismo nos impõe é a questão dos novos contratos liberais
fundados sobre objetivos partilhados, uma duração determinada, uma
avaliação periódica e um interesse aos resultados, associando o
patronato e os sindicatos bem como diversas instituições públicas. O
próprio Estado e as instituições internacionais (Organização
Mundial do Comércio, Banco Mundial e Fundo Monetário Internacional)
estabelecem esses contratos. Mas se os contratos na sua forma canônica,
como nos diz Rivelois, ligam as pessoas iguais tendo livremente
subscrito obrigações no mais das vezes recíprocas, os novos contratos
liberais tem tendência a questionar o princípio de igualdade, fundando
o controle de uns sobre os outros, como no caso da terceirização. Eles
podem também colocar em questão o princípio de liberdade quando eles
são impostos pelas leis e permitem de organizar um poder. No caso dos
contratos e objetivos que o governo realiza com o Fundo Monetário
Internacional está claro a sobreposição desses acordos à Constituição
dos países, garante do interesse geral e votada pelo parlamento depositário
da soberania do povo. Essa contratualização da sociedade a propósito
de planos de saúde, de seguros, etc, nos demonstra que estamos saindo
do interesse geral dos regimes de participação assegurados pelas leis
do países para o enfraquecimento do Estado e uma feudalização
das relações sociais,proliferação de autoridades independentes
encarregadas da policia contratual. Essa contratualização pode
facilitar a ação da corrupção por obedecer à mesma lógica da
negociação local e facilitar a ação de máfias no campo político e
econômico.
Nunca se falou
tanto em “segurança” e ao mesmo tempo se fez tanto seguro de
diversas ordens (carro, casa, saúde, etc.), nos países do Norte o
processo de securização chegou às raias do absurdo, o setor seguro
sendo uma das principais alavancas dos investimentos financeiros e da
multiplicação dos patrimônios pelo mundo afora. Talvez o discurso
securitário esteja estruturalmente ligado à contratualização
financeira e à securização de toda ordem. Como setor de ponta do
capitalismo financeiro, recebendo investimentos dos fundos de pensão,
eo setor de seguros impôs um modo de segurança, favorecendo, é claro,
o aumento dos investimentos em segurança, bem como as práticas de
demolição dos regimes de repartição do seguro social e da saúde,
estimulando a individualização do seguro de vida, de saúde e da
aposentadoria, etc. A busca de uma segurança total, de risco zero, seja
na guerra como nos investimentos é a obsessão do mundo econômico
dominante, mas esse discurso é a arvore que esconde a floresta, pois
sabemos que a segurança total seja em negócios seja em guerra
inexiste. Dessa forma além de esconder interesses econômicos bem
precisos no desenvolvimento dos seguros, esses discursos manifestam a
vontade de um controle, utópico, totalitário de todos os parâmetros
do mercado, a obsessão de um controle automático está intimamente
associada à uma suposta racionalidade do mercado e a um controle sobre
a morte. O fetiche da mercadoria ou do processo financeiro é assim o véu
de Maia que encobre o horizonte da morte.
Associado à
morte, porém ser ter plena consciência dela, o mundo do fetiche
produtivista provoca como que uma metástase sobre o tecido social,
recebendo em plena figura aquilo que tanto tenta negar, ou seja a morte
como moeda de troca do capital. Nesse sentido a busca de uma abolição
da diferença, de um mercado único e de uma negação da morte é na
realidade o enaltecimento da própria morte. A violência por meio do
capital que se exercita em suas batalhas pelo mundo afora nos demonstra
que o limpo engendra o sujo, o lucro a morte. Lucra-se com a morte, seja
nos novos cemitérios, nos
seguros de vida ou com as doenças como a AIDS ou as guerras, lucra-se
também com o meio-ambiente e sua morte anunciada. Mas com o discurso da
segurança, associado ao lucro em todos os lugares e em todos os tempos,
se provoca a insegurança. A
insegurança é parte da estratégia do medo destilada nas cidades do
mundo e particularmente no Brasil. Como resposta ao mecanismo da
insegurança fabricado realmente e simbolicamente pela busca da
mais-valia planetária, surge a militarização dos fenômenos sociais,
os investimentos estapafúrdios em armas, em prisões e em policiais,
criminaliza-se os movimentos sociais, com a inversão das leis e o
rompimento dos pactos sociais.
Conclusão
Depois de
passar em revista a evolução do mundo contemporâneo e das cidades, as
políticas econômicas organizadas pelos dominantes e os liberais e ter
visitado resumidamente, a partir de um texto de Jean Rivelois, as
diversas culturas existentes na sociedade e as inúmeras oportunidades
de cruzamento que elas têm dentro do Estado, completando-o com comentários
e análises que dizem respeito somente a mim, podemos pensar para
concluir, no papel da Lei como mecanismo de simulacro nas relações
sociais. Essa Leis não são nem sempre utilizadas por aqueles que as
votam e são muitas vezes votadas para exercer uma exploração e/ou uma
negociação e depedração do patrimônio público através da
corrupção sob seus mais diversos matizes. Assim, Foucault, falava no século
XIX de ilegalismo de direito, buscando qualificar o comportamento
transgressivo da burguesia do século XIX que driblava suas próprias
leis para assegurar uma circulação econômica na margem da legislação,
margens previstas pelos silêncios ou liberadas por uma tolerância de
fato. Como diz Rivelois:
“De uma
maneira mais geral, podemos analisar a corrupção strutural como
resultado do fato que num sistema clientelista, a lei é necessária
pois ela representa uma barreira, que para ser ultrapassada tem um preço:
pode-se transgredir as leis à condição de se pagar um preço.”
Aquele que fixa
o preço e que se beneficia da corrupção será o ator dominante da
cadeia de poder. Mais os atores estão próximos das leis
(parlamentares, juizes, policiais, etc.), mais eles são suscetíveis de
tolerar a transgressão e de ser ou corruptor (como no caso do Espírito
Santo, extorsão do ICMS, proteção de funcionários públicos
incriminados, Leis votados no parlamento provavelmente para fazer
chantagem aos empresários ou associação com empresários para
facilitar subvenções). Mais os atores serão próximos das leis mais
eles serão dominantes no seio de suas clientelas e em relação às
clientelas concorrentes.
Assim, podemos
fazer uma distinção, junto com Rivelois,
entre os Estados da Lei (leis numerosas e limitativas favorecendo
a cultura política do abuso de poder) ou o Estado de Direito, onde se
prima pelo mérito e o respeito do direito sobre a busca de favores, sem
no entanto eliminar as contradições e reversões possíveis no ideal
de Estado de Direito.
Ao nível
geopolítico, hoje, com a guerra do Afeganistão, nós percebemos que há
um processo onde o centro das lutas é essencialmente entre clãs
mafiosos e comunitarismos, lutas baseadas em um sistema paternalista e
clientelista, fundadas no pátrio poder, que controlava o Estado através
de uma ditadura e que para sobreviver se molhou em tráficos de ópium e
de armas, bem como contou com a cumplicidade e apoios diversos dos
ex-aliados paquistaneses americanos. Esse processo foi tolerado até há
pouco por um jogo de pilhagem de riquezas minerais ou por uma geopolítica
para assegurar o transporte do petróleo e a influência americana na área.
Para não
concluir esse texto, lanço mais interrogações em resposta às
perguntas que foram feitas mais acima no capítulo O Estado de
direito , os territórios da lei e os territórios fora da lei, pois
acredito que não haja respostas unívocas e acabadas sobre o problema
da criminalização internacional e sua relação com as diversas
culturas que permeiam o mundo contemporâneo notadamente na sua fase de
globalização perversa atual.
Será que a
criminalização dos atores locais/regionais é a contrapartida necessária
para uma complementaridade e uma funcionalidade na expropriação e na
pilhagem dos recursos, humanos, culturais e materiais do Sul pelo Norte?
Ou a guerra é
a solução última de uma relação com bandos de toda sorte que
circulam, como vimos, com apoios e cumplicidades diretas da própria
forma de cultura e de interação com os Estados, mesmo aqueles que se
dizem mais democráticos e que se inscrevem em uma cultura liberal
suicidaria?
Ou ainda deveríamos
lutar por uma sociedade universalizada onde grassaria a igualdade entre
os povos, um parlamento mundial que controlaria os fluxos de capitais,
os fluxos mafiosos, etc.?
Ou ainda não
defenderíamos o Estado e o deixaríamos apodrecer para construir algo
de novo?! Mas nesse último caso estaríamos comungando com uma visão
finalista da história onde os fins justificariam os meios, uma visão
escatológica do mundo onde o presente seria uma mera previsão do
futuro e não um movimento que engendra história, vida, sofrimento e
que o mundo vale pelo que ele é?
Ou ainda
acreditaríamos nas promessas religiosas de um devir radioso onde
concordaríamos com uma transcendência do homem e não com sua imanência
e práxis, com o espaço e a sociedade como fatos sociais?
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