As Gerações de Direitos Humanos
Primeira Geração
OS
DIREITOS DE LIBERDADE (INDIVIDUAIS)
A grande mudança de
rumos na aventura dos direitos humanos foi ditada pelas Declarações do
século XVIII. Tais documentos, que simbolizaram o coroamento das lutas
burguesas e consolidaram as transformações que até então se operavam
no mundo ocidental, tiveram o iluminismo (ou ilustração) como
referencial teórico imediato.
A filosofia iluminista
teve suas raízes no século XVII, através do racionalismo e do
empirismo, tendências paralelas representadas pelo pensamento de
Descartes, Spinoza, Leibniz, Newton, Bacon, Berkeley, Hobbes, Locke e
outros. E sinalizou uma verdadeira revolução intelectual, pois seja na
atitude de repúdio às certezas consagradas pela autoridade e pela
tradição, ou na busca de novas bases para a compreensão dos fenômenos
naturais e sociais, o ser humano passou a ser concebido no estado de
pura natureza, mediante uma dedução exclusivamente racional.
Ora, nesse universo
retomou-se a crença num Direito Natural, que nasce com o homem e é
inseparável na natureza humana. Porém, ao contrário da proposta
medieval da dupla verdade – uma revelada por Deus e outra conquistada
pela razão - , a nova escola Jusnaturalista, que tomou forma a partir
do século XVII, sustentava que o homem era titular de certos direitos
fundamentais, cuja existência independia de qualquer justificação
metafísica. Nessa linha, o jurista holandês Hugo Grotius (autor de
“De Jure Belli ac Pacis” – 1625) e o alemão Samuel Pufendorf
(“De Juri Naturae et Gentium Libri Octo”- 1672), para quem as leis
da natureza eram necessárias, imutáveis e por si só teriam poder de
obrigar os homens (Jean TOUCHARD et alii, in “Histórias das Idéias
Políticas”- vol. III, Lisboa, Public. Europa-América, 1970).
Grosso modo, podem ser
resumidas em quatro, as proposições esposadas pelos jusnaturalistas da
época: a) considerados eternos e absolutos, existem direitos naturais
demonstráveis pala razão, extensivos a todas as pessoas em todos os
tempos e lugares; b) o Direito Natural consiste num conjunto de regras,
verificáveis à luz da razão, que asseguram perfeitamente todos esses
direitos naturais; c) a existência do Estado se prende, tão só, a
garantir aos homens esses direitos naturais; d) o direito positivo,
aplicado e executado pelos tribunais, é o meio pelo qual o Estado
realiza essa função, obrigando moralmente apenas enquanto em concordância
com o Direito Natural (Rascoe POUND, “Liberdades e Garantias
Constitucionais”, SP, Ibrasa, 2ª ed., 1972).
O racionalismo
jusnaturalista foi levado ao extremo pelo inglês Thomas Hobbes ( na
obra “Leviathan”- 1651), que formulou a tese da origem contratual do
Estado, em cujo favor, após o primitivismo caótico da convivência sem
ordem, os homens pactuaram renunciar aos seus direitos naturais,
objetivando a segurança de todos – o que daria ao governante um poder
absoluto. Essa postura, modernamente, recebeu forte crítica do jurista
italiano Norberto BOBBIO, ao observar que o Direito Natural da Idade
Moderna (contada em Hobbes), com sua “concepção estreita,
particularmente privatista e atomista do homem”, deu origem ao
liberalismo. Para BOBBIO, Hobbes tomou como ponto de partida o homem
isolado, em estado natural egoísta, enquanto o jusnaturalismo medieval
viu o homem em sociedade e dentro de uma perspectiva comunitária (“De
Hobbes a Marx – Saggi di Storia della Filosofia”, Napoli, Morano, 2ª
ed., 1971).
Com John Locke, também
pensador inglês, em seu livro “Two Treatises of Government” (1689),
desenvolveu-se a teoria da liberdade natural do ser humano. Segundo
Locke, divergindo de Hobbes, os homens optaram por constituir-se em
sociedade no afã de alcançarem melhor proteção de seus direitos
naturais (a liberdade e a propriedade); eles não renunciaram a seus
direitos, mas o confiaram a uma autoridade comum, mediante um contrato.
O poder, pois, era consentido, não sendo lícito ao soberano exercê-lo
de maneira despótica, sob pena dos súditos retomá-lo pela via da
rebelião – “direito de resistência” – para recobrar a
liberdade originária. É curioso notar a relativa identidade entre o
trabalho de Locke e o de Francisco Suárez, embora a diferença de mais
de cinqüenta anos que os medeiam, até para mostrar que a futura noção
do liberalismo sobre o Estado de Direito limitou-se, insofismavelmente,
a apenas uma das correntes do jusnaturalismo (a “racionalista”).
Para o teólogo espanhol Suárez, em sua obra “De Legibus ac Deo
Legislatore”(1612), os homens eram, por natureza, igualmente livres e
não súditos uns dos outros. Da natureza a comunidade recebia
automaticamente a autoridade política, e então a transferia ao príncipe.
Destarte, a determinação da forma de governo não deriva da natureza,
mas da livre escolha da comunidade. E sublinhava ela que o poder político
era de direito divino, quando considerado em si mesmo, abstratamente;
mas de direito humano, quando considerado concretamente, enquanto
exercido por pessoas determinadas.
Essa polêmica adentrou
pelo século XVIII, marcado por um confronto direto e definitivo com o
carcomido regime absolutista. Nessa fase, foram da maior alta valia e
influência as seguintes contribuições: a) de Montesquieu, em cuja
obra-mestra, “O Espírito das Leis” (1748), prescreveu a suprema
necessidade da separação das funções do Estado em três poderes
distintos e independentes (executivo/legislativo/judiciário),
denunciando uma atentatória à liberdade a concentração do poder nas
mãos de uma só pessoa ou órgão; b) de Voltaire, crítico mordaz das
idéias e costumes de seu tempo, dono de vasta publicação (“Cartas
Filosóficas”, por ex., em 1734), e que foi um acérrimo defensor da
liberdade individual e implacável combatente de todo tipo de
despotismo; c) de Jean-Jacques Rousseau, em cujo trabalho mais
festejado, “Do Contrato Social” (1762), expôs a tese de que os
homens se agregaram societariamente por motivos eminentemente pragmáticos,
na soma de forças para sobrepujar a resistência. Essa união era
engendrada pelo contrato social, a se constituir num instrumento que
garantia simultaneamente a igualdade e a liberdade – e nisso diferia
de Locke, que associava liberdade e propriedade. Mais que isso, Rousseau
condenou a propriedade privada (“causa primeira da miséria
social”), porque a igualdade das massas (o povo como “único
soberano”), e, enalteceu a vida do “bom selvagem” (contrapondo-o
à civilização européia); d) dos “enciclopedistas”, grupo de filósofos
e economistas, dirigidos por Diderot e D’Alembert, que resumiram
sistematicamente os esforços do intelecto humano, com a famosa
“Enciclopédia” (35 volumes – 1751/1772), e em cujas páginas
desenvolveu um fervoroso programa de reivindicações sociais e políticas;
e) de Cesare Beccaria, autor do livro “Dei Delitti e delle Pene”
(1764), onde desfiou – fundado numa perspectiva racional, no direito
natural, no contrato social e no controle do poder – veementemente,
seu libelo contra o processo secreto, a desigualdade dos castigos
segundo a qualificação das pessoas, a atrocidade dos suplícios, a
tortura e a pena de morte.
Com todas as características
já mencionadas e ante o peso de tamanha efervescência cultural, o
Jusnaturalismo espalhou-se por toda a Europa e também pela América,
servindo de base doutrinária para a Declaração de Direitos dessa centúria
oitocentista. Tais documentos, que se mostraram verdadeiros manifestos
políticos das novas forças sociais que despontavam, passaram a
enunciar formal e solenemente os direitos fundamentais dos indivíduos.
Consoante Henrique R. LEWANDOWSKI, é sobremodo interessante atentar que
a expressão “declaração de direitos” deixa transparecer por
completo o espírito que animava a edição desses diplomas:
“acreditava-se que os direitos individuais não constituíam uma criação
do Estado, posto que existiam antes do advento deste, bastando, pois,
para fazê-los respeitados, declarar expressamente a existência dos
mesmos, depois de racionalmente reduzidos da natureza humana”
(“Proteção dos Direitos Humanos na Ordem Interna e Internacional”,
RJ, Forense, 1984).
Muito embora a
Inglaterra tenha dado o impulso inicial, e não obstante situar-se na
França o polo mais ativo da irradiação de idéias, foi na América do
Norte, na ainda colônia de Virgínia, que surgiu a primeira Declaração
de Direitos. Tamanho feito, por parte de uma colônia, não deve causar
espanto. Ao darem contornos definitivos à sua luta libertária, as colônias
inglesas da América reuniram-se num Congresso Continental, em 1774, que
recomendou a formação de governos independentes. E nisso quem se
antecipou às demais foi justamente a Virgínia, que em 12 de junho de
1776 publicou sua manifestação formal de direitos (“... do Bom Povo
de Virgínia”), e cuja cláusula primeira anunciava “que todos os
homens são por natureza igualmente livres e independentes” – e com
certos direitos, inerentes dos quais não poderiam ser privados. Nesse
expediente de 16 cláusulas, inequívoco alicerce do constitucionalismo
americano, percebe-se com nitidez a influência das doutrinas
jusnaturalistas e iluministas então em voga, precipuamente das obras de
Locke, Montesquieu e Rousseau. Outras sete (7) colônias, mirando-se
nesse exemplo, adotaram constituições radicalistas com semelhantes
dispositivos de proteção individual.
Ainda em 1776, como
passo decisivo desse processo emancipatório, o 3º Congresso da Filadélfia
aprovou a “Declaração de Independência dos Estados Unidos”, em 4
de julho daquele ano. O texto, que também traz a herança do mesmo
legado entre os homens, considerados titulares de certos direitos
inalienáveis como a vida, a liberdade e a procura da própria
felicidade. Seguem-se-lhe a Constituição Federal de 1787, e, uma
“Bill of Rights” (Declaração de Direitos), aprovada em 1789 e
ratificada em 1791, contendo dez emendas à Carta Básica
norte-americana. Todos esses acontecimentos e prescrições legais foram
de notável significação humana e social, de grande qualidade sistemática
e de inflamada capacidade de estímulo, influindo nas revoluções
libertárias da América hispano-portuguesa e, inclusive, na França
iluminista.
Todavia, foi a
“Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão”, aprovada pela
Assembléia Nacional francesa, em 26 de agosto de 1789 que,
incontestavelmente, teve desde logo muito maior repercussão do que as
precedentes. Para tanto contribuiu, em parte, a notória condição
francesa de centro irradiador de idéias e iniciativas; mas o seu
sucesso defluiu, sobretudo, do caráter universal daquela Declaração,
cujos autores souberam enunciar direitos individuais como aplicáveis a
todas as sociedades políticas.
A “Declaração dos
Direitos do Homem e do Cidadão” instituiu um Estado de Direito e,
partindo do pressuposto que fazia-se mister fixar solenemente os
“direitos naturais, inalienáveis e sagrados do homem”, tratou de
regulá-los em seus 17 artigos, dentre os quais destacamos: a) a
igualdade de todos, quanto aos direitos (art. 1); b) a liberdade, a
propriedade, a segurança e a resistência à opressão, como direitos
naturais e imprescritível da pessoa humana (art. 2); c) a soberania
reside na Nação: o povo é quem delega autoridade 9art. 3); d) a
medida da extensão da liberdade de cada um é não prejudicar o direito
de outrem (art. 4); e) o princípio da legalidade, permitindo-se tudo
quanto a lei não proíba e estatuindo que ninguém pode ser
constrangido a fazer o que ela não manda (art. 5); f) a proibição de
acusação, prisão ou detenção, salvo nos casos determinados opor lei
e na forma por ela prescrita (art. 7); g) a presunção de inocência
(art. 9); h) a liberdade de manifestação dos pensamentos e opiniões
(art. 11); i) a garantia dos direitos e a separação dos Poderes através
da Constituição (art. 16); j) a propriedade como um direito sagrado e
inviolável, salvo caso de necessidade pública e mediante justa e prévia
indenização (art. 17).
A Declaração de 1789,
como se sabe, tornou-se uma fonte – obrigatória e permanente – para
as novas proclamações do gênero, tanto na própria França (em 1793,
1795, 1814 e 1848), quanto no restante da Europa e no continente da
burguesia, representou o cortamento de uma longa luta pela afirmação
das liberdades públicas e princípios basilares da pessoa humana, dando
um novo perfil à sociedade e acarretando sensível progresso
institucional.
O elenco de direitos,
também, coincidiu com as aspirações de amplas massas populares, na
sua contraposição aos privilégios da aristocracia. O jurista Dalmo
DALLARI chama a atenção, porém, para o cunho nitidamente liberalista
daquela Declaração, por subordinar a vida social ao indivíduo e
assegurar a prevalência da orientação passiva do Estado, “como
simples conservador dos direitos dos que já o possuíam, sem nada fazer
pelos que não tinham qualquer direito a conservar” (Elementos da
Teoria Geral do Estado, SP, Saraiva, 3º ed., 1976). E o pesquisador João
Ricardo W. DORNELLES, partindo da realidade em que se inseriu a Revolução
Francesa, considera que os direitos por ela sagrados “primeiramente
satisfazia às necessidades da burguesia, dentro do processo de
constituição do mercado livre”, criando as condições de sedimentação
do modo de produção capitalista, para o que “eram fundamentais a
consolidação do Estado liberal e a regulamentação constitucionais
dos direitos dos indivíduos” (O que São Direitos Humanos, SP, Ed.
Brasiliense, 1989). Entretanto há que se tomar cuidado aqui com o
perigo do reducionismo, para não se confundir entre “liberdade
individual” e “liberdade burguesa”. Assim, numa lúcida advertência
do pensador italiano Norberto BOBBIO, a liberdade individual resultou
historicamente da ascensão da classe burguesa, mas o possível
perecimento da burguesia como classe não significará a extinção da
liberdade: esta, como valor universal, acrescenta ele, foi conquistada
para todos (apud Nelson SALDANHA, in: O Estado Moderno e a Separação
de Poderes, SP, Saraiva, 1987) tanto que, ressalvada a gradativa e
necessária expansão de seu conceito, não se conhece hoje em dia
qualquer Estado, seja qual for a ideologia que o norteie, que não
afirme, pomposamente, em seu estatuto político, o respeito por esses
direitos.
Enfim, a “Declaração
dos Direitos do Homem e do Cidadão”, sendo fator convergente de
aspirações e conquistas – remotas e recentes – relativas à
confirmação dos direitos elementares, aparece como uma das referências
frontais a determinar a primeira geração dos direitos humanos,
relativos ao princípio de liberdade. Indubitavelmente, os direitos
civis e políticos, como garantias do indivíduo frente poder estatal, e
a partir daí positivados (ou seja, presentes no ordenamento jurídico),
são uma etapa capital na evolução histórico-conceitual dos direitos
humanos, mas não a última. Os acontecimentos e exigências contemporâneos,
encetados com a Revolução Industrial, comprovam essa assertiva.
Wagner
D'Angelis
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