GÊNERO:
UMA CATEGORIA ÚTIL
PARA A ANÁLISE HISTÓRICA
Joan
Scott **
Gênero,
Gram. Categoria que indica por meio de desinência uma
divisão dos nomes baseada em critérios tais como sexo e
associações psicológicas. Há gêneros masculino,
feminino e neutro.
Novo
Dicionário da Língua Portuguesa (Aurélio B. de Hollanda
Ferreira).
Aqueles
que se propõem a codificar os sentidos das palavras lutam
por uma causa perdida, porque as palavras, como as idéias
e as coisas que elas significam, têm uma história. Nem
os professores de Oxford, nem a Academia Francesa foram
inteiramente capazes de controlar a maré, de captar e
fixar os sentidos livres do jogo da invenção e da
imaginação humana. Mary Wortley Montagu acrescentava a
ironia à sua denúncia do “belo sexo” (“meu único
consolo em pertencer a este gênero é ter certeza de que
nunca vou me casar com uma delas”) fazendo uso,
deliberadamente errado, da referência gramatical. Ao
longo dos séculos, as pessoas utilizaram de forma
figurada os termos gramaticais para evocar traços de caráter
ou traços sexuais. Por exemplo, a utilização proposta
pelo Dicionário da Língua Francesa de 1879 era: “Não
se sabe qual é o seu gênero, se é macho ou fêmea,
fala-se de um homem muito retraído, cujos sentimentos são
desconhecidos”. E Gladstone fazia esta distinção em
1878: “Atenas não tinha nada do sexo a não ser o gênero,
nada de mulher a não ser a fama”. Mais recentemente –
recentemente demais para encontrar seu caminho nos dicionários
ou na enciclopédia das ciências sociais – as
feministas começaram a utilizar a palavra “gênero”
mais seriamente, no sentido mais literal, como uma maneira
de referir-se à organização social da relação entre
os sexos. A conexão com a gramática é ao mesmo tempo
explícita e cheia de possibilidades inexploradas. Explícita,
porque o uso gramatical implica em regras que decorrem da
designação do masculino ou feminino; cheia de
possibilidades inexploradas, porque em vários idiomas
indo-europeus existe uma terceira categoria – o sexo
indefinido ou neutro. Na gramática, gênero é
compreendido como um meio de classificar fenômenos, um
sistema de distinções socialmente acordado mais do que
uma descrição objetiva de traços inerentes. Além
disso, as classificações sugerem uma relação entre
categorias que permite distinções ou agrupamentos
separados.
No
seu uso mais recente, o “gênero” parece ter aparecido
primeiro entre as feministas americanas que queriam
insistir na qualidade fundamentalmente social das distinções
baseadas no sexo. A palavra indicava uma rejeição ao
determinismo biológico implícito no uso de termos como
“sexo” ou “diferença sexual”. O “gênero”
sublinhava também o aspecto relacional das definições
normativas de feminilidade. As que estavam mais
preocupadas com o fato de que a produção dos estudos
femininos centrava-se sobre as mulheres de forma muito
estreita e isolada, utilizaram o termo “gênero” para
introduzir uma noção relacional no nosso vocabulário
analítico. Segundo esta opinião, as mulheres e os homens
eram definidos em termos recíprocos e nenhuma compreensão
de qualquer um poderia existir através de estudo
inteiramente separado. Assim, Nathalie Davis dizia em
1975: “Eu acho que deveríamos nos interessar pela história
tanto dos homens quanto das mulheres, e que não deveríamos
trabalhar unicamente sobre o sexo oprimido, da mesma forma
que um historiador das classes não pode fixar seu olhar
unicamente sobre os camponeses. Nosso objetivo é entender
a importância dos sexos, dos grupos de gêneros no
passado histórico. Nosso objetivo é descobrir a
amplitude dos papéis sexuais e do simbolismo sexual nas várias
sociedades e épocas, achar qual o seu sentido e como
funcionavam para manter a ordem social e para mudá-la”.
Ademais,
e talvez o mais importante, o “gênero” era um termo
proposto por aquelas que defendiam que a pesquisa sobre
mulheres transformaria fundamentalmente os paradigmas no
seio de cada disciplina. As pesquisadoras feministas
assinalaram muito cedo que o estudo das mulheres
acrescentaria não só novos temas, como também iria
impor uma reavaliação crítica das premissas e critérios
do trabalho científico existente. “Aprendemos”,
escreviam três historiadoras feministas, “que inscrever
as mulheres na história implica necessariamente na
redefinição e no alargamento das noções tradicionais
do que é historicamente importante, para incluir tanto a
experiência pessoal e subjetiva, quanto as atividades públicas
e políticas. Não é exagerado dizer que, por mais
hesitante que sejam os passos iniciais, esta metodologia
implica não apenas em uma nova história das mulheres,
mas em uma nova história”. A maneira como esta nova
história iria simultaneamente incluir e apresentar a
experiência das mulheres dependeria da maneira como o gênero
poderia ser desenvolvido enquanto categoria de análise.
Aqui as analogias com a classe e a raça eram explícitas;
com efeito as(os) pesquisadoras(es) de estudos sobre a
mulher que tinham uma visão política mais global,
recorriam regularmente a essas três categorias para
escrever uma nova história. “O interesse pelas
categorias de classe, de raça e de gênero assinalava
inicialmente o compromisso do(a) pesquisador(a) com uma
historia que incluía a fala dos(as) oprimidos(as) e com
uma análise do sentido e da natureza de sua opressão;
assinalava também que esses(as) pesquisadores(as) levavam
cientificamente em relação o fato de que as
desigualdades de poder estão organizadas segundo, no mínimo,
estes três eixos.
A
ladainha “classe, raça e gênero” sugere uma paridade
entre os três termos que, não existe. Enquanto a
categoria de “classe” está baseada na complexa teoria
de Marx (e seus desenvolvimentos posteriores) sobre a
determinação econômica e a mudança histórica, as
categorias de “raça” e “gênero” não veiculam
tais associações. Não há unanimidade entre os(as) que
utilizam os conceitos de classe. Alguns(mas)
pesquisadores(as) utilizam as noções de Weber,
outros(as) utilizam a classe como uma fórmula heurística
temporária. Além disso, quando mencionamos a
“classe”, trabalhamos com ou contra uma série de
definições que, no caso do marxismo, impliquem uma idéia
de causalidade econômica e numa visão do caminho pelo
qual a história avançou dialeticamente. Não existe
esse tipo de clareza ou coerência nem para a
categoria de “raça” nem para a de “gênero”. No
caso de “gênero”, o seu uso comporta um elenco tanto
de posições teóricas, quanto de simples referências
descritivas às relações entre os sexos.
Entretanto,
os(as) historiadores(as) feministas – que como a maioria
dos(as) historiadores(as) são formados(as) para ficar
mais à vontade com descrições do que com teoria –
tentaram cada vez mais buscar formulações teóricas
utilizáveis. Eles(as) fizeram isso pelo menos por duas
razões. Primeiro, porque a proliferação de estudos de
caso na história das mulheres parece exigir uma
perspectiva sintética que possa explicar as continuidades
e descontinuidades e dar conta das desigualdades
persistentes, mas também das experiências sociais
radicalmente diferentes. Depois, porque a defasagem entre
a alta qualidade dos trabalhos recentes em história das
mulheres e o seu estatuto, que permanece marginal em relação
ao conjunto da disciplina (que pode ser medida pelos
manuais, programas universitários e monografias), mostra
os limites das abordagens descritivas que não questionam
os conceitos dominantes no seio da disciplina ou, pelo
menos, não os questionam de forma a abalar o seu poder e,
talvez, transformá-los. não foi suficiente para os(as)
historiadores(as) das mulheres provar ou que as mulheres
tiveram uma história ou que as mulheres participaram das
mudanças políticas principais da civilização
ocidental. No que diz respeito à história das mulheres,
a reação da maioria dos(as) historiadores(as) não
feministas foi reconhecê-la, colocá-la em um domínio
separado ou descartá-la (“as mulheres têm uma história
separada da dos homens, portanto deixemos as feministas
fazer a história das mulheres, que não nos concerne
necessariamente” ou “a história das mulheres trata do
sexo e da família e deveria ser feita separadamente da
história política e econômica”). No que diz respeita
à participação das mulheres na história, a reação
foi, no melhor dos casos, de um interesse mínimo
(“Minha compreensão da Revolução Francesa não mudou
quando eu descobri que as mulheres participaram dela”).
O desafio lançado por este tipo de reação é, em último
instância, um desafio teórico. Ele exige a análise não
só da relação entre experiências masculinas e
femininas no passado, mas, também, a ligação entre a
história do passado e as práticas históricas atuais.
Como é que o gênero funciona nas relações sociais
humanas? Como é que o gênero dá um sentido à organização
e à percepção do conhecimento histórico? As respostas
dependem do gênero como categoria de análise.
I
Na
sua maioria, as tentativas das(os) historiadoras(es) de
teorizar sobre gênero não fogem dos quadros tradicionais
das ciências sociais: elas(es) utilizam as formulações
antigas que propõem explicações causais universais.
Essas teorias tiveram, no melhor dos casos, u, caráter
limitado por tenderem a incluir generalizações redutoras
ou simples demais, que minam não só o sentido da
complexidade da causalidade social na forma proposta pela
história como disciplina, mas também o engajamento
feminista na elaboração de análises que levam à mudança.
Um exame crítico destas teorias mostrará os seus limites
e permitirá propor uma abordagem alternativa.
As
abordagens utilizadas pela maioria dos(as)
historiadores(as) se dividem em duas categorias distintas.
A primeira é essencialmente descritiva, refere-se à
existência de fenômenos ou realidades sem interpretá-los,
explicá-los ou atribuir-lhes uma causalidade. O segundo
uso é de ordem causal: ela elabora teorias sobre a
natureza dos fenômenos e das realidades, buscando como e
porque assumem a forma que têm.
No
seu uso recente mais simples, “gênero” é sinônimo
de “mulheres”. Durante os últimos anos, livros e
artigos que tinham como tema a história das mulheres,
substituíram em seus títulos o termo “mulheres” pelo
termo “gênero”. Em alguns casos, este uso, ainda que
se referindo vagamente a certos conceitos analíticos,
trata realmente da aceitabilidade política desse campo de
pesquisa. Nessas circunstâncias, o uso do termo “gênero”
visa indicar a erudição e a seriedade de um trabalho,
pois “gênero” tem uma conotação mais objetiva e
neutra do que “mulheres”. O gênero parece integrar-se
à terminologia científica das ciências sociais e, por
conseqüência, dissociar-se da política (pretensamente
escandalosa) do feminismo. Neste uso, o termo gênero não
implica necessariamente na tomada de posição sobre a
desigualdade ou o poder, nem mesmo designa a parte lesada
(e até agora invisível). Enquanto o termo “história
das mulheres” revela sua posição política ao afirmar
(contrariamente às práticas habituais) que as mulheres são
sujeitos históricos válidos, o “gênero” inclui as
mulheres sem as nomear, e parece assim não se constituir
em uma ameaça crítica. Este uso do “gênero” é um
aspecto que poderia ser chamado de procura de uma
legitimidade acadêmica pelos estudos feministas nos anos
’80.
Mas
isso é apenas um aspecto. “Gênero” como substituto
de “mulheres” é igualmente utilizado para sugerir que
a informação a respeito das mulheres é necessariamente
informação sobre os homens, que um implica no estudo do
outro. Este uso insiste na idéia de que o mundo das
mulheres faz parte do mundo dos homens, que ele é criado
dentro e por esse mundo. Esse uso rejeita a utilidade
interpretativa da idéia das esferas separadas e defende
que estudar as mulheres de forma isolada perpetua o mito
de que uma esfera, a experiência de um sexo, tem muito
pouco ou nada a ver com o outro sexo. Ademais, o gênero
é igualmente utilizado para designar as relações
sociais entre os sexos. O seu uso rejeita explicitamente
as explicações biológicas, como aquelas que encontram
um denominador comum para várias formas de subordinação
no fato de que as mulheres têm filhos e que os homens têm
uma força muscular superior. O gênero se torna, aliás,
uma maneira de indicar as “construções sociais”: a
criação inteiramente social das idéias sobre os papéis
próprios aos homens e às mulheres. É uma maneira de se
referir às origens exclusivamente sociais das identidades
subjetivas dos homens e das mulheres. O gênero é,
segundo essa definição, uma categoria social imposta
sobre um corpo sexuado. Com a proliferação dos estudos
do sexo e da sexualidade, o gênero se tornou uma palavra
particularmente útil, porque oferece um meio de
distinguir a prática sexual dos papéis atribuídos às
mulheres e aos homens. Apesar do fato dos(as)
pesquisadores(as) reconhecerem as conexões entre o sexo e
o que os sociólogos da família chamaram de “papéis
sexuais”, aqueles(as) não colocam entre os dois uma
relação simples ou direta. O uso do “gênero” coloca
a ênfase sobre todo o sistema de relações que pode
incluir o sexo, mas que não é diretamente determinado
pelo sexo nem determina diretamente a sexualidade.
Esses
usos descritivos do gênero foram utilizados pelos(as)
historiadores(as), na maioria dos casos, para mapear um
novo terreno. Na medida em que os(as) historiadores(as)
sociais se voltaram para novos temas de estudo, o gênero
dizia respeito apenas a temas como as mulheres, as crianças,
as famílias e as ideologias de gênero. Em outros termos,
esse uso do gênero só se refere aos domínios – tanto
estruturais quanto ideológicos – que implicam em relações
entre os sexos. Porque, na aparência, a guerra, a
diplomacia e a alta política têm explicitamente a ver
com essas relações. O gênero parece não se aplicar a
esses objetivos e, portanto, continua irrelevante para a
reflexão dos(as) historiadores(as) que trabalham sobre o
político e o poder. Isso resulta na adesão a uma certa
visão funcionalista baseada, em última análise, sobre a
biologia, bem como na perpetuação da idéia das esferas
separadas (a sexualidade ou a política, a família ou a
nação, as mulheres ou os homens) na escritura da história.
Mesmo se nesse uso o termo “gênero” afirma que as
relações entre os sexos são sociais, ele não diz nada
sobre as razões pelas quais essas relações são construídas
desta forma, como funcionam ou como mudam. No seu uso
descritivo, o “gênero” é, portanto, um conceito
associado ao estudo das coisas relativas às mulheres. O
“gênero” é um novo tema, novo campo de pesquisas
históricas, mas ele não tem a força de análise
suficiente para interrogar (e mudar) os paradigmas históricos
existentes.
Alguns(mas)
historiadores(as) estavam, naturalmente, conscientes desse
problema, daí os esforços para empregar teorias que
possam explicar o conceito de gênero e dar conta da mudança
histórica. De fato, o desafio é a reconciliação da
teoria – que era concebida em termos gerais ou
universais – com a história – que estava tratando do
estudo de contextos específicos e da mudança
fundamental. O resultado foi muito eclético: empréstimos
parciais que enviesam a força de análise de uma teoria
particular ou, pior, que empregam os seus preceitos sem
ter consciência das suas implicações; ou então descrições
da mudança que, por se basearem em teorias universais, só
conseguem ilustrar temas imutáveis, ou ainda, estudos
maravilhosos e cheios de imaginação nos quais a teoria
é, entretanto, tão escondida que esses estudos não
podem ser utilizados como modelos para outras pesquisas.
Como frequentemente as teorias que inspiraram os(as)
historiadores(as) não eram claramente desvendadas em
todas as suas implicações, parece digno de interesse
empregar algum tempo nesse exame. É unicamente através
de tal exercício que se pode avaliar a utilidade dessas
teorias e começar a articular uma abordagem teórica mais
poderosa.
Os(as)
historiadores(as) feministas utilizaram toda uma série de
abordagens na análise do gênero, mas estas podem ser
resumidas em três posições teóricas. A primeira, um
esforço inteiramente feminista que tenta explicar as
origens do patriarcado. A segunda se situa no seio de uma
tradição marxista e procura um compromisso com as críticas
feministas. A terceira, fundamentalmente dividida entre o
pós-estruturalismo francês e as teorias anglo-americanas
das relações de objeto, inspira-se nas várias escolas
de psicanálise para explicar a produção e a reprodução
da identidade de gênero do sujeito.
As
teóricas do patriarcado concentraram sua atenção na
subordinação das mulheres e encontraram a explicação
para este fato na “necessidade” do macho dominar as
mulheres. Na sua engenhosa adaptação de Hegel, Mary O’Brien,
define a dominação masculina como um efeito do desejo
dos homens de transcender a sua alienação dos meios de
reprodução da espécie. O princípio da continuidade de
geração restitui a primazia da paternidade e obscurece o
labor real e a realidade social do trabalho das mulheres
no parto. A fonte de libertação das mulheres se encontra
“numa compreensão adequada do processo de reprodução”,
numa apreciação da contradição entre a natureza do
trabalho reprodutivo das mulheres e as mistificações
ideológicas (masculinas) deste. Para Sulamith Firestone,
a reprodução era também aquela “amarga armadilha”
para as mulheres. Entretanto, na sua análise mais
materialista, a libertação das mulheres viria das
transformações na tecnologia de reprodução, que
poderia no futuro próximo eliminar a necessidade do corpo
das mulheres como agentes de reprodução da espécie.
Se a
reprodução era a chave do patriarcado para algumas, para
outras a resposta encontrava-se na sexualidade em si. As
transformações audaciosas de Catherine Mackinnon são
criações próprias mas, ao mesmo tempo, são características
de uma certa abordagem. “A sexualidade é para o
feminino o que o trabalho é para o marxismo: o que nos
pertence mais e, no entanto, nos é mais alienado”. A
reificação sexual é o processo primário da sujeição
das mulheres. Ela alia o ato à palavra, a construção à
expressão, a percepção à efetivação e o mito à
realidade. “O homem come a mulher: sujeito, verbo,
objeto”. Continuando a sua analogia com Marx, Mackinnon
propôs como método de análise feminista, no lugar do
materialismo dialético, os grupos de consciência.
Expressando a experiência compartilhada de reificação,
dizia ela, as mulheres compreendem sua identidade comum e
são levadas para a ação política. Na análise de
Mackinnon, apesar do fato de que as relações sexuais
sejam definidas como sociais, não tem nada – fora a
inerente desigualdade da relação sexual em si – que
possa explicar por que o sistema de poder funciona assim.
A fonte das relações desiguais entre sexos é, afinal de
contas, as relações desiguais entre os sexos. Apesar
dela afirmar que a desigualdade – que tem as suas
origens na sexualidade – está integrada em “todo um
sistema de relações sociais”, ela não explica como
esse sistema funciona.
As
teorias do patriarcado questionam a desigualdade entre
homens e mulheres de várias maneiras importantes, mas
para os(as) historiadores(as) as suas teorias colocam
alguns problemas. Enquanto aquelas propõem uma análise
interna ao sistema do gênero, afirmam igualmente a
primazia desse sistema em relação à organização
social no seu conjunto. Mas as teorias do patriarcado não
explicam o que é que a desigualdade de gênero tem a ver
com as outras desigualdades. Segundo, que a dominação
venha na forma de apropriação masculina do labor
reprodutivo da mulher, ou que ela venha pela reificação
sexual das mulheres pelos homens, a análise baseia-se na
diferença física. Toda diferença física tem um caráter
universal e imutável mesmo quando as teóricas do
patriarcado levam em consideração a existência de mudanças
nas formas e nos sistemas de desigualdade de gênero. Uma
teoria que se baseia na variável única da diferença física
é problemática para os(as) historiadores(as): elas
pressupõe um sentido coerente ou inerente ao corpo humano
– fora qualquer construção sócio-cultural – e
portanto, a não historicidade do gênero em si. De um
certo ponto de vista, a história se torna um epifenômeno
que oferece variações intermináveis sobre o tema imutável
de uma desigualdade de gênero fixa.
As
feministas marxistas têm uma abordagem mais histórica, já
que são guiadas por uma teoria da história. Mas qualquer
que sejam as variações e as adaptações, o fato de que
elas se impõem a exigência de encontrar uma explicação
“material” para o gênero, limitou ou, pelo menos,
atrasou o desenvolvimento de novas direções de análise.
Tanto nas análises que propõem uma solução baseada nos
chamados sistemas duais (compostos de dois domínios: o
patriarcado e o capitalismo, separados mas em interação),
como naquelas que se apoiam mais firmemente nos debates
marxistas ortodoxos sobre modos de produção, a explicação
das origens e das transformações de sistemas de gêneros
é encontrada fora da divisão sexual do trabalho. Afinal
de contas, famílias, lares e sexualidade são produtos de
modos de produção que mudam. É assim que Engels concluía
as suas explorações na Origem
da Família, da Propriedade Privada e do Estado, é
sobre isso que se baseia a análise da economista Heidi
Hartmann. Ela insiste sobre a necessidade de considerar o
patriarcado e o capitalismo como dois sistemas separados,
mas em interação. Porém, na medida em que desenvolve a
sua argumentação, a causalidade econômica se torna
prioritária e o patriarcado está sempre se desenvolvendo
e mudando como uma função das relações de produção.
Os
primeiros debates entre as feministas marxistas giravam em
torno dos mesmo problemas: a rejeição do essencialismo
daqueles que defendem que “as exigências da reprodução
biológica” determinam a divisão sexual do trabalho
pelo capitalismo; o caráter fútil da integração dos
“modos de reprodução” nos debates sobre os modos de
reprodução (a reprodução permanece uma categoria de
oposição e não assume um estatuto equivalente no de
modo de produção); o reconhecimento de que os sistemas
econômicos não determinam diretamente as relações de gênero
e que, de fato, a subordinação das mulheres é anterior
ao capitalismo e continua sob o socialismo; a busca,
apesar de tudo, de uma explicação materialista que
exclua as diferenças físicas naturais. Uma tentativa
importante de sair desse círculo veio de Joan Kelly no
seu ensaio “A Dupla Visão da Teoria Feminista”, onde
ela defendia que os sistemas econômicos e os sistemas de
gênero interagiam para produzir experiências sociais e
históricas; que nenhum dos dois sistemas era causal, mas
que ambos “operavam simultaneamente para produzir as
estruturas sócio-econômicas e de dominação masculina
de uma ordem social particular”. A idéia de Kelly de
que os sistemas de “gênero” teriam uma existência
independente se constitui numa abertura conceitual
decisiva, mas sua vontade de permanecer no quadro marxista
levou-a a dar ênfase ao papel causal dos fatores econômicos,
inclusive no que diz respeito à determinação do sistema
de gênero – “As relações entre os sexos opera de
acordo com e através das estruturas sócio-econômicas,
bem como das estruturas de sexo/gênero”. Kelly
introduziu a idéia de uma “realidade social baseada no
sexo”, mas ela tinha tendência a enfatizar a natureza
social dessa realidade mais do que sexual e, muitas vezes,
o uso que ela fazia do “social” era concebido em
termos de relações econômicas de produção.
A
exploração da sexualidade, que foi mais longe entre as
feministas marxistas americanas, encontra-se no “Powers
of Desire”, um volume de ensaios publicados em 1983.
Influenciadas, por um lado, pela atenção crescente dada
à sexualidade pelos militantes e pesquisadores, por um
lado, pela insistência do filósofo francês Michhel
Foucault de que a sexualidade é produzida em contextos
históricos; e por fim, pela convicção de que a
“revolução sexual” contemporânea exige uma análise
séria, as autoras centraram suas interrogações sobre a
“política sexual”. Desta maneira, elas colocaram a
questão da causalidade e propuseram uma série de soluções.
De fato, o mais sugestivo nesse volume é a falta de
unanimidade analítica, privilegiando a tensão na análise.
Se certas autoras tendem individualmente a sublinhar a
causalidade dos contextos sociais (muitas vezes entendidos
como econômicos), no entanto, elas sugerem a necessidade
de estudar “a estruturação psíquica da identidade de
gênero”. Se às vezes está dito que a “ideologia de
gênero” “reflete” as estruturas econômicas e
sociais, também há o reconhecimento crucial da
necessidade de se compreender a complexa “ligação
entre a sociedade e uma estrutura psíquica
persistente”. De um lado, as responsáveis pela
antologia adotam o argumento de Jessica Benjamin, segundo
o qual a política deveria incluir em sua análise a atenção
“sobre componentes eróticos e fantasmáticos da vida
humana” mas, por outra parte, nenhum ensaio, além do de
Benjamin, aborda plenamente ou seriamente as questões teóricas
que ela coloca. Em vez disso, há sobretudo um pressuposto
tácito que percorre o volume, segundo o qual o marxismo
poderia ser alargado para incluir as discussões sobre a
ideologia, a cultura e a psicologia e que esse alargamento
será efetuado através de pesquisas sobre dados
concretos, como aquelas que são feitas na maioria dos
artigos. A vantagem de uma tal abordagem é que ela evita
divergências agudas, e a sua desvantagem é que ela deixa
intacta uma teoria já inteiramente articulada que leva de
volta às relações entre os sexos para as relações de
produção.
Uma
comparação entre as tentativas das feministas marxistas
americanas – exploratórias e relativamente abrangentes
– e as das suas homólogas inglesas, mais estreitamente
ligadas à política de uma forte e viável tradição
marxista, revela que as inglesas têm tido mais
dificuldades em desafiar os limites de explicações
estritamente deterministas. Essa dificuldade se expressa
de forma mais espetacular nos recentes debates que foram
publicados na New
Left Rewiew entre Michéle Barrett e seus(suas) críticos(as),
que a acusavam de abandonar uma análise materialista da
divisão sexual do trabalho no capitalismo. Ela se
expressa também pelo fato de que os(as) pesquisadores(as)
que tinham iniciado uma tentativa feminista de reconciliação
entre a psicanálise e o marxismo e que tinham insistido
na possibilidade de uma certa fusão entre os dois,
escolham hoje uma ou outra dessas posições teóricas. A
dificuldade para as feministas inglesas e americanas que
trabalhavam nos quadros do maxismo é aparente nas obras
que eu mencionei aqui. O problema com o qual elas se
defrontam é o inverso daqueles que a teoria do
patriarcado coloca. Pois no interior do marxismo, o
conceito de gênero foi por muito tempo tratado como
sub-produto de estruturas econômicas mutantes; o gênero
não tem tido o seu próprio estatuto de análise.
Um
exame da teoria psicanalítica exige uma distinção entre
as escolas, já que se teve a tendência a classificar as
diferenças da abordagem segundo as origens nacionais dos
seus fundadores ou da maioria daqueles ou daquelas que os
aplicam. A escola anglo-americana trabalha dentro dos
termos das teorias das relações objetais. Nos Estados
Unidos, o nome de Nancy Chodorow é o mais associado a
essa abordagem. Além disso, o trabalho de Carol Gilligan
tem tido um impacto muito grande sobre a produção científica
americana, inclusive na área da história. O trabalho de
Gilligan inspira-se no trabalho de Chorodow, mesmo se ele
enfoca menos a construção do sujeito do que o
desenvolvimento moral e o comportamento. Ao contrário da
anglo-americana, a escola francesa baseia-se nas leituras
estruturalistas e pós-estruturalistas de Freud, nos
termos das teorias da linguagem (para as feministas a
figura central é Jacques Lacan).
As
duas escolas interessam-se pelos processos através dos
quais foi criada a identidade do sujeito, ambas centram o
seu interesse nas primeiras etapas do desenvolvimento da
criança com o objetivo de encontrar indicações sobre a
formação da identidade de gênero. As teóricas das relações
objetais colocam a ênfase sobre a influência da experiência
concreta (a criança vê, tem relações com as pessoas
que cuidam dela e, em particular, naturalmente, com os
seus pais), ao passo que os pós-estruturalistas linguagem
não designa unicamente as palavras, mas os sistemas de
significação, as ordens simbólicas que antecedem o Domínio
da palavra propriamente dita, da leitura e da escrita).
Uma outra diferença entre essas duas escolas de
pensamento diz respeito ao inconsciente que, para Chodorow,
é, em última instância, suscetível de compreensão
consciente do sujeito. Ademais, é o lugar de emergência
da divisão sexual e, por essa razão, um lugar de
instabilidade constante para o sujeito sexuado.
Nos
anos recentes as historiadoras feministas têm sido atraídas
por essas teorias ou porque elas permitem fundamentar
conclusões particulares para observações gerais, ou
porque elas parecem oferecer uma formulação teórica
importante no que diz respeito ao gênero. Cada vez mais,
os(as) historiadores(as) que trabalham com o conceito de
“cultura feminina” citam as obras de Chodorow e
Gilligan como provas e como explicações das suas
interpretação; aquelas que se debatem com a teoria
feminista, se voltam em direção a Lacan. Afinal de
contas, nenhuma dessas teorias me parece inteiramente
utilizável pelos(as) historiadores(as), um olhar mais
atento sobre cada uma delas poderia ajudar a explicar o
porque.
Minhas
reticências frente à teoria das relações objetais provêm
do seu literalismo, do fato de que ela faz a produção da
identidade de gênero e a gênese da mudança dependerem
de estruturas de interpelação relativamente pequenas.
Tanto a divisão do trabalho na família quanto a atribuição
concreta de tarefas a cada um dos pais têm um papel
crucial na teoria de Chodorow. O produto do sistema
dominante ocidental é uma divisão nítida entre
masculino e feminino: “o sentido feminino do Eu é
fundamentalmente ligado ao mundo, o sentido masculino do
Eu é fundamentalmente separado do mundo”. Segundo
Chodorow, se os pais fossem mais envolvidos nos deveres
parentais e mais presentes nas situações domésticas, os
resultados do drama edipiano seriam provavelmente
diferentes.
Essa
interpretação limita o conceito de gênero à esfera da
família e à experiência doméstica e, para o(a)
historiador(a), ela não deixa meios de ligar esse
conceito (nem o indivíduo) com outros sistemas sociais,
econômicos, políticos ou de poder. Sem dúvida, está
implícito que as disposições sociais que exigem que os
pais trabalhem e as mães cuidem da maioria das tarefas de
criação dos filhos, estruturam a organização da família.
Mas a origem desses disposições sociais não está
clara, nem o porque delas serem articuladas em termos da
divisão sexual do trabalho. Não se encontra também
nenhuma interrogação sobre o problema da desigualdade em
oposição àquele da simetria. Como podemos explicar, no
seio dessa teoria, as associações persistentes da
masculinidade com o poder e o fato de que os valores mais
altos estão mais investidos na qualidade de masculino do
que na qualidade de feminino? Como podemos explicar o fato
de que as crianças aprendem essas associações e avaliações
mesmo quando elas vivem fora dos lares nucleares ou dentro
de lares onde o marido e a mulher dividem as tarefas
parentais? Eu acho que não podemos fazer isso sem dar uma
certa atenção aos sistemas de significação, isto é,
às maneiras como as sociedades representam o gênero,
utilizam-no para articular regras de relações sociais ou
para construir o sentido da experiência. Sem o sentido não
há experiência; sem processo de significação não há
sentido.
A
linguagem é o centro da teoria lacaniana; é a chave do
acesso da criança à ordem simbólica. Através da
linguagem a identidade de gênero é construída. Segundo
Lacan, o fato é o significante central da diferença
sexual, mas o sentido do falo tem que ser lido de forma
metafórica. O drama edipiano faz com que a criança conheça
os termos da interação cultural, já que a ameaça de
castração representa o poder, as regras da Lei (de Pai).
A relação da criança com a Lei depende da diferença
sexual, da sua identificação imaginária (ou fantasmática)
com a masculinidade ou feminilidade. Em outros termos, a
imposição das regras da interação social é inerente e
especificamente de gênero, já que a relação feminina
com o falo é obrigatoriamente diferente da relação
masculina. Mas a identificação de gênero, mesmo quando
ela aparece como sendo coerente e fixa é, de fato,
extremamente instável. Da mesma forma que os sistemas de
significação, as identidades subjetivas são processos
de diferenciação e de distinção, que exigem a supressão
das ambiguidades e dos elementos opostos a fim de
assegurar (de criar a ilusão de) uma coerência e uma
compreensão comuns. O princípio de masculinidade
baseia-se na repressão necessária dos aspectos femininos
– do potencial bissexual do sujeito; e introduz o
conflito na oposição entre o masculino e o feminino.
Desejos reprimidos estão presentes na unidade e
subvertendo sua necessidade de segurança. Ademais, as idéias
conscientes do masculino e do feminino não são fixas, já
que elas variam segundo os usos do contexto. Portanto,
existe sempre um conflito entre a necessidade que o
sujeito tem de uma aparência de totalidade e a imprecisão
da terminologia, relatividade do seu significado e sua
dependência em relação à repressão. Esse tipo de
interpretação torna problemáticas as categorias
“homem” e “mulher”, sugerindo que o masculino que
o masculino e o feminino não são características
inerentes, mas construções subjetivas (ou fictícias).
Essa interpretação implica também que sujeito se
encontra num processo constante de construção e oferece
um meio sistemático de interpretar o desejo consciente e
inconsciente, referindo-se à linguagem como um lugar
adequado para a análise. Enquanto tal considero-a
instrutiva.
No
entanto me incomoda a fixação exclusiva sobre as questões
relativas ao sujeito individual e tendência a reificar
como a dimensão principal do gênero, o antagonismo
subjetivamente produzido entre homens e mulheres. Ademais,
mesmo ficando em aberto a maneira como “o sujeito” é
construído, a teoria tende a universalizar as categorias
e a relação entre homem e mulher. A conseqüência para
os(as) historiadores(as) é uma leitura redutora dos dados
do passado. Mesmo se esta teoria leva em consideração as
relações sociais articulando a castração com a proibição
e a lei, ela não permite a introdução de uma noção de
especificidade e de variabilidade histórica. O fato é o
único significante, o processo de construção do sujeito
de gênero é, em última instância, previsível, já que
é sempre o mesmo. Se nós pensarmos a construção da
subjetividade em contextos históricos e sociais como
sugere a teórica de cinema Teresa de Lauretis, não há
meio de precisar estes contextos nos termos propostos por
Lacan. De fato, mesmo na tentativa de Lauretis, a
realidade social (isto é, “as relações materiais,
econômicas e interpessoais que são de fato sociais, e
numa perspectiva mais amplamente históricas”) parece
situar-se à revelia do sujeito. Falta uma maneira de
conceber a “realidade social” em termos de gênero.
A
política constitui apenas um dos domínios onde o gênero
pode ser utilizado para a análise histórica. Eu escolhi
por duas razões os seguintes exemplos ligados à política
e ao poder no seu sentido mais tradicional, isto é, no
que diz respeito ao governo e ao Estado-Nação. Primeiro,
porque se trata de um território praticamente inexplorável,
já que o g6enero foi percebido como uma categoria antitética
aos negócios sérios da verdadeira política. Depois,
porque a história política – que ainda é o modo
dominante da interrogação histórica – foi o bastião
da resistência à inclusão de materiais ou de questões
sobre as mulheres e o gênero.
O gênero
foi utilizado literal ou analogicamente pela teoria política
para justificar ou criticar o reinado de monarcas ou para
expressar relações entre governantes e governos.
Poder-se-ia esperar que tenha existido debate entre os
contemporâneos dos reinos de Elizabeth I da Inglaterra ou
Catherine de Médicis na França sobre a adequação das
mulheres à direção política; mas numa época em que
parentesco e realeza eram intrinsecamente ligados, as
discussões sobre os reis machos colocavam igualmente em
jogo representações da masculinidade e da feminilidade.
As analogias com a relação marital constituem uma
estrutura para os argumentos de Jean Bodin, Robert Filmer
e John Locke. O ataque de Edmond Burke contra a Revolução
Francesa se desenvolve em torno de um contraste entre as
harpias feias e matadoras “sans culottes” (“as fúrias
do inferno sob a forma desnaturada da mais vil das
mulheres”) e a “doce feminilidade” de
Marie-Antoinette que escapou à multidão para “procurar
refúgio aos pés de um rei e de um marido” e cuja
beleza tinha antigamente inspirado o orgulho nacional
(referindo-se ao papel apropriado ao feminino na ordem política
Burke escreveu: “para que se possa amar a nossa pátria,
a nossa pátria tem que ser amável”). Mas a analogia não
diz respeito sempre no casamento, nem mesmo à
heterossexualidade. Na teoria política da Idade Média
islâmica, o símbolo do poder político faz mais freqüentemente
alusão às relações sexuais entre um homem e um menino,
sugerindo não só a existência de formas de sexualidade
aceitáveis comparáveis àquelas que Foucault descreve em
seu último livro a respeito da Grécia Clássica, mas
também à irrelevância das mulheres para qualquer noção
de política ou de vida pública.
Para
que este último comentário não seja interpretado como a
idéia de que a teoria política reflete simplesmente a
organização social, parece importante ressaltar que a
mudança nas relações de gênero pode acontecer a partir
de considerações sobre as necessidade do Estado. Um
exemplo importante é fornecido pela argumentação de
Louis de Bonald em 1816, sobre as razões pelas quais a
legislação da Revolução Francesa sobre o divórcio
devia ser revogada: da mesma forma que a democracia política
“permite ao povo, parte fraca da sociedade política,
rebelar-se contra o poder estabelecido”, da mesma forma
o divórcio, “verdadeira democracia doméstica”,
permite à esposa, “parte mais fraca, rebelar-se contra
a autoridade do marido(...) A fim de manter o Estado fora
do alcance do povo, é necessário manter a família fora
do alcance das esposas e das crianças”.
Bonald
começa com uma analogia para, em seguida, estabelecer uma
correspondência direta entre o divórcio e a democracia.
Retomando argumentos bem mais antigos a respeito da família
bem ordenada como fundamento do Estado bem ordenado, a
legislação que estabeleceu essa posição redefiniu os
limites da relação marital. Da mesma forma, na nossa época,
os ideólogos políticos conservadores gostariam de fazer
passar toda uma série de leis sobre a organização e o
comportamento da família, que modificariam as práticas
atuais. A ligação entre os regimes autoritários e o
controle das mulheres tem sido observada, mas não foi
estudada com profundidade. Seja num momento crítico para
a hegemonia jacobina durante a Revolução Francesa, seja
na hora em que Stálin apoderou-se da autoridade de
controle, ou na época da implementação da política
nazista na Alemanha, ou ainda no triunfo do Aiatolá
Khomeiny no Irã, em todas essas circunstâncias, os
dirigentes emergentes, legitimavam a dominação, a força,
a autoridade central e o poder soberano identificando-os
ao masculino (os inimigos, os “outsiders”, os
subversivos e a fraqueza eram identificados ao feminino),
e traduziam literalmente esse código em leis (proibindo
sua participação na vida política, tornando o aborto
ilegal, proibindo o trabalho assalariado das mães,
impondo códigos de vestuário à mulheres) que colocavam
as mulheres em seu lugar. Essas ações e a época de sua
realização têm pouco sentido em si mesmas. Na maioria
dos casos, o Estado não tinha nada de imediato ou nada de
material a ganhar com o controle das mulheres. Essas ações
só podem adquirir em sentido se elas são integradas a
uma análise da construção e da consolidação do poder.
Uma afirmação de controle ou de força tomou a forma de
uma política sobre as mulheres. Eles podem nos dar idéias
sobre os diversos tipos de relações de poder que se
constróem na história moderna, mas essa relação
particular não constitui um tema político universal.
Segundo modos diferentes, por exemplo, o regime democrático
do século XX tem igualmente construído as suas
ideologias políticas a partir de conceitos de gênero que
se traduziram em políticas concretas; o Estado de
Bem-Estar Social, por exemplo, demonstrou seu paternalismo
protetor através de leis dirigidas às mulheres e às
crianças. Ao longo da história, alguns movimentos
socialistas ou anarquistas recusaram completamente as metáforas
de dominação, apresentando de forma imaginativa as suas
críticas aos regimes e organizações sociais
particulares, em termos de transformação da identidade
de gênero. Os socialistas utópicos na França e na
Inglaterra nos anos de 1830 e 1840 conceberam sonhos de um
futuro harmonioso em termos das naturezas complementares
dos indivíduos, ilustrados pelo união do homem e da
mulher, “o indivíduo social”. Os anarquistas europeus
eram conhecidos desde muito tempo pela sua recusa das
convenções do casamento burguês, mas também pelas suas
visões de um mundo no qual as diferenças sexuais não
implicariam em hierarquia.
Trata-se
de exemplos de ligações explícitas entre o gênero e o
poder, mas estas constituem apenas uma parte da minha
definição do gênero como um modo primeiro de significar
as relações de poder. Frequentemente, a atenção
dedicada ao gênero não é explícita mas constitui, no
entanto, uma dimensão decisiva da organização da
igualdade e desigualdade. As estruturas hierárquicas
baseiam-se em compreensões generalizadas da relação
pretensamente natural entre homem e mulher. A articulação
do conceito de classe no século XIX baseava-se no gênero.
Enquanto na França, por exemplo, os reformadores
burgueses descreviam os operários em termos codificados
como femininos (subordinados, fracos, sexualmente
explorados como as prostitutas), ou dirigentes operários
e socialistas respondiam insistindo na posição masculina
da classe operária (produtores fortes, protetores das
mulheres e das crianças). Os termos desse discurso não
diziam respeito explicitamente ao gênero, mas eram reforçados
na medida em que se referenciavam a ele. A codificação
de gênero de certos termos estabelecia e
“naturalizava” seus significados. Nesse processo,
definições normativas do gênero, historicamente específicas
(e tomadas como dadas), reproduziram-se e integraram-se à
cultura da classe operária francesa.
Os
temas da guerra, da diplomacia e da alta política
aparecem frequentemente quando os(as) historiadores(as) da
história política tradicional colocam em questão a
utilidade do gênero para o seu trabalho. Mas, também,
temos que olhar além dos atores e do valor literal das
suas palavras. As relações de poder entre as nações e
o estatuto dos súditos coloniais foram tomados compreensíveis
(e portanto legítimos) em termos das relações entre
homem e mulher. A legitimação da guerra – sacrificar
vidas de jovens para proteger o Estado – tomou formas
diversificadas, desde o apelo explícito à virilidade (a
necessidade de defender as mulheres e as crianças, que de
outra forma seriam vulneráveis) até a crença no dever
que teriam os filhos de servir aos seus dirigentes ou a
seu (pai o) rei, e até associações entre masculinidade
e potência nacional. A alta política, ela mesma, é um
conceito de gênero porque estabelece a sua importância
decisiva e seu poder público, as razões de ser e a
realidade da existência de sua autoridade superior,
precisamente graças a exclusão das mulheres do seu
funcionamento. O gênero é uma das referências
recorrentes pelas quais o poder político foi concebido,
legitimado e criticado. Ele se refere à oposição
homem/mulher e fundamenta ao mesmo tempo o seu sentido.
Para reivindicar o poder político, a referência tem que
parecer segura e fixa, fora de qualquer construção
humana, fazendo parte da ordem natural ou divina. Desta
forma, a oposição binária e o processo social das relações
de gênero tornam-se, ambos, partes do sentido do próprio
poder. Colocar em questão ou mudar um aspecto ameaça o
sistema por inteiro.
Se
as significações de gênero e de poder se constróem
reciprocamente, como é que as coisas mudam? De um ponto
de vista geral responde-se que a mudança pode ter várias
origens. Transtornos políticos de massa que coloquem as
ordens antigas em caos e engendrem novas, podem revisar os
termos (e, portanto, a organização) do gênero na
procura de novas formas de legitimação. Mas eles podem não
fazê-lo; noções antigas serviram igualmente para
validar novos regimes. Crises demográficas, causadas pela
fome, pestes ou guerras, colocaram, às vezes, em questão
as visões normativas do casamento heterossexual (como foi
o caso em certos meios de certos países no decorrer dos
anos 20); mas também, provocaram políticas natalistas
que insistiram na importância exclusiva das funções
maternas e reprodutivas das mulheres. Transformações nas
estruturas do emprego podem modificar as estratégias de
casamento; elas podem oferecer novas possibilidades para a
construção da subjetividade, mas elas podem também ser
vividas como novo espaço de atividade para filhas e
esposas obedientes. A emergência de novos tipos de símbolos
culturais pode tornar possível a reinterpretação ou
mesmo a reescritura da história edipiana, mas ela pode
servir para atualizar este drama terrível em termos ainda
mais eloquentes. São os processos políticos que vão
determinar o resultado de quem vencerá – políticos no
sentido de que vários atores e várias significações
enfrentam-se para conseguir o controle. A natureza desse
processo, dos atores e das ações, só pode ser
determinada especificamente se situada no espaço e no
tempo. Só podemos escrever a história desse processo se
reconhecermos que “homem” e “mulher” são ao mesmo
tempo categorias vazias e transbordantes; vazias porque
elas não têm nenhum significado definitivo e
transcendentes; transbordantes porque, mesmo quando
parecem fixadas, elas contêm ainda dentro delas definições
alternativas negadas ou reprimidas.
Em
um certo sentido, a história política foi encenada no
terreno do gênero. É um terreno que parece fixado, mas
cujo sentido é contestado e flutuante. Se tratarmos da
oposição entre masculino e feminino como sendo mais
problemática do que conhecida, como alguma coisa que é
definida e constantemente construída num contexto
concreto, temos então que perguntar não só o que é que
está em jogo nas proclamações ou nos debates que
invocam o gênero para explicar ou justificar suas posições,
mas também, como compreensões implícitas do gênero são
invocadas ou reativadas. Qual é a relação entre as leis
sobre as mulheres e o poder do Estado? Por que (e desde
quando) as mulheres são invisíveis como sujeitos históricos,
quando sabemos que elas participaram dos grandes e
pequenos eventos da história humana? O gênero tem
legitimado a emergência de carreiras profissionais? Para
citar o título de um artigo recente da feminista francesa
Luce Irigaray, o sujeito da ciência é sexuado? Qual é a
relação entre a política do Estado e a descoberta do
crime de homossexualidade? Como as instituições sociais
têm incorporado o gênero nos seus pressupostos e na sua
organização? Já houve conceitos de gênero realmente
igualitário sobre os quais foram projetados ou mesmo
baseados sistemas políticos?
A
exploração dessas perguntas fará emergir uma história
que oferecerá novas perspectivas às velhas questões
(sobre, por exemplo, como é imposto o poder político,
qual é o impacto da guerra sobre a sociedade), redefinirá
as antigas questões em termos novos (introduzindo, por
exemplo, considerações sobre a família e a sexualidade
no estudo da economia e da guerra), tornará as mulheres
visíveis como participantes ativas e estabelecerá uma
distância analítica entre a linguagem aparentemente
fixada do passado e nossa própria terminologia. Além do
mais, essa nova história abrirá possibilidades para a
reflexão sobre as estratégias políticas feministas
atuais e o futuro (utópico), porque ela sugere que o gênero
tem que ser redefinido e reestruturado em conjunção com
uma visão de igualdade política e social que inclui não
só o sexo, mas também, a classe e a raça.
**(professora de Ciências Sociais no Instituto
para Estudos Avançados de Princeton)
Tradução:
Christine Rufino Dabat e Maria Betânia Ávila
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