Cidadania
Textos
e Reflexões
História
da Cidadania
Jaime Pinsky
Afinal, o que é
ser cidadão?
Ser cidadão é ter
direito à vida, à
liberdade, à propriedade,
à igualdade perante a lei:
é, em resumo, ter direitos
civis. É também
participar no destino da sociedade,
votar, ser votado, ter direitos
políticos. Os direitos
civis e políticos não
asseguram a democracia sem os
direitos sociais, aqueles que
garantem a participação
do indivíduo na riqueza
coletiva: o direito à educação,
ao trabalho, ao salário
justo, à saúde,
a uma velhice tranqüila.
Exercer a cidadania plena é
ter direitos civis, políticos
e sociais, fruto de um longo processo
histórico que levou a sociedade
ocidental a conquistar parte desses
direitos.
Cidadania
não é uma definição
estanque, mas um conceito histórico,
o que significa que seu sentido
varia no tempo e no espaço.
É muito diferente ser cidadão
na Alemanha, nos Estados Unidos
ou no Brasil (para não
falar dos países em que
a palavra é tabu), não
apenas pelas regras que definem
quem é ou não titular
da cidadania (por direito territorial
ou de sangue), mas também
pelos direitos e deveres distintos
que caracterizam o cidadão
em cada um dos Estados-nacionais
contemporâneos. Mesmo dentro
de cada Estado-nacional o conceito
e a prática da cidadania
vêm se alterando ao longo
dos últimos duzentos ou
trezentos anos. Isso ocorre tanto
em relação a uma
abertura maior ou menor do estatuto
de cidadão para sua população
(por exemplo, pela maior ou menor
incorporação dos
imigrantes à cidadania),
ao grau de participação
política de diferentes
grupos (o voto da mulher, do analfabeto),
quanto aos direitos sociais, à
proteção social
oferecida pelos Estados aos que
dela necessitam.
A
aceleração do tempo
histórico nos últimos
séculos e a conseqüente
rapidez das mudanças faz
com que aquilo que num momento
podia ser considerado subversão
perigosa da ordem, no seguinte
seja algo corriqueiro, “natural”
(de fato, não é
nada natural, é perfeitamente
social). Não há
democracia ocidental em que a
mulher não tenha, hoje,
direito ao voto, mas isso já
foi considerado absurdo, até
muito pouco tempo atrás,
mesmo em países tão
desenvolvidos da Europa como a
Suíça. Esse mesmo
direito ao voto já esteve
vinculado à propriedade
de bens, à titularidade
de cargos ou funções,
ao fato de se pertencer ou não
a determinada etnia etc. Ainda
há países em que
os candidatos a presidente devem
pertencer a determinada religião
(Carlos Menem se converteu ao
catolicismo para poder governar
a Argentina), outros em que nem
filho de imigrante tem direito
a voto e por aí afora.
A idéia de que o poder
público deve garantir um
mínimo de renda a todos
os cidadãos e o acesso
a bens coletivos como saúde,
educação e previdência
deixa ainda muita gente arrepiada,
pois se confunde facilmente o
simples assistencialismo com dever
do Estado.
Não
se pode, portanto, imaginar uma
seqüência única,
determinista e necessária
para a evolução
da cidadania em todos os países
(a grande nação
alemã não instituiu
o trabalho escravo, a partir de
segregação racial
do Estado, em pleno século
XX, na Europa?). Isso não
nos permite, contudo, dizer que
inexiste um processo de evolução
que marcha da ausência de
direitos para sua ampliação,
ao longo da história.
A
cidadania instaura-se a partir
dos processos de lutas que culminaram
na Declaração dos
Direitos Humanos, dos Estados
Unidos da América do Norte,
e na Revolução Francesa.
Esses dois eventos romperam o
princípio de legitimidade
que vigia até então,
baseado nos deveres dos súditos,
e passaram a estruturá-lo
a partir dos direitos do cidadão.
Desse momento em diante todos
os tipos de luta foram travados
para que se ampliasse o conceito
e a prática de cidadania
e o mundo ocidental o estendesse
para mulheres, crianças,
minorias nacionais, étnicas,
sexuais, etárias. Nesse
sentido pode-se afirmar que, na
sua acepção mais
ampla, cidadania é a expressão
concreta do exercício da
democracia.
Apesar
da importância do tema e
do significado da discussão
sobre a cidadania não tínhamos,
até agora, um livro importante
sobre o tema, razão pela
qual há cerca de dois anos
começamos a organizar uma
obra consistente sobre a história
da cidadania. Inicialmente pensamos
que a carência bibliográfica
era apenas um problema brasileiro,
mas aos poucos fomos percebendo
que era um fenômeno mundial.
Não havia, simplesmente,
um grande livro sobre a história
da cidadania. Quem quer que escrevesse
sobre o assunto recorria ao sociólogo
inglês T. H. Marshall, autor
de um texto básico, mas
que não tinha a pretensão
de ser uma história da
cidadania. De resto, achamos importante
mostrar que a sociedade moderna
adquiriu um grau de complexidade
muito grande a ponto de a divisão
clássica dos direitos do
cidadão em individuais,
políticos e sociais não
dar conta sozinha da realidade.
Nossa
proposta foi a de organizar um
livro de história social,
no sentido de não fazer
um estudo do passado pelo passado,
muito menos do passado para justificar
eventuais concepções
pré-determinadas sobre
o mundo atual. Queríamos,
isto sim, estimular a produção
de textos cuidadosamente pesquisados,
mas que se propusessem a dialogar
com o presente. Não é
por acaso que os textos dão
conta de um processo, um movimento
lento, não linear, mas
perceptível, que parte
da inexistência total de
direitos para a existência
de direitos cada vez mais amplos.
Sonhar
com cidadania plena em uma sociedade
pobre, em que o acesso aos bens
e serviços é restrito,
seria utópico. Contudo,
os avanços da cidadania,
se têm a ver com a riqueza
do país e a própria
divisão de riquezas, dependem
também da luta e das reivindicações,
da ação concreta
dos indivíduos. Ao clarificar
essas questões, este livro
quer participar da discussão
sobre políticas públicas
e privadas que podem afetar cada
um de nós, na qualidade
de cidadãos engajados.
Afinal, a vida pode ser melhorada
com medidas muito simples e baratas,
ao alcance até de pequenas
prefeituras, como proibição
de venda de bebidas alcoólicas
a partir de certo horário,
controle de ruídos, funcionamento
de escolas como centros comunitários
no final de semana, opções
de lazer em bairros da periferia,
estímulo às manifestações
culturais das diferentes comunidades,
e muitas outras. Sem que isso
implique abrir mão de uma
sociedade mais justa, igualitária,
com menos diferenças sociais,
é evidente.
História da Cidadania já
surge, portanto, como obra de
referência. Ao organizar
a discussão sobre um assunto
de que tanto se fala e tão
pouco se sabe, ao estimular a
produção de textos
de intelectuais de alto nível,
o livro dá conteúdo
a um conceito esvaziado pelo uso
indevido, e propicia uma reflexão
sólida e conseqüente.
Breve introdução
aos direitos humanos
Durante milhares de anos, a tortura,
a pena de morte, a intolerância
religiosa e a prisão sem
julgamento foram a regra em quase
todas as civilizações.
No século XVIII, os iluministas,
entre os quais Rousseau, passaram
a estudar as sociedades ditas
“primitivas” e nelas
descobriram os valores de liberdade,
igualdade e fraternidade que haviam
sido perdidos no Ocidente. A partir
daí, esses pensadores começaram
a conceber meios de proteger os
cidadãos da tirania estatal.
Inspirados pelas idéias
dos iluministas, alguns estados
europeus foram gradualmente abolindo
a tortura e a pena de morte e
passaram a dar maior ênfase
da educação e não
na punição dos sentenciados.
O grande marco na história
dos direitos humanos foi a Declaração
dos Direitos do Homem e do Cidadão
da Revolução Francesa
de 1789, que em seu artigo IV
estabelece: “A liberdade
consiste em poder fazer tudo quanto
não incomode o próximo;
assim o exercício dos direitos
naturais de cada homem não
tem limites senão nos que
asseguram o gozo destes direitos.
Estes limites não podem
ser determinados senão
pela lei.”. Já a
Constituição mexicana
de 1917 consagrou a segunda geração
dos direitos humanos, os direitos
sociais.
Pouco
mais de 200 anos depois da sua
criação, o movimento
dos direitos humanos, longe de
se consolidar, tem sido constantemente
ameaçado, seja por regimes
totalitários de direita
(que consideram tais princípios
“jacobinos”, “subversivos”,
“maçônicos”,
“bolchevistas” ou
“defensores de bandidos”),
ou de esquerda (que os consideram
“valores burgueses”).
Nos últimos anos os direitos
humanos foram violentamente atacados
em nome da “guerra contra
o terror”, e o governo Bush
tem sido acusado de promover um
grande retrocesso no campo dos
direitos humanos em nome da segurança
nacional, embora outro estadunidense,
Benjamin Franklin, tenha declarado
“entre a liberdade e a segurança,
fico com a liberdade”.
Lista
parcial dos direitos humanos:
-
direito à vida
- direito à integridade
física e moral
- direito à igualdade
- direito à liberdade,
que inclui:
- direito à liberdade de
pensamento
- direito à liberdade de
expressão
- direito à liberdade de
reunião
- direito à liberdade de
associação
- direito à liberdade de
manifestação
- direito à liberdade de
culto
- direito à liberdade de
orientação sexual
- direito à felicidade
- direito ao devido processo legal
- direito à objeção
de consciência
- direito à saúde,
educação, habitação,
lazer, cultura e esporte, direitos
trabalhistas (segunda geração
de direitos humanos – direitos
sociais)
- direito ao meio ambiente, direitos
do consumidor (terceira geração
de direitos humanos – direitos
difusos)
- direito a não ser vítima
de manipulação genética
(quarta geração) |