Cidadania: Esboço de Evolução e Sentido da Expressão
José Roberto
Fernandes Castilho*
Fora do dilema, num
possível território lúcido, talvez a cidadania desperte, sem
contar com a revolução e sem que se abandone uma confiança,
ainda que mínima, ainda que cética, na justiça social.
Raimundo Faoro
1. Muito se tem
escrito no Brasil sobre a idéia de cidadania, em especial a
partir da Constituição de 1988 que a consagrou como um dos
fundamentos da República Federativa do Brasil (art. 1º/II).
Multiplicam-se os estudos sobre aspectos específicos do tema como
a cidadania ativa (Maria Victória de Mesquita Benevides), a
cidadania regulada — já chamada "estadania" —
(Wanderley Guilherme dos Santos), "a geografização da
cidadania" (Milton Santos), a cidadania urbana e rural, a
cidadania dos trabalhadores etc. Mas parece importante fixar tanto
uma idéia-base quanto sua evolução no tempo. Isto porque se
percebe que em muitos casos o essencial do problema acaba ficando
de fora.
Acredito que, ao
longo da história, pelo menos três visões distintas da
cidadania se sucederam. A visão medieval, a liberal ou moderna e
a atual são distintas mas conexas, como veremos. Da ausência de
submissão pessoal passou-se à noção de simples titularidade de
direitos e desta à atual, concernente ao gozo efetivo dos
direitos individuais, coletivos, sociais e políticos (ou de
participação na vida política), todos embasados na
nacionalidade — o direito a ter direitos (sobre a classificação
dos direitos fundamentais, v. José Afonso da Silva). Com efeito,
a noção atual de cidadania é a de fruição concreta desses
direitos todos, necessários e fundamentais para a expansão da
personalidade humana. Mas para que se chegasse a ela um longo
caminho teve antes que ser percorrido.
É importante,
desde logo, esclarecer que os direitos da cidadania não se
confundem com os direitos humanos, embora haja uma zona comum
entre eles. Dalmo Dallari, por exemplo, em textos e aulas, deixa
claro esta diferenciação quando analisa, em profundidade, a
problemática dos direitos humanos no mundo atual. Pode-se dizer,
em suma, que os direitos da cidadania dizem respeito aos direitos
públicos subjetivos consagrados por um determinado ordenamento
jurídico, concreto e específico. Já os direitos humanos —
expressão muito mais abrangente — se referem à própria pessoa
humana como valor-fonte de todos os valores sociais (Miguel Reale).
A discussão sobre os direitos humanos (direito à vida, direito a
não ser submetido à tortura, direito a não ser escravizado,
direito a uma nacionalidade etc) se coloca, pois, num outro plano
de análise teórica. No plano do global, do universal, numa
perspectiva jusnaturalista, e não do positivo e tópico.
A respeito, no
artigo 5º da Declaração e Programa de Ação de Viena —
aprovados na Conferência Mundial sobre Direitos do Homem, em 25
de junho de 1993 — é dito que: "Todos os direitos humanos
são universais, indissociáveis e interdependentes, e estão
relacionados entre si. A comunidade internacional deve tratar os
direitos humanos de forma global e de maneira justa e eqüitativa,
em condições de igualdade e atribuindo a todos o mesmo peso. Há
que ser levada em conta a importância das particularidades
nacionais e regionais, bem como a importância dos vários patrimônios
históricos, culturais e religiosos; contudo, independentemente de
seus sistemas políticos, econômicos e culturais, os Estados têm
o dever de promover e proteger todos os direitos do homem e as
liberdades fundamentais".
2. A autonomia das
cidades medievais — derivada das franquias —, na Baixa Idade Média
(sécs. XII a XV), transformou-as num lugar privilegiado para o
exercício da liberdade. Liberdade entendida aqui como libertação
da servidão. O servo da gleba fugia então dos feudos e penetrava
nos muros da cidade, onde se considerava ao mesmo tempo protegido
e livre do senhor feudal e da sujeição que devia a ele (a
vassalagem). Daí o dito que demonstra o "espírito da época"
(cf. Maria Encarnação B. Spósito): "O ar da cidade é o ar
da liberdade" ou, melhor, "o ar da cidade é
libertador" (Stadtluft macht frei). Tratava-se, como
é claro, de uma liberdade de fato, o que não impedia de torná-las
pólos de atração para uma população que crescia desde o século
XI.
Mas, ligado ao
renascimento do comércio, o processo de urbanização da Europa
da Idade Média — um fenômeno complexo e controvertido — era
"lento demais para permitir às cidades absorver a imigração
em massa da população rural" (Bronislaw Geremek). Surge,
então, uma massa de miseráveis — os excluídos — que
tornam-se um elemento constante da paisagem social da Europa,
muito embora a pobreza não tenha certidão de nascimento (id).
Quer dizer: paradoxalmente, liberdade e pobreza caminhavam juntas
pois, com efeito, a liberdade — que não se confunde com a
libertação — pode se reduzir ao direito de morrer de fome
(ainda não se cogitava da transformação do freedom from no
freedom to).
É interessante
notar que a etimologia da palavra "cidadão" remete
obviamente à "cidade" (do latim civitas, que, no
mundo romano, corresponde a pólis, a Cidade-Estado dos
gregos). Isto significa que, na origem, a idéia-força da
cidadania diz respeito à idéia da liberdade — real ou ilusória
— de que dispunha o habitante da cidade em comparação com o
servo da gleba, no limiar do sistema capitalista. A palavra
"cidadão" surge no português em 1361, segundo o
"Dicionário Etimológico" de José Pedro Machado (outro
dicionarista, Antonio Geraldo da Cunha, aponta seu aparecimento no
século XIII), sendo certo no entanto que, no século XVIII,
expandiu-se através do francês (citoyen) e do imaginário
da revolução. Assim, as expressões "direito à
cidade" e seu derivativo "direito da cidadania" têm,
hoje, significados muito próximos: são as liberdades públicas
vistas ex parte populi (O desenvolvimento do capitalismo
diluiu estruturalmente a velha dualidade cidade-campo).
3. Nos séculos
seguintes, a expansão do capitalismo tornou necessária a definição
de um quadro institucional que garantisse o novo modo de produção.
O Estado moderno se consolida, então, na data emblemática de
1648 (Paz de Westphália que pôs fim à Guerra dos Trinta Anos)
lutando, ao mesmo tempo, contra a autonomia das cidades medievais
e contra as pretensões do império. E por isso nasce absolutista,
concentrando poder político. Em reação a isso e à
possibilidade de "abuso" do poder, diversas teorias
surgiram buscando limitar o poder do Estado para salvaguardar as
liberdades: a "separação de poderes" (Montesquieu e
Locke); os direitos naturais, a democracia ou a soberania popular
(Rousseau).
Na Revolução
Francesa estas teorias são consagradas e ganham um estatuto jurídico.
Seu mais importante documento é, sem dúvida, a Declaração de
Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, que, como informa o Preâmbulo,
se destina a resgatar os direitos naturais dos homens, os quais
estavam esquecidos. Direitos esses que estão elencados no artigo
2º: liberdade, a propriedade, a segurança e a resistência à
opressão (o último logo esquecido). São direitos individuais e,
como tais, quase coincidem com o caput do artigo 5º da
Constituição Brasileira de 1988 que arrola o direito à vida, à
liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade.
O cidadão passa a
ser, assim, um titular de direitos individuais num Estado regido
por leis e não mais um súdito do reino. No ano de 1774,
Beaumarchais, em famoso discurso, proclamava: "Eu sou um
cidadão, isto é, alguma coisa de novo, alguma coisa de
imprevisto e de desconhecido na França". Não importava se
tais direitos estavam sendo de fato exercidos ou não (inverte-se
a questão): juridicamente eles estavam sendo afirmados.
Surge, então, um
outro dito que exprime essa nova situação. Quando o moleiro de
Sans Souci, em Potsdam, se vê ameaçado por Frederico II, o
Grande, Rei da Prússia — um "déspota iluminado"
(contradição nos termos) —, porque seu moinho perturbava o
panorama visto do Palácio real, exclama: "Há juízes em
Berlim!". A frase é apontada como um "paradigma da
confiança na independência do Poder Judiciário e representativa
da certeza de que, violado o Direito, haverá a quem recorrer para
obter-lhe a restauração" (Celso Antônio Bandeira de Mello,
Folha de S. Paulo, 18 de abril de 1996, p. 1-3). Ou seja: se o
ordenamento jurídico declara o homem titular de direitos, se eles
são violados ou ameaçados surge a possibilidade de provocação
do Poder Judiciário para que tais direitos sejam restabelecidos.
E o Judiciário haveria de dar resposta adequada.
É importante
grifar que, a partir da Revolução Francesa, consolida-se a idéia
de "liberdades públicas" (ou, tecnicamente, direitos públicos
subjetivos) que nada mais são do que os direitos do homem
consagrados pelo direito positivo ou, em outras palavras, os
poderes de autodeter-minação reconhecidos e organizados pelo
Estado (Jean Rivero). No entanto, a expressão "liberdades públicas",
no plural, só vai surgir tardiamente com a Constituição
francesa de 1852 (art. 25). Antes do século XVIII, era impossível
pensar-se em direitos subjetivos oponíveis ao Estado, que
caracterizava-se, como dito, pelo absolutismo monárquico.
O Direito
Constitucional clássico ainda toma o cidadão como o nacional com
direitos políticos perante o Estado (de votar, de ser votado, de
participar de concursos para preenchimento de cargos públicos). E
a cidadania surge com o alistamento eleitoral (art. 14 da
Constituição). É uma idéia restrita e formal e, por isso, não
compatível com a ampliação dos direitos inerentes à afirmação
da cidadania. Muitos autores, no entanto, continuam hoje
veiculando esta idéia liberal ou moderna sem situá-la no tempo e
no espaço (Europa do século XVIII). A questão material, fática,
muitas vezes, escapa-lhes.
É certo, no
entanto, que a própria Constituição usa o mesmo termo em
sentidos diferentes. O artigo 23/XIII estabelece a competência da
União para legislar sobre nacionalidade, cidadania e naturalização.
Ora, aqui é evidente que o termo "cidadania" está
sendo tomado no sentido restrito ou formal referido. Mas é claro
que tal não pode ser este o sentido da palavra tomada no artigo 1º
como fundamento da República, ao lado da soberania, da dignidade
da pessoa humana, dos valores sociais do trabalho e da livre
iniciativa e do pluralismo político. A cidadania aqui tem o
sentido forte de direito de acesso concreto e efetivo aos direitos
públicos subjetivos: é o oposto da exclusão social (que dá
origem aos "subcidadãos", referidos por Roberto Da
Matta e Lúcio Kowarick, dentre outros).
4. Só que os
direitos fundamentais de individuais ou coletivos (os individuais
que são exercidos coletivamente, por exemplo, a liberdade de
associação) mas negativos (exigindo uma inação do Estado)
passaram neste século XX a ser sociais e positivos (exigindo um
fazer, a prestação de um serviço do Estado). A Constituição
de 1988 elenca alguns direitos sociais no artigo 6º — um rol
exemplificativo —, todos eles visando possibilitar
"melhores condições de vida aos mais fracos" (José
Afonso da Silva): a educação, a saúde, o trabalho, o lazer, a
segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e
à infância, e a assistência aos desamparados (os direitos dos
chamados "desassistidos sociais", dentre os quais —
absurdamente — não se inclui a habitação). Isto para não se
falar nos chamados direitos fundamentais de terceira geração,
que têm cunho internacional acentuado (v.g., direito à paz, ao
desenvolvimento econômico, ao meio ambiente ecologicamente
equilibrado).
Nesse ponto o
problema se torna complexo. Exigir que o Estado democrático (e,
como adverte Maurice Duverger, hoje todos se pretendem como tal),
não perturbe a liberdade de expressão de pensamento, por
exemplo, é relativamente simples. Basta proibir a censura. Porém
exigir que o mesmo Estado garanta, concretamente, o direito à
educação, à saúde ou à habitação adequada — com segurança,
salubridade e serviços — é difícil porque isto demanda o
desenvolvimento eficaz de políticas públicas de longo prazo
(Henri Lefebvre considera o direito à habitação — o mais
grave dos problemas urbanos — a "primeira palpitação"
do direito à cidade).
E nestes casos o
Judiciário pouco poderá fazer porque para a implementação de
tais direitos é necessário, em suma, uma enorme gama de medidas
de natureza tipicamente administrativa e não judicial (no caso do
direito à educação, construir a escola, contratar professores
etc., e pior: como se obter judicialmente o direito à
autodeterminação dos povos, proclamado solenemente no artigo 1º
do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, de 1966, e
no artigo 4º/III da Constituição? Serão os direitos de
terceira geração — chamados direitos de solidariedade ou de
fraternidade — verdadeiros direitos ou apenas meras aspirações?
A distinção entre direitos humanos e direitos da cidadania,
antes referida, é importante para responder tais questões).
Portanto, quando se
cogita da cidadania, na atualidade, não se está mais referindo
à mera declaração de direitos. A Constituição Brasileira de
1988, por exemplo, é pródiga em declará-los solenemente, assim
como inúmeros atos internacionais o fazem. Está sim se
questionando a respeito do gozo efetivo deles. Volta-se, de certa
forma, ao sentido medieval. Não mais a mera declaração escrita,
mas sim sua concreção real garantida. É exatamente nisto — ou
seja, na distinção entre declarar e garantir — que, a nosso
aviso, reside a noção atual e polêmica de cidadania: como se
garantir a fruição dos direitos públicos subjetivos? como
proporcionar a igualdade de oportunidades? como dar eficácia às
normas constitucionais que tratam dos direitos sociais? Este é o
ponto fulcral (Observo que, atualmente, o prisma da eficácia é
recorrente no Direito, no Planejamento, na Administração etc.).
5. Com tal
finalidade, a Constituição brasileira de 1988, na esteira da
Constituição portuguesa de 1976, tentou instituir, em vão,
alguns remédios judiciais como o mandado de injunção — cujo
dispositivo (art. 5º/LXXI) refere-se expressamente à cidadania
— e a inconstitucionalidade por omissão. A jurisprudência,
depois, esvaziou-os. Mas cumpre ressaltar que a Justiça nunca
esteve habilitada a decidir os conflitos sociais — que
extrapolam os esquemas processuais clássicos — até porque,
como observa o grande sociólogo português Boaventura de Souza
Santos, com alguma ênfase, "no Estado moderno, os tribunais
não foram criados para julgar os poderosos, mas para punir as
classes populares" (Entrevista, Folha de S. Paulo, 14 de
outubro de 1995, p. 3-2). A relação processual básica
estabelece-se entre credor e devedor, em pólos individuais, e o
Estado-juiz (relação triádica) o que explica a grande ineficácia
da atuação dos grupos sociais — setores desfavorecidos,
minorias — em juízo.
De outra parte,
entendo que também a iniciativa popular das leis tem tal
objetivo, de vez que permite a regulamentação de direitos
constitucionais que não são passíveis de fruição por não
estarem ainda regulamentados na lei (Tocando num problema nevrálgico,
na apresentação da citada obra de Maria Victória de Mesquita
Benevides, Fábio Konder Comparato pergunta: até que ponto o
Parlamento, como órgão por excelência da representação
popular, perdeu legitimidade para manter o monopólio da legislação?).
Mas, estranhamente, a iniciativa popular é muito pouco utilizada
no Brasil, assim como os demais instrumentos da chamada democracia
semidireta (plebiscito, referendo, ação popular, audiências públicas
etc.,), que Maria Victória Benevides chama de "escola da
cidadania".
Em Presidente
Prudente, por exemplo, desde a promulgação da Lei Orgânica em
1990 até hoje — fim de 1995 — houve apenas uma proposta
legislativa de iniciativa popular, referindo-se à diminuição
dos vencimentos dos vereadores. Não chegou, entretanto, a ser
levada à plenário tendo em vista que a Comissão de Constituição
e Justiça da Câmara Municipal considerou-a inconstitucional,
propondo seu arquivamento. (Há ação civil pública a respeito
do caso, promovida pela Associação de Defesa dos Direitos do
Cidadão — CIDADANIA, onde se questiona o alcance do disposto no
art. 14/III da Constituição: não haveria a obrigatoriedade dos
representantes do povo apreciarem as propostas de lei por ele
diretamente feitas?).
Todos eles — além
de outros instrumentos não instituídos aqui como o direito de
veto popular (recall) — são expressões legítimas dos
direitos de cidadania, ao lado do direito de sufrágio. Permitindo
a participação popular no exercício do poder político, tais
instrumentos são de enorme importância para a garantia da eficácia
social e jurídica das normas constitucionais porque possibilitam,
por exemplo, a regulamentação de vários direitos trabalhistas
que não são exercidos exatamente pela falta de norma
regulamentadora (v.g., participação do trabalhador na gestão e
nos lucros da empresa, art. 7º/XI; a participação do
trabalhador no capital, a forma mais ampla dessa participação
segundo a doutrina, não foi prevista na Constituição).
6. De qualquer
forma, é certo que o processo de avanço das garantias dos
direitos da cidadania é muito mais uma questão de poder do que
uma questão jurídica. Depende fundamentalmente dos "fatores
reais de poder" que integram a Constituição real do Estado
(Lassalle) do que das formas e modelos jurídicos. Se bem que,
como diz Hannah Arendt, reduzir o Direito à lei é a redução do
Direito a Hitler — "reductio ad hitlerum". O
Direito — tal como a democracia — não pode se reduzir a uma
forma. Daí a importância que ganham as reivindicações da
sociedade civil organizada em movimentos sociais, em comunidades
de base, em associações — que, em geral, se autodenominam hoje
de "organizações não-governamentais" ou ONGs —,
etc., uma vez que é só através dela que a cidadania e a
democracia (conceitos indissociáveis) serão efetivamente
conquistadas (O Dicionário de Política organizado por
Norberto Bobbio define sociedade civil como "a esfera das
relações entre indivíduos, entre grupos, entre classes sociais
que se desenvolvem à margem das relações de poder que
caracterizam as instituições estatais").
A plena atuação
dessas entidades pressupõe o contexto de um Estado
verdadeiramente democrático, e, além disso, "poroso",
"permeável", que abra canais de participação popular
no Governo e na Administração pública, valorizando-a. O direito
de acesso ao Direito é uma decorrência do princípio da
igualdade. A idéia atual de cidadania está na ordem do dia
porque ela significa exatamente o avanço da própria democracia
substancial, ou seja, aquela que caminha para a igualdade social e
econômica. De outra parte, se é certo que o desenvolvimento
permite o desfrute de todos os direitos humanos e das liberdades públicas,
a inexistência de desenvolvimento sustentado não pode ser
apresentada como justificativa para a limitação deles (cf.
Declaração e Programa de Ação de Viena, cit., art. 10).
Assim, a base
verdadeira desta transformação está na educação política (em
sentido amplo) do povo, envolvendo tanto a participação na vida
coletiva quanto a educação para a ética na política. Segundo o
pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais
(1966), artigo 13, a educação deve capacitar todas as pessoas a
participar efetivamente de uma sociedade livre. Ela é, na
verdade, uma "precondição para o exercício da
cidadania" (Evaldo Vieira). Assim, a educação, além de ser
um direito social básico e elementar, é também o caminho — ou
a condição necessária — que vai permitir o exercício e a
conquista do conjunto dos direitos da cidadania, que se ampliam a
cada dia em contrapartida às necessidades do homem e da dignidade
humana. Além do que os direitos da cidadania não são apenas
oponíveis ao Estado, mas também em face da atuação de outros
particulares que não os respeitam, como se verifica, por exemplo,
no caso da poluição.
Neste sentido, Antônio
Joaquim Severino entende a educação como mediação para a
construção da cidadania, contribuindo para a integração dos
homens no tríplice universo do trabalho, da simbolização
subjetiva e das mediações institucionais da vida social. A educação
política do povo, ou educação para a cidadania, deve, pois,
possibilitar primeiro o igual acesso ao Direito — isto é, o
conhecimento do ordenamento jurídico das liberdades públicas por
parte de todas as pessoas — e então a formação das consciências
dos sujeitos sociais para a necessidade de sua afirmação no nível
dos fatos, no nível da vida real. E daí a luta por sua extensão.
Como sublima Milton
Santos, "a cidadania, sem dúvida, se aprende". Tanto
assim que a Constituição Federal, no artigo 205, estabelece que
a educação — direito de todos e dever do Estado e da família
— deve visar o pleno desenvolvimento da pessoa humana, seu
preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o
trabalho, que é também, como vimos, uma das várias dimensões
da idéia-força da cidadania. Ela se amplia na medida em que se
afirma como prática social, para além dos textos legais.
7. Cumpre, ao cabo,
concluir que o processo de construção da cidadania é antigo e não
tem fim. Não se completa nunca. "Onde quer que seja, existirão
sempre homens e mulheres, grupos e indivíduos singulares,
minorias e estratos particulares, submetidos a algum tipo de
humilhação, degradação, injustiça ou opressão" (Marco
Aurélio Nogueira) e, por isso, reivindicando direitos em
concreto, exigindo a fruição efetiva das liberdades públicas.
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_________
* Procurador
do Estado de São Paulo, Chefe da Procuradoria Regional de
Presidente Prudente, Professor do Departamento de Planejamento da
Faculdade de Ciências e Tecnologia da UNESP, em Presidente
Prudente e Diretor-Adjunto da Cidadania - Associação de
Defesa dos Direitos do Cidadão.
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