A
cidadania entre pertença social
e direitos
Luca
Baccelli
Università de Pisa
No clássico ensaio de T. H.
Marshall [2], citizenship exprime
a conexão existente entre o
gozo pelos cidadãos de um conjunto
variável de direitos civis,
políticos e sociais e a pertença
[3] a um grupo político particular.
Marshall identifica a cidadania
com a “plena pertença a uma
comunidade” e a define como
“um status que é conferido àqueles
que são membros plenos de uma
comunidade”. ‘Cidadania’, enquanto
exprime o nexo entre gozo de
direitos e pertença a um grupo
social, permite dar conotação
a fenômenos, tendências e processos,
seja nos países economicamente
desenvolvidos, caracterizados
por um sistema político liberal-democrático,
seja em âmbitos transnacionais
e interestatais. Por exemplo,
os conflitos para a afirmação
de pertenças étnicas, culturais
e religiosas; ou, também determinadas
dinâmicas internas de comunidades
nacionais: a crise generalizada
dos pactos sociais e fiscais,
a luta pelo reconhecimento de
identidades coletivas, a relação
entre igualdade e diferença;
e, finalmente, o impacto da
globalização econômica na soberania
nacional e nas funções do Estado.
Mas que noção de pertença social
e que concepção dos direitos
são adequadas para enfrentar
tais questões? As noções de
direito e pertença parecem remeter
a dois universos conceptuais
diferentes: o “individualismo”
liberal, de uma parte, o “holismo”
da tradição aristotélica latu
sensu, de outra; parecem aludir,
de um lado, ao universalismo,
e, de outro, ao particularismo,
ou ao comunitarismo. O que significa
que a cidadania comporta a “full
membership” (ser membro pleno)
de uma comunidade? Em que sentido
se pode falar, nas sociedades
diferenciadas e complexas, de
‘comunidade” e de ‘pertença’?
Como se constitui o “nós”, o
sujeito plural da cidadania?
Em que sentido os direitos são
usufruídos pelo fato de pertencer
a uma comunidade política, e
em que sentido são ‘universais’?
Neste ensaio, procurarei defender
a tese de que é possível delinear
uma concepção da pertença à
comunidade política e uma visão
dos direitos individuais compatíveis
entre si e capazes de se integrarem
numa concepção da cidadania
adequada às sociedades complexas
e diferenciada da era da globalização.
1. Membership
Muitos
autores consideram a perspectiva
universalista como a única compatível
com a democracia e o constitucionalismo,
e vêem cada teorização da “pertença”
à comunidade política como uma
afirmação regressiva de privilégios.
Um grupo significativo de filósofos
políticos e de estudiosos das
relações internacionais afirma
que a resposta adequada aos
processos de globalização é
uma profunda reestruturação
das instituições internacionais
no sentido da democracia cosmopolita.
[4] De outro ponto de vista,
Luigi Ferrajoli afirmou que
existe uma antinomia entre a
noção de cidadania e o valor
atribuído aos direitos fundamentais
pelas constituições contemporâneas.
Ferrajoli propõe, portanto,
a superação da cidadania, entendida
como “o último privilégio de
status, o último fator de exclusão
e de discriminação, a últimas
ruína pré-moderna das desigualdades
pessoais em contraste com a
conclamada universalidade e
igualdade dos direitos fundamentais”
[5].
Não pretendo contestar a oportunidade
de desenvolver, e, sobretudo,
de democratizar, as instituições
internacionais, menos ainda
a urgência de enfrentar os global
issues (assuntos globais) e
esconjurar os global risks (riscos
globais). Mas, parece-me problemática
não só a possibilidade de realizar
uma república cosmopolita, mas
também que isso seja desejável
[6]. Uma análise sumária dos
processos políticos em curso
- no plano nacional, regional
e global - deveria fazer refletir:
quanto mais o lugar da decisão
política se distancia dos cidadãos,
tanto mais tendem a prevalecer
lógicas tecnocráticas e decisionistas,
e aumenta o poder das agências
– públicas e principalmente
privadas – desprovidas de qualquer
legitimação democrática. A economia
global e a geopolítica poderiam
produzir uma paradoxal reviravolta
do modelo kantiano que exigia,
como condição da Weltrepublik
(república mundial), que a constituição
interna de cada Estado fosse
‘republicana’. Somente uma instância
cosmopolita - de tipo tecnocrático
– poderia limitar drasticamente
o auto-governo de cada comunidade.
Por outro lado, se a noção de
cidadania implicasse necessariamente
valências organicistas, patrióticas
e etnicistas, ela deveria ser
rejeitada com firmeza [7]. Acredito,
porém que seja possível elaborar
uma concepção do “pertença social”
livre de implicações deste tipo.
E afirmo que uma tal noção,
além de ser mais atraente do
ponto de vista normativo, exprime
de forma mais adequada a realidade
efetiva das sociedades contemporâneas
complexas e diferenciadas.
1.1. O terreno pode ser liberado
com agilidade, pelo menos no
plano teórico, das noções genealógicas,
biológicas, no limite racistas
de “pertença”. As visões organicistas
que interpretam as nações em
termos de Blut und Boden (“sangue
e terra”), como o resultado
espontâneo de sucessões genealógicas
radicadas no território, são
desmentidas pela pesquisa historiográfica.
A identidade coletiva, seja
étnica, seja, com mais razão,
nacional, não pode ser considerada
como se fosse um dado biológico.
Alguns autores a interpretam
como um típico produto da modernidade
e da sociedade industrial; outros
individuam suas origens remotas
em eventos simbólicos e mitos
de fundação. Em todo o caso,
a etnia e a nacionalidade aparecem
como entidades artificiais,
culturalmente construídas [8].
É óbvio que, além de ser teoricamente
insustentáveis, as teorias genealógicas
e organicistas são particularmente
perigosas do ponto de vista
político. Poderíamos dizer que
tais teorias são um produto
da insegurança, do “medo”, de
uma ameaça real ou imaginária
representada pelos “outros”,
pelos estrangeiros, pelos “inimigos”.
Se a cidadania significasse
isso, as propostas de abandonar
o conceito em razão de sua conotação
particularista seriam plenamente
justificadas.
1.2 Os filósofos políticos communitarian
não se referem explicitamente
a genealogias étnicas ou a ‘comunidades
de história e destino’; sustentam,
ao contrário, que a coesão social,
a fundação dos princípios morais,
a mesma formação das identidades
individuais são incompreensíveis
se se prescinde da relação do
indivíduo com a comunidade,
com o seu conjunto de hábitos,
costumes, valores difusos. Mas
os comunitaristas não se limitam
a esta análise, que pode ser,
em grande parte, compartilhada.
Da constatação que existe uma
ligação entre a identidade individual
e o contesto social, eles inferem
uma “obrigação de pertença”
à comunidade onde o sujeito
se formou e o dever de sustentar
os seus valores fundamentais.
Há aqui uma passagem indevida
do plano do ser para aquele
do dever ser. E esta falácia
se traduz numa sobrecarga ética
sobre os indivíduos, além de
um sub-valorização da autonomia
individual. A identidade moderna,
particularmente, seria incompreensível
se prescindíssemos dos processos
mediante os quais o indivíduo
se autonomiza do grupo, através
de uma dialética de dissenso,
contraposição e reconhecimento,
de simultâneo ser-com e ser-contra.
1.3 É provável que a discussão
sobre a noção de pertença possa
ser enriquecida indo além da
filosofia política normativa
em sentido restrito, marcada
pela discussão entre liberais
e comunitaristas. Uma contribuição
importante provém da teoria
social. Um dos motivos de interesse
na sociologia de Parsons é exatamente
a ligação entre a instância
normativa e a concepção da sociedade
como sistema. Niklas Luhmann
forneceu uma imagem não hierárquica
e não linear do sistema, visto
como uma estrutura ‘sem vértice
e sem centro’. Luhmann assinala
a existência de mecanismos sistêmicos
de produção do consenso que
reduzem, por assim dizer, a
quantidade de sentido de pertença
reconhecido como socialmente
necessário. Um dos motivos de
interesse da sociologia de Parsons
é exatamente a ligação entre
a instância normativa e a concepção
da sociedade como sistema. Deste
ponto de vista, sua teoria aparece
menos unilateral daquela luhmanniana
que, especialmente depois da
adoção do paradigma autopoietico,
tende a objetivar a sociedade
como se fosse um um macro-organismo.
Como se sabe, Habermas procurou
retomar este aspecto da teoria
parsoniana: sua teoria do agir
comunicativo liga a concepção
da sociedade como Lebenswelt
(mundo da vida) ao paradigma
sistêmico. Para compreender
a coesão social, segundo Habermas,
é preciso considerar em conjunto
tanto os mecanismos sistêmicos
como os processos comunicativos.
Estes últimos se radicam na
Lebenswelt, e isso reduz os
riscos de dissenso e as conseqüentes
dificuldades na integração.
A linguagem e os modelos culturais
herdados do passado constituem,
de fato, um patrimônio cognoscitivo
do qual os membros retiram convicções
de fundo que não precisam ser
problematizadas.
A maneira com que Habermas coloca
o problema permite, na minha
opinião, reconhecer, junto com
os elementos subconscientes
e reflexivos da membership analisados
por Luhmann, o papel das convicções
difusas, dos sentimentos locais
e nacionais, das sub-culturas,
das ideologias políticas, das
crenças religiosas.
Mas a referência à interação
comunicativa é, em Habermas,
muito mais que um elemento essencial
para a análise da interação
social. Ela representa o ponto
de ligação entre a teoria do
agir e a ética do discurso.
Como é sabido, Habermas sustenta
que, nas estruturas da linguagem
ordinária, comum a todos os
falantes humanos, nas regras
a que se deve submeter qualquer
um que pretenda instaurar um
processo comunicativo com um
interlocutor, pode-se localizar
aquele princípio de universalização
que exprime o ‘ponto de vista
moral’. O politeísmo dos valores
e a diferenciação cultural não
implicam, portanto, segundo
Habermas, o relativismo ético.
Nesta linha, Habermas também
tenta fundar uma teoria dos
direitos subjetivos, da cidadania
e da democracia. A legitimidade
do direito moderno, sustenta
Habermas - em polêmica com os
teóricos do positivismo jurídico
- não é simplesmente garantida
por seu caráter procedimental.
É preciso algo mais: os procedimentos
do direito devem satisfazer
as condições de uma formação
racional da vontade. No Estado
democrático de direito, “o poder
político deve sua legitimidade
ao conteúdo moral implícito
nas qualidades morais do direito”.
Através da ética do discurso,
portanto, seria possível adquirir
um ponto de vista universal
que permitiria fundar a legitimidade
do ordenamento.
É este círculo – que Habermas
considera virtuoso – entre estrutura
da comunicação, ética do procedimental
do discurso e procedimentos
jurídicos que expõe a teoria
às críticas mais radicais. A
tentativa de fundamentar uma
ética universalista sobre as
(supostas) estruturas transcendentais
da linguagem parece árdua na
condição ‘pós-metafísica’ da
filosofia contemporânea. E,
sobretudo, entrega a proposta
filosófico–jurídica habermasiana
ao destino de uma particular
interpretação da teoria dos
atos lingüísticos.
Uma imagem convincente da integração
social deveria representar aquelas
duas dimensões que Habermas
designa com os termos de sistema
Lebenswelt, renunciando, porém,
à perspectiva universalista.
O modelo a dois níveis põe à
luz seja a dimensão material-econômica,
seja aquela político-cultural
da membership. Mas a ligação
com a ética do discurso através
da teoria procedimental do direito
acaba por re-introduzir aquela
sobrecarga ética que Habermas
havia criticado nas posições
dos comunitaristas. Disso resulta,
entre outras, uma imagem tendencialmente
conciliatória e idílica do Lebenswelt.
O próprio Habermas assinala,
como é sabido, que o mundo da
vida está exposto à ‘colonização’
do sistema; mas é preciso também
reconhecer que a práxis comunicativa
não produz, de forma unívoca,
racionalidade, processos de
entendimento e compreensão,
tolerância, valores democráticos.
Uma noção de pertença social
adequada à sociedade complexa
e diferenciada deveria considerar
a coesão social como o resultado
de um conjunto de motivações
explícitas, escolhas de valor,
lealdade, e de processos sistêmicos
que induzem à obediência ‘sem
motivações especiais’. É a este
jogo aberto, a esta entidade
magmática que ‘pertencem’ os
cidadãos: não a uma comunidade
orgânica, mas a um campo de
forças e a um terreno de embates,
de conflitos e de jogos de cooperação
entre interesses e valores ‘politeístas’.
Na discussão sobre pertença
social, freqüentemente se tende
a descuidar o impacto exercido
sobre as sociedades contemporâneas
pela revolução informática e
pela difusão capilar das mídias
eletrônicas. De resto, o próprio
nacionalismo moderno não teria
sido possível sem a difusão
da imprensa. Hoje, na discussão
sobre a identidade nacional
se deveria ter presente, muito
mais do que as imagens românticas
do destino coletivo, as representações
prosaicas do público televisivo
investido por um fluxo constante
de imagens e de informações.
Também neste caso, os efeitos
são ambivalentes: as mídias
têm contribuído para reforçar
a identidade nacional – sabe-se,
por exemplo, que o italiano
tornou-se a língua falada da
maioria da população depois
da difusão da televisão.
Enfim, não se deve esquecer
a importância da dimensão econômica
da cidadania. J. M. Barbalet
afirma que, quando Marshall
indica “a direct sense of community
membership based on a loyalty
to a civilisation wich is a
common possession” [9] (um sentido
direto de pertença social baseado
sobre a lealdade a uma civilização
que é um bem comum), como condição
necessária da cidadania, esta
afirmação não deve ser tomada
no sentido normativo, como se
prescrevesse compartilhar valores
nacionais. Por “civilization”
Marshall compreende “a material
civilisation which has cultural
and social consequences” [10]
(uma civilização material que
tem conseqüências culturais
e sociais). Segundo Barbalet,
por civilização Marshall não
compreende o compartilhamento
de valores nacionais e sociais,
e sim uma ‘civilização material’
que pressupõe a existência de
uma produção de massa. A integração
social se realiza, portanto,
em presença da expectativa prática
de que o sistema atenderá aos
interesses materiais de todos
os setores da população e não
somente dos mais poderosos.
Recentemente, Dahrendorf insistiu
sobre os efeitos de estranhamento
da cidadania que resultam da
piora das condições econômicas
para a underclass (subclasse).
Pobreza e desemprego, afirma
Dahrendorf, ameaçam a própria
existência da ‘sociedade civil’.
Por outro lado, é difícil negar
que a afirmação de alguns direitos
de cidadania tende a se chocar
com a lógica funcional do mercado
capitalista. E não há como deixar
de reconhecer tensões relevantes
entre diferentes categorias
de direitos, começando pela
tensão entre os direitos de
liberdade ‘negativa’ e o direito
à autonomia como forma moderna
de ‘liberdade positiva’.
1.4. A consideração da complexidade
social, da conflitualidade,
da dimensão econômica, da influência
exercida pelos mass media deveria
levar a rejeitar as concepções
etnicistas de “pertença”. Mas,
isso não significa considerar
irrelevante todo elemento normativo.
Os comunitaristas em geral referem-se
à tradição “civic republican”
do pensamento político, quando
propõem uma tradução políticas
de suas teorias [11] . Também
Habermas, durante o debate dos
anos oitenta sobre o revisionismo
histórico e a herança do nazismo,
e em alguns escritos sobre o
problema da imigração, pronunciou-se
em favor de um modelo ‘republicano’
de cidadania. Nas democracias
modernas, afirma Habermas, a
identidade coletiva tem um significado
político-jurídico, e prescinde
de referências ao ius sanguinis
e à comunidade de história e
de destino’. Habermas reconhece
que houve sim um nexo entre
identidade étnica e desenvolvimento
da cidadania moderna, mas afirma
que este nexo foi provisório
[12]. Portanto, deve-se distinguir
entre ethnos e demos, e a única
forma aceitável de patriotismo
é o ‘patriotismo da constituição’
(Verfassungspatriotismus) [13]
. Conseqüentemente, os cidadãos
têm direito a conservar as características
da ‘forma de vida’ à qual pertencem,
mas a identidade da nossa forma
de vida depende da cultura política
e dos princípios constitucionais.
Habermas vê uma imediata conseqüência
política desta concepção: é
lícito pedir aos imigrantes
que querem ser incluídos na
cidadania o respeito às regras
democrata-liberais, mas não
uma renúncia às suas formas
de vida étnico-culturais [14].
A esta posição de Habermas retrucou-se
que não é recomendável distinguir
entre ‘forma de vida’e pertença
político-jurídica e que não
é tão simples requerer aos imigrantes
uma espécie de troca entre o
respeito rigoroso de seus modelos
culturais e a aceitação do catálogo
dos direitos e dos deveres que
definem a identidade coletiva
nas democracias ocidentais.
De fato, afirma-se, a cisão
entre forma de vida cultural
e cidadania política não é indolor:
temos como exemplo, o caso da
cultura islâmica, onde uma nítida
distinção entre os dois planos
terminaria por significar a
rejeição da própria identidade
cultural.
Quando nos referimos à ideologia
republicana no pensamento da
primeira modernidade, o texto
mais citado é The Machiavellian
Moment, de John Pocock. O autor
reconstrói uma imagem substancialmente
unilinear do republicanismo
cívico estabelecendo uma continuidade,
determinada por uma comum matriz
aristotélica, do humanismo civil
da Florença do século XV, a
Nicolau Maquiavel, a James Harrington,
ao debate teórico da Revolução
americana. Levantaram-se numerosas
vozes críticas a respeito desta
reconstrução [15]. Mas, para
o tema que estamos tratando,
é particularmente significativo
que Quentin Skinner, o histórico
mais freqüentemente associado
a Pocock, tanto pelo método,
quanto pelos interesses de pesquisa,
tenha introduzido uma importante
distinção conceptual. Skinner
identificou, na Itália do século
XIII, uma ideologia republicana
que se inspira no pensamento
romano – particularmente a Cícero
e a Sêneca – e que se desenvolveu
anteriormente ao próprio recebimento
ocidental da filosofia prática
aristotélica. É este filão que
é definido por Skinner como
classical republicanism, e distinto
do civic humanism, de ascendência
aristotélica, típico de autores
como Leonardo Bruni e Coluccio
Salutati.
Segundo Skinner, o republicanismo
clássico representa uma ruptura
com a tradição aristotélica:
o indivíduo não mais é visto
como zoon politikon, nem a política
é considerada como a realização
da essência humana. Para os
republicanos clássicos, afirma
Skinner, a participação política
é um meio para defender as liberdades
civis e a virtude tem, por sua
vez, um significado instrumental
dado que consiste no conjunto
das disposições e das capacidades
necessárias para uma atividade
política eficaz. Maquiavel -
o expoente máximo desta tradição
– teria elaborado uma concepção
original da liberdade, distinta
tanto da liberdade ‘positiva’
dos antigos, quanto da moderna
liberdade ‘negativa’ como mera
ausência de impedimentos.
Para Pocock, a citizenship republicana
entendida como participação
direta no governo, permite ao
cidadão exprimir sua verdadeira
essência, realizar seu verdadeiro
fim, o “eu zen” (bem viver).
Para Skinner, ao contrário,
os expoentes do republicanismo
clássico “sublinham que as diversas
classes de pessoas terão diferentes
disposições, e, conseqüentemente,
considerarão sua liberdade como
o meio para obter diferentes
objetivos” [16]
Se interpretada deste modo,
e distinta do aristotelismo
ético, a tradição do republicanismo
clássico pode oferecer pontos
interessantes também para o
debate teórico contemporâneo.
Desde que não se o considere
como expressão de uma presumida
natureza ‘política’ do homem,
o elemento ativista – no mais
implícito no termo citizenship
– pode ser retomado como componente
vital da noção ‘republicana’
de cidadania. Seu interesse
consiste, sobretudo, na ênfase
colocada sobre o sentimento
de pertença a instituições,
formas associativas e comunicativas,
mais do que a comunidades orgânicas
ou formas de vida étnico-culturais.
Por outro lado, Maquiavel não
tinha ilusões sobre a identificação
espontânea ‘constitutiva’ dos
cidadãos com as finalidades
da comunidade política: é a
constituição das leis que tornam
“bons” os cidadãos, porque “os
homens nunca operam bem se não
por necessidade” [17].
Na perspectiva da tradição republicana,
a pertença não está arraigada
nem em genealogias, nem em identidade
étnicas, nem em éticas comunitárias,
mas muito mais na lealdade democrática
– e, portanto, crítica – a princípios
jurídicos e instituições políticas.
Mas, diferentemente do modelo
universalista habermasiano,
esta lealdade se dirige para
uma república democrática particular.
Mas, sobretudo, há um aspecto
da reflexão republicana sobre
cidadania que considero particularmente
relevante, e que é sub-avaliado
por muitos teóricos contemporâneos
do republicanismo. Nos “Discursos
sobre a Primeira Década de Tito
Lívio”, Maquiavel exprime uma
tese teórica revolucionária,
segundo a qual a liberdade e
a potência de Roma foram um
produto do conflito político
[18]. As “leis e as ordens em
benefício da liberdade pública”
nascem, na Roma republicana,
como resultado da mobilização
ativa da plebe, como produto
do choque entre os dois “humores”
fundamentais da cidadania: o
patriciado afirma seu desejo
de poder, o povo defende sua
liberdade, resistindo ao domínio
e à interferência arbitrária.
Recentemente, Alessandro Pizzorno
retomou, neste sentido, algumas
sugestões da teoria sociológica
de Georg Simmel. Quando as partes
em conflito se organizam em
modo duradouro, necessitam por
isso mesmo da elaboração de
regras de coexistência. Se,
com a formação dos grandes Estados
nacionais, o sentimento de pertença
social tende a atenuar-se, no
conflito social “parecem, ao
contrário, reconstituir-se possibilidades
de reconhecimentos fortes, cotidianamente
repetidos e, portanto, formas
de solidariedade ativa que,
mesmo assim, não excedem os
limites constitucionais da solidariedade
coletiva mais ampla” [19] .
Dadas certas condições, o conflito
desenvolve a pluralidade e a
complexidade da pertença contemporânea,
mas produz também efeitos de
coesão, através de uma certo
tipo de feed-back (retro-alimentação).
1.5. Considero que a solução
de Habermas possa ser retomada,
a condição de não considerar
a pertença social como um valor
universal. Na abordagem de Habermas,
como dissemos, os valores liberal-democráticos,
o Estado de direito e os direitos
do homem são fundados a partir
das estruturas transcendentais
da comunicação lingüística.
Se, ao contrário, se renuncia
às pretensões universalísticas
da ética do discurso, exigir
o respeito dos direitos e deveres
de cidadania não significa exigir
a submissão a um código normativo
universal, nem tampouco a adesão
a uma forma “superior” de racionalidade.
Simplesmente, isto se torna
uma precondição para a integração
numa comunidade política. Podemos
dizer que se trata de uma exigência
de uma tribo – a tribo que se
auto-compreende como uma sociedade
aberta, liberal-democrática,
fundada no rule of law - para
os novos membros potenciais.
Uma tal noção remete a uma afirmação
sóbria da identidade nacional
enquanto identidade democrática:
a cidadania política remete
a uma tradição histórica não
para identificar um improvável
“destino” coletivo, mas para
valorizar aqueles eventos, de
alto valor simbólico, e, no
limite, aqueles mitos coletivos
de fundação que qualificam a
comunidade política como democrática.
Penso, por exemplo, no caso
da Itália, na Resistência ao
fascismo e ao nazismo durante
a segunda guerra mundial. E
devemos sempre ter claro o caráter
“artificial” e “construído”
da identidade nacional. É preciso
ter presente, por exemplo, que
não existe nenhuma discontinuidade
nítida entre identidade coletiva
dos Estados-nação e identidade
“multinacional” dos Estados
federais.
2.
Direitos
Que
concepção de direitos pode ser
adequada à noção de pertença
social que apresentamos?
2.1. O “universalismo” dos direitos
fundamentais é geralmente contraposto
ao “particularismo” da cidadania.
Porém, a genealogia dos direitos
subjetivos revela uma origem,
por sua vez, particularista.
O debate sobre o significado
de jus e sobre a existência
eventual de uma concepção subjetiva
dos direitos no direito romano
clássico é muito articulado
[20]. De qualquer maneira, podemos
excluir que jus possa ser interpretado
num sentido universalístico.
A afirmação moderna do conceito
de direito subjetivo remete
à experiência jurídica medieval:
a Idade Media conhece uma proliferação
de reivindicações de liberdades,
franquias, imunidades por parte
de sujeitos individuais e coletivos
que pedem de se reconhecidas
e tuteladas juridicamente, ou
seja, de ser consideradas como
jura. No caso paradigmático
do ordenamento inglês, os rights
– desde a Magna Charta Libertatum
de 1225 até o Bill of Rights
de 1689 e mais adiante – são
concebidos como antigos direitos
e liberdades gozados “desde
os tempos imemoriais” pelos
súditos ingleses em virtude
da sua Ancient Constitution.
Se as origens e a linguagem
dos direitos são marcados de
maneira indelével por este particularismo,
também o percurso que levou
à elaboração de uma noção plenamente
subjetiva e universalista dos
direitos fundamentais como atribuições
e poderes “naturais’ dos indivíduos
humanos se revela tortuoso e
aberto a êxitos paradoxais.
É difícil, por exemplo, sustentar
que quanto mais uma teoria distingue
analiticamente entre significado
subjetivo e objetivo de direito,
tanto mais ela está em condições
de fundar a tutela jurídica
dos indivíduos. Tampouco é possível
falar do universalismo de maneira
univocamente positiva. Vou apresentar
somente alguns exemplos.
Na “controvérsia sobre a pobreza”,
que, no século XIV, contrapus
a ordem franciscana ao papa
João XXII, a noção de direito
subjetivo é elaborada, por um
lado, pelos teólogos franciscano
que pretendem teorizar a possibilidade
de renunciar a tais direitos,
e por outro, pelo papa que quer
impor a determinados sujeitos
a titularidade destes direitos.
De resto – como mostrou de maneira
lúcida Luigi Ferrajoli – a primeira
teoria universalística dos “direitos
humanos”, a de Francisco de
Vitoria, legitimou a colonização
espanhola das Índias Ocidentais
[21].
A definição paradigmática do
direito subjetivo em contraposição
ao direito em sentido objetivo
(right contra law, jus contra
lex), a sua atribuição a todos
os homens enquanto tais e a
teorização da igualdade natural
são obras de Hobbes; mas isto
acontece no contexto de uma
teoria que visa fundar a renúncia
aos próprios direitos – disponíveis
aos indivíduos enquanto de sua
propriedade – por parte dos
súditos e legitimar o Estado
absoluto. Ao contrário, Locke
pode propor a função tradicional
de garantia desenvolvida pelos
rights no interior do contexto
constitucional inglês, somente
re-introduzindo uma referência
à lei natural colocada por Deus
e ao dever que lhe consegue
de auto-conservação [22].
2.2. Tudo isto poderia não ser
pertinente se não na medida
em que convida à cautelas e
distinções. Para além das dificuldades
e dos acidentes de percurso,
o processo secular de elaboração
da noção de direitos fundamentais
poderia, de qualquer forma,
ter deixado para nós um instrumento
conceitual confiável. As críticas
à concepção jusnaturalista dos
direitos – desde a análise de
D. Hume (conhecida como a “falácia
naturalista”), passando pela
concepção de J. Bentham dos
direitos de natureza como “a
nonsense upon stilts” (um não
senso sobre perna de paus) até
a crítica corrosiva do juspositivismo
do século XX - foram exercitadas
por mais de dois séculos. Tais
críticas, porém, além das suas
limitações epistemológicas,
não explicam o porque da incorporação
dos direitos “fundamentais”
ou “invioláveis” nas constituições
contemporâneas [23]. Aparece,
portanto, uma certo paradoxo
do positivismo conseqüente:
os ordenamentos jurídicos positivos
assumem como próprios, e, portanto,
positivizam, direitos fundamentais
cuja fonte não é a autoridade
estatal, os quais mantêm, por
assim dizer, um excedente normativo
em relação ao próprio ordenamento.
Coloca-se, porém, um outro problema.
A história da elaboração da
linguagem dos direitos assim
como a história da atribuição
a eles de um valor universal,
é uma história tipicamente ocidental
ao ponto que o próprio conceito
de direito subjetivo é quase
que intraduzível em outras culturas
jurídicas e tradições étnicas.
Assim, parece oportuno perguntar-se
até que ponto os “direitos fundamentais”
apresentem uma validade inter-cultural.
A referência aos textos normativos
internacionais, começando pela
Declaração Universal de 1948,
não é suficiente para resolver
o problema. Já durante a discussão
de 1946-48 no âmbito das Nações
Unidas apareceu uma forte conotação
ocidental no conteúdo da Declaração
[24]. As Cartas sucessivas de
direitos, promovidas por organizações
internacionais que fazem referência
a áreas geográficas que permaneceram,
durante um longo tempo, estranhas
à cultura iluminístico-liberal,
poderiam porém ser interpretadas
como o sinal de uma grande capacidade
expansiva da linguagem dos direitos.
Todavia, a leitura destas Cartas
mostra uma influência significativa
das tradições culturais sobre
a meneira com que a linguagem
dos direitos é recebida, uma
maneira que é dificilmente conciliável
com o individualismo liberal
clássico [25].
De outro lado, penso que se
possa afirmar que também as
tentativas contemporâneas de
fundação dos direitos remetem
à experiência política e jurídica
da modernidade ocidental. Nem
os “valores fundamentais” de
John Finnis, nem a teoria de
John Rawls sobre a justiça,
nem a “gênese co-originária”
de direitos humanos e soberania
popular proposta por Habermas
parecem pensáveis fora das vicissitudes
culturais inauguradas pelo direito
romano, retomadas na Idade Media
cristã e desenvolvidas na Idade
Moderna. Por outro lado, a mais
famosa rights theory, a de R.
Dworkin, apresenta explicitamente
uma tese contextualista quando
não comunitarista. [26]
Richard Rorty tem afirmado que
considerar os direitos como
expressão de um fundamento último
e assim apresentar-se como os
portadores de uma verdade normativa
não é a maneira melhor de iniciar
um diálogo [27]. Podemos assinalar
dois possíveis efeitos indesejados
dessa tentativa de fundar os
direitos humanos. A abordagem
“fundacionalista” e universalística
poderia fornecer argumentos
às resistência difusas contra
as tentativas de estender, a
nível internacional, os espaços
de liberdade e de tutela dos
indivíduos: isto poderia provocar
paradoxalmente uma aproximação
entre os teóricos autoritários
dos Asian Values (valores asiáticos)
e os movimentos de resistência
à homologação e a defesa do
pluralismo cultural. Em segundo
lugar, hoje, o princípio dos
direitos humanos pode constituir
a justificativa ideológica dos
projetos de nova ordem global
e de estabilidade hegemônica.
Existem muitos sinais de uma
tendência a considerar os direitos
humanos como princípio primeiro
da ética internacional, de tal
forma que possam legitimar violações
abertas do direito internacional
“positivo”. Penso, por exemplo,
as teses recentes de Antonio
Cassese [28], ou aos argumentos
que Habermas utiliza em favor
das intervenções militares “humanitárias”
[29]. Manter a consciência vigilante
de que a linguagem dos direitos
subjetivos, inclusive dos direitos
fundamentais, carrega consigo
os sinais da cultura na quel
foi elaborada me parece um antídoto
útil contra um novo “fundamentalismo”
dos direitos.
2.3. Há também um outro ponto
que merece a nossa atenção.
A identificação da cidadania
moderna com um catálogo de direitos,
a primazia da figura democrática
do direito sobre a do dever
foi considerada como o sinal
de uma profunda transformação
ético-política, a saber, a evolução
dos “súditos” em “cidadãos”
[30]. Boa parte do juspositivismo
formalístico dos séculos XIX
e XX tende a reduzir o direito
subjetivo ao direito objetivo,
no sentido de afirmar a prioridade
do direito estatal sobre os
direitos subjetivos. Todavia,
autores entre eles tão diferentes
como Alf Ross, Herbert Hart
e Neil MacCormick criticaram
a tese da redução dos direitos
à mero correlato dos deveres
[31].
Com efeito, há um excedente
semântico da linguagem dos direitos
sobre a linguagem dos deveres,
ao qual se vincula, na minha
opinião, um excedente simbólico
[32]. A imagem de uma sociedade
que ignora a noção dos direitos
é a metáfora distópica através
da qual Joel Feinberg vinculou
a noção de direito subjetivo
a “the activity of claiming"
(a atividade de reivindicar).
Para Feinberg o uso característico
dos direitos é “to be claimed,
demanded, affirmed, insisted
upon” (reivindicar, demandar,
afirmar, insistir), e sobretudo
“it is claiming that gives rights
their special moral significance”:
“Having rights enables us to
‘stand up like men’, to look
others in the eye” [33] (é a
reivindicação que dá aos direitos
o seu significado moral relevante:
ter direitos nos torna capazes
de ‘estar de pé como um homem’
e de “olhar os outros nos olhos”).
Acho que este tratamento torna
a linguagem dos direitos algo
particularmente adequado a assumir
a perspectiva ex parte populi,
ou seja, a expressar, para usar
uma frase feliz de Ferrajoli,
"as razões que vêm de baixo,
com relação às razões que vêm
do alto".
Nos remetemos aqui a uma tese
importante de Norberto Bobbio.
Com um oxímoro feliz, Bobbio
escreve que “os direitos naturais
são todos históricos” [34],
isto é, “nasceram em certas
circunstâncias marcadas pelas
lutas em defesa de novas liberdades
contra velhos poderes, gradativamente,
não de uma vez só nem uma vez
por todas” [35].
Esta idéia de uma origem conflituosa
dos direitos encontra raízes
históricas significativas. Aqui
também nos podemos remeter a
alguns expoentes da tradição
republicana protomoderna. Em
autores tais como Algernon Sidney,
Baruch Spinoza e Adam Ferguson,
a maquiaveliana avaliação positiva
do conflito se liga com a linguagem
dos direitos [36]. No Essay
on the History of Civil Society
de Adam Ferguson é o conflito
social a encaminhar o desenvolvimento
de novas instituições e a promover
a inovação constitucional. [37]
Sobre esta apologia do conflito
social se insere a utilização,
por parte de Ferguson, da linguagem
dos direitos. Ele, como Hobbes,
identifica o fundamento dos
direitos na natureza humana,
mas não no sentido racionalístico
do jusnaturalismo moderno. Os
direitos expressam, antes disso,
um sentimento genericamente
humano, de auto-afirmação e
de dignidade:
Cada camponês nos dirá que um
homem tem seus direitos e que
violar estes direitos constitui
uma injustiça. E se lhe perguntássemos
o que entende por direitos provavelmente
o obrigaríamos a substituir
este termo com um termo menos
significativo e apropriado e
a explicar algo que é uma forma
originária da sua mente e um
sentimento primário ao qual
ele se refere quando quer esclarecer-se
sobre um uso particular da sua
linguagem […] Não é nossa tarefa
desenvolver aqui a noção de
direito nas suas diversas aplicações,
mas é nossa obrigação raciocinar
sobre o sentimento favorável
com o qual aquela noção é entendida
pela mente [38].
Este elemento parece expressar
algo de análogo ao sentimento
de hostilidade ao domínio no
qual Philip Pettit encontra
as raízes da concepção republicana
da “freedom as non domination”
(liberdade como ausência de
dominação) [39]. No Essay de
Ferguson aparece a apologia
daquela que, para parafrasear
um título de um ensaio famoso
de Rudolf von Ihering, poderíamos
chamar de “luta pelos direitos”.
A moderação e a disposição conciliatória
podem traduzir-se em indiferença
política, enquanto que a virtude
cívica mostra um traço indelével
de ativismo e se expressa na
capacidade de mobilização [40]:
descansar sobre os direitos
estabelecidos é um risco para
a liberdade [41]. A liberdade
é um direito a ser reivindicado;
considerá-la como um privilégio
concedido significa perder o
seu sentido e para defendé-la
não são suficientes as instituições:
precisa a disposição constante
de “opor-se aos ultrajes” [42].
Minha hipótese é que uma consciência
maior da importância que esta
apologia do conflito assume
num amplo setor da tradição
republicana poderia favorecer
uma elaboração teórica original.
O reconhecimento deste traço
conflituoso indica, na minha
opinião, o caminho para entender
o que, na linguagem dos direitos,
tende ao superamento da sua
conotação particular, herdada
de sua origem ocidental e moderna.
Tenho a impressão de que este
elemento, embora expressão típica
da cultura ocidental, é também
o elemento que pode ser reconhecido
e valorizado com mais facilidade
pelas outras culturas.
Alguns autores que enfrentaram
o problema da “tradução” da
linguagem dos direitos propuseram
como solução a exigência comum
de justiça ou de códigos normativos
transcendentais. Do meu ponto
de vista, me parece melhor percorrer
um caminho alternativo: valorizar
a idéia da reivindicação, do
pedido de reconhecimento, da
oposição ao domínio e à opressão.
Acredito que o elemento tendencialmente
universalístico dos direitos
fundamentais não deve ser procurado
somente no seu conteúdo quanto
no compromisso e no engajamento
para afirmá-los, reivindicá-los
e mobilizar-se para a sua obtenção.
Os indivíduos e grupos humanos
tendem, em várias situações,
de maneira mais ou menos espontânea,
à submissão e encontram sua
segurança na dependência. Porém,
o que provavelmente as culturas
“outras” – ou melhor, os oprimidos
das culturas “outras” – reconhecem
na linguagem ocidental dos direitos
é justamente a valorização do
gesto, também ele tipicamente
humano, de se sublevar, de reagir,
de afirmar a própria dignidade:
algo de análogo à kantiana “saída
da minoridade”. Ao mesmo tempo,
eles reconhecem neste gesto
a flexibilidade e a possibilidade
de conceitualizar necessidades,
interesses e expectativas, de
tal modo a poder identificar
técnicas jurídicas para protegê-las.
1.
Qual cidadania?
Acredito
que a noção de membership (pertença
social) e a concepção dos direitos
que acabei de apresentar podem
encontrar um ponto de convergência
significativo. Com efeito, uma
concepção da membership entendida
em termos político-jurídicos
e uma concepção “ativa” dos
direitos como expressão de mobilizações
e reivindicações não apresentam
aquela antinomia entre igualdade
e desigualdade, discriminação
e universalismo citadas por
Ferrajoli. A citizenship pode
ser vista como o âmbito no qual
se reivindicam e se conquistam
direitos, ou como o quadro institucional
da “luta pelos direitos”. Neste
sentido, acredito que se poderia
falar de uma “concepção política”
da cidadania. “Política” num
duplo sentido: enquanto se contrapõe
à concepções etnicísticas e
comunitaristicas e enquanto
atribui um status privilegiado
aos direitos políticos como
direitos “reflexivos” [43] ou
seja, como pré-condições da
atividade através da qual os
outros direitos são obtidos
e desenvolvidos. Uma concepção
deste tipo não expressa uma
vinculação com uma comunidade
eticamente integrada, mas o
ativismo, o conflitualismo,
o sentido de uma identidade
“política” coletiva, finalizada
à tutela dos indivíduos contra
o domínio.
Acredito que esta concepção
“política” permita, por assim
dizer, de maximizar as vantagens
e minimizar as desvantagens
atribuídas à noção de cidadania.
Esta concepção ilumina de modo
particular a idéia de que a
citizenship permita assumir
a perspectiva ex parte populi,
em lugar de ver os fenômenos
políticos “desde o alto” [44].
Por outro lado, em inglês o
termo citizenship possui uma
áurea ativística peculiar, que
expressa, de alguma forma, o
engajamento dos cidadãos que
reivindicam os seus direitos
e assumem as suas próprias responsabilidades.
Porém, este ativismo, esta insistência
sobre as virtudes da participação
se despoja dos seus traços moralísticos
e não faz referência à antropologia
do zoon politikon nem assume
características comunitarísticas.
Escreve Marshall:
Em lugar de uma pertença (partnership)
gestida para realizar os princípios
de uma justiça universal, a
cidadania se assemelha mais
a uma arena onde batalhas potencialmente
infinitas são combatidas, onde
se conduzem negociações e compromissos.
Além disso, em muitos casos,
o atual gozo dos direitos foi
possível somente através da
mobilização interessada dos
cidadãos e a pressão organizada
de grupos. [45]
Também no interior das “cidadanias
valorizadas” do Ocidente, a
titularidade formal dos direitos
se estabiliza e se torna efetiva,
em muitos casos, somente através
de uma mobilização política
constante e pode sempre correr
o risco de uma volta à inefetividade.
E isto vale, sobretudo, para
os estratos mais fracos, para
os marginalizados e os estrangeiros.
Se os direitos são o resultado
de reivindicação e mobilização,
temos duas conseqüências significativas.
De um lado a concepção da cidadania
não prevê um catálogo “fechado”
de direitos, mas se abre a “novas
gerações” de direitos, como
as reproductive freedoms (liberdades
reprodutivas) e os direitos
levantados pelos movimentos
ecológicos, de que fala Held
[46]. Do outro lado, uma concepção
“ativa” dos direitos e uma concepção
conflituosa da memership excluem
uma excessiva inflação da linguagem
dos direitos. Parece, por exemplo,
forçada a inclusão entre os
sujeitos dos direitos e os titulares
da cidadania, de figuras tais
como o feto, ou dos animais
não humanos ou dos vegetais
e dos minerais. Nesta perspectiva,
podem ser acolhidos muitos elementos
da crítica feminista aos modelos
tradicionais de cidadania social.
Os efeitos de estereotipização
deverias ser evitados pelo trabalho
“desde baixo” e pelo processo
de auto-redefinição produzido
pelos atores sociais do conflito
[47]. E assim alguns direitos
civis fundamentais adquirem
um significado novo: em particular,
a privacy é interpretada não
mais como uma defesa de uma
esfera “privada” intangível,
mas como a tutela de “an aspect
of identity demanding respect”
[48](de um aspecto da identidade
que exige respeito). Por exemplo,
discriminar a homossexualidade
significaria excluir os indivíduos
e os grupos da cidadania.