A 
                                                  cidadania entre pertença social 
                                                  e direitos
                                                Luca 
                                                  Baccelli
                                                  Università de Pisa
                                                
                                                  No clássico ensaio de T. H. 
                                                  Marshall [2], citizenship exprime 
                                                  a conexão existente entre o 
                                                  gozo pelos cidadãos de um conjunto 
                                                  variável de direitos civis, 
                                                  políticos e sociais e a pertença 
                                                  [3] a um grupo político particular. 
                                                  Marshall identifica a cidadania 
                                                  com a “plena pertença a uma 
                                                  comunidade” e a define como 
                                                  “um status que é conferido àqueles 
                                                  que são membros plenos de uma 
                                                  comunidade”. ‘Cidadania’, enquanto 
                                                  exprime o nexo entre gozo de 
                                                  direitos e pertença a um grupo 
                                                  social, permite dar conotação 
                                                  a fenômenos, tendências e processos, 
                                                  seja nos países economicamente 
                                                  desenvolvidos, caracterizados 
                                                  por um sistema político liberal-democrático, 
                                                  seja em âmbitos transnacionais 
                                                  e interestatais. Por exemplo, 
                                                  os conflitos para a afirmação 
                                                  de pertenças étnicas, culturais 
                                                  e religiosas; ou, também determinadas 
                                                  dinâmicas internas de comunidades 
                                                  nacionais: a crise generalizada 
                                                  dos pactos sociais e fiscais, 
                                                  a luta pelo reconhecimento de 
                                                  identidades coletivas, a relação 
                                                  entre igualdade e diferença; 
                                                  e, finalmente, o impacto da 
                                                  globalização econômica na soberania 
                                                  nacional e nas funções do Estado.
                                                  Mas que noção de pertença social 
                                                  e que concepção dos direitos 
                                                  são adequadas para enfrentar 
                                                  tais questões? As noções de 
                                                  direito e pertença parecem remeter 
                                                  a dois universos conceptuais 
                                                  diferentes: o “individualismo” 
                                                  liberal, de uma parte, o “holismo” 
                                                  da tradição aristotélica latu 
                                                  sensu, de outra; parecem aludir, 
                                                  de um lado, ao universalismo, 
                                                  e, de outro, ao particularismo, 
                                                  ou ao comunitarismo. O que significa 
                                                  que a cidadania comporta a “full 
                                                  membership” (ser membro pleno) 
                                                  de uma comunidade? Em que sentido 
                                                  se pode falar, nas sociedades 
                                                  diferenciadas e complexas, de 
                                                  ‘comunidade” e de ‘pertença’? 
                                                  Como se constitui o “nós”, o 
                                                  sujeito plural da cidadania? 
                                                  Em que sentido os direitos são 
                                                  usufruídos pelo fato de pertencer 
                                                  a uma comunidade política, e 
                                                  em que sentido são ‘universais’? 
                                                  
                                                  Neste ensaio, procurarei defender 
                                                  a tese de que é possível delinear 
                                                  uma concepção da pertença à 
                                                  comunidade política e uma visão 
                                                  dos direitos individuais compatíveis 
                                                  entre si e capazes de se integrarem 
                                                  numa concepção da cidadania 
                                                  adequada às sociedades complexas 
                                                  e diferenciada da era da globalização. 
                                                  
                                                  
                                                
                                                  1. Membership
                                                Muitos 
                                                  autores consideram a perspectiva 
                                                  universalista como a única compatível 
                                                  com a democracia e o constitucionalismo, 
                                                  e vêem cada teorização da “pertença” 
                                                  à comunidade política como uma 
                                                  afirmação regressiva de privilégios. 
                                                  Um grupo significativo de filósofos 
                                                  políticos e de estudiosos das 
                                                  relações internacionais afirma 
                                                  que a resposta adequada aos 
                                                  processos de globalização é 
                                                  uma profunda reestruturação 
                                                  das instituições internacionais 
                                                  no sentido da democracia cosmopolita. 
                                                  [4] De outro ponto de vista, 
                                                  Luigi Ferrajoli afirmou que 
                                                  existe uma antinomia entre a 
                                                  noção de cidadania e o valor 
                                                  atribuído aos direitos fundamentais 
                                                  pelas constituições contemporâneas. 
                                                  Ferrajoli propõe, portanto, 
                                                  a superação da cidadania, entendida 
                                                  como “o último privilégio de 
                                                  status, o último fator de exclusão 
                                                  e de discriminação, a últimas 
                                                  ruína pré-moderna das desigualdades 
                                                  pessoais em contraste com a 
                                                  conclamada universalidade e 
                                                  igualdade dos direitos fundamentais” 
                                                  [5]. 
                                                  Não pretendo contestar a oportunidade 
                                                  de desenvolver, e, sobretudo, 
                                                  de democratizar, as instituições 
                                                  internacionais, menos ainda 
                                                  a urgência de enfrentar os global 
                                                  issues (assuntos globais) e 
                                                  esconjurar os global risks (riscos 
                                                  globais). Mas, parece-me problemática 
                                                  não só a possibilidade de realizar 
                                                  uma república cosmopolita, mas 
                                                  também que isso seja desejável 
                                                  [6]. Uma análise sumária dos 
                                                  processos políticos em curso 
                                                  - no plano nacional, regional 
                                                  e global - deveria fazer refletir: 
                                                  quanto mais o lugar da decisão 
                                                  política se distancia dos cidadãos, 
                                                  tanto mais tendem a prevalecer 
                                                  lógicas tecnocráticas e decisionistas, 
                                                  e aumenta o poder das agências 
                                                  – públicas e principalmente 
                                                  privadas – desprovidas de qualquer 
                                                  legitimação democrática. A economia 
                                                  global e a geopolítica poderiam 
                                                  produzir uma paradoxal reviravolta 
                                                  do modelo kantiano que exigia, 
                                                  como condição da Weltrepublik 
                                                  (república mundial), que a constituição 
                                                  interna de cada Estado fosse 
                                                  ‘republicana’. Somente uma instância 
                                                  cosmopolita - de tipo tecnocrático 
                                                  – poderia limitar drasticamente 
                                                  o auto-governo de cada comunidade. 
                                                  Por outro lado, se a noção de 
                                                  cidadania implicasse necessariamente 
                                                  valências organicistas, patrióticas 
                                                  e etnicistas, ela deveria ser 
                                                  rejeitada com firmeza [7]. Acredito, 
                                                  porém que seja possível elaborar 
                                                  uma concepção do “pertença social” 
                                                  livre de implicações deste tipo. 
                                                  E afirmo que uma tal noção, 
                                                  além de ser mais atraente do 
                                                  ponto de vista normativo, exprime 
                                                  de forma mais adequada a realidade 
                                                  efetiva das sociedades contemporâneas 
                                                  complexas e diferenciadas. 
                                                  1.1. O terreno pode ser liberado 
                                                  com agilidade, pelo menos no 
                                                  plano teórico, das noções genealógicas, 
                                                  biológicas, no limite racistas 
                                                  de “pertença”. As visões organicistas 
                                                  que interpretam as nações em 
                                                  termos de Blut und Boden (“sangue 
                                                  e terra”), como o resultado 
                                                  espontâneo de sucessões genealógicas 
                                                  radicadas no território, são 
                                                  desmentidas pela pesquisa historiográfica. 
                                                  A identidade coletiva, seja 
                                                  étnica, seja, com mais razão, 
                                                  nacional, não pode ser considerada 
                                                  como se fosse um dado biológico. 
                                                  Alguns autores a interpretam 
                                                  como um típico produto da modernidade 
                                                  e da sociedade industrial; outros 
                                                  individuam suas origens remotas 
                                                  em eventos simbólicos e mitos 
                                                  de fundação. Em todo o caso, 
                                                  a etnia e a nacionalidade aparecem 
                                                  como entidades artificiais, 
                                                  culturalmente construídas [8]. 
                                                  
                                                  É óbvio que, além de ser teoricamente 
                                                  insustentáveis, as teorias genealógicas 
                                                  e organicistas são particularmente 
                                                  perigosas do ponto de vista 
                                                  político. Poderíamos dizer que 
                                                  tais teorias são um produto 
                                                  da insegurança, do “medo”, de 
                                                  uma ameaça real ou imaginária 
                                                  representada pelos “outros”, 
                                                  pelos estrangeiros, pelos “inimigos”. 
                                                  Se a cidadania significasse 
                                                  isso, as propostas de abandonar 
                                                  o conceito em razão de sua conotação 
                                                  particularista seriam plenamente 
                                                  justificadas. 
                                                  1.2 Os filósofos políticos communitarian 
                                                  não se referem explicitamente 
                                                  a genealogias étnicas ou a ‘comunidades 
                                                  de história e destino’; sustentam, 
                                                  ao contrário, que a coesão social, 
                                                  a fundação dos princípios morais, 
                                                  a mesma formação das identidades 
                                                  individuais são incompreensíveis 
                                                  se se prescinde da relação do 
                                                  indivíduo com a comunidade, 
                                                  com o seu conjunto de hábitos, 
                                                  costumes, valores difusos. Mas 
                                                  os comunitaristas não se limitam 
                                                  a esta análise, que pode ser, 
                                                  em grande parte, compartilhada. 
                                                  Da constatação que existe uma 
                                                  ligação entre a identidade individual 
                                                  e o contesto social, eles inferem 
                                                  uma “obrigação de pertença” 
                                                  à comunidade onde o sujeito 
                                                  se formou e o dever de sustentar 
                                                  os seus valores fundamentais. 
                                                  Há aqui uma passagem indevida 
                                                  do plano do ser para aquele 
                                                  do dever ser. E esta falácia 
                                                  se traduz numa sobrecarga ética 
                                                  sobre os indivíduos, além de 
                                                  um sub-valorização da autonomia 
                                                  individual. A identidade moderna, 
                                                  particularmente, seria incompreensível 
                                                  se prescindíssemos dos processos 
                                                  mediante os quais o indivíduo 
                                                  se autonomiza do grupo, através 
                                                  de uma dialética de dissenso, 
                                                  contraposição e reconhecimento, 
                                                  de simultâneo ser-com e ser-contra.
                                                  1.3 É provável que a discussão 
                                                  sobre a noção de pertença possa 
                                                  ser enriquecida indo além da 
                                                  filosofia política normativa 
                                                  em sentido restrito, marcada 
                                                  pela discussão entre liberais 
                                                  e comunitaristas. Uma contribuição 
                                                  importante provém da teoria 
                                                  social. Um dos motivos de interesse 
                                                  na sociologia de Parsons é exatamente 
                                                  a ligação entre a instância 
                                                  normativa e a concepção da sociedade 
                                                  como sistema. Niklas Luhmann 
                                                  forneceu uma imagem não hierárquica 
                                                  e não linear do sistema, visto 
                                                  como uma estrutura ‘sem vértice 
                                                  e sem centro’. Luhmann assinala 
                                                  a existência de mecanismos sistêmicos 
                                                  de produção do consenso que 
                                                  reduzem, por assim dizer, a 
                                                  quantidade de sentido de pertença 
                                                  reconhecido como socialmente 
                                                  necessário. Um dos motivos de 
                                                  interesse da sociologia de Parsons 
                                                  é exatamente a ligação entre 
                                                  a instância normativa e a concepção 
                                                  da sociedade como sistema. Deste 
                                                  ponto de vista, sua teoria aparece 
                                                  menos unilateral daquela luhmanniana 
                                                  que, especialmente depois da 
                                                  adoção do paradigma autopoietico, 
                                                  tende a objetivar a sociedade 
                                                  como se fosse um um macro-organismo. 
                                                  
                                                  Como se sabe, Habermas procurou 
                                                  retomar este aspecto da teoria 
                                                  parsoniana: sua teoria do agir 
                                                  comunicativo liga a concepção 
                                                  da sociedade como Lebenswelt 
                                                  (mundo da vida) ao paradigma 
                                                  sistêmico. Para compreender 
                                                  a coesão social, segundo Habermas, 
                                                  é preciso considerar em conjunto 
                                                  tanto os mecanismos sistêmicos 
                                                  como os processos comunicativos. 
                                                  Estes últimos se radicam na 
                                                  Lebenswelt, e isso reduz os 
                                                  riscos de dissenso e as conseqüentes 
                                                  dificuldades na integração. 
                                                  A linguagem e os modelos culturais 
                                                  herdados do passado constituem, 
                                                  de fato, um patrimônio cognoscitivo 
                                                  do qual os membros retiram convicções 
                                                  de fundo que não precisam ser 
                                                  problematizadas.
                                                  A maneira com que Habermas coloca 
                                                  o problema permite, na minha 
                                                  opinião, reconhecer, junto com 
                                                  os elementos subconscientes 
                                                  e reflexivos da membership analisados 
                                                  por Luhmann, o papel das convicções 
                                                  difusas, dos sentimentos locais 
                                                  e nacionais, das sub-culturas, 
                                                  das ideologias políticas, das 
                                                  crenças religiosas. 
                                                  Mas a referência à interação 
                                                  comunicativa é, em Habermas, 
                                                  muito mais que um elemento essencial 
                                                  para a análise da interação 
                                                  social. Ela representa o ponto 
                                                  de ligação entre a teoria do 
                                                  agir e a ética do discurso. 
                                                  Como é sabido, Habermas sustenta 
                                                  que, nas estruturas da linguagem 
                                                  ordinária, comum a todos os 
                                                  falantes humanos, nas regras 
                                                  a que se deve submeter qualquer 
                                                  um que pretenda instaurar um 
                                                  processo comunicativo com um 
                                                  interlocutor, pode-se localizar 
                                                  aquele princípio de universalização 
                                                  que exprime o ‘ponto de vista 
                                                  moral’. O politeísmo dos valores 
                                                  e a diferenciação cultural não 
                                                  implicam, portanto, segundo 
                                                  Habermas, o relativismo ético. 
                                                  
                                                  Nesta linha, Habermas também 
                                                  tenta fundar uma teoria dos 
                                                  direitos subjetivos, da cidadania 
                                                  e da democracia. A legitimidade 
                                                  do direito moderno, sustenta 
                                                  Habermas - em polêmica com os 
                                                  teóricos do positivismo jurídico 
                                                  - não é simplesmente garantida 
                                                  por seu caráter procedimental. 
                                                  É preciso algo mais: os procedimentos 
                                                  do direito devem satisfazer 
                                                  as condições de uma formação 
                                                  racional da vontade. No Estado 
                                                  democrático de direito, “o poder 
                                                  político deve sua legitimidade 
                                                  ao conteúdo moral implícito 
                                                  nas qualidades morais do direito”. 
                                                  Através da ética do discurso, 
                                                  portanto, seria possível adquirir 
                                                  um ponto de vista universal 
                                                  que permitiria fundar a legitimidade 
                                                  do ordenamento.
                                                  É este círculo – que Habermas 
                                                  considera virtuoso – entre estrutura 
                                                  da comunicação, ética do procedimental 
                                                  do discurso e procedimentos 
                                                  jurídicos que expõe a teoria 
                                                  às críticas mais radicais. A 
                                                  tentativa de fundamentar uma 
                                                  ética universalista sobre as 
                                                  (supostas) estruturas transcendentais 
                                                  da linguagem parece árdua na 
                                                  condição ‘pós-metafísica’ da 
                                                  filosofia contemporânea. E, 
                                                  sobretudo, entrega a proposta 
                                                  filosófico–jurídica habermasiana 
                                                  ao destino de uma particular 
                                                  interpretação da teoria dos 
                                                  atos lingüísticos. 
                                                  Uma imagem convincente da integração 
                                                  social deveria representar aquelas 
                                                  duas dimensões que Habermas 
                                                  designa com os termos de sistema 
                                                  Lebenswelt, renunciando, porém, 
                                                  à perspectiva universalista. 
                                                  O modelo a dois níveis põe à 
                                                  luz seja a dimensão material-econômica, 
                                                  seja aquela político-cultural 
                                                  da membership. Mas a ligação 
                                                  com a ética do discurso através 
                                                  da teoria procedimental do direito 
                                                  acaba por re-introduzir aquela 
                                                  sobrecarga ética que Habermas 
                                                  havia criticado nas posições 
                                                  dos comunitaristas. Disso resulta, 
                                                  entre outras, uma imagem tendencialmente 
                                                  conciliatória e idílica do Lebenswelt. 
                                                  O próprio Habermas assinala, 
                                                  como é sabido, que o mundo da 
                                                  vida está exposto à ‘colonização’ 
                                                  do sistema; mas é preciso também 
                                                  reconhecer que a práxis comunicativa 
                                                  não produz, de forma unívoca, 
                                                  racionalidade, processos de 
                                                  entendimento e compreensão, 
                                                  tolerância, valores democráticos. 
                                                  
                                                  Uma noção de pertença social 
                                                  adequada à sociedade complexa 
                                                  e diferenciada deveria considerar 
                                                  a coesão social como o resultado 
                                                  de um conjunto de motivações 
                                                  explícitas, escolhas de valor, 
                                                  lealdade, e de processos sistêmicos 
                                                  que induzem à obediência ‘sem 
                                                  motivações especiais’. É a este 
                                                  jogo aberto, a esta entidade 
                                                  magmática que ‘pertencem’ os 
                                                  cidadãos: não a uma comunidade 
                                                  orgânica, mas a um campo de 
                                                  forças e a um terreno de embates, 
                                                  de conflitos e de jogos de cooperação 
                                                  entre interesses e valores ‘politeístas’. 
                                                  
                                                  Na discussão sobre pertença 
                                                  social, freqüentemente se tende 
                                                  a descuidar o impacto exercido 
                                                  sobre as sociedades contemporâneas 
                                                  pela revolução informática e 
                                                  pela difusão capilar das mídias 
                                                  eletrônicas. De resto, o próprio 
                                                  nacionalismo moderno não teria 
                                                  sido possível sem a difusão 
                                                  da imprensa. Hoje, na discussão 
                                                  sobre a identidade nacional 
                                                  se deveria ter presente, muito 
                                                  mais do que as imagens românticas 
                                                  do destino coletivo, as representações 
                                                  prosaicas do público televisivo 
                                                  investido por um fluxo constante 
                                                  de imagens e de informações. 
                                                  Também neste caso, os efeitos 
                                                  são ambivalentes: as mídias 
                                                  têm contribuído para reforçar 
                                                  a identidade nacional – sabe-se, 
                                                  por exemplo, que o italiano 
                                                  tornou-se a língua falada da 
                                                  maioria da população depois 
                                                  da difusão da televisão. 
                                                  Enfim, não se deve esquecer 
                                                  a importância da dimensão econômica 
                                                  da cidadania. J. M. Barbalet 
                                                  afirma que, quando Marshall 
                                                  indica “a direct sense of community 
                                                  membership based on a loyalty 
                                                  to a civilisation wich is a 
                                                  common possession” [9] (um sentido 
                                                  direto de pertença social baseado 
                                                  sobre a lealdade a uma civilização 
                                                  que é um bem comum), como condição 
                                                  necessária da cidadania, esta 
                                                  afirmação não deve ser tomada 
                                                  no sentido normativo, como se 
                                                  prescrevesse compartilhar valores 
                                                  nacionais. Por “civilization” 
                                                  Marshall compreende “a material 
                                                  civilisation which has cultural 
                                                  and social consequences” [10] 
                                                  (uma civilização material que 
                                                  tem conseqüências culturais 
                                                  e sociais). Segundo Barbalet, 
                                                  por civilização Marshall não 
                                                  compreende o compartilhamento 
                                                  de valores nacionais e sociais, 
                                                  e sim uma ‘civilização material’ 
                                                  que pressupõe a existência de 
                                                  uma produção de massa. A integração 
                                                  social se realiza, portanto, 
                                                  em presença da expectativa prática 
                                                  de que o sistema atenderá aos 
                                                  interesses materiais de todos 
                                                  os setores da população e não 
                                                  somente dos mais poderosos. 
                                                  Recentemente, Dahrendorf insistiu 
                                                  sobre os efeitos de estranhamento 
                                                  da cidadania que resultam da 
                                                  piora das condições econômicas 
                                                  para a underclass (subclasse). 
                                                  Pobreza e desemprego, afirma 
                                                  Dahrendorf, ameaçam a própria 
                                                  existência da ‘sociedade civil’. 
                                                  
                                                  Por outro lado, é difícil negar 
                                                  que a afirmação de alguns direitos 
                                                  de cidadania tende a se chocar 
                                                  com a lógica funcional do mercado 
                                                  capitalista. E não há como deixar 
                                                  de reconhecer tensões relevantes 
                                                  entre diferentes categorias 
                                                  de direitos, começando pela 
                                                  tensão entre os direitos de 
                                                  liberdade ‘negativa’ e o direito 
                                                  à autonomia como forma moderna 
                                                  de ‘liberdade positiva’. 
                                                  1.4. A consideração da complexidade 
                                                  social, da conflitualidade, 
                                                  da dimensão econômica, da influência 
                                                  exercida pelos mass media deveria 
                                                  levar a rejeitar as concepções 
                                                  etnicistas de “pertença”. Mas, 
                                                  isso não significa considerar 
                                                  irrelevante todo elemento normativo. 
                                                  Os comunitaristas em geral referem-se 
                                                  à tradição “civic republican” 
                                                  do pensamento político, quando 
                                                  propõem uma tradução políticas 
                                                  de suas teorias [11] . Também 
                                                  Habermas, durante o debate dos 
                                                  anos oitenta sobre o revisionismo 
                                                  histórico e a herança do nazismo, 
                                                  e em alguns escritos sobre o 
                                                  problema da imigração, pronunciou-se 
                                                  em favor de um modelo ‘republicano’ 
                                                  de cidadania. Nas democracias 
                                                  modernas, afirma Habermas, a 
                                                  identidade coletiva tem um significado 
                                                  político-jurídico, e prescinde 
                                                  de referências ao ius sanguinis 
                                                  e à comunidade de história e 
                                                  de destino’. Habermas reconhece 
                                                  que houve sim um nexo entre 
                                                  identidade étnica e desenvolvimento 
                                                  da cidadania moderna, mas afirma 
                                                  que este nexo foi provisório 
                                                  [12]. Portanto, deve-se distinguir 
                                                  entre ethnos e demos, e a única 
                                                  forma aceitável de patriotismo 
                                                  é o ‘patriotismo da constituição’ 
                                                  (Verfassungspatriotismus) [13] 
                                                  . Conseqüentemente, os cidadãos 
                                                  têm direito a conservar as características 
                                                  da ‘forma de vida’ à qual pertencem, 
                                                  mas a identidade da nossa forma 
                                                  de vida depende da cultura política 
                                                  e dos princípios constitucionais. 
                                                  Habermas vê uma imediata conseqüência 
                                                  política desta concepção: é 
                                                  lícito pedir aos imigrantes 
                                                  que querem ser incluídos na 
                                                  cidadania o respeito às regras 
                                                  democrata-liberais, mas não 
                                                  uma renúncia às suas formas 
                                                  de vida étnico-culturais [14]. 
                                                  
                                                  A esta posição de Habermas retrucou-se 
                                                  que não é recomendável distinguir 
                                                  entre ‘forma de vida’e pertença 
                                                  político-jurídica e que não 
                                                  é tão simples requerer aos imigrantes 
                                                  uma espécie de troca entre o 
                                                  respeito rigoroso de seus modelos 
                                                  culturais e a aceitação do catálogo 
                                                  dos direitos e dos deveres que 
                                                  definem a identidade coletiva 
                                                  nas democracias ocidentais. 
                                                  De fato, afirma-se, a cisão 
                                                  entre forma de vida cultural 
                                                  e cidadania política não é indolor: 
                                                  temos como exemplo, o caso da 
                                                  cultura islâmica, onde uma nítida 
                                                  distinção entre os dois planos 
                                                  terminaria por significar a 
                                                  rejeição da própria identidade 
                                                  cultural. 
                                                  Quando nos referimos à ideologia 
                                                  republicana no pensamento da 
                                                  primeira modernidade, o texto 
                                                  mais citado é The Machiavellian 
                                                  Moment, de John Pocock. O autor 
                                                  reconstrói uma imagem substancialmente 
                                                  unilinear do republicanismo 
                                                  cívico estabelecendo uma continuidade, 
                                                  determinada por uma comum matriz 
                                                  aristotélica, do humanismo civil 
                                                  da Florença do século XV, a 
                                                  Nicolau Maquiavel, a James Harrington, 
                                                  ao debate teórico da Revolução 
                                                  americana. Levantaram-se numerosas 
                                                  vozes críticas a respeito desta 
                                                  reconstrução [15]. Mas, para 
                                                  o tema que estamos tratando, 
                                                  é particularmente significativo 
                                                  que Quentin Skinner, o histórico 
                                                  mais freqüentemente associado 
                                                  a Pocock, tanto pelo método, 
                                                  quanto pelos interesses de pesquisa, 
                                                  tenha introduzido uma importante 
                                                  distinção conceptual. Skinner 
                                                  identificou, na Itália do século 
                                                  XIII, uma ideologia republicana 
                                                  que se inspira no pensamento 
                                                  romano – particularmente a Cícero 
                                                  e a Sêneca – e que se desenvolveu 
                                                  anteriormente ao próprio recebimento 
                                                  ocidental da filosofia prática 
                                                  aristotélica. É este filão que 
                                                  é definido por Skinner como 
                                                  classical republicanism, e distinto 
                                                  do civic humanism, de ascendência 
                                                  aristotélica, típico de autores 
                                                  como Leonardo Bruni e Coluccio 
                                                  Salutati. 
                                                  Segundo Skinner, o republicanismo 
                                                  clássico representa uma ruptura 
                                                  com a tradição aristotélica: 
                                                  o indivíduo não mais é visto 
                                                  como zoon politikon, nem a política 
                                                  é considerada como a realização 
                                                  da essência humana. Para os 
                                                  republicanos clássicos, afirma 
                                                  Skinner, a participação política 
                                                  é um meio para defender as liberdades 
                                                  civis e a virtude tem, por sua 
                                                  vez, um significado instrumental 
                                                  dado que consiste no conjunto 
                                                  das disposições e das capacidades 
                                                  necessárias para uma atividade 
                                                  política eficaz. Maquiavel - 
                                                  o expoente máximo desta tradição 
                                                  – teria elaborado uma concepção 
                                                  original da liberdade, distinta 
                                                  tanto da liberdade ‘positiva’ 
                                                  dos antigos, quanto da moderna 
                                                  liberdade ‘negativa’ como mera 
                                                  ausência de impedimentos. 
                                                  Para Pocock, a citizenship republicana 
                                                  entendida como participação 
                                                  direta no governo, permite ao 
                                                  cidadão exprimir sua verdadeira 
                                                  essência, realizar seu verdadeiro 
                                                  fim, o “eu zen” (bem viver). 
                                                  Para Skinner, ao contrário, 
                                                  os expoentes do republicanismo 
                                                  clássico “sublinham que as diversas 
                                                  classes de pessoas terão diferentes 
                                                  disposições, e, conseqüentemente, 
                                                  considerarão sua liberdade como 
                                                  o meio para obter diferentes 
                                                  objetivos” [16]
                                                  Se interpretada deste modo, 
                                                  e distinta do aristotelismo 
                                                  ético, a tradição do republicanismo 
                                                  clássico pode oferecer pontos 
                                                  interessantes também para o 
                                                  debate teórico contemporâneo. 
                                                  Desde que não se o considere 
                                                  como expressão de uma presumida 
                                                  natureza ‘política’ do homem, 
                                                  o elemento ativista – no mais 
                                                  implícito no termo citizenship 
                                                  – pode ser retomado como componente 
                                                  vital da noção ‘republicana’ 
                                                  de cidadania. Seu interesse 
                                                  consiste, sobretudo, na ênfase 
                                                  colocada sobre o sentimento 
                                                  de pertença a instituições, 
                                                  formas associativas e comunicativas, 
                                                  mais do que a comunidades orgânicas 
                                                  ou formas de vida étnico-culturais. 
                                                  Por outro lado, Maquiavel não 
                                                  tinha ilusões sobre a identificação 
                                                  espontânea ‘constitutiva’ dos 
                                                  cidadãos com as finalidades 
                                                  da comunidade política: é a 
                                                  constituição das leis que tornam 
                                                  “bons” os cidadãos, porque “os 
                                                  homens nunca operam bem se não 
                                                  por necessidade” [17]. 
                                                  Na perspectiva da tradição republicana, 
                                                  a pertença não está arraigada 
                                                  nem em genealogias, nem em identidade 
                                                  étnicas, nem em éticas comunitárias, 
                                                  mas muito mais na lealdade democrática 
                                                  – e, portanto, crítica – a princípios 
                                                  jurídicos e instituições políticas. 
                                                  Mas, diferentemente do modelo 
                                                  universalista habermasiano, 
                                                  esta lealdade se dirige para 
                                                  uma república democrática particular. 
                                                  
                                                  Mas, sobretudo, há um aspecto 
                                                  da reflexão republicana sobre 
                                                  cidadania que considero particularmente 
                                                  relevante, e que é sub-avaliado 
                                                  por muitos teóricos contemporâneos 
                                                  do republicanismo. Nos “Discursos 
                                                  sobre a Primeira Década de Tito 
                                                  Lívio”, Maquiavel exprime uma 
                                                  tese teórica revolucionária, 
                                                  segundo a qual a liberdade e 
                                                  a potência de Roma foram um 
                                                  produto do conflito político 
                                                  [18]. As “leis e as ordens em 
                                                  benefício da liberdade pública” 
                                                  nascem, na Roma republicana, 
                                                  como resultado da mobilização 
                                                  ativa da plebe, como produto 
                                                  do choque entre os dois “humores” 
                                                  fundamentais da cidadania: o 
                                                  patriciado afirma seu desejo 
                                                  de poder, o povo defende sua 
                                                  liberdade, resistindo ao domínio 
                                                  e à interferência arbitrária. 
                                                  Recentemente, Alessandro Pizzorno 
                                                  retomou, neste sentido, algumas 
                                                  sugestões da teoria sociológica 
                                                  de Georg Simmel. Quando as partes 
                                                  em conflito se organizam em 
                                                  modo duradouro, necessitam por 
                                                  isso mesmo da elaboração de 
                                                  regras de coexistência. Se, 
                                                  com a formação dos grandes Estados 
                                                  nacionais, o sentimento de pertença 
                                                  social tende a atenuar-se, no 
                                                  conflito social “parecem, ao 
                                                  contrário, reconstituir-se possibilidades 
                                                  de reconhecimentos fortes, cotidianamente 
                                                  repetidos e, portanto, formas 
                                                  de solidariedade ativa que, 
                                                  mesmo assim, não excedem os 
                                                  limites constitucionais da solidariedade 
                                                  coletiva mais ampla” [19] . 
                                                  Dadas certas condições, o conflito 
                                                  desenvolve a pluralidade e a 
                                                  complexidade da pertença contemporânea, 
                                                  mas produz também efeitos de 
                                                  coesão, através de uma certo 
                                                  tipo de feed-back (retro-alimentação). 
                                                  
                                                  1.5. Considero que a solução 
                                                  de Habermas possa ser retomada, 
                                                  a condição de não considerar 
                                                  a pertença social como um valor 
                                                  universal. Na abordagem de Habermas, 
                                                  como dissemos, os valores liberal-democráticos, 
                                                  o Estado de direito e os direitos 
                                                  do homem são fundados a partir 
                                                  das estruturas transcendentais 
                                                  da comunicação lingüística. 
                                                  Se, ao contrário, se renuncia 
                                                  às pretensões universalísticas 
                                                  da ética do discurso, exigir 
                                                  o respeito dos direitos e deveres 
                                                  de cidadania não significa exigir 
                                                  a submissão a um código normativo 
                                                  universal, nem tampouco a adesão 
                                                  a uma forma “superior” de racionalidade. 
                                                  Simplesmente, isto se torna 
                                                  uma precondição para a integração 
                                                  numa comunidade política. Podemos 
                                                  dizer que se trata de uma exigência 
                                                  de uma tribo – a tribo que se 
                                                  auto-compreende como uma sociedade 
                                                  aberta, liberal-democrática, 
                                                  fundada no rule of law - para 
                                                  os novos membros potenciais.
                                                  Uma tal noção remete a uma afirmação 
                                                  sóbria da identidade nacional 
                                                  enquanto identidade democrática: 
                                                  a cidadania política remete 
                                                  a uma tradição histórica não 
                                                  para identificar um improvável 
                                                  “destino” coletivo, mas para 
                                                  valorizar aqueles eventos, de 
                                                  alto valor simbólico, e, no 
                                                  limite, aqueles mitos coletivos 
                                                  de fundação que qualificam a 
                                                  comunidade política como democrática. 
                                                  Penso, por exemplo, no caso 
                                                  da Itália, na Resistência ao 
                                                  fascismo e ao nazismo durante 
                                                  a segunda guerra mundial. E 
                                                  devemos sempre ter claro o caráter 
                                                  “artificial” e “construído” 
                                                  da identidade nacional. É preciso 
                                                  ter presente, por exemplo, que 
                                                  não existe nenhuma discontinuidade 
                                                  nítida entre identidade coletiva 
                                                  dos Estados-nação e identidade 
                                                  “multinacional” dos Estados 
                                                  federais.
                                                  
                                                2. 
                                                  Direitos
                                                Que 
                                                  concepção de direitos pode ser 
                                                  adequada à noção de pertença 
                                                  social que apresentamos? 
                                                  2.1. O “universalismo” dos direitos 
                                                  fundamentais é geralmente contraposto 
                                                  ao “particularismo” da cidadania. 
                                                  Porém, a genealogia dos direitos 
                                                  subjetivos revela uma origem, 
                                                  por sua vez, particularista. 
                                                  O debate sobre o significado 
                                                  de jus e sobre a existência 
                                                  eventual de uma concepção subjetiva 
                                                  dos direitos no direito romano 
                                                  clássico é muito articulado 
                                                  [20]. De qualquer maneira, podemos 
                                                  excluir que jus possa ser interpretado 
                                                  num sentido universalístico. 
                                                  A afirmação moderna do conceito 
                                                  de direito subjetivo remete 
                                                  à experiência jurídica medieval: 
                                                  a Idade Media conhece uma proliferação 
                                                  de reivindicações de liberdades, 
                                                  franquias, imunidades por parte 
                                                  de sujeitos individuais e coletivos 
                                                  que pedem de se reconhecidas 
                                                  e tuteladas juridicamente, ou 
                                                  seja, de ser consideradas como 
                                                  jura. No caso paradigmático 
                                                  do ordenamento inglês, os rights 
                                                  – desde a Magna Charta Libertatum 
                                                  de 1225 até o Bill of Rights 
                                                  de 1689 e mais adiante – são 
                                                  concebidos como antigos direitos 
                                                  e liberdades gozados “desde 
                                                  os tempos imemoriais” pelos 
                                                  súditos ingleses em virtude 
                                                  da sua Ancient Constitution. 
                                                  
                                                  Se as origens e a linguagem 
                                                  dos direitos são marcados de 
                                                  maneira indelével por este particularismo, 
                                                  também o percurso que levou 
                                                  à elaboração de uma noção plenamente 
                                                  subjetiva e universalista dos 
                                                  direitos fundamentais como atribuições 
                                                  e poderes “naturais’ dos indivíduos 
                                                  humanos se revela tortuoso e 
                                                  aberto a êxitos paradoxais. 
                                                  É difícil, por exemplo, sustentar 
                                                  que quanto mais uma teoria distingue 
                                                  analiticamente entre significado 
                                                  subjetivo e objetivo de direito, 
                                                  tanto mais ela está em condições 
                                                  de fundar a tutela jurídica 
                                                  dos indivíduos. Tampouco é possível 
                                                  falar do universalismo de maneira 
                                                  univocamente positiva. Vou apresentar 
                                                  somente alguns exemplos. 
                                                  Na “controvérsia sobre a pobreza”, 
                                                  que, no século XIV, contrapus 
                                                  a ordem franciscana ao papa 
                                                  João XXII, a noção de direito 
                                                  subjetivo é elaborada, por um 
                                                  lado, pelos teólogos franciscano 
                                                  que pretendem teorizar a possibilidade 
                                                  de renunciar a tais direitos, 
                                                  e por outro, pelo papa que quer 
                                                  impor a determinados sujeitos 
                                                  a titularidade destes direitos. 
                                                  De resto – como mostrou de maneira 
                                                  lúcida Luigi Ferrajoli – a primeira 
                                                  teoria universalística dos “direitos 
                                                  humanos”, a de Francisco de 
                                                  Vitoria, legitimou a colonização 
                                                  espanhola das Índias Ocidentais 
                                                  [21]. 
                                                  A definição paradigmática do 
                                                  direito subjetivo em contraposição 
                                                  ao direito em sentido objetivo 
                                                  (right contra law, jus contra 
                                                  lex), a sua atribuição a todos 
                                                  os homens enquanto tais e a 
                                                  teorização da igualdade natural 
                                                  são obras de Hobbes; mas isto 
                                                  acontece no contexto de uma 
                                                  teoria que visa fundar a renúncia 
                                                  aos próprios direitos – disponíveis 
                                                  aos indivíduos enquanto de sua 
                                                  propriedade – por parte dos 
                                                  súditos e legitimar o Estado 
                                                  absoluto. Ao contrário, Locke 
                                                  pode propor a função tradicional 
                                                  de garantia desenvolvida pelos 
                                                  rights no interior do contexto 
                                                  constitucional inglês, somente 
                                                  re-introduzindo uma referência 
                                                  à lei natural colocada por Deus 
                                                  e ao dever que lhe consegue 
                                                  de auto-conservação [22].
                                                  2.2. Tudo isto poderia não ser 
                                                  pertinente se não na medida 
                                                  em que convida à cautelas e 
                                                  distinções. Para além das dificuldades 
                                                  e dos acidentes de percurso, 
                                                  o processo secular de elaboração 
                                                  da noção de direitos fundamentais 
                                                  poderia, de qualquer forma, 
                                                  ter deixado para nós um instrumento 
                                                  conceitual confiável. As críticas 
                                                  à concepção jusnaturalista dos 
                                                  direitos – desde a análise de 
                                                  D. Hume (conhecida como a “falácia 
                                                  naturalista”), passando pela 
                                                  concepção de J. Bentham dos 
                                                  direitos de natureza como “a 
                                                  nonsense upon stilts” (um não 
                                                  senso sobre perna de paus) até 
                                                  a crítica corrosiva do juspositivismo 
                                                  do século XX - foram exercitadas 
                                                  por mais de dois séculos. Tais 
                                                  críticas, porém, além das suas 
                                                  limitações epistemológicas, 
                                                  não explicam o porque da incorporação 
                                                  dos direitos “fundamentais” 
                                                  ou “invioláveis” nas constituições 
                                                  contemporâneas [23]. Aparece, 
                                                  portanto, uma certo paradoxo 
                                                  do positivismo conseqüente: 
                                                  os ordenamentos jurídicos positivos 
                                                  assumem como próprios, e, portanto, 
                                                  positivizam, direitos fundamentais 
                                                  cuja fonte não é a autoridade 
                                                  estatal, os quais mantêm, por 
                                                  assim dizer, um excedente normativo 
                                                  em relação ao próprio ordenamento. 
                                                  
                                                  Coloca-se, porém, um outro problema. 
                                                  A história da elaboração da 
                                                  linguagem dos direitos assim 
                                                  como a história da atribuição 
                                                  a eles de um valor universal, 
                                                  é uma história tipicamente ocidental 
                                                  ao ponto que o próprio conceito 
                                                  de direito subjetivo é quase 
                                                  que intraduzível em outras culturas 
                                                  jurídicas e tradições étnicas. 
                                                  Assim, parece oportuno perguntar-se 
                                                  até que ponto os “direitos fundamentais” 
                                                  apresentem uma validade inter-cultural. 
                                                  A referência aos textos normativos 
                                                  internacionais, começando pela 
                                                  Declaração Universal de 1948, 
                                                  não é suficiente para resolver 
                                                  o problema. Já durante a discussão 
                                                  de 1946-48 no âmbito das Nações 
                                                  Unidas apareceu uma forte conotação 
                                                  ocidental no conteúdo da Declaração 
                                                  [24]. As Cartas sucessivas de 
                                                  direitos, promovidas por organizações 
                                                  internacionais que fazem referência 
                                                  a áreas geográficas que permaneceram, 
                                                  durante um longo tempo, estranhas 
                                                  à cultura iluminístico-liberal, 
                                                  poderiam porém ser interpretadas 
                                                  como o sinal de uma grande capacidade 
                                                  expansiva da linguagem dos direitos. 
                                                  Todavia, a leitura destas Cartas 
                                                  mostra uma influência significativa 
                                                  das tradições culturais sobre 
                                                  a meneira com que a linguagem 
                                                  dos direitos é recebida, uma 
                                                  maneira que é dificilmente conciliável 
                                                  com o individualismo liberal 
                                                  clássico [25]. 
                                                  De outro lado, penso que se 
                                                  possa afirmar que também as 
                                                  tentativas contemporâneas de 
                                                  fundação dos direitos remetem 
                                                  à experiência política e jurídica 
                                                  da modernidade ocidental. Nem 
                                                  os “valores fundamentais” de 
                                                  John Finnis, nem a teoria de 
                                                  John Rawls sobre a justiça, 
                                                  nem a “gênese co-originária” 
                                                  de direitos humanos e soberania 
                                                  popular proposta por Habermas 
                                                  parecem pensáveis fora das vicissitudes 
                                                  culturais inauguradas pelo direito 
                                                  romano, retomadas na Idade Media 
                                                  cristã e desenvolvidas na Idade 
                                                  Moderna. Por outro lado, a mais 
                                                  famosa rights theory, a de R. 
                                                  Dworkin, apresenta explicitamente 
                                                  uma tese contextualista quando 
                                                  não comunitarista. [26] 
                                                  Richard Rorty tem afirmado que 
                                                  considerar os direitos como 
                                                  expressão de um fundamento último 
                                                  e assim apresentar-se como os 
                                                  portadores de uma verdade normativa 
                                                  não é a maneira melhor de iniciar 
                                                  um diálogo [27]. Podemos assinalar 
                                                  dois possíveis efeitos indesejados 
                                                  dessa tentativa de fundar os 
                                                  direitos humanos. A abordagem 
                                                  “fundacionalista” e universalística 
                                                  poderia fornecer argumentos 
                                                  às resistência difusas contra 
                                                  as tentativas de estender, a 
                                                  nível internacional, os espaços 
                                                  de liberdade e de tutela dos 
                                                  indivíduos: isto poderia provocar 
                                                  paradoxalmente uma aproximação 
                                                  entre os teóricos autoritários 
                                                  dos Asian Values (valores asiáticos) 
                                                  e os movimentos de resistência 
                                                  à homologação e a defesa do 
                                                  pluralismo cultural. Em segundo 
                                                  lugar, hoje, o princípio dos 
                                                  direitos humanos pode constituir 
                                                  a justificativa ideológica dos 
                                                  projetos de nova ordem global 
                                                  e de estabilidade hegemônica. 
                                                  Existem muitos sinais de uma 
                                                  tendência a considerar os direitos 
                                                  humanos como princípio primeiro 
                                                  da ética internacional, de tal 
                                                  forma que possam legitimar violações 
                                                  abertas do direito internacional 
                                                  “positivo”. Penso, por exemplo, 
                                                  as teses recentes de Antonio 
                                                  Cassese [28], ou aos argumentos 
                                                  que Habermas utiliza em favor 
                                                  das intervenções militares “humanitárias” 
                                                  [29]. Manter a consciência vigilante 
                                                  de que a linguagem dos direitos 
                                                  subjetivos, inclusive dos direitos 
                                                  fundamentais, carrega consigo 
                                                  os sinais da cultura na quel 
                                                  foi elaborada me parece um antídoto 
                                                  útil contra um novo “fundamentalismo” 
                                                  dos direitos. 
                                                  2.3. Há também um outro ponto 
                                                  que merece a nossa atenção. 
                                                  A identificação da cidadania 
                                                  moderna com um catálogo de direitos, 
                                                  a primazia da figura democrática 
                                                  do direito sobre a do dever 
                                                  foi considerada como o sinal 
                                                  de uma profunda transformação 
                                                  ético-política, a saber, a evolução 
                                                  dos “súditos” em “cidadãos” 
                                                  [30]. Boa parte do juspositivismo 
                                                  formalístico dos séculos XIX 
                                                  e XX tende a reduzir o direito 
                                                  subjetivo ao direito objetivo, 
                                                  no sentido de afirmar a prioridade 
                                                  do direito estatal sobre os 
                                                  direitos subjetivos. Todavia, 
                                                  autores entre eles tão diferentes 
                                                  como Alf Ross, Herbert Hart 
                                                  e Neil MacCormick criticaram 
                                                  a tese da redução dos direitos 
                                                  à mero correlato dos deveres 
                                                  [31]. 
                                                  Com efeito, há um excedente 
                                                  semântico da linguagem dos direitos 
                                                  sobre a linguagem dos deveres, 
                                                  ao qual se vincula, na minha 
                                                  opinião, um excedente simbólico 
                                                  [32]. A imagem de uma sociedade 
                                                  que ignora a noção dos direitos 
                                                  é a metáfora distópica através 
                                                  da qual Joel Feinberg vinculou 
                                                  a noção de direito subjetivo 
                                                  a “the activity of claiming" 
                                                  (a atividade de reivindicar). 
                                                  Para Feinberg o uso característico 
                                                  dos direitos é “to be claimed, 
                                                  demanded, affirmed, insisted 
                                                  upon” (reivindicar, demandar, 
                                                  afirmar, insistir), e sobretudo 
                                                  “it is claiming that gives rights 
                                                  their special moral significance”: 
                                                  “Having rights enables us to 
                                                  ‘stand up like men’, to look 
                                                  others in the eye” [33] (é a 
                                                  reivindicação que dá aos direitos 
                                                  o seu significado moral relevante: 
                                                  ter direitos nos torna capazes 
                                                  de ‘estar de pé como um homem’ 
                                                  e de “olhar os outros nos olhos”). 
                                                  Acho que este tratamento torna 
                                                  a linguagem dos direitos algo 
                                                  particularmente adequado a assumir 
                                                  a perspectiva ex parte populi, 
                                                  ou seja, a expressar, para usar 
                                                  uma frase feliz de Ferrajoli, 
                                                  "as razões que vêm de baixo, 
                                                  com relação às razões que vêm 
                                                  do alto". 
                                                  Nos remetemos aqui a uma tese 
                                                  importante de Norberto Bobbio. 
                                                  Com um oxímoro feliz, Bobbio 
                                                  escreve que “os direitos naturais 
                                                  são todos históricos” [34], 
                                                  isto é, “nasceram em certas 
                                                  circunstâncias marcadas pelas 
                                                  lutas em defesa de novas liberdades 
                                                  contra velhos poderes, gradativamente, 
                                                  não de uma vez só nem uma vez 
                                                  por todas” [35]. 
                                                  Esta idéia de uma origem conflituosa 
                                                  dos direitos encontra raízes 
                                                  históricas significativas. Aqui 
                                                  também nos podemos remeter a 
                                                  alguns expoentes da tradição 
                                                  republicana protomoderna. Em 
                                                  autores tais como Algernon Sidney, 
                                                  Baruch Spinoza e Adam Ferguson, 
                                                  a maquiaveliana avaliação positiva 
                                                  do conflito se liga com a linguagem 
                                                  dos direitos [36]. No Essay 
                                                  on the History of Civil Society 
                                                  de Adam Ferguson é o conflito 
                                                  social a encaminhar o desenvolvimento 
                                                  de novas instituições e a promover 
                                                  a inovação constitucional. [37] 
                                                  Sobre esta apologia do conflito 
                                                  social se insere a utilização, 
                                                  por parte de Ferguson, da linguagem 
                                                  dos direitos. Ele, como Hobbes, 
                                                  identifica o fundamento dos 
                                                  direitos na natureza humana, 
                                                  mas não no sentido racionalístico 
                                                  do jusnaturalismo moderno. Os 
                                                  direitos expressam, antes disso, 
                                                  um sentimento genericamente 
                                                  humano, de auto-afirmação e 
                                                  de dignidade: 
                                                  Cada camponês nos dirá que um 
                                                  homem tem seus direitos e que 
                                                  violar estes direitos constitui 
                                                  uma injustiça. E se lhe perguntássemos 
                                                  o que entende por direitos provavelmente 
                                                  o obrigaríamos a substituir 
                                                  este termo com um termo menos 
                                                  significativo e apropriado e 
                                                  a explicar algo que é uma forma 
                                                  originária da sua mente e um 
                                                  sentimento primário ao qual 
                                                  ele se refere quando quer esclarecer-se 
                                                  sobre um uso particular da sua 
                                                  linguagem […] Não é nossa tarefa 
                                                  desenvolver aqui a noção de 
                                                  direito nas suas diversas aplicações, 
                                                  mas é nossa obrigação raciocinar 
                                                  sobre o sentimento favorável 
                                                  com o qual aquela noção é entendida 
                                                  pela mente [38].
                                                  Este elemento parece expressar 
                                                  algo de análogo ao sentimento 
                                                  de hostilidade ao domínio no 
                                                  qual Philip Pettit encontra 
                                                  as raízes da concepção republicana 
                                                  da “freedom as non domination” 
                                                  (liberdade como ausência de 
                                                  dominação) [39]. No Essay de 
                                                  Ferguson aparece a apologia 
                                                  daquela que, para parafrasear 
                                                  um título de um ensaio famoso 
                                                  de Rudolf von Ihering, poderíamos 
                                                  chamar de “luta pelos direitos”. 
                                                  A moderação e a disposição conciliatória 
                                                  podem traduzir-se em indiferença 
                                                  política, enquanto que a virtude 
                                                  cívica mostra um traço indelével 
                                                  de ativismo e se expressa na 
                                                  capacidade de mobilização [40]: 
                                                  descansar sobre os direitos 
                                                  estabelecidos é um risco para 
                                                  a liberdade [41]. A liberdade 
                                                  é um direito a ser reivindicado; 
                                                  considerá-la como um privilégio 
                                                  concedido significa perder o 
                                                  seu sentido e para defendé-la 
                                                  não são suficientes as instituições: 
                                                  precisa a disposição constante 
                                                  de “opor-se aos ultrajes” [42]. 
                                                  
                                                  Minha hipótese é que uma consciência 
                                                  maior da importância que esta 
                                                  apologia do conflito assume 
                                                  num amplo setor da tradição 
                                                  republicana poderia favorecer 
                                                  uma elaboração teórica original. 
                                                  O reconhecimento deste traço 
                                                  conflituoso indica, na minha 
                                                  opinião, o caminho para entender 
                                                  o que, na linguagem dos direitos, 
                                                  tende ao superamento da sua 
                                                  conotação particular, herdada 
                                                  de sua origem ocidental e moderna. 
                                                  Tenho a impressão de que este 
                                                  elemento, embora expressão típica 
                                                  da cultura ocidental, é também 
                                                  o elemento que pode ser reconhecido 
                                                  e valorizado com mais facilidade 
                                                  pelas outras culturas. 
                                                  Alguns autores que enfrentaram 
                                                  o problema da “tradução” da 
                                                  linguagem dos direitos propuseram 
                                                  como solução a exigência comum 
                                                  de justiça ou de códigos normativos 
                                                  transcendentais. Do meu ponto 
                                                  de vista, me parece melhor percorrer 
                                                  um caminho alternativo: valorizar 
                                                  a idéia da reivindicação, do 
                                                  pedido de reconhecimento, da 
                                                  oposição ao domínio e à opressão. 
                                                  Acredito que o elemento tendencialmente 
                                                  universalístico dos direitos 
                                                  fundamentais não deve ser procurado 
                                                  somente no seu conteúdo quanto 
                                                  no compromisso e no engajamento 
                                                  para afirmá-los, reivindicá-los 
                                                  e mobilizar-se para a sua obtenção. 
                                                  
                                                  Os indivíduos e grupos humanos 
                                                  tendem, em várias situações, 
                                                  de maneira mais ou menos espontânea, 
                                                  à submissão e encontram sua 
                                                  segurança na dependência. Porém, 
                                                  o que provavelmente as culturas 
                                                  “outras” – ou melhor, os oprimidos 
                                                  das culturas “outras” – reconhecem 
                                                  na linguagem ocidental dos direitos 
                                                  é justamente a valorização do 
                                                  gesto, também ele tipicamente 
                                                  humano, de se sublevar, de reagir, 
                                                  de afirmar a própria dignidade: 
                                                  algo de análogo à kantiana “saída 
                                                  da minoridade”. Ao mesmo tempo, 
                                                  eles reconhecem neste gesto 
                                                  a flexibilidade e a possibilidade 
                                                  de conceitualizar necessidades, 
                                                  interesses e expectativas, de 
                                                  tal modo a poder identificar 
                                                  técnicas jurídicas para protegê-las. 
                                                  
                                                  
                                                1. 
                                                  Qual cidadania?
                                                Acredito 
                                                  que a noção de membership (pertença 
                                                  social) e a concepção dos direitos 
                                                  que acabei de apresentar podem 
                                                  encontrar um ponto de convergência 
                                                  significativo. Com efeito, uma 
                                                  concepção da membership entendida 
                                                  em termos político-jurídicos 
                                                  e uma concepção “ativa” dos 
                                                  direitos como expressão de mobilizações 
                                                  e reivindicações não apresentam 
                                                  aquela antinomia entre igualdade 
                                                  e desigualdade, discriminação 
                                                  e universalismo citadas por 
                                                  Ferrajoli. A citizenship pode 
                                                  ser vista como o âmbito no qual 
                                                  se reivindicam e se conquistam 
                                                  direitos, ou como o quadro institucional 
                                                  da “luta pelos direitos”. Neste 
                                                  sentido, acredito que se poderia 
                                                  falar de uma “concepção política” 
                                                  da cidadania. “Política” num 
                                                  duplo sentido: enquanto se contrapõe 
                                                  à concepções etnicísticas e 
                                                  comunitaristicas e enquanto 
                                                  atribui um status privilegiado 
                                                  aos direitos políticos como 
                                                  direitos “reflexivos” [43] ou 
                                                  seja, como pré-condições da 
                                                  atividade através da qual os 
                                                  outros direitos são obtidos 
                                                  e desenvolvidos. Uma concepção 
                                                  deste tipo não expressa uma 
                                                  vinculação com uma comunidade 
                                                  eticamente integrada, mas o 
                                                  ativismo, o conflitualismo, 
                                                  o sentido de uma identidade 
                                                  “política” coletiva, finalizada 
                                                  à tutela dos indivíduos contra 
                                                  o domínio.
                                                  Acredito que esta concepção 
                                                  “política” permita, por assim 
                                                  dizer, de maximizar as vantagens 
                                                  e minimizar as desvantagens 
                                                  atribuídas à noção de cidadania. 
                                                  Esta concepção ilumina de modo 
                                                  particular a idéia de que a 
                                                  citizenship permita assumir 
                                                  a perspectiva ex parte populi, 
                                                  em lugar de ver os fenômenos 
                                                  políticos “desde o alto” [44]. 
                                                  Por outro lado, em inglês o 
                                                  termo citizenship possui uma 
                                                  áurea ativística peculiar, que 
                                                  expressa, de alguma forma, o 
                                                  engajamento dos cidadãos que 
                                                  reivindicam os seus direitos 
                                                  e assumem as suas próprias responsabilidades. 
                                                  Porém, este ativismo, esta insistência 
                                                  sobre as virtudes da participação 
                                                  se despoja dos seus traços moralísticos 
                                                  e não faz referência à antropologia 
                                                  do zoon politikon nem assume 
                                                  características comunitarísticas. 
                                                  Escreve Marshall:
                                                  Em lugar de uma pertença (partnership) 
                                                  gestida para realizar os princípios 
                                                  de uma justiça universal, a 
                                                  cidadania se assemelha mais 
                                                  a uma arena onde batalhas potencialmente 
                                                  infinitas são combatidas, onde 
                                                  se conduzem negociações e compromissos. 
                                                  Além disso, em muitos casos, 
                                                  o atual gozo dos direitos foi 
                                                  possível somente através da 
                                                  mobilização interessada dos 
                                                  cidadãos e a pressão organizada 
                                                  de grupos. [45]
                                                  Também no interior das “cidadanias 
                                                  valorizadas” do Ocidente, a 
                                                  titularidade formal dos direitos 
                                                  se estabiliza e se torna efetiva, 
                                                  em muitos casos, somente através 
                                                  de uma mobilização política 
                                                  constante e pode sempre correr 
                                                  o risco de uma volta à inefetividade. 
                                                  E isto vale, sobretudo, para 
                                                  os estratos mais fracos, para 
                                                  os marginalizados e os estrangeiros. 
                                                  
                                                  Se os direitos são o resultado 
                                                  de reivindicação e mobilização, 
                                                  temos duas conseqüências significativas. 
                                                  De um lado a concepção da cidadania 
                                                  não prevê um catálogo “fechado” 
                                                  de direitos, mas se abre a “novas 
                                                  gerações” de direitos, como 
                                                  as reproductive freedoms (liberdades 
                                                  reprodutivas) e os direitos 
                                                  levantados pelos movimentos 
                                                  ecológicos, de que fala Held 
                                                  [46]. Do outro lado, uma concepção 
                                                  “ativa” dos direitos e uma concepção 
                                                  conflituosa da memership excluem 
                                                  uma excessiva inflação da linguagem 
                                                  dos direitos. Parece, por exemplo, 
                                                  forçada a inclusão entre os 
                                                  sujeitos dos direitos e os titulares 
                                                  da cidadania, de figuras tais 
                                                  como o feto, ou dos animais 
                                                  não humanos ou dos vegetais 
                                                  e dos minerais. Nesta perspectiva, 
                                                  podem ser acolhidos muitos elementos 
                                                  da crítica feminista aos modelos 
                                                  tradicionais de cidadania social. 
                                                  Os efeitos de estereotipização 
                                                  deverias ser evitados pelo trabalho 
                                                  “desde baixo” e pelo processo 
                                                  de auto-redefinição produzido 
                                                  pelos atores sociais do conflito 
                                                  [47]. E assim alguns direitos 
                                                  civis fundamentais adquirem 
                                                  um significado novo: em particular, 
                                                  a privacy é interpretada não 
                                                  mais como uma defesa de uma 
                                                  esfera “privada” intangível, 
                                                  mas como a tutela de “an aspect 
                                                  of identity demanding respect” 
                                                  [48](de um aspecto da identidade 
                                                  que exige respeito). Por exemplo, 
                                                  discriminar a homossexualidade 
                                                  significaria excluir os indivíduos 
                                                  e os grupos da cidadania.