A
QUESTÃO
AGRARIA BRASILEIRA E A LUTA
PELO SOCIALISMO.
Plinio
Arruda Sampaio(1)
Palestra
em seminário promovido pelo PT, em 21 de maio 2001.
“Até
hoje os filósofos têm se limitado a interpretar o mundo das mais
diversas maneiras; mas o problema real é o de modificar o mundo.”
Karl
Marx
I_-
O diagnóstico da direita
A
abundante literatura recente sobre os problemas do campo brasileiro
relegou a reforma agrária a um segundo plano. Para a maioria dos
autores, trata-se de uma proposta historicamente superada. O capitalismo
agrário, afirmam, resolveu, sem alterações estruturais, os problemas
que a reforma agrária se propunha resolver.
As
premissas que sustentam essa posição são as seguintes:
a)
a globalização é irreversível e o país que não conseguir se
inserir nela está condenado ao atraso econômico e à barbárie social;
b)
a liberalização da economia é um corolário da globalização
e se impõe como um imperativo ao país que não queira ser excluído
dela;
c)
durante o processo de inserção do Brasil na globalização –
que pode durar várias décadas – não há como impedir que parte
importante da população, em razão do seu baixo nível de renda, tenha
problemas a nutrição e até de fome aguda;
d)
não há como alterar radicalmente, a curto e médio prazos, o
atual esquema de distribuição de renda, e a tentativa de fazê-lo pode
causar mais males do que benefícios;
e)
a dinâmica da agricultura brasileira foi profundamente alterada
nestes últimos dez anos, de modo que os problemas atuais da agricultura
nada têm a ver com os do passado. Assim, o aumento da produção não
virá mais do aumento da área cultivada, mas da intensificação da
aplicação de capital e tecnologia;
f)
a agricultura moderna não necessita de um contingente numeroso
de trabalhadores, de modo que manter artificialmente no campo uma população
rural maior do que a necessária só pode causar perda de eficiência
econômica.
Essas
premissas expressam a visão e os interesses das classes dirigentes do
país, ou seja, em vez da pretendida modernidade, elas simplesmente
racionalizam os interesses do atraso. È evidente, pois, que se estas
forem as premissas da análise da nossa agricultura, não há mesmo
nenhuma "questão agrária" em nosso país, ou seja, a forma
como está distribuída a propriedade e a posse da terra não constitui
um obstáculo estrutural ao crescimento da produção agrícola e à
melhoria da produtividade.
Não
havendo "questão agrária", não há porque falar em reforma
agrária, definida esta como "intervenção do Estado" para
alterar, com medidas expropriatórias, o esquema de distribuição de
terras herdado do passado.
A
constatação de que, admitidas as premissas acima, o capitalismo agrário
brasileiro dá conta do recado, sem necessidade de reforma agrária, é
uma conclusão dos autores que se dedicaram a analisar a evolução da
agricultura brasileira nos anos setenta e oitenta. [1]
Essa
análise, realizada sob forte influência ideológica, consistiu em
contrapõr o desempenho da agricultura nos anos setenta e oitenta ao
dignóstico cepalino da agricultura brasileira elaborado no final dos
anos cinqüenta e o começo do sessenta. Descrevia-se então o setor agrícola
como um setor atrasado, impermeável à introdução da tecnologia mais
produtiva e incapaz de atender à crescente demanda de alimentos e matérias
primas, constituindo, por isso, um fator estrutural de pressões
inflacionárias sobre a economia. As razões do atraso, na análise
cepalina, residiam tanto no plano econômico como no sócio-político:
no primeiro, correspondia à dualidade estrutural do setor agrícola e
à prevalência, no setor atrasado, de relações econômicas pré-capitalistas
entre os diversos segmentos da população rural; no segundo,
correspondiam à vigência de relações sociais e políticas arcaicas e
anacrônicas. A causa de tudo isso era a enorme desigualdade da
distribuição da posse e da propriedade da terra.[2]
A
reforma agrária entrava no contexto dessa análise como uma intervenção
estatal destinada a remover o obstáculo estrutural constituído pela
concentração da propriedade da terra em latifúndios improdutivos, a
fim de oxigenar as relações sociais no campo e abrir caminho para que
as relações capitalistas dominassem integralmente o setor.
Para
grande alegria dos economistas liberais, a realidade dos anos 70 e 80
desmentiu a tese dos reformistas agrários. Nos anos setenta, os
governos militares conseguiram, sem alterar a distribuição da
propriedade da terra, aumentar a produção, tecnificar a agricultura e
atender à demanda.
Uma
"modernização conservadora", dolorosa sem dúvida, pois não
alterou substancialmente o padrão de vida da população rural, mas
suficiente para fazer com que a agricultura deixasse de ser considerada
um setor atrasado, anacrônico, impeditivo do desenvolvimento do país.
Até
ai – ou seja, até a alegria dos conservadores com essa constatação
– nada a admirar. O que é de admirar é o impacto dessa conclusão
entre os analistas da esquerda, que usam, obviamente, outro instrumental
teórico para lidar com a realidade.
Mas
a verdade é que logo surgiram, até no campo da esquerda, teses de que
a reforma agrária não se justificava mais como um "objetivo econômico"
e sim como um "objetivo social". Não demorou muito para que
as propostas de reforma agrária “social” fossem cedendo lugar
envergonhadamente a propostas que não diferem muito das "políticas
sociais compensatórias" preconizadas pelos teóricos do
neoliberalismo.
Nisso
estamos hoje.
II- O diagnóstico
dos socialistas
Se
as premissas do oficialismo e no neoclassicismo forem aceitas, não há
mesmo necessidade de reforma agrária.
O
capitalismo agrário brasileiro, sob o comando das agro-indústrias
multinacionais, dá conta do recado. O problema é que as premissas da
análise dos defensores do “status quo” não retratam a verdadeira
realidade do campo brasileiro, mas apenas os aspectos de uma situação
conjuntural que atendem aos interesses das classes que ditos analistas
defendem. Quem tenha uma posição crítica diante do “status quo”,
obviamente, não pode aceitá-las como base para sua análise, não
porque elas sejam inteiramente falsas, mas porque escondem, com meias
verdades, afirmações errôneas a respeito da realidade do campo.
Assim: não há dúvida de que a globalização da economia seja
irreversível, mas não é verdade que o país periférico que rejeitar
uma inserção subordinada nesse processo esteja condenado à barbárie;
é verdade que o esforço para desenvolver o país e inseri-lo
soberanamente no mercado mundial exigirá um enorme sacrifício incompatível
com um nível de consumo exagerado, mas não é verdade que isto torne
impossível a eliminação da pobreza; é verdade que a nova dinâmica
da agricultura criou novas formas de extração de renda de atividades
cuja base é o campo e novas modalidades de emprego no meio rural, mas não
é verdade que essa dinâmica crie condições para solucionar os sérios
problemas de pobreza no meios rural. Essa idéia de um novo setor rural
cujo dinamismo não vem só da produção agropecuária mas de outras
atividades econômicas que têm por base o espaço rural (hotel fazenda,
turismo ecológico, pesca esportiva, tosa de cachorro etc) corresponde a
uma realidade européia que não pode ser transplantada para o conjunto
do Brasil. Se em algumas poucas regiões de nível econômico muito
elevado, a estatística pode registrar o crescimento desse tipo de
emprego, nada autoriza a generalização desse fenômeno como capaz de
dar conta do enorme problema do desemprego, da eliminação da pobreza
rural, e da necessidade de aumentar significativamente o nível de renda
dessa população. Aliás, mesmo nessas regiões privilegiadas, o
crescimento desse tipo de emprego cria um problema para as pessoas de
pensamento socialista: é que todos eles são empregos no setor de serviços,
empregos pouco aptos para promover o crescimento econômico e cívico da
população rural, como notou até mesmo um analista nada socialista
como Roberto Reich[3]..
Há
sempre várias leituras possíveis da realidade. O analista crítico
rejeita a leitura acomodatícia para “ler” na realidade, não o que
ele deseja, mas os indícios concretos de possibilidades de avanço na
direção de uma ordem social mais justa e equilibrada. Assim, ao ler a
realidade do campo, deve-se adicionar ao elenco, devidamente retificado,
das premissas da análise oficial, as premissas que tal
analise deliberadamente omite:
a)
a dominação da produção agrícola pelo binômio agroindústria-grandes
empresas agrícolas não produzirá estrangulamentos de oferta na
economia, dado o atual perfil da distribuição da renda, mas não
proporcionará trabalho e renda suficiente à população rural,
aprofundando assim a dicotomia entre um setor tecnificado e altamente
produtivo e outro que não consegue superar a economia de subsistência.
b)
O setor da agricultura familiar, que conta hoje com cerca de 5
milhões de unidades, será progressivamente constrangido a reverter
praticamente a uma economia de subsistência e os agricultores que já
se encontram nessa situação, simplesmente desaparecerão.
c)
A combinação de falta de emprego e da falta de condições para
subsistir na pequena parcela familiar provocará uma intensificação do
êxodo rural, com conseqüências graves tanto no campo como na cidade.
No campo, onde os índices de pobreza e desigualdade social só têm
aumentado nos últimos anos, assistiremos à formação de enormes espaços
de agricultura decadente e população rarefeita, ensejando a incremento
da violência que já está presente no meio rural; na cidade, haverá
afluência de quantidades enormes de migrantes rurais miseráveis e sem
qualificação alguma para o trabalho urbano, a engrossar a já imensa
quantidade de marginalizados.
d)
A predominância das agroindústrias multinacionais na
agricultura do país representará o aumento da dependência econômica
do Brasil e a progressiva vulnerabilidade em relação ao abastecimento
alimentar da população, especialmente dos setores de baixa renda, além
da crescente sangria de recursos, dada a remessa de lucros, royalties e
outros pagamentos ao exterior.
e)Não
será possível fazer do Brasil uma Nação independente
enquanto houver populações prejudicadas, excluídas ou vivendo
de forma degradante.
Tendo em mãos esse quadro realista das tendências de evolução
da nossa agricultura, pode-se fixar objetivos de intervenção do Estado
democrático brasileiro no meio rural, a fim de garantir o
desenvolvimento equilibrado e social justo, não só da produção agrícola,
mas da própria economia em seu conjunto. Eles são:
-
assegurar uma dieta alimentar adequada aos 160 milhões de
habitantes do país ;
-
gerar empregos produtivos na agricultura, de modo a absorver toda
a força de trabalho;
-
garantir aos produtores rurais um nível de renda adequado, de
modo a tornar a população brasileira mais homogênea,
-
garantir a soberania alimentar do país, como meio de melhorar
suas condições de negociação na esfera internacional;
-
criar um mercado interno de bens-salário, como forma de expandir
a produção industrial e de dar emprego estável a toda a força de
trabalho;
-
realizar a produção necessária sem destruir o meio ambiente;
-
controlar a pesquisa e a difusão de novas tecnologias agrícolas
como forma de combinar cultivos para o consumo interno com cultivos para
exportação, a fim de, preservada a auto-suficiência alimentar,
aumentar a renda do setor agrícola e adquirir divisas externas para
favorecer o crescimento econômico do país.
Se
estas as premissas da análise forem todas as aqui mencionadas e os
objetivos da intervenção do Estado no setor agrícola forem os acima
referidos, pode-se afirmar categoricamente que o capitalismo agrário,
tal como está organizado e funcionando hoje, não tem condições de
dar conta dessas tarefas. Pode-se mesmo afirmar categoricamente que o
atual modelo agrícola não dará resposta positiva a uma significativa
melhora no perfil da distribuição da renda.
III –OS IMPECILHOS
DO ATUAL MODELO
É
fácil ver o por que dessa impossibilidade.
-
Porque, o esforço de produzir quantidades suficientes para alimentar
adequadamente toda a população e melhorar o nível de renda dos
produtores não proporciona à facção capitalista que hoje domina a
nossa agricultura os lucros que ela almeja, a fim de acumular capital e
manter-se competitiva no mercado internacional.
-
Porque o aumento da produção (quantidade e qualidade) na magnitude
necessária requer o cultivo de maior quantidade de terra e o emprego de
quantidade muito maior de mão-de-obra, o que não interessa às grandes
empresas agrícolas porque aumentaria seus custos e a necessidade de
administração das fazendas, em proporção maior do que os retornos
que tal expansão acarretaria.
-
Porque essa produção ampliada de produtos alimentares não poderá ser
realizada com as técnicas atuais (os pacotes tecnológicos fornecidos
pelas agroindústrias), uma vez que isto acarretaria um grau de poluição
simplesmente insuportável. Contudo, uma produção mais “natural”,
menos produtiva, mas também menos cara e menos agressiva ao meio
ambiente, subverte toda a lógica de funcionamento das empresas que
dominam atualmente o setor;
-
porque a nova dinâmica da agricultura brasileira reforça as tendências
seculares de sobre-exploração da população rural, de modo que,
enquanto as relações econômicas, sociais e políticas prevalecentes
do campo não forem alteradas, será impossível proporcionar à imensa
parcela da população rural marginalizada do mercado agrícola meios
efetivos de se tornar um produtor eficiente.
Como
negar, diante dessa realidade, que o campo apresenta obstáculos
estruturais ao pleno desenvolvimento do país, ou seja, como negar a
existência de uma “questão agrária” não resolvida em nosso pais?
Na
literatura clássica sobre a formação da agricultura capitalista,
entende-se por “questão agrária” os obstáculos econômicos,
sociais, políticos e culturais que uma dada estrutura agrária opõe ao
desenvolvimento das relações necessárias para a constituição de uma
sociedade nacional capaz de auto-determinar seu desenvolvimento. Tais
situações podem ser assim sumariadas: o desenvolvimento das forças
produtivas vê-se travado por normas, costumes, rotinas, relações de
poder, práticas comerciais, que decorrem das relações entre as
classes proprietárias e a população do campo. Tais relações
derivam basicamente da condição de acesso da população rural à
terra e são extremamente rígidas. Quando uma situação desse tipo se
configura, ou se muda completamente a estrutura da propriedade da terra,
provocando um desequilíbrio em todo o sistema, ou a organização econômica
prevalecente no meio rural não tem como aumentar a produção e a renda
da população rural em magnitude suficiente para atender às
necessidades do conjunto da população e eliminar o desemprego e a
pobreza rural.
Basta
comparar o quadro das tendências de evolução da situação do campo
acima expostos com o conceito de “questão agrária” para comprovar
que a dinâmica do capitalismo agrícola brasileiro constitui um obstáculo
estrutural ao desenvolvimento equilibrado e harmonioso da produção agrícola.
Desse modo, enquanto as relações econômicas, sociais e políticas
inerentes a essa dinâmica não forem removidas, o desenvolvimento
brasileiro estará travado por uma “questão agrária”.
Este
discurso é ininteligível para os ideólogos do “establishment”,
porque eles avaliam o desempenho do setor agrícola com parâmetros que
desconsideram as necessidades do conjunto da população. Mas, para
socialistas, que consideram o atendimento de todos um objetivo prioritário,
evidentemente, há uma “questão agrária” no país.
IV- A questão
agrária e a reforma agrária
Se
há uma “questão agrária”, só há um meio de resolvê-la:
alterando essa estrutura mediante uma reforma agrária. Isto
consiste fundamentalmente na destruição do poder das forças que
hoje dominam o mundo rural e impõem uma dinâmica agrícola perversa;
e em sua substituição por outras forças aptas a imprimir uma dinâmica
econômica e ambientalmente mais equilibrada e socialmente mais justa.
Substituir os poderes existentes no campo por novos poderes constitui
a essência mesma dos processos de reforma agrária.
Dado
que atualmente o poder maior no campo está em mãos das agroindústrias
que controlam a provisão de insumos e o escoamento da produção,
poder-se-ia questionar a necessidade de uma reforma agrária, já que
esta consiste essencialmente na distribuição entre a população
rural de terras concentradas em mãos de um reduzido número de
grandes empresas agrícolas. Não é assim.
Não
há como eliminar o domínio hegemônico dessas duas facções sobre a
vida rural sem alterar substancialmente o atual perfil de distribuição
da propriedade da terra. Por que?
Porque a concentração da propriedade da terra está na base
do sistema de dominação cuja cúpula são as grandes agroindústrias.
É essa extraordinária concentração da propriedade da terra que
gera uma população destituída de qualquer possibilidade de sobrevivência
sem depender dos favores dos que têm muita terra. Dessa dependência
da população rural dos poucos que podem fornecer trabalho ou terra
para cultivo surgiram historicamente, e se mantêm até hoje, relações
econômicas, sociais e políticas perversas, que abrangem não somente
a relação entre a grande empresa agrícola e o habitante rural sem
terra, mas englobam as relações entre todos segmentos de classe do
meio rural. Essas relações geraram uma inércia que bloqueia todo e
qualquer esforço de melhorar o padrão de vida dessa população e de
aproveitar todas as possibilidades de criação de riqueza que o
desenvolvimento das forças produtivas no campo já permite.
Para
desbloquear essa situação indesejável, é preciso vencer a dominação
da grande empresa agrícola sobre a população do campo; para vencer
essa dominação, é preciso quebrar sua espinha dorsal: a concentração
da propriedade da terra.
Se a maior parte da população rural tiver acesso à terra, as relações
sociais perversas não terão como se sustentar e o caminho estará
aberto, após um período de adaptação, para um grande
desenvolvimento da produção.[4]
Daí a necessidade de uma reforma agrária, ou seja, de uma intervenção
direta e planejada do Estado, com o apoio decidido da massa rural,
para, em um curto período, desapropriar uma quantidade
suficientemente grande de terras, de modo a quebrar o poder econômico,
social e político dos segmentos das classes dominantes que
hegemonizam atualmente o meio rural.[5]
Mas,
obviamente, hoje, a reforma agrária não pode significar apenas
desconcentração fundiária, pois abrange igualmente medidas para
desmontar o modelo agrícola produtivista vigente e substituí-lo por
um modelo equilibrado econômica, social e ecologicamente.
Ultimamente
tem surgido a tendência de confundir reforma agrária com
assentamento rural. Mas o assentamento é apenas um dos elementos
constitutivos de uma reforma agrária, ao lado, por exemplo, do
decreto expropriatório, do cadastramento da propriedade, da seleção
de beneficiários. Transformá-lo em sinônimo de reforma agrária faz
parte da luta ideológica destinada a despolitizar o debate da questão
agrária e retirar a reforma agrária da agenda política do país.
V- As dificuldades
da reforma agrária
À
proposta de reforma agrária costuma-se levantar, até no campo da
esquerda (ou dos que foram esquerda até serem cooptados pelo
governo), três objeções. Trata-se, dizem esses críticos, de uma
proposta desnecessária: primeiro, porque o desempenho da agricultura
não cria estrangulamentos econômicos; segundo, porque não encontra
apoio na massa rural; e, terceiro, porque não é uma proposta
socialista.
Quanto
ao primeiro ponto, já se argumentou o suficiente nesse texto, mas os
outros dois merecem atenção.
Para
responder à segunda objeção, é preciso recorrer ao exame da
contradição básica do capitalismo agrário brasileiro nos dias de
hoje.
O
mais perfunctório exame da realidade atual do campo brasileiro
evidencia que a evolução da situação atual aponta para a configuração
de dois cenários. O primeiro deles mostra que o capitalismo agrário
já está enfrentando – e enfrentará com mais intensidade no futuro
- uma força desagregadora, que aponta para a barbárie. Essa força,
alimentada pelo desespero de populações completamente marginalizadas
pelo modelo agrícola vigente, já deu vários sinais de existência.
São os saques de armazéns e caminhões de alimentos e são os bandos
de criminosos organizados, ligados ao narcotráfico, que já foram
identificados em varias regiões, especialmente nas zonas de fronteira
e no Nordeste do país. A tendência é que o crime organizado
substitua a dominação do tradicional chefete político sobre as
populações locais. Quarenta anos atrás, um prognóstico assim, na
Colômbia, provocaria o mesmo desdém com que este é recebido nos
meios acadêmicos e entre muitos “especialistas” em problemas do
desenvolvimento agrícola em nosso país.
A
outra força que desponta é o movimento reduzido, mas extremamente
combativo dos trabalhadores rurais sem terra, ao lado do movimento,
também reduzido mais igualmente combativo, dos pequenos agricultores
familiares. Ambos não têm traços corporativistas. Pelo contrário,
apresentam uma proposta de organização do campo inserida em uma
proposta de sociedade -proposta esta que se tornou referência para
toda a crítica radical ao processo de modernização conservadora das
elites.
Esses
grupos – constituídos, em sua maioria, por membros expulsos do
setor agrário familiar - conseguem mobilizar contingentes pequenos,
porém radicalizados, da população marginal do campo, a realizar ações
contestatórias no limite da legalidade – ações de grande
repercussão nos setores de classe média das cidades. Conseguem ainda
mobilizar desempregados urbanos para engrossar as fileiras dos que
enfrentam diretamente as forças hoje dominantes no campo.
Não
há porque deixar de ver nesse fato um potencial dialético, ou seja,
a capacidade de desdobramentos futuros significativos para a
transformação da realidade presente. Em 1964, Caio Prado Jr. viu nos
sindicatos de trabalhadores rurais assalariados a força que o
capitalismo agrário havia criado e que iria confrontá-lo para
continuar o processo de construção da Nação. Conseqüentemente,
postulou a centralidade da luta pela aplicação da legislação
trabalhista no interior da estratégia de avanço da revolução
brasileira, em detrimento da palavra de ordem de conquista da terra
levantada pelas esquerdas nos anos 50/60. Sua previsão acerca de um
dos possíveis desdobramentos da conjuntura de 1965 não foi
confirmada nestes quase 40 anos de história. O poder que se
consolidou no campo, representando pelas agroindústrias e pelas
grandes empresas agrícolas, teve condições, com a ajuda do Estado
brasileiro, de impedir o crescimento do poder sindical e, de certo
modo, até de cooptá-lo, transformando-o em algo funcional para o
equilíbrio de seu modelo de dominação.
Hoje,
pode-se prever que, nas condições objetivas do Brasil do ano 2001, a
contradição básica no campo brasileiro é a que opõe essa mesma
força (agroindústria e grande empresa agrícola) à população
rural sem terra ou com pouca terra.[6]
Estes segmentos do campo não vêem outra saída para a situação de
miséria em que se encontram senão reivindicando um novo modelo agrícola,
baseado em uma ampla distribuição da terra entre a população
rural.
O
fato de que esses movimentos atingem atualmente uma parcela reduzida
da população rural não contradiz a possibilidade de que
venham a converter-se no pólo contestador do capitalismo agrário
brasileiro. Nestes tempos de decadência teórica tem-se entendido a
contradição em termos de pesquisa de opinião pública. É óbvio
que se o IBOPE for contratado para saber o que desejam os milhões de
trabalhadores rurais, a imensa maioria não reclamará terra, mas
emprego, salário, segurança, atenção à saúde, razão, aliás,
pela qual o governo e os jornais conservadores dão grande destaque a
essas pesquisas. Isto não é de admirar. O que sim causa admiração
é que socialistas se impressionem com essas manobras da luta ideológica
que a direita empreende para confundir e dividir o povo. A correspondência
entre a proposta socialista e as aspirações do povo não decorre da
comprovação estatística, mas da interpretação racional e lógica
da realidade. Cabe aqui a citação de um trecho extremamente
esclarecedor de Caio Prado Jr. “A revolução brasileira se
constitui do complexo de transformações em curso ou potenciais, que
dizem respeito à estrutura econômica, social e política do país e
que, contidas e reprimidas pela inércia natural a toda situação
estabelecida, se desenrolam de maneira excessivamente lenta e não
logram chegar a termo. Nem por isso deixam de estar presentes,
e se revelam e fazem sentir através de perturbações que agitam a
vida do país: desequilíbrios econômicos, desajustamentos e tensões
sociais, conflitos políticos de maior ou menor gravidade e repercussão.
Cabe precisamente à ação política revolucionária estimular
e ativar aquelas transformações implícitas no processo histórico
em curso e de que tais perturbações constituem o sintoma aparente e
mais diretamente sensível. É a programação das medidas necessárias
ou favoráveis a esse fim que forma a teoria revolucionária”[7]
.
Uma
terceira objeção que se ouve em relação à proposta de reforma agrária
aqui aludida,diz respeito à sua natureza. Segundo esses críticos, não
se pode denominar essa reforma agrária de socialista, uma vez que se
admite a entrega da terra desapropriada aos sem terra na forma de
propriedade privada familiar ou cooperativa; não se prevê a extinção
total das médias e até grandes propriedades; e se reconhece o
mercado capitalista. Ora, a reforma agrária socialista clássica não
admite nada disso.
Esta
objeção não se sustenta. A
luta pelo socialismo “não exclui a concentração em objetivos
que imediatamente e de forma direta não se relacionam com a revolução
socialista”. O que importa, em termos de avanço na direção do
socialismo, é que estes objetivos “representem soluções reais a
serem dadas as contradições e promovam o progresso e o
desenvolvimento histórico e não o seu estancamento por tentativas de
conciliação e harmonização dos contrários, o que representa a saída
conservadora senão reacionária para os problemas sociais” [8].
O que importa ver, portanto, na reforma agrária, é o que essa
consigna projeta em termos de desdobramentos futuros.
VI-
Propaganda da reforma agrária
Infelizmente,
a centralidade da reforma agrária não tem sido a tônica da estratégia
dos partidos socialistas nesta conjuntura da vida nacional. Não que
esses partidos deixem de colocar a reforma agrária em seus programas
de governo e plataformas eleitorais. Todos o fazem. Mas não se
vislumbra uma correspondência efetiva entre essa menção programática
e a vida quotidiana desses partidos. Basta comparar a menção à
proposta da reforma agrária que é feita no discurso partidário e a
grande ênfase que é posta em propostas, sem dúvida igualitárias,
mas sem potencial estruturalmente transformador,como o orçamento
participativo, a bolsa escola, a renda mínima. Aliás, o discurso das
principais lideranças desses partidos, quando abordam os problemas do
campo, mais parece o desgastado discurso produtivista dos ministros de
agricultura do que a proposição de uma transformação revolucionária
da sociedade brasileira. O que precisa ficar claro, para os
socialistas, é que a reforma agrária constitui o eixo central da
transformação social do país, tanto do ponto de vista do seu efeito
na economia como do ponto de vista da arregimentação de forças para
derrubar a dominação burguesa.
“Como
esperar transformações profundas em um país onde eram mantidos os
fundamentos tradicionais da situação que se pretendia ultrapassar?
Enquanto perdurassem intactos e, apesar de tudo, poderosos, os padrões
econômicos e sociais herdados da era colonial e expressos
principalmente na grande lavoura servida pelo braço escravo, as
transformações mais ousadas teriam de ser superficiais e
artificiosas”.[9]
Esta
afirmação, feita por Sergio Buarque de Holanda em 1936, continua válida
até hoje porque, apesar das aparências que enganam os menos
avisados, a realidade rural daquela época não mudou
substancialmente.
Crítica
semelhante pode ser feita ao trabalho de propaganda da reforma agrária.
Se o discurso socialista não der ênfase à reforma agrária e não
explicá-la claramente, sem temor da reação dos setores
conservadores, evidentemente a massa da população rural jamais
incorporará a reforma agrária entre suas aspirações. Enquanto esse
trabalho de convencimento não for feito, ela continuará esperando do
chefe político local – e agora do narcotraficante, como já
acontece nos morros do Rio e em periferias de São Paulo - emprego,
salário, atenção à saúde.
Em
um auditório socialista, parece desnecessário citar Lenine para
obter assentimento à tese de que as idéias de transformação social
não surgem espontaneamente no meio rural. Precisam ser introduzidas
por grupos politizados. Hoje, contudo, no campo brasileiro, apenas um
grupo social – o MST – faz, de fato, propaganda da reforma agrária.
As demais forças populares dão apoio formal e cauteloso a esse esforço,
mas, de fato, não se jogam inteiramente nele. Ora, como o próprio
MST proclama, a reforma agrária é “uma luta de todos”. Essa luta
não visa apenas a elevação do padrão de vida da população rural,
mas uma transformação estrutural profunda, que abra caminho para a
retomada do processo de construção da Nação, hoje paralisado e em
retrocesso. Deveria ser, portanto, um dos eixos centrais da estratégia
e das táticas daqueles que desejam construir o socialismo no país.
(1)
Prof. Plínio Arruda Sampaio, especialista em questão agrária,
Deputado Constituinte (1986-90), consultor da FAO.
E Diretor do jornal “Correio da Cidadania
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