Reforma
Agrária para a democratização do
acesso à terra
"São muitos os
que estão cansados, dizem, de ouvir falar em opção pelos pobres. A
isso eu respondo que certamente os pobres estão muito mais cansados de
ser pobres..."
(Pedro
Casaldáliga)
Por que a Reforma
Agrária?
A concentração da
propriedade da terra é a base material de um sistema econômico, social
e político que responde pela situação de pobreza da população
rural, pobreza esta conseqüência direta das políticas públicas que
apenas privilegiam os poderosos.
Desde 1994 até hoje, mais
de 450.000 famílias de produtores rurais familiares tiveram que
abandonar a terra e migrarem para as cidades sem que nestas obtivessem,
necessariamente, condições dignas de trabalho e de cidadania. Essa
situação dos migrantes do campo para a cidade é agravada pelo
crescente desemprego urbano, tanto no setor industrial como no de
serviços.
Sem modificar esse sistema
não há como eliminar a pobreza rural, e sem desconcentrar a
propriedade da terra, concentração esta que permite aos grandes
proprietários da terra o acesso privilegiado ao dinheiro público, não
há como modificar esse sistema injusto e perverso.
Desse modo, quando uma
sociedade comprova a existência, no seu mundo rural, de um sistema que
causa a pobreza, ela encarrega o Estado de realizar um processo de
desconcentração da propriedade da terra.
Por essa razão é que o
artigo 184 da Constituição Federal determina ao Estado brasileiro a
realização de uma reforma agrária, ou seja, que o Estado intervenha e
promova a desconcentração da propriedade rural, mediante a
desapropriação daquelas que não cumprem sua função social.
Este comando institucional
significa o reconhecimento de que o mercado capitalista, por si só,
não conduz a uma repartição mais eqüitativa da terra e que os outros
instrumentos de que o Estado dispõe para desconcentrar a terra, como o
imposto territorial rural progressivo, o banco hipotecário, o crédito
subsidiado ao pequeno agricultor, a exclusão das grandes propriedades
do programas governamentais de assistência técnica e
comercialização, são insuficientes para desestimularem a
concentração de terras.
Reconhecendo a necessidade
da intervenção do Estado pela via da desapropriação, a
Constituição reconheceu também que precisava dar-lhe meios efetivos
para pode desapropriar as grandes propriedades que não cumprem a
função social da terra.
Por isso, o texto
constitucional abriu uma exceção no princípio de que toda
desapropriação de bens particulares pelo Estado deve ser indenizada a
vista e permitiu que, dado o interesse social da desconcentração da
propriedade da terra, o pagamento das benfeitorias seja feito a vista e
que a da indenização da terra seja feita a prazo, através das TDAs
(Títulos da Dívida Agrária).
É essa possibilidade que
viabiliza a Reforma Agrária, pois, só pagando a terra a prazo, o
Estado tem condições financeiras de desapropriar uma quantidade
suficientemente grande de terras e, desse modo, renovar a base material
do sistema econômico, político e social que é a causa última da
pobreza rural.
Existe hoje no Brasil uma
demanda de terra para a produção familiar por cerca de 4 milhões de
famílias de trabalhadores rurais sem terra ou com pouca terra, e de
filhos de trabalhadores rurais que foram obrigados a trabalhar na cidade
mas que desejam voltar a cultivar a terra.
Esta é a essência da
Reforma Agrária e foi isto que a Constituição brasileira consagrou ,
em 1988, no seu artigo 184.
A partir dessa noção
pode-se deduzir os requisitos de uma Reforma Agrária brasileira:
a existência de uma alta
concentração da propriedade da terra;
a desapropriação de uma
grande quantidade de terras, em um tempo razoavelmente curto, para
incidir decisivamente sobre a concentração da propriedade privada da
terra utilizada apenas para especulação. Na atualidade existe um
estoque de 80 milhões de hectares de terras ociosas no Brasil em
propriedades privadas que não cumprem com a função social da terra;
pagamento da indenização
da terra a prazo para possibilitar a desapropriação massiva de terras
e garantir a oferta de recursos financeiros para apoiar os assentamentos
com crédito, assistência técnica e capacitação;
absoluto respeito pelos
movimentos de trabalhadores rurais sem terra, sem os quais é
impossível mobilizar a população rural para que ela se integre no
processo de reforma agrária de modo autônomo sem temer ameaças nem se
sujeitar a manipulações de qualquer ordem.
Banco da Terra: o
banco dos donos das terras
O que o governo federal
deseja ocultar da opinião pública brasileira e internacional é a
grande ofensiva popular pela democratização da terra rural
desencadeada, principalmente a partir do final da década de 80, pelos
movimentos sociais e sindicais de luta pela terra.
Em função dessa luta pela
terra o governo federal foi constrangido, de baixo para cima, a efetivar
as desapropriações decorrentes do processo de ocupação daquelas
terras que não cumpriam a sua função social, conforme dispõe a
Constituição Federal.
Nessa conjuntura histórica
a correlação de forças políticas e sociais, na luta pela Reforma
Agrária, tornou-se desfavorável política e ideologicamente para o
Governo Federal. E, isso, por quê?
porque o governo federal
teve que atuar à reboque da iniciativa popular no campo, contrariando a
tendência histórica autoritária (de cima para baixo) dos governos no
Brasil;
ideologicamente a expressão
sem, de sem terra, tornou-se referência cotidiana,
nacional e internacional, para os desprovidos de terra, de moradia, de
emprego, de alimentos, de reconhecimento civil étnico, ou seja, para
todos aqueles que as classes dominantes no país denominam
falaciosamente de socialmente excluídos;
O governo federal,
acostumado historicamente a cooptar os movimentos sociais e sindicais,
no campo e na cidade, encontrou pela frente uma muralha democrática
popular, a muralha dos trabalhadores rurais sem-terra organizados sejam
em movimentos sociais sejam em sindicatos de trabalhadores rurais, que
não aceitaram qualquer tipo de insinuação de cooptação, de agrado
político ou de conivência com a ideologia dominante, sempre favorável
aos interesses dos latifundiários e do grande capital.
Desorientado pela
impossibilidade de cooptar os trabalhadores rurais sem terra e de
dissuadir suas ações pela repressão político-militar, o governo
federal, com o apoio dos setores estrategistas civil-militares e do
Banco Mundial, desenvolveu uma nova estratégia para desmobilizar os
movimentos sociais e sindicais no campo, não mais dando ênfase às
iniciativas no campo político-administrativo e ideológico, mas sim no
econômico, com o programa Cédula da Terra e a criação do Banco da
Terra, ambos formas institucionais da proposta de Reforma Agrária pelo
mercado.
Qual o objetivo estratégico
da Reforma Agrária pelo mercado, ou seja, das propostas em execução
pelo programa Cédula da Terra e aquelas a serem executadas pelo Banco
da Terra? A tentativa de cooptar os trabalhadores rurais sem terra
desorganizados pela oferta de dinheiro para comprarem, a vista, terra
dos latifundiários, dinheiro esse que terão que pagar com juros altos
e condições desfavoráveis, principalmente na fase histórica da vida
brasileira em que as políticas macroeconômicas do governo federal
desmantelam toda a base produtiva na agricultura do país.
Nesse processo geral da
Reforma Agrária pelo mercado a iniciativa de venda ou não da terra
ociosa (em geral da pior qualidade) passaria para o controle dos
latifundiários, tradicionais especuladores com a terra, sem a
mediação do Estado, e sem qualquer restrição por não cumprirem a
função social da terra como dispõe o artigo 184 da Constituição
Federal.
Para que essa nova
estratégia civil-militar do governo federal para desmantelar os
movimentos sociais no campo possa ocorrer tem sido fundamental o apoio
financeiro e ideológico do Banco Mundial: financeiro ao aprovar o
pedido de empréstimo do governo federal no valor de um bilhão de
dólares (com contrapartida do governo federal de mais um bilhão de
dólares) para o Banco da Terra e ideológico porque incorpora as
idéias neoliberais do livre mercado no processo de Reforma Agrária,
reforçando mais uma vez os interesses dos latifundiários contra as
necessidades do povo no campo.
O Banco da Terra estará
sendo implantado efetivamente em 1999. Porém, em cinco Estados do
país, o programa Cédula da Terra (programa piloto) já foi implantado
e demonstrou, à evidência, que os preços pagos aos latifundiários
foram sempre supervalorizados, que foram adquiridas as piores terras e
que os trabalhadores rurais, obrigados a criarem associações de cima
para baixo, passaram a depender, mais uma vez, das oligarquias locais.
Compete aos trabalhadores
rurais sem terra e àqueles já nos acampamentos e nos assentamentos
aprofundar o conhecimento sobre esse assunto e tomar as decisões que
lhes convier para que suas organizações populares de massa não sejam
desbaratadas pelo dinheiro fácil do Banco da Terra e do discurso
governamental de cooptação, todos eles com um único objetivo: acabar
com os movimentos sociais e sindicais autônomos de luta pela terra no
campo e subordinar a luta popular aos interesses dos latifundiários.
O único instrumentos legal
válido para que se efetive uma reforma agrária massiva de interesse
popular é o processo de desapropriação da terra por interesse social.
As políticas
agrícolas contra os trabalhadores rurais
O acordo realizado pelo
governo federal com o FMI (Fundo Monetário Internacional),
instituição que representa os interesses dos grandes capitalistas
internacionais, está exigindo do povo brasileiro mais sacrifícios,
estes expressos no arrocho salarial, na volta da inflação, no
desemprego crescente, na perda da terra pelos agricultores familiares e
na ausência de desenvolvimento econômico no país.
No campo a situação se
agrava ainda mais com a liberalização das importações de produtos de
consumo alimentar que tradicionalmente os agricultores brasileiros já
produziam.
A maioria dos agricultores
familiares não teve condições concretas de pagar o crédito rural do
Pronaf, não porque seja da índole dos agricultores não honrar seus
compromissos, ao contrário, mas pela indiscriminada importação de
produtos da agricultura para manter os preços dos alimentos muito
baixos tendo em vista não aumentar os salários mínimos. Centenas de
milhares de pequenos produtores rurais tiveram que renegociar as suas
dívidas com os bancos para não perderem suas terras. Nesse sentido,
endividaram-se mais ainda, sem qualquer perspectivas de saírem dessa
crise financeira.
Por outro lado, os
trabalhadores rurais sem terra que, pela suas lutas, conseguiram obter
um lote de terra eram beneficiados por um crédito rural especial para a
Reforma Agrária, o Procera, cujos juros e condições de pagamento eram
menores do que aqueles do Pronaf. E, isso tinha uma razão: eram
famílias que iriam iniciar suas vidas no novo lote a partir do nada,
sem quaisquer condições mínimas de trabalho como as ferramentas,
sementes, animais, moradia, etc. Iriam sair da pobreza e miséria em que
estavam submetidos para um começo de produção na sua própria terra.
No Procera o agricultor
familiar assentado pagaria 6,5% de juros ao ano, mas na hora do
pagamento dessa dívida teria um desconto (rebate) de 50%. Já no Pronaf
o pequeno agricultor teria que pagar, nos valores atuais,
aproximadamente 9,42 % de juros ao ano e sem qualquer desconto.
Ora, o que o Governo Federal
está propondo atualmente é que os agricultores familiares assentados
paguem o mesmo juros, e com as mesmas condições, que aqueles pequenos
agricultores já consolidados, ou seja, praticamente extingue o Procera.
A idéia que os movimentos
sociais e sindicais no campo defendem é exatamente o inverso: que todos
os agricultores familiares tenham acesso ao crédito rural especial no
padrão do Procera, e não do Pronaf. Ou seja, que o crédito rural para
os pequenos produtores rurais seja não apenas barateado mas que tenha o
desconto, na hora do pagamento da dívida, de 50% do saldo devedor.
E, por que isso, porque esse
crédito especial para o pequeno produtor rural? Para que seja possível
enfrentar as deslealdades na concorrência estabelecidas pelas
indiscriminadas importações de alimentos, na maioria deles com
subsídios nos seus países de origem, e pelo controle no preço de
compra dos produtos rurais estabelecidas pelos grandes grupos
econômicos atacadistas. Esse crédito rural teria um caráter social de
garantir a permanência das famílias de produtores rurais no campo.
Mas as idéias do governo
federal são diferentes. Insensíveis à crise econômica e social eles
consideram que só devem permanecer como pequenos produtores rurais
aqueles mais fortes, os mais viáveis, mesmo que isso custe a perda da
terra por um elevado número de agricultores familiares, o êxodo dessas
famílias para as cidades e o desemprego de milhares e milhares de
pessoas.
E aonde irá parar a terra
daqueles pequenos produtores rurais que não tiveram condições de
produzir, por que são explorados na venda de seus produtos, na compra
dos insumos e no pagamento de juros do crédito rural incompatível com
a crise econômica e social na agricultura? Nas mãos dos grandes
fazendeiros, favorecendo, assim, a concentração da terra. |