Os
sem-terra e a democracia
Juarez
Guimarães*
Celebrado por Celso
Furtado como o movimento social brasileiro mais importante deste
século, os sem terra perturbam, à direita e à esquerda, por
encarnar um código ético-moral ora assimilado como expressão de uma
drama histórico não resolvido mas antigo, ora traduzido como sinal
quase profético de um Brasil socialmente — quase comunitariamente,
poderíamos dizer — democrático.
No ambiente midiaticamente
legitimado do primeiro mandato do governo Fernando Henrique Cardoso,
quando a palavra de ordem da modernidade exaltada em tom liberal
fornecia a melodia e o compasso de uma espécie de um anti-samba de
uma nota só, os sem terra desafinaram. Para o governo: como
neutralizar em uma pauta fini-secular da modernização conservadora
algo tão antiquado e cepalino como a reivindicação de Reforma
Agrária? Para as oposições institucionalmente estabelecidas: como
absorver este clamor de justiça, com gosto de terra e sangue, que
emergia mais além da esquerda da ordem?
Seja como for, o desafino
parece que veio para ficar: virou desafio. E suponho que apenas no
lano de uma teoria da democracia ele pode ser adequadamente abordado.
Ainda a Reforma
Agrária?
Sabe-se que ao final da
crise política que culminou em 1964, a pressão pela realização de
uma Reforma Agrária no Brasil era tanta que parte da elite
conservadora chegou a aceitar títulos públicos para
desapropriação, além da utilização de terras devolutas. O
Estatuto da Terra, promulgado logo a seguir pelo regime militar,
procurava institucionalizar o tema em um novo período político.
De fato, porém, a grande
opção do regime militar foi subsidiar em massa a modernização da
grande propriedade, conectando esta estratégia ao esforço
exportador. Nestes 21 anos de regime militar, trabalhada
missionariamente pela Igreja pastoral, a Reforma Agrária restou
adormecida no inconsciente profundo da sociedade brasileira.
Utilizando os conceitos de Albert Hirschman de êxodo, voz e
aquiescência, como já o fez Elisa Reis em seu belo ensaio Cem
anos de questão agrária, o que se impôs para dezenas de
milhões de brasileiros foi a migração para a cidade. Gerava-se o
nosso inferno de cada dia no turbilhão das grandes cidades.
Seja como for, o tema
retornou, na aurora da redemocratização do país, na experiência
abortada de José Gomes da Silva durante o governo Sarney, foi barrada
pela lógica do Centrão na Constituinte de 1988, banida da pauta pelo
governo Collor. E foi apenas acolhida como pauta compensatória e de
segunda ordem no programa da coalizão que se formou em torno a
Fernando Henrique Cardoso.
Esta não é toda a história, entretanto. No plano da formação da
esquerda brasileira, no pós-64, a Reforma Agrária foi em alguma
medida referida ao projeto populista do nacional-desenvolvimentismo
que se queria ultrapassar. É conhecida a polêmica de Caio Prado Jr.,
generosa mas incorreta por extremar arbitrariamente a lógica de um
raciocínio correto, contra a idéia de que a Reforma Agrária fosse
uma reivindicação passível de se enraizar na cena rural brasileira.
Ao invés da terra, tratava-se de demandar salário, legislação
trabalhista e sindicato.
Os ecos desta polêmica, já transfigurados em um registro não
generosamente popular como o de Caio Prado Jr., aparecem na obra mais
recente de Francisco Graziano, A tragédia da terra, primeiro
presidente do Incra no governo Fernando Henrique. Ali o argumento da
ultrapassagem da necessidade histórica da Reforma Agrária era
afirmado em nome da idéia de que no Brasil já não havia tanta terra
improdutiva nem tantos sem terra. Estes não passariam de um milhão
de famílias.
Esta interpretação, que
se tornou referencial por um período para um certo público de
esquerda, foi agora desmentida por um estudo realizado por dois
técnicos do IPEA, José Gasques e Júnia da Conceição, a pedido do
Ministério da Política Fundiária. Estudando os dados do Censo
Agropecuário do IBGE de 1995-1996, estes técnicos produziram o
documento A demanda da terra para a Reforma Agrária no Brasil,
concluindo que há no país 4.515.818 famílias de trabalhadores
rurais potencialmente beneficiárias de um plano nacional de Reforma
Agrária. Para o IPEA, são considerados sem terra os pequenos
proprietários que possuem áreas inferiores a dez hectares, as
famílias que vivem como arrendatárias, parceiros e posseiros, além
dos assalariados rurais. Ao todo, dezoito milhões de pessoas seriam
diretamente beneficiadas. O número oficial — uma observação
importante — quase coincide com o proposto pelo MST (4,8 milhões de
famílias ) em sua polêmica com o governo nos últimos anos.
Fora da agenda
institucional
Se o problema existe, é
real, é chão, resta saber como ele aparece na lógica
político-institucional recente.
A meta proposta pelo
governo Fernando Henrique foi assentar 280 mil famílias em quatro
anos de governo. A ambição do governo neste campo foi, desde o
início, mínima: pouco mais de 6% da massa de demandantes de terra no
Brasil, segundo o IPEA.
No balanço do Incra, o
total de assentados nestes quatro anos teria sido de 254.792
famílias, pouco inferior à meta mínima estabelecida.
Acresce que os dados são
fortemente contestados pelo MST. O governo reconhece que do total, 27%
em média são famílias assentadas em projetos antigos. Além disso,
62% das famílias referidas estariam na região da Amazônia, onde as
superintendências locais do Incra podem facilmente
"transformar" posseiros em assentados. Mais: se consideradas
as famílias assentadas que receberam o Procera (Programa de Crédito
Rural para a Reforma Agrária), os dados oficiais encolhem novamente.
Resta lembrar que, segundo os próprios dados oficiais, 400 mil
pequenas propriedades rurais foram à falência no campo e mais de
dois milhões de trabalhadores rurais perderam o emprego nos últimos
quatro anos. Isto é, nem como política compensatória o mínimo
esforço governamental se legitima.
A terra e o
direito
A conclusão que se impõe
é que, ao contrário do que diz o governo, a questão da Reforma
Agrária não está artificialmente amplificada pelos sem terra. É
exatamente o contrário: ela está brutalmente subdimensionada na
pauta do governo. Reconhecendo a legitimidade do clamor pela terra, o
governo, no entanto, recuou para o argumento de que os sem terra agem
por vias diretas, ferindo permanentemente o estado de direito. De
fato, no plano da sua legalidade a democracia brasileira nestes anos
noventa tem vagado em terra incerta. O mesmo governo que acusa os sem
terra é o que, nas contas de Jânio de Freitas, promulgou três mil
medidas provisórias, sem qualquer cobertura constitucional. A
Constituição de 1988 deixou centenas de artigos importantes a serem
posteriormente regulamentados e especificados. O próprio governo se
empenhou em alargar o espaço da revisão constitucional, promovendo
revisões importantes no seu texto, por parte delas com métodos
parlamentares publicamente fisiológicos e em proveito próprio.
Os sem terra respondem à
lógica de criminalização de suas ações pelo governo com o
argumento de que o artigo 184 da Constituição prevê que
"compete à União desapropriar por interesse de Reforma
Agrária, o imóvel que não esteja cumprindo sua função social. O
governo retruca que os sem terra violam o artigo da Constituição, em
seu parágrafo 22, que garante o direito de propriedade. Ocorre que as
zonas fundamentais dos conflitos de terra, como o Pará e o Pontal do
Paranapanema, situam-se em regiões marcadas exatamente pela ausência
de uma legalidade assentada das propriedades, já que marcadas pelas
ações de grileiros e por toda espécie de apropriação indevida do
solo.
Os sem terra agem, é
certo, extra-institucionalmente, predominantemente por fora das
instituições. Isto, no entanto, não configura uma quebra das regras
do jogo democrático, mas uma outra lógica de democracia. Em uma
tradição republicana, que desconfia desde sempre dos movimentos de
cidadania que vêm de baixo, o discurso de criminalização dos sem
terra soa sensato.
O certo, no entanto, é
que nem o governo, nem o Parlamento com sua dinâmica básica por este
definida, nem o Judiciário que é extremamente rápido para dar
cobertura legal à desocupação de propriedades ocupadas pelos sem
terra, mas insuportavelmente lento para punir os crimes da terra,
acolhem os sem terra.
E, se o grito por terra
ecoa rouco, desafinado, inconveniente diante das sensibilidades que
antepõem sempre o critério estrito de uma legalidade instrumental à
legitimidade, mesmo que fundamentada nas exigências mais
incontornáveis de Justiça, o problema não está na voz.
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* Professos do Departamento de
Ciência Política da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais)
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