O
MST, o Brasil, e as Lutas
ENTREVISTA COM JOÃO PEDRO STÉDILE
Revista Nação Brasil, agosto de
2001. Rio de Janeiro.
RNB — Quando o MST realizou a
primeira Marcha, em 1997, denunciou a presença de dois agentes
infiltrados (temos as fotos daquela época), entretanto, a mídia
e, também, vários setores da esquerda logo falaram em
"paranóia". Hoje, você acredita que aqueles dois
sujeitos que queriam infiltrar-se no MST, em 1997, foi só um caso
isolado?
João Pedro Stédile: «O MST
sempre foi "acompanhado" pelos serviços de inteligência
do governo. Nos estados, a infiltração mais corriqueira é do
serviço P-2 das policias militares que são menos profissionais e
mais fácil de detectar. Depois, tem a turma da ABIN, que tem 700
agentes esparramados pelo país. E mais recentemente o governo FHC
reorganizou o chamado DOPS Rural dentro da Policia federal, que ai
usam a espionagem política e transformam em processos contra nós.
É o serviço mais perigoso. Nós sabemos que todos nossos
telefones, computadores, e atividades dos dirigentes são
controlados. A Novidade agora é que veio a público as ações
desastrosas do serviço de inteligência do Exército. Que também
tínhamos conhecimento de suas atividades, mas não sabíamos que
eram tão despreparados.
O que chama atenção agora, não
é a existência dos serviços de inteligencia, que até podem se
justificar se forem usados apenas contra inimigos do povo e para
defender o país. O nos chama atenção é um governo dos tucanos
assumir publicamente que espionam movimentos sociais, igrejas,
etc..»
RNB — Em 28 de dezembro de
1999, o pessoal da Equipo Nizkor publicou, em Madrid, a versão
original do documento que o Pentágono produziu em 1991 —
durante o governo Clinton — para a Organização e o
Funcionamento das Redes de Inteligência na Colômbia. Em novembro
de 2000, Conjuntura Internacional publicou a parte central da
Diretiva nº200-05-91, que a Equipo Nizkor considera a matriz para
todos os exércitos latino-americanos. Você não acha que as
revelações da Folha chegaram demasiado em retardo?
João Pedro Stédile: «A
Folha de SP está publicando manuais que teve acesso somente
agora. E eles revelam o grau de paranóia e de inutilidade desses
serviços. Todo mundo sabe que o Governo dos Estados Unidos e de
Israel treinam os serviços de inteligência dos governos
submissos a eles, como o brasileiro. No nosso caso, o mais grave
é que os governos norte-americanos e de Israel continuem dando
treinamento militar para as Policias Militares realizarem repressão
às manifestações de massa, e aos despejos de massa, seja na
cidade seja no campo.
Isso é uma vergonha. E o pior, esses treinamentos são os mesmos
para todos paises da América Latina. Tudo isso causa sacrifícios,
violências,e a vida de muita gente, mas eles não conseguirão
parar a roda da história.»
RNB — As revelações da Folha
de SP, do dia 05 de agosto, são apenas um "furo jornalístico"
ou trata-se de um recado das elites para Lula não radicalizar e
dar uma maior "elasticidade economicista" nos seus
programas?
João Pedro Stédile: «Acho que é
apenas um furo jornalístico,que aliás nem é da folha, porque os
documentos foram encontrados pelo Minsitério Público que estavam
procurando provas dos locais aonte teriam sido enterrados os
restos mortais dos guerrilheiros do Araguaia, não foi a Folha de
SP que encontrou. Ela apenas recebeu. E claro quis tirar proveito.
O recado para o Lula, as elites dão de outra forma.»
RNB — O MST possui ou pretende
encontrar elementos para reabrir o processo de Eldorado dos Carajás
em função do possível envolvimento de "agentes" do Exército?
Afinal, o processo mostrou muitos pontos obscuros, sobretudo no
que diz respeito aos mecanismos operacionais do massacre?
João Pedro Stédile: «O MST através
de seus advogados vai pedir que o Ministério Público peça para
a Juíza reabrir o processo, para investigar até que ponto
agentes do serviço de inteligência do Exercito, mais
especificamente do Batalha de Selva, sediados em Marabá, tiveram
influencia e envolvimento no massacre. Há provas já arroladas
pela própria defesa do coronel Pantoja que comandou a operação,
de que houve reuniões antes do massacre, entre o comando local da
PM e o serviço de inteligência do Exercito.. Agora se trata de
identificar as responsabilidades individuais. O próprio
superintendente do Incra de Maraba, na época, participou de
reuniões e de certa forma teve envolvimento. Por isso, precisamos
averiguar de quem foi mesmo a ordem! e todos os responsáveis
diretos e indiretos.»
RNB — As manifestações
antiglobalização começaram com a resistência passiva em
Seattle, a seguir, transformaram-se em pequenos motins (Praga,
Davos) para, depois, em Gotemburg e Genova, assumir as características
de uma autêntica rebelião. Qual sua opinião a propósito?
João Pedro Stédile: «Pelo que
estamos acompanhando, pelos jornais e informes dos movimentos do
hemisfério norte, está havendo um reacenso de movimento de
massa, especialmente do movimento de jovens e de movimentos
sociais, em diversos paises do hemisfério norte. Tenho a impressão
que nos encaminhamos para um processo parecido com 1968. Estamos
torcendo para que isso aconteça, e que a própria população do
norte nos ajude a frear a ofensiva do capital financeiro
internacional, que nos últimos 20 anos, só aumentou a miséria,
o desemprego, a divida externa e os problemas na humanidade.
Mas estamos longe ainda de um processo de revoltas populares. E
mudança de rumos no sistema economico. O Capital continua
hegemonico e na ofensiva. A única rebeliao importante que de fato
aconteceu foi a do Equador em janeiro de 2000 e foi derrotada
pelos setores reacionários das forças armadas submissas à
embaixada norte-americana.»
RNB — A nova esquerda européia
admira Bové pela sua coerência política, antes de tudo,
manifestada radicalmente contra as multinacionais da
biotecnologia, porém, acham que Bernard Cassem e sua proposta de
reativar a lei Tobim é tão politicamente redutiva que o programa
da antiga Comissão Brand, de 1982, pode ser considerado
revolucionário. Como você explica que um camponês como Bové
assume a radicalidade da ruptura enquanto o intelectual Bernard
Cassen cria uma ONG mundial (Attack) só para negociar uma leve
taxação das operações financeira especulativas que, num certo
sentido, apenas "humaniza" a prática constante da
especulação financeira do neoliberal?
João Pedro Stédile: «Acho que são
dois movimentos diferentes, porém complementares. Em relação ao
Bove, é força de expressão, há em toda Europa um movimento de
agricultores familiares, camponeses, que estão se insurgindo
contra a dominação das multinacionais e do controle da
biotecnologia. Essas manifestações e posições políticas vem já
de algum tempo e houve várias ações de massa. Infelizmente a
imprensa gosta de projetar apenas algumas pessoas. Mas o que está
em curso é um movimento social importantissimo dos agricultores
europeus.
No caso da Atac, é acima de tudo,
tambem, um movimento social, e tampouco depende do Bernard Cassen.
E acho que é um movimento social positivo. Aqui não se trata de
ficar rotulando, se é ou não reformista. O mais importante é de
que se trata de um movimento que conscientiza amplas camadas da
população sobre a espoliação que o capital financeiro faz
contra todos. Evidentemente que a solução para derrota r o
capital financeiro internacional não passa apenas pela adoção
da taxa Tobin, mas já seria uma pequena grande vitória do
movimento. E isso tem nos ajudado a que nos do Sul, também nos
organizemos nas campanhas do Jubileu sur contra o pagamento da
divida externa. Assim, um movimento vai puxando o outro, e quando
se trata de movimentos sociais, precisamos entendê-los não
apenas como propostas de pessoas, mas como processos que
certamente evoluem e avançam.»
RNB — O Fórum Social Mundial
de Porto Alegre foi, talvez, o mais importante contraponto ideológico
ao processo de globalização que os diferentes componentes da
esquerda e setores progressistas mundiais produziram. Entretanto,
houve muitas críticas sobre a monopolização do evento por parte
das ONGs e em relação ao posicionamento "light" ou até
populista de algumas lideranças da esquerda. Qual é sua opinião
a este respeito?
João Pedro Stédile: «Em primeiro
lugar, o FSM não é o único espaço de contraposição à
globalização do capital. Como já comentamos antes, as mobilizações
de massa, em Seatle, Gotemburg, Praga, Barcelona e agora em
Genova, foram muito mais importantes e conscientizadoras.
A realização do FSM em Porto
Alegre é um espaço de debate, de articulação, de troca de
experiências de todos os que querem ser contra a globalização
do capital. E ninguém pode dizer que foi proibido de fazer alguma
coisa ou divulgar algum documento. Lá não houve e não haverá
protagonismos, hegemonias. É na verdade uma feira de idéias.
Justamente, quem sempre está acostumado a só produzir documentos
e discursos e pouco fazer na prática, é que deve ter ficado
molestado, porque queria grandes documentos. Só um cego político
não enxerga que o espaço do FSM foi um espaço de contestação,
de esquerda, de protesto.. Aos que nos chamam de reformistas,
estranhamos. Por que os processos da Policia Federal são sempre
contra nós, e não contra esses "revolucionários" de
botequim?»
RNB — Que tipo de interpretação
você dá ao "esquecimento" da Reforma Agrária no
programa do governo do PT, feito pelo Instituto da Cidadania, a
ONG presidida por Lula?
João Pedro Stédile: «Os
Puxa-Sacos do Lula estão prestando um desserviço à sua
candidatura e ao PT. E à esquerda em geral. Os documentos
divulgados na imprensa como sendo programas de governo do PT, nem
são programas de governo, nem são do PT e muito menos da
esquerda...Foi uma inciativa de alguns economistas, que eu chamo
de puxa-sacos do Lula, que através da ONG "Instituto da
Cidadania"produzem documentos e divulgam na imprensa como se
fosse posiçao do PT.
Mas há outros processos de debate
sobre projetos alternativos, tanto dentro dentro do PT , como nos
movimentos sociais e com outras forças sociais e políticas, que
acredito produzirá um debate diferente na soceidade brasileria,
diante da gravidade da crise economica, social e política que
vivemos. O que se trata não é produzir um programa de
governo, precisamos produzir propostas de mudança de modelo
economico.
Embora, o mais importante não são
documentos, são debates, são lutas sociais que alterem a correlação
de forças. E esperamos que o proximo processo eleitoral
casado com um reascenso do movimetno de massas, consiga alterar a
correlaçao de forças e projetar mudanças reais na sociedade.
RNB — Em um governo de
centro-esquerda, presidido por Lula, a luta pela Reforma Agrária
corre o risco de perder sua caracterização ideológica para se
tornar um dos tantos "projetos sociais", cuja implementação
vai se dando aos poucos para não preocupar as elites?
João Pedro Stédile: «Se o Lula
ou outro candidato de oposição ou de esquerda ganhar as eleições,
se altera a correlação de forças na sociedade e obviamente que
haverá um espaço maior de mobilização social.. E caberá a nós,
lutadores sociais, de todos os campos, não apenas da reforma agrária,
ampliar nosso nível de organização e realizar grandes mobilizações
de massa, para seguir avançando, conquistando mais espaço e
recuperando os direitos fundamentais.
As mudanças sociais nunca
dependeram apenas de vontades políticas de governantes, elas
dependem do grau de organização do povo e de sua disposição de
luta de massa.»
RNB — Qual é sua opinião
sobre o programa de governo apresentado por Lula?
João Pedro Stédile: «O que o
povo brasileiro precisa não é apenas de uma carta de intenções
eleitoral, que é esse o papel de um programa de governo.
Precisamos de um Projeto popular para o Brasil. E um projeto
significa analisar quais são as causas principais dos problemas
que temos na sociedade. E o que precisa ser feito para que nosso
povo, e todos brasileiros possam ter garantido Trabalho, terra,
moradia digna, comida e escola publica e gratuita. E conscientizar
nosso povo de que para que nossa sociedade possa resolver esses
problemas fundamentais é necessário, romper com a dependência
externam, recuperando nossa soberania e impedindo a remessa de
capital pro exterior, suspender o pagamento da divida externa. É
preciso estatizar o sistema financeiro, que através da especulação
financeira, na divida interna, explora a todos. O governo está
gastando 70% das receitas tributárias apenas em pagamento de
juros da divida interna (cerca de 74 bilhões ano, enquanto os
servidores públicos custam 56 bilhões por ano) e precisa
distribuir a riqueza ( não apenas a renda) através da
democratização do patrimônio, da terra, etc."
RNB — Muitas lideranças do
campo da esquerda admitem e aceitam o processo de globalização,
por isso, até renegam certos princípios históricos do
socialismo. Qual sua opinião sobre a "bandeira" de
Cristovam Buarque "globalização sem exclusão"? Você
acredita na impossibilidade de uma ruptura do atual modelo?
João Pedro Stédile: «A globalização
em quanto movimento de internacionalização econômica é um
processo permanente desde os primórdios da humanidade. Os povos
sempre se encontraram e trocaram mercadorias. O que devemos ser
contra agora é contra esse tipo de globalização que na verdade
é a hegemonia e controle da economia mundial pelo capital
financeiro internacional. É na verdade apenas mais uma versão,
uma fase do imperialismo. No seu conceito clássico da economia
política.
Evidentemente de que não haverá
solução para os problemas fundamentais do povo brasileiro, sem
um processo de ruptura de nossa dependência econômica, das
multinacionais e do capital financeiro internacional. Isso vem
sendo debatido desde a década 60, e defendida por Caio Prado
Junior, Florestan Fernandes e Rui Mauro Marini., que foram os
grandes pensadores de nossa economia.
Quando, por outro lado, alguns
intelectuais como Cristóvão Buarque defendem a continuidade da
atual equipe econômica, neoliberal, dão uma declaração de sua
adesão ao modelo econômico atual. Portanto, perdeu legitimidade
de falar pelo povo brasileiro. Pode falar o que quiser, mas não
pode dizer que representa os interesses do povo brasileiro.»
RNB — Antes a esquerda debatia
a centralidade operaria, hoje, devemos, talvez, avaliar a existência
de uma nova centralidade constituída pelo movimento dos setores
sociais gradualmente excluídos dos ciclos de produção?
João Pedro Stédile: «A esquerda
brasileira sempre foi muito colonizada pela esquerda européia. Em
todas suas correntes. E por isso tivemos poucos pensadores
brasileiros, que pensaram um projeto popular para o Brasil.
Tivemos como disse o Caio Prado, o Florestan, o Rui Mauro, e todos
eles não foram considerados nas teses principais dos partidos de
esquerda. Evidentemente que os processos de mudança social, nos
paises periféricos são muito mais complexos, e exigem grandes
mobilizações de massa, grandes movimentos sociais. E não apenas
cair no reducionismo do sindicato, do partido operário
industrial, clássico, que na Europa foi possível. E houve outras
lições históricas no terceiro mundo muito importantes, no
passado e mais recente, que infelizmente não soubemos apreender.
Devemos estimular todas as formas
de organização social e todas as formas de lutas populares, e
articulá-las rumo a um objetivo comum, de construir um outro
modelo econômico, um novo regime político democrático e popular
e de novas bases para nossa sociedade. Sem se preocupar com rótulos,
mas com processos de mudanças sociais.»
RNB — Toni Negri aprofundou a
questão do imperialismo chegando à conclusão de que os EUA não
reúnem mais as características de país imperialista
tradicional, vindo, portanto, a desempenhar o papel mais perigoso
de nação responsável da implementação do novo Império. Qual
sua opinião?
João Pedro Stédile: «Tenho lido
bastante e ouvido muitas palestras e participado de diversos
encontros internacionais. Há um consenso na esquerda de que os
Estados Unidos são a potência econômica, militar e política
que ainda hegemoniza o imperialismo e está ainda em ofensiva. A
novidade é que sua hegemonia é tão grande que conseguiu
submeter vários organismos internacionais como a própria ONU, a
OMC, o FMI, o Banco Mundial, a OTAN, para que apliquem as políticas
que interessam apenas ao capital norte-americano.
Quando as forças populares do
mundo conseguirão reverter esse quadro ninguém sabe. A única
coisa que sabemos que ele não é eterno, e que tampouco
representa solução para o avanço da humanidade e para solução
dos problemas sociais básicos no mundo. Ao contrário, nessa fase
do imperialismo norte-americano, o desemprego, a desigualdade
social, as diferenças norte-sul, a fome, e a mortalidade
infantil, nunca cresceram tanto. Portanto, as contradições econômicas
e sociais devem aumentar. E como advertia Gramsci, "nenhuma
potência consegue manter sua hegemonia apenas pelo poder econômico
e militar... um dia povo se levantará!"
|