Introdução
1.
Enviada
por Jesus Cristo para evangelizar o mundo, a
Igreja
exerce sua missão na realidade concreta da história,
compartilhando as esperanças e as angústias dos homens.
2.
Por
esta razão, nós, bispos do Brasil, em nossas Assembléias
Gerais, estudamos com freqüência problemas graves e urgentes
que desafiam a ação pastoral da Igreja em nosso País.
3.
Em 1980, tratamos do problema da terra no campo aprovando o
documento "Igreja e Problemas da Terra". Nesta 20'
Assembléia Geral abordamos o não menos grave problema da terra
nas cidades: o uso do solo urbano.
4.
Temos
consciência de que a complexidade deste desafio envolve
aspectos técnicos alheios à nossa competência. Assìm,
apelamos instantemente a todos os especialistas na matéria para
que se disponham a dar ao tema sua contribuição específica.
Por outro lado, sabemos que o povo simples tem consciência das
grandes linhas da soluçâo deste problema que tanto 0 aflige.
5.
Seguindo
a metodologla largamente empregada na América Latina e
consagrada em Puebla, pela III Conferência Gerai do Episcopado
latino-americano, trataremos o tema em três partes:
·
1° Parte: Situação do solo urbano no Brasil (VER)
·
2° Parte: Elementos para uma reflexão ético-teológica (JUL·
GAR)
·
3' Parte: Pistas lnsplradoras de uma ação concreta [AGIR)
1
° PARTE
SITUAÇÃO
DO SOLO URBANO NO BRASIL
6.
Nesta primeira parte, propomo-nos a apresentar e a analisar
alguns aspectos da realidade do solo urbano e a dinãmica de sua
apropriação e valorização em relação com o problema da
moradia do povo na cidade.
1
.1 . A
urbanìzação no Brasìl
7.
As correntes migratórias que abandonam o campo por causas já
analisadas em outros documentosl dirigem-se para as cidades
mais próximas ou buscam principalmente os grandes centros
urbanos. Por isso, as cidades maiores crescem em ritmo superior
ao das cidades menores.
8.
Em
1940, apenas 31 % da população brasileira era urbana. Hoje,
essa percentagem atinge 67%, que representa, em números
absolutos, mais de 80 milhões de habitantes. O Brasil tem hoje
10 cidades 1
Ver: CNBB -
"Igreja e Problemas da Terra", 1980; Campanha da
Fraternidade, 1980 - Migraçôes: 'Para onde vals?".
com
mais de um milhão de habitantes e cinco regiões metropolìtanas
com mais de 2 milhões. Em 1940, apenas 8% da população habìtava
em cidades de mais de um milhão. Hoje, em 13 concentrações
urbanas moram 32% da população total, que representa metade
da população urbana. Obviamente, os problemas se agravam de
modo especial nas grandes regiões metropolitanas, como a
Grande São Paulo, com 13 milhões de habitantes e o Grande Rio,
com 9 milhões.
9.
Na década
de 70 registrou-se, pela primeira vez na história do Brasil, um
decréscimo da populaçâo rural. Ela caiu, em termos
absolutos, em mais de 2 milhões de habitantes, em relação ao
total registrado no censo de 1960z. Durante a década, o
município de São Paulo cresceu demograficamente mais do que
toda a área da Amazônia. No mesmo período, 16 milhões de
brasileiros migraram do campo para a cidade. Parcela dessa
população continua a trabalhar no campo.
10.
A taxa
de crescimento da população urbana foi bem mais elevada que a
da populaçâo total. As cidades aumentaram, tanto por
crescimento vegetatativo e ampliação do perímetro urbano,
quanto por forca do êxodo rural. Entre os dois últìmos
Recenseamentos, a cifra média anual deste aumento foi de
quase 3 milhões de pessoas. O crescimento da população
urbana foi de 28 milhões de pessoas. Esta cifra pode aumentar
muito até o ano 2000, se não 2 Fonte: Slnopse Preliminar do
Cenao Demográflco, FIBGE, 1981.
houver
, reversão nos fatores que atuam na aceleraçâo da urbanização.
11
. É certo que grande parte dos problemas com o solo urbano se
relacionam com a migração campo-cidade. Mas há outras
causas sociais que atuam negativamente no interior das próprias
cidades, agravando os problemas.
12.
Desejar
um crescimento urbano controlado não significa condenar todas
as migrações para as cidades. É forçoso questionar sua
intensidade e ritmo, provocados por acelerada redução da
oferta de trabalho no campo; pela expectativa de melhores
oportunidades de vida nas cidades, amplificada pelos meios de
comunicação e pelo precário modo de vida no meio rural.
1
.2. O solo urbano e sua apropriação anti-social -
a especulação imobilíária
13.
A ocupação do solo urbano para fins habitacionais é precária
e tende a piorar em vìrtude do ritmo de crescimento da populaçâo
urbana.
14.
A afluência
das migrações para os centros urbanos coincide com um
processo que exacerba a situação: a rápida valorização do
solo urbano, objeto de intensa especulação imobilária. Atinge
hoje proporções graves o expediente da estocagem de terrenos
para fins especulativos. Glebas ou lotes vazios guardados para
estes fins ocupam, em média, a terça
G
parte
dos espaços edificáveis das cidades brasileiras9.
15.
A valorização
econõmica dos terrenos urbanos tem sido alarmante a partir de
meados da década de 60. O preço real médio dos terrenos, no
mínimo, triplicou no espaço de 20 anos4.
A
proporção do preço do solo no custo da habitação, que era
de 10% a 15% no início da década de 70, passou hoje para até
30°° a 40°°5.
16.
A especulação
imobiliária, ao aumentar o preço do solo, agrava a situação
habitacional do país e permite perceber uma característica
fundamental na
3
Em São Paulo, chegam a 47% no lnterlor de sua érea urbana
(dados do cadastro da Prefeitura Munlcipal de São Paulo - TPCL
- COGEP,
1977).
No
Rio de Janeiro, em 1978, registravam-se 900.000 lotes vazlos:
suficientes
para atender à demanda até 1990 (FUNDREM - 1978).
4
Em São Paulo, tomando como ano base 1964 e 100, em
1978 0 indice do preço médio era igual a 435. (Fonte:
Coordenadoria Geral de Planejamento - COGEP - "Pesqulsa
Municíplo de São Paulo" 1979/1980.)
No
Rio de Janeiro, 1957 = 100, em 1976 era 376. (Fonte: CNPU/
Astel.) Em Belo Horizonte, 1950 = 100,
em 1976 era 856. (Fonte O Mercado de Terras na Região
Metropolitana, PLAMBEL, 1978.)
e
Em Belo Horizonte, o preço médio de um lote em loteamentos
populares passou de um preço correspondente a 8 salárlos
minimos em 1960 para 21 salários mínimos em 1970 e para
57 sal8rios mínlmos em 1976... É justamente nessa região
metropolitana de Belo Horizonte que, em 1975, no município de
Betim, 80% dos lotes estavam vazios. No munlcípio de Contagem,
em cada trés
lotes, dols estavam vazios, esperando valorlzação. (PLAMBEL,
op. clt.)
8
a
destinação
do solo urbano: há solos ce habitação, repartidos
desigualmente entre as diversas camadas sociais, como também solos
de especulação, estocados e ociosos, destinados
exclusivamente a operações imobiliárias.
17.
A
apropriação do solo urbano reproduz com nitidez a disparidade
observada na renda. Hoje, o Brasil é um dos países do mundo
onde esta disparidade atinge os níveis mais elevados, ameaçando
o país de uma verdadeira implosão social e econômica.
Enquanto 5°° da população mais rica concentra 37,9% da
renda total, aos 50% mais pobres sobram apenas 12,6% da mesmae.
18.
Nas
cidades do Sul do País, mais ricas, a propriedade fundiária é
menos concentrada do que nas cidades mais pobres do Nordeste.
Neste, algumas poucas famílias detêm a maior parte das áreas
não ocupadas; o Estado, grandes glebas, bem situadas, para o
desenvolvimento urbano.
19.
A mera expectativa da urbanizaçâo gera o aumento do valor do
solo. uando ela é intensa, ocorre sua supervalorização.
20.
Entre
os fatores que contribuem para a valorizaçâo do solo urbano,
enumeram-se: a presença de
e
`A população brasilelra', conferéncla profertda pelo Prof.
Jessé Montello, presidente da Fundação Instituto Brasilelro
de Geografla e Estatística, na Escola Superior de Guerra, em 22
de setembro de 1981. (Publicação SEPLAN da Presidéncla da República/
FIBGE, tabela t2, p. 12.)
2.
&olo Urbano
9
infra-estrutura
urbana, rede de água, esgoto, luz, pavimentação e iluminação
das ruas, bem como transportes coletivos, escolas, hospitais,
comércio, lazer, leis de zoneamento que determinam ou limitam o
uso do solo em cada área da cidade: residencial, comercial,
industrlal, área verde.
21.
Além
desses fatores que conferem um valor ao solo a partir do próprio
tecido da cidade de qualquer cidade -, existem fatores de
valorização econõmica em decorréncia mais direta de nosso
sistema de mercado imobiliário.
22.
Existem
áreas de propriedade das camadas sociais de média e alta
renda. Muitas delas já estão ocupadas para fins habitacionais
e são rapidamente atendidas com os servicos da infra-estrutura
urbana. Em grande número de casos, apenas uma imobiliária
implanta um loteamento para vivendas de alto luxo e, com
supreendente rapidez, chegam água, energia, esgoto, serviços
de limpeza. Essa rapidez contrasta de modo chocante com a
realidade de bairros populares, há anos privados deste
atendimento. Teoricamente, infra-estrutura e serviços urbanos
deveriam acompanhar a ocupaçâo do solo urbano por integrarem
a estrutura de uma cidade.
23.
É na
cidade, que deveria ser o lugar privilegiado de convivéncia
humana, que a economia de mercado tem revelado os piores trutos
do egoísmo individualista que a caracteriza,
institucionalizando-se num sistema de injustiça radical o qual,
em nome de seus princípios, violenta os direitos mais
elementares
de vastos contingentes da população.
10
24.
Nos
bairros centrais e bem dotados de infra-estrutura, os
empreendedores imobiliários véem o preço do solo subir
por força do verdadeiro leilão que se estabelece. A demanda é
feita por quem tem muita renda acumulada e a oferta de solo bem
urbanizado é pequena, porque o poder público local dispõe
de poucos recursos para investir nas cidades.
25.
Tal
processo leva as empresas imobiliárias a exercer pressão no
sentido de modificar a legislação relativa ao solo urbano
onde ela existe. A pressão visa a ampliar o direito de
construir. Isso provoca o congestionamento dos serviços públicos
e a necessidade de sua substituição, bem como a insuficiéncia
das áreas verdes e de lazer por ventura existentes. Ouando tal
legislação não existe, como é o caso da maioria dos municípios
com cidades grandes e médias, o empreendedor constrói espigões
cada vez mais altos.
26.
O õnus
dessa infra-estrutura adicional recai sobre todo o povo que, com
os impostos, financia os investimentos públicos necessários. O
proprietário desse solo, entretanto, é quem receberá a
valorização
correspondente a esse aumento da capacldade de construir.
27.
Essa
ampliação da infra-estrutura urbana acaba por concentrar os
poucos recursos destinados às cidades em bairros já bem
dotados e por isso mesmo habitados por famílias de renda
elevada. Os bairros pobres e dístantes das periferias urbanas tém
de esperar mais tempo, muitos anos e até décadas, para receber
os benefícios dos serviços urbanos essenciais.
11
28.
A
especulação imobiliária, mantendo fora do mercado uma proporção
elevada de lotes, aumenta a demanda. Assim se auto-alimenta,
acarretando conseqüências lamentáveis para a cidade. A soma
do capital nacional, altíssimo, investido na especulação
imobiliária, tem outra conseqüência negativa: a
infra-estrutura
e os serviços urbanos, que circundam os lotes vazios e Ihes
conferem valor, não são devidamente utilizados. Esta
subutilização da infra-estrutura aumenta os custos da produção
da economia em geral e reduz a capacidade de investimentos
produtivos.
29.
A contribuiçâo
de melhoria, que poderia corrigir essa forma de especulação,
é letra morta em nossa Constituição. O fato se explica não só
por tratar-se de instrumento jurídico de difícil aplicação,
mas, certamente, também por contrariar interesses poderosos.
30.
Ganhos
imobiliários decorrentes da não-obediência a legislação
urbanística em vigor caracterizam a clandestinidade de
loteamentos e edificações, que correspondem à maior parte do
espaço urbano construído nas cidades7.
7
Em São Paulo, mals de 70°io do espaço urbano - loteamentos
e edificações - tem origem clandestina ou Irregular em
face da leglslação vigente. [PMSP - Prefeitura
Municipal de São Paulo - COGEP Coordenadoria Geral
do Plane)amento.)
Em
Belo Horizonte, mais de 60°io
dos loteamentos existentes em 1972 eram irregulares ou
clandestinos (PLAMBEL, O Mercedo de Terras ne Região
Metropolltane, 1978.)
31.
A economia
centralizada que privilegia certos setores produtivos para
obter rápido crescimento industrial gera, como subproduto, um
clima de desconfiança em investimentos produtivos: poupadores
pequenos, médios e grandes, se voltam para a especulação
imobiliária. Em períodos de inflação elevada, esse fenõmeno
se acentua.
32.
A economia
brasileira é afetada pelos cìclos de recessão e
desenvolvimento que se alternam na economia internacional. Esses
ciclos têm forte impacto sobre a economia do nosso país,
voltada para o exterior e de fraca base interna, pois visa à
produção prioritária de bens destinados a camadas de renda média
e alta. Esse dado contribui para aumentar a especulação
imobiliária ao ampliar a desconfiança no investimento
produtivo no país.
33.
A prioridade atribuída aos investimentos destinados à
acelerada industrialização e à expansão da agricultura
extensiva estimula o êxodo rural e faz com que sobrem poucos
recursos para a infra-estrutura e serviços urbanos, deixando
de gerar grande número de empregos que resultariam de investimentos
na construção civil.
34
. A carência de investimentos públicos em infra-estrutura e
equipamentos sociais (escolas, creches, postos de saúde,
centros de lazer etc.) fez acumular nas últimas décadas
enormes déficits nesses serviços, quase exclusivamente
suportados pelas populações pobres de nossas cidades.
35.
Os
grandes proprietários de terras são, aparentemente, os
beneficiários desse processo, sejam eles pessoas físicas,
empresas ou instituições. Na realidade, o ganho especulativo
é aparente. Todos perdem com a redução da riqueza social
produzida, embora os pobres sejam os mais sacrificados.
1.3.
Promoção e controle do uso do solo urbano
1
. 3.
1 . A ação do Estado
36.
Nos
planos governamentais, de nível federal, estadual e municipal,
são enunciados princípios que, se aplicados, atenuariam os
problemas relativos ao uso do solo urbano. Recentemente o
governo manifestou publicamente preocupaçâo com o problema,
propondo-se a dar-Ihe um equacionamento global. É de justiça
reconhecer também o esforço ultimamente efetuado no setor de
transportes e de abastecimento de água potável em muitas
cidades.
37.
No campo específico da moradia, a criação do
Banco Nacional da Habitação, em 1964, acendeu grandes esperanças,
logo a seguir frustradas pelos desvios, para outros setores de
economias, de verbas que, por lei, seriam destinadas à construção
de casas e apartamentos e à infra-estrutura urbana imediatas.
O
balanço do BNH de 1981 mostra que mals de 55% dos seus recursos
(provenientes do FGTS e de cadernetas de poupança e títulos
assemelhados) foram desviados para outros setores de economia.
s
Lei n° 4.380/64, art. 1°.
38.
O total
de moradias populares flnanciadas pelo BNH é insuficiente e
voltado para atender basicamente a famílias que conseguem
pagar, por 25 anos seguidos, as prestações com correção
monetária. Trata-se, pois, de famílias cuja renda se situa
acima de três salários mínimos mensais.
39.
As famílias
de rendas mais baixas têm poucas oportunidades de acesso a
uma moradia condigna, embora em algumas cidades existam
programas em seu favor, operando basicamente através da oferta
de casas-embrião.
40.
Via de
regra, a população muito pobre, dada a insegurança de seus
rendimentos, prefere ter um lote onde possa construir sua
moradia, ao longo de vários anos, com suas próprias mãos e
freqüentemente em regime de mutirâo.
41.
Aqueles
que moram em áreas do poder público ou em bens de uso comum
do povo (praças, áreas destinadas a equipamentos sociais) têm,
em alguns casos, conseguido algum benefício, após muita luta e
sacrifício. Outros têm sido expulsos, sem consideração.
42.
O
Estado nâo exerce controle efetivo do desenvolvimento urbano, o
que proporcionou irregularidades e clandestinidade na construção
das cidades. O Estado tolera gigantesca desorganização no
tecido urbano, cuja correçâo exigirá elevadíssimos custos
pecuniários e sociais.
1.3.2.
As inicìativas p®pulares
43.
Diante do rápido crescimento das cidades, da ávida especulação
imobiliária e da lentidão e omissâo dos poderes públicos,
a população de baixa renda, cada vez mais numerosa, fica
relegada ao seu destino no que se refere à questão da moradia.
44.
A moradia
é uma necessidade de qualquer pessoa ou grupo familiar. Os
pobres encontraram as seguintes saídas para essa necessidade:
ocupação de áreas abandonadas ou, no momento, sem maior valor
imobiliário; morros, mangues, terrenos de marinha, aluguel de
habitações precárias e baratas, mais próximas do local de
trabalho; cortiços e habitações similares; compra de lotes
baratos nas periferias distantes para a construção de barraco
ou casa própria.
45.
A título
de exemplo, seguem algumas ilustrações que servem para
alertar sobre a situação de injustiça. Não podendo pagar
aluguel ou as prestações de conjuntos habitacionais dos
programas públicos, cerca de 30°° dos mais pobres no Sul
e 60% no Nordeste são levados a ocupar um terreno onde possam
erguer o seu barraco.
46.
Pressionados
pela dura realidade e, por vezes, levados por
interesses de terceiros, nâo claramente confessados, centenas
e até milhares de pessoas têm ocupado, de um dia para o outro,
ter
renos
na área urbana. Essa ocupação começa a ser denominada "invasão"1°.
47.
Poucos se dão conta de que a ocupação do solo pelas populações
migrantes, forçadas a sair do meio rural ou atraídas pelas
grandes cidades, é a única solução possível para o impasse
no qual se encontram. Casos lamentáveis de exploração do mais
pobre pelo menos pobre, ou por outros gananciosos, não reduzem
a dimensão; antes, aumentam a urgência do problema.
48.
Esta
situação se agrava de novo para muitas tamílias com o aumento
do custo dos aluguéis, cuja conseqüência já se vem
traduzindo num processo obscuro de proletarização da pequena
classe média.
49.
O espaço
urbano, especialmente nos grandes centros urbanos, é dividido e
apropriado desigualmente. Por exemplo, o total do solo urbano
ocupado pelas favelas do Rìo de Janeiro não chega a 10°°
do solo incluído no perímetro urbano, e nele vive 35°° da
população totall.
S0.
Em
1950, os moradores em favelas do Rio de Janeiro representavam 7%
da população total da cidade. De 1950 até 1980, a população
da cidade cres1° Em Salvador, onde 70% da população vlve
em moradias precárias ou em favelas, ou palafitas, invasões
sempre ocorrem; existem aí, atualmente, 150 invasões. No
Recife, nos últimos quatro anos, foram reallzadas pelo menos
60 invasões. (CEAS, n° 76, nov./dez. 81, Edito· rial p. 3.)
Il
Densidade populaclonal de algumas áreas do Rio (em habitantes
por hectares):
ceu
duas vezes enquanto a populaçâo favelada cresceu quase dez
vezes. Em 1950, de cada 14 habitantes do Rio, um era favelado;
hoje, há um favelado em cada três habitantes, num total de
1.800.000 a 2 milhões.
51.
A política de remoção de favelas não atingiu os objetivos
propostos. A populaçâo não se adaptou às soluções
oferecidas. Houve perda de renda familiar e novos encargos com
transporte e moradia. Em conseqüência, muitas das famílias
removidas para os conjuntos "passaram as chaves"de
suas casas, retornando à favela ou adquirindo lotes na
periferia da cidadelz.
Regìões
administrativas hab/ha Copacabana 351 Botafogo
261 Sta. Teresa 245 Rlo Comprldo 217 Ira)á 170 Favelas:
Jacarezinho
2.365 Roclnha 2.162 Parque União 1.865 Parada Lucas 1.657
Fonte:
IBASE, Rlo, citando a Secretaria Municipal do Plane)amento e
Coordenação Geral, )an/80.
12
Gustavo T. Heck, Gerente da Cartelra de Erradlcação e
Subabltação do BNH, Cadernos de Pastoral 3, Arquldiocese do R1o
de
Janelro, 1981. P. 39.
52.
Outras
cidades do Brasil mostram a mesma tendência de aumento
constante da proporção de população que sobrevive em
submoradiasla.
53.
É
importante não esquecer todo poder criativo, esforço, luta e
sofrimento que existem por trás dos dados estatísticos
apresentados.
54.
As
populações de baixa renda construíram verdadeiras cidades
dentro da metrópole, algumas ultrapassando os 100.000
habitantes.
55.
Não foram poucas as dìficuldades que essas populações
venceram. Construíram seus barracos em íngremes encostas, em
mangues e sobre palafitas, praticamente sem contar com nenhuma
infra-estrutura, carregando sobre os ombros ou na cabeça todo
o material de construçâo. Tal esforço exigiu, sem dúvida,
muita criatividade na solução dos dìfíceis problemas
encontrados.
56.
A construção
da própria moradia, feita muitas vezes no sistema de mutirâo,
somada à luta cotidiana pela sobrevivência, sâo fatores que
contribuem para a união das populações de baixa renda.
57.
Se as populações pobres, por conta própria e com tão poucos
recursos, conseguem realizar tanto, de que não serão capazes
se puderem contar com a colaboração e ajuda que reivindicam?
ia
Em Porto Alegre, 1976, a Arquldlocese estlmava em 200.000 0 número
de habitantes das favelas. (Operação Esperança, Porto Alegre,
1976, Pa9. 8.)
Fortaleza
tem 400.000 favelados em 217 favelas. [Alofslo Lorschelder,
Pwpriedade e Uso do ãolo Urbano, CNBB, 1981, p. 61 .)
58.
A
população diretamente interessada é o fator mais importante
para a soluçâo do problema. Ela é sujeito do seu destino e não
deve ser frustrada pelo não-atendimento de suas justas
expectativas, entre as quais está a garantia do solo que ocupa.
1
.4. Conseqüências sociais
59.
Na cidade, a injustiça e a Iniqüidade social revelam-se numa
visualização dramática, pela própria contìgüidade, no
mesmo espaço urbano, dos grandes contrastes sociais.
60.
A qualidade
de vida do meio urbano se arruína em ritmo alarmante. O
ambiente material é sacrificado pela escalada predatória da
especulação imobiliária e pela invasão das populações
carentes rechaçadas para as encostas e para as periferias.
61.
O
ambiente social se deteriora pela escalada do crime, da violência
e do tráfico de drogas. Aumentam as cargas conflituais
exacerbadas pelas frustrações coletivas. Um pequeno episódio
pode detonar crises com reações em cadeia imprevisíveis.
62.
Como
subprodutos sociais desta situação de iniqüidade, registra-se
a existência de vários milhões de menores abandonados nos
centros urbanos, sem mencionar os chamados órfãos diurnos,
crianças de tenra idade, fechadas no estreito espaço doméstico
durante as longas horas de ausência do pai e da mãe ocupados
no trabalho.
63.
A
permanência e, mais ainda, o agravamento da situação
descrita não interessam a nenhum dos setores da população
citadina. A todos cabe tomar consciência da gravldade
da sitüaçâo e empenhar-se em sua solução.
'
2° PARTE ELEMENTOS PARA UMA REFLEXÃO
ãTICO-TEOLÕGICA
2. 1 . Os critérios
64.
A partir da realidade vista na primeira parte deste documento,
apresentamos alguns critérios que a doutrina da Igreja nos
oferece para formar, sobre essa mesma realidade, um juízo ético.
2.1.1.
Uma visão cristâ da cidade
65.
A visão cristã da cidade tem sua primeira fon te de inspiração
na Bíblia. Para o cristão, a cidade é criação de Deus, mas,
também, criação dos homens. As descobertas e invenções do
homem urbano não escapam à ação da providência de Deus. As
formas de relacionamento humano, que a densidade populacional
da cidade produz, não são em si menos evangélicas do que os
relacionamentos normais na área rural.
66.
A cidade
construída sem Deus está fadada à ruína. É o que aparece,
segundo a Bíblia, na descrição da construção da Torre de
Babel. O salmista reforça a mesma idéia, ao afirmar: "Se
lahweh nâo
constrói
a casa, em vão labutam os seus construtores; se lahweh não
guarda a cidade, em vão vigiam os seus guardas" [SI
127,1). A última página da Bíblia apresenta a visão do
futuro pleno da humanidade. O Apocalipse descreve a nova Jerusalém,
a cidade santa, que é principalmente obra de Deus, mas
simboliza
também, no ìdeal, a obra dos homens, na construção da
cidade terrena como lugar de paz, convivência e fraternidade.
Por isso, a Igreja reza e, por vezes, chora sobre a cidade, cuja
felicidade vê ameaçada por dentro e por fora, como fez Jesus
sobre a cidade de Jerusalém; outras vezes, repete as suas denúncìas
sobre as cidades impenitentes, convidando os cidadãos a uma
participação consciente nesta obra comum.
67.
A
interdependência inconsciente e forçada, freqüente na cidade,
deve ser transformada em interdependência consciente entre
irmãos.
68.
Parafraseando
o que João Paulo II disse a respeito do trabalho na Encíclica
"Laborem Exercens" (n° 6), podemos afirmar que a
cidade deve ser para o homem e não o homem para a cidade.
Ouando 0 cristão afirma que a cidade deve ser para o homem,
significa que ela deve ser um espaço de convivência solidária
para todos os que nela moram, convivência resultante da convergência
de esforços para tornar a cidade mais humana.
69.
Em
certo sentido, a cidade constitui uma comunidade natural, pelo
menos em embrião. O trabalho é um serviço para quantos
habitam a cidade.
O
ideal seria que cada qual pudesse escolher sua profissão a fím
de trabalhar, por vocação, a serviço dos irmãos e da
coletividade, de modo que pudesse, ao mesmo tempo, desenvolver
os dons naturais e atender a uma necessidade real da sociedade.
Entretanto, a grande maioria é forçada a aceitar um emprego,
ou subemprego, para satisfazer as necessidades básicas.
2.1
.2. O direito de propriedade
70.
Deus
deu aos homens o uso dos bens da natureza para sua
realizaçâo humana. Todos têm, portanto, direito de acesso
ao uso desses bens. Condição normal para garantir tal
direito é o exercício de trabalho produtivo e transformador
desses bens, em favor do próprio indivíduo ou para o sustento
de sua família.
71.
A propriedade desses bens, principalmente do primeiro deles, que
é a terra, justifica-se na medida em que é necessária para
a realizaçâo dos valores humanos de ordem material, cultural,
moral e espiritual, especialmente para a garantia da liberdade.
72.
Na Bíblia, o conceito de propriedade é relativizado. No início,
encontramos tradições e povos nômades cujos bens eram móveis:
tendas, utensílios, rebanhos. Mais tarde, em Canaã, a terra
foi repartida por tribos, clãs e famílias. O israelita
apegou-se rapidamente à terra, bem de família. Ouando, por
pobreza ou extinção de uma família, a venda se tornava
necessára,
o parente o mais próximo tinha a= precedência na aquisição.
O vendedor, ao fim de algum tempo, podia recuperar sua terra.
Por fim, por ocasião
do jubileu, o bem de família voltava a seu primitivo
proprietáriol4.
73.
O ensínamento da Igreja sobre o direito de propriedade é bem
definido por Santo Tomás de Aquino, que o enuncia em dois princípios.
Primeiro:
Deus
destinou os bens a todos os homens. Segundo:
é
necessária a partilha tanto para a boa gestão dos bens como
para a paz, pois a falta de partilha é fonte de conflitosm.
Nesta perspectiva, vê-se que o primordial
no direito de propriedade é garantir a distribuição
dos bens e, portanto, da terra, para todos, e não sua concentração
nas mâos de alguns.
74.
Em anos recentes, esse
ensinamento foi
reiterado por Paulo VI que, na "Populorum Progressio",
afirma: "A terra toi dada a todos e não apenas aos ricos.
Ouer dizer que a propriedade privada não constìtui para ninguém um direito
incondicional
eabsoluto. Ninguém tem o direito de reservar para seu
uso exclusivo aquilo que é supérfluo, quando a outros falta o
necessário. Numa palavra, o direito de propriedade nunca deve
exercer-se em detrimento do bem comum, segundo a doutrina
tradicional dos Padres da Igreja e dos grandes teólogos"Ier
14 Cf. Dicionário Bfblico,
Mons. A. Vicent,
verbete 'Proprledade',
Ed.
Paulinas.
15 Cf. Summa Theologica II-II q. 66, aa. 2, 6: q. 134, a.
I. ad. 3.
le
PP n° 23.
24
25
75.
João
Paulo II, em sua enctclica "Laborem Exercens", afirma
enfaticamente, referindo-se ao direito de propriedade: "A
tradição cristã nunca defendeu tal direito como algo
absoluto e intocável; pelo contrário, sempre o entendeu no
contexto mais vasto do direito comum de todos a utilizarem os
bens da criação inteira: o direito à propriedade
privada está subordinado ao direito ao uso comum,
subordinado à destínação universal dos bens"17.
76.
Mais adiante, na mesma encíclica, João Paulo II,
referindo-se à propriedade dos meios de produçâo, ensina:
"Estes não podem ser possuídos contra o trabalho, como
não podem ser possuídos para possuir porque o único
título legítimo para sua posse - e isto tanto sob a forma de
propríedade privada, como sob a forma de propriedade pública
ou coletiva - é que eles sirvam ao trabalho, tornem possível
a realização do primeiro princípio desta ordem, que é a
destinação universal dos bens e o direito ao seu ,
uso
comum '18.
77.
É, portanto, totalmente alheio à ética cristã um sistema que
privilegia a minoria mais rica na partilha dos bens produzidos
pelo trabalho de todos, que deixa à maioria a pobreza, quando não
a miséria. Todos os habítantes da cidade devem, por seu
trabaIho,
contribuir para a prosperidade da mesma. Portanto, têm
direito aos bens e serviços por ela proporcionados.
17
LE n° 14, p. 51, Ed. Paullnas. ls
LE n° 14.
2.1
.3:. Direito de moradia
78.
A cidade é o centro organizado onde se tornam possíveis as
mais variadas atividades e se distribuem as mais diferentes
oportunidades para a realização das pessoas. Entre elas,
sempre se supõe um lar com moradia adequada.
79.
O
direito ao uso de parcela do solo urbano que garanta a moradia
adequada é uma das primeiras condições para a realização
de uma vida autenticamente humana. Portanto, no caso de muitas
ocupações lentas e até nas "invasões", o título
legítimo de propriedade, derivado e secundário, deve ser
julgado
diante do direito fundamental e primário de morar, decorrente
das necessidades vitais das pessoas humanas.
80.
O
direito à moradia, incluído entre os direìtos universais e
invioláveisls, necessários para levar uma vida verdadeiramente
humana2°, é requisito indispensável à sobrevivência da
famílía.
81.
O
acesso à moradia, por sua vez, está vinculado ao dìreito e
ao dever do trabalho. Ensina João Paulo II, resumindo
ensinamentos da Igreja através dos séculos, que "o
trabalho constitui o fundamento sobre o qual se edifica a vida
familiar que é um direito fundamental e uma vocação do
homem". "O trabalho, de alguma maneìra, é a condiçâo
que torna possível a fundação de uma família, uma vez que
19
Declaração Universal dos Direltos Humanos, 25. zo
Gg n° 26.
a
tamllla exige os meios de subslsténcia que o homem obtém
normalmente mediante o trabalho"n.
82.
O Papa,
na Exortação Apostólica "Familiaris Consortio" [de
22 de novembro de 1981), no número 46, diz: "A Igreja
defende aberta e fortemente os direitos da família contra as
intoleráveis usurpações da sociedade e do Estado", e
entre outros direitos cita "o direito de ter uma habitaçâo
digna a conduzir
" convenientemente a vida familiar .
83.
Ao
direito de moradia pode-se aplicar o princípio geral
enunciado pelo Concílio Vaticano II: "Deus destìnou a
terra com tudo o que ela contém para uso de todos os homens e
povos; de modo que os bens criados devem chegar eqüitativamente
às mãos de todos, segundo a justiça, secundada pela caridade
(...). De resto, todos têm o direito de ter uma parte de bens
suficientes para si e suas famílias (. . .). Aquele, porém,
que se encontrar em extrema necessidade, tem direito a tomar,
dos bens dos outros, o que necessita"z2.
84.
iendo
presente a lição de João Paulo II, segundo a qual sobre toda
propriedade particular pesa uma hipoteca social, concluímos que
o direito natural à moradia tem primazia sobre a lei positiva
que preside à apropriaçâo do solo. Apenas um título jurídico
sobre uma propriedade não pode ser um valor absoluto, acima
das necessidades humanas de pessoas qne não têm onde instalar
seu lar.
zl
LE n° 10. zz
C,S n° 69.
2.2.
Os obstáculos
85.
A realização dos objetivos apontados por essa reflexão
doutrinal encontra na realidade brasileira obstáculos específicos.
Uma referência a alguns desses obstáculos ajudará a definir
com maior clareza as linhas de ação pastoral da Igreja no
Brasil. 2.2.1. Obstáculos de
natureza sócio-cultural
86.
Alertamos aqui para alguns dos obstáculos de natureza sócio-cultural
que podem exasperar as relações entre os diversos grupos
sociais contíguos no mesmo espaço urbano.
87.
Estruturas
iníquas têm distribuído fnjustamente as riquezas criando,
de um lado, os que tudo têm e, de outro, os que são
marginalizados. Ideologias e sistemas, divorciados da justiça
e da fraternidade, são responsáveis por rotular as pessoas
dividindo-as em boas ou más, segundo seus interesses. A Igreja
não quer julgar pessoas, mas condenar estruturas que as
dividem. Apela também, constant mente, aos homens para que se
convertam.
88.
Verifica-se,
a seguir, que há na consciência de muitos a idéia nâo explícita
de que o pobre não tem possibilidade de adquirir sua terra e
seu châo. Esta idéia desmotiva o povo simples, vítima de
longo processo de marginalização cultural, a se informar sobre
os direitos que Ihe sâo garantidos muitas vezes por lei,
levando-o a acomodar-se a uma situação iníqua, não lutando
por seus direitos.
2.2.2.
Obstáculos de natureza sócio-econõmica 89. A
disparidade das condições econõmicas de
termina
a disparidade de condições de posse e uso do solo urbano. É
muito difícil para as populações carentes tornar realidade
seu direito à moradia, uma vez que vivem na permanente
insegurança das remoções, dos desmoronamentos e inundações,
do medo do desemprego, na angústia pelos aumentos de preços
e de aluguéis.
90.
No
entanto, a cidade vive graças aos serviços prestados por
essas populações, as quais, para sobreviver, assumem as
tarefas mais rudes, aos preços estipulados pelos que se
beneficiam de seus serviços. São elas que preparam a comida
consumida nos lares e restaurantes, nas lanchonetes. São elas
que lavam as roupas e fazem a limpeza urbana. São elas que
garantem a circulação dos transportes de cargas e de
passageiros. São elas que fornecem a força do trabalho para
todas as obras de construção. São elas que movem as máquinas
da indústria.
91.
Oualquer
consciência com um mínimo de sentimento cristão não poderia
deixar de experimentar uma sensação de remorso se tivesse
alguma idéia das condições de vida a que são reduzidos seus
irmãos mais indigentes, aos quais deve a própria
continuidade da normalidade da vida citadina.
92.
A situação
injusta de falta de moradia adequada para grande parte da
população é conseqüência da estrutura econõmica do país
que leva muitos a trabalhar por salários insuficientes,
mantendo os
privilégios
da minoria. E, muitas vezes, as poucas melhorias concedidas aos
pobres sâo feitas como benemerências e não como atendimento a
seus direitos.
93.
A
gravidade do problema traz à memória as palavras de Pio XI, na
encíclica Quadragesimo Anno (1931), que permanecem atuais:
"É coisa manifesta como nos nossos tempos não só se
amontoam riquezas, mas acumula-se um poder imenso e um
verdadeiro
despotismo econômico nas mãos de poucos, que as mais das vezes
não são senhores, mas simples depositários e
administradores de capitais alheios, com que negociam a seu
talante. Este despotismo torna-se intolerável naqueles que,
tendo nas suas mãos o dinheiro, sâo também senhores absolutos
do crédito e por isso dispõem do sangue de que vive toda a
economia, manipulam de tal maneira a alma da mesma, que não
pode respirar sem sua licença".
94.
"As
últimas conseqüências deste espírito individualista no campo
econômico são essas que vós, veneráveis Irmãos e amados
filhos, vedes e lamentais: a livre concorrência matou-se a si
própria; à liberdade do mercado sucedeu o predomínio econõmico;
à avidez do lucro seguiu-se a desenfreada ambição de predomínio;
toda a economia se tornou horrendamente dura, cruel,
atroz"23 (n° 105, 106, 109).
23
QA n°s 105, 106, 109.
2.2.3.
Obstáculos de natureza sócio-política
95.
Aqui tocamos no ponto mais sensível da questão. Uma larga
experiência socíal e pastoral nos leva à convicção de que
os obstáculos a uma solução humana dos problemas
relacionados com o uso e posse do solo urbano provém
radicalmente do nível político, ou seja, de uma opção política
contrária aos legítimos interesses do povo.
96.
Não se
trata, em última análise, de uma questão de carência de
recursos. Ao menos podemos atestar que esta é a consciência do
povo. Ele sabe de casos de corrupção, de malbaratamento de
dinheiros
públicos e da aplicação de recursos vultosos em projetos cuja
utilidade para melhorar suas condições de vida Ihe parece
remota em relaçâo às suas necessidades prementes. Os recursos
existem ou são obtidos: a questão é saber segundo que modelos
e que políticas serão aplicados, vìsando a beneficiar que
camadas da população. Vale dizer que está em jogo
fundamentalmente uma questão de decisão política. O fato se
evidencia mais ainda nos períodos eleitorais. São períodos
que coincidem com a aceleração de obras assistenciais e
emergenciais nas favelas, mocambos e alagados. Obras obviamente
úteis, mas que não resolvem o problema.
97.
A experiência
demonstra que nenhum mal se prolonga indefinidamente,
quando afeta indistintamente a todos, mesmo se sua erradicação
for difícil. Se um mal social subsiste por longos anos é
porque existem os que estão nele interessados, ou pelo me
nos
os que não têm interesse em removê-lo, porque não Ihes diz
respeito. Isto remete ao problema do próprio modelo ou
sistema que gera ou apóia essas situações injustas.
98.
Garantir
o direito de moradia decente a todos é um dos fatores que
contribuem para libertá-los de dependências político-partidárias
nos períodos eleitorais. Passados estes, as populações
carentes são relegadas ao mesmo abandono de sempre até a volta
da mesma retórica demagógica nos períodos subseqüentes.
2.2.4.
Obstáculos de natureza sócio-jurídica
99.
Uma reforma urbana que leve a cidade à condição de um espaço
de convivência solidária esbarra em diversos obstáculos jurídicos,
que oferecem maior ou menor resistência, decorrenies das
diversas formas de destinação do solo urbano.
100.
De
fato, nossa legislação que regula a posse e uso do solo
urbano revela uma profunda inadequação à realidade atual,
inadequaçâo baseada numa superada concepçâo do direito de
propriedade, concepção privatista de um direìto absoluto
sem nenhuma responsabilidade social. É a concepçâo de nosso
Código Civil, promulgado em 1916, quando o Brasil não chegava
a ter 5 milhões de pessoas como população urbana, mas concepção
que predomina ainda nas decisões de nossa Magistratura, mesmo
quando a própria Constituiçâo de 1969 confirmou o princípio
da funçâo social da propriedade24. Tal princípio,
entretanto, que de certo modo foi explicitado na elaboraçâo de
um Estatuto da Terra Rural, paradoxalmente, num país que se
urbaniza rapidamente, não levou ainda à promulgação de um
Estatuto do Solo Urbano, que consta ser objeto de um projeto do
Governo.
101
. Essa
concepção privatista do direito de propriedade garante ao
proprietário, como direito absoluto, a faculdade de usar,
gozar e dispor do solo urbano, visando exclusivamente à
defesa dos próprios interesses. Essa concepção, de certo
modo, legitima a atividade especulativa, permite socializar os
custos urbanos e privatizar os benefícios. A apropriação
do solo urbano tem essa característica agravante em relação
à apropriação do solo rural: ela pode gerar rapidamente
grandes benefícios, mesmo nâo produzindo nada, pelo valor
que Ihe conferem a mera estocagem ou as obras de infra-estrutura
construídas com os impostos de todos os contribuintes.
102.
É óbvio,
entretanto, que o problema urbano não pode ser enfrentado
isoladamente. Nâo basta pretender aliviar os efeitos da
urbanização acelerada. É necessário ir às suas causas
remotas, muitas das quais se situam no campo, fora do âmbito da
cidade. Foi o que procurou fazer a Igreja do Brasil, na
Assembléia
Geral da CNBB, de 1980, com seu documento, "Igreja e
Problemas da Terra".
24
Art. 160, III.
34
103.
É a
partir da reflexão doutrinal elaborada nesta ségunda parte que
a ação pastoral da Igreja no Brasil se propõe a despertar a
consciência de todos sobre as situações de injustiça que
dominam a formação e a organização de nossas cidadés.
104.
É a
consciência cristã que obriga a denunciar o que se pode
chamar de grande pecado social da cidade: o mau uso do solo
urbano.
105.
Não
basta, entretanto, denunciar a realidade. É mister transformá-la
à luz dos princíplos e normas do Evangelho. Para perceber a
urgência desta transformação, que exige a mudança de
mentalidade, ajuda situar-se no lugar social que permìte ver
meIhor
a condição estrutural de injustiça: o lugar das populações
que mais sofrem com ela.
106.
Foi o
que fez Joâo Paulo II nas suas visitas a essas populações,
quando de sua passagem pelo Brasil. Recordemos suas palavras aos
moradores nos alagados da Bahia:
107.
"Vejam:
só o amor conta - não é demais repetir isso - só o amor
constrói. Vocês têm de lutar pela vida, fazer tudo para
melhorar as próprias condições em que vivem, é um dever
sagrado, porque essa é também a vontade de Deus. Não digam
que é vontade de Deus que vocês fiquem numa situaçáo de
pobreza, doença, má habitação, que contraria muitas vezes
a sua dignidade de pessoas humanas. Não digam: 'É Deus quem
quer'. Sei que isso não depende só de vocês. Não ignoro
que muita coisa deverá
35
ser
feita por outros para acabar com as más condições que
afligem vocês ou para melhorá-las. Mas vocês é que têm de
ser sempre os primeìros no tornar melhor a própria vida em
todos os aspectos"25.
3a
PARTE
PISTAS
INSPIRADORAS DE UMA AÇÃO CONCRETA 108. Esta terceira parte
procura ser uma chama
da
para a ação. Recolhe experiências significativas e sugere
pistas de ação pastoral, à luz dos critérios propostos e de
uma nova consciência da responsabilidade da Igreja em face da
realidade social do solo. 3.1.
Diretrizes para a ação pastoral
109.
A evangelizaçâo não seria completa se não tomasse em conta a
situação real do homem em sua vida pessoal e social, que
interpela o Evangelho e que é por ele interpelado2e, pois o
Homem é o pr1meiro e fundamental caminho da Igreja2'.
110.
A Igreja
tem consciência de que a ação social humanizadora é parte
integrante de sua missão de evangelizar2s.
span lang="PT" style="mso-ansi-language: PT">28
Cf. EN n° 29 e João Paulo II. audl8ncia de 16/7/80. 27
Cf. RH n° 14.
zs
Cf. Puebla, 12ã4.
111.
A humanização da cidade cria condições propícias para sua
evangelização. Uma cidade humanizada é fundamentalmente
aquela na qual o uso do solo urbano e de outros recursos básicos
obedece às exigências da justiça e da eqüidade.
112.
Em coerência
com a opção preferencial pelos pobres, assumida em Puebla, a
Igreja se propõe a conduzir a ação evangelizadora, caminhando
e lutando ao lado deles, oferecendo-Ihes seu apoio e as motivações
da fé, sem os substituir jamais nas iniciativas e na condução
de sua ação libertadora. Essa ação evangelizadora se
estende, igualmente, a pessoas que exercem parcelas do poder
decisório.
113.
Não
deve haver ilusâo sobre a urgência do empenho de todos na
humanização da cidade. A aceleração do processo de
urbanização está transferindo para a cidade uma carga
conflitual, que poderá assumir as dimensões de uma confrontaçâo
entre os muitos que têm pouco a perder e os poucos que têm
muito a perder.
3.2.
Reformas necessárias
114.
Existem reformas socialmente necessárias e juridicamente possíveis,
sem as quais nâo se poderá superar a grave situaçâo
conflitual inserida na própria realidade social marcada pela
injustiça.
115.
As
reformas são juridicamente possíveis, a partir do momento em
que se tem consciência de que são socialmente necessárias.
Recusar-se ao tra
balho
por essas reformas, capazes de conduzir a uma mudança global da
sociedade, significa, na prática, provocar a radìcalização
do processo de mudança.
116.
A implementação
das reformas necessárias não deve induzir à ilusão de que
estas sejam suficientes. Para eliminar a situação de injustiça
estrutural, importa visar a novos modelos de organização da
cidade,
o que exige, por sua vez, mudança do modelo sócio-político-econômico
vigente.
117.
Há,
entretanto, que recorrer a instrumentos jurídicos suscetíveis
de serem aplicados a curto prazo dentro de uma política humana
de urbanização.
118.
Impõem-se,
portanto, reformas na legislação, com vistas a garantir a
justa distribuição social do solo urbano, cuja utilização não
pode ser deixada aos caprichos do mercado.
119.
Visando
a uma total reformulação do pensamento tradicional relativo
aos grandes projetos de renovação urbana, cujo valor de
investimentos os torna inviáveis, promovam-se medidas a curto
prazo, como por exemplo:
120.
-
regularização de áreas de ocupação, mediante projetos que
não impliquem a obrigação de o morador pagar o chão que por
direito já é seu e que, às vezes, foi até por ele criado;
121.
-
formas alternativas de urbanização, adequada às característìcas
físicas e sociais e aos recursos financeiros disponíveis em
cada área;
122.
-
incentivos a soluções que adotem a "autoconstrução"
ou o mutirão, sem prejuízo da qualidade da moradia;
123.
- formas de subsidìar a moradia às populações de escassíssima
renda;
124.
-
loteamentos populares dotados de infra-estrutura indispensável,
onde o povo possa construir suas casas;
125.
-
alterações no código tributário que garantam a destinaçâo
social do solo urbano;
12G.
- apoio
às associações comunitárìas urbanas que organizam e
executam projetos de urbanização e/ou de saneamento.
127.
No que
se refere à preservaçâo do solo urbano, é necessário
incentivar uma política que atenda às seguintes diretrizes:
128.
- condicionamento
da propriedade a sua função social, de maneira a criar
possibilidades concretas de acesso e garantia do direito de
morar a todas as camadas da população;
129.
-
repressão ao abuso do poder econõmico no mercado imobiliário,
de modo a coibir a supervalorização fundiária,
especialmente das áreas ocupadas pela população de baixa
renda;
130.
-
disciplina permanente do controle do uso do solo, para evitar a
ociosidade de terrenos edificáveis e a especulação imobiliária.
3.3.
Açâo da Igreja
'
3.3.1.
Ação Pastoral em curso .
131.
A
Igreja no Brasil vem acompanhando, em nossas cidades, com
preocupação e grande esforço evangelizador, o processo de
urbanização desordenada. Por sua presença no seio das
populações pobres, anunciando o Evangelho, catequizando e
celebrando a fé, a Igreja tomou consciéncia dos problemas
ligados ao solo urbano.
132.
Conseqüéncia
dessa ação evangelizadora é o processo de conscientização
do povo no que se refere aos seus direitos fundamentais,
especialmente o direito ao uso do solo urbano.
133.
Esse
trabalho de evangelização compromete sempre mais as Igrejas
de nossas cidades. A pastoral de periferia, bem como a
pastoral das favelas, dos alagados e cortiços, é cada vez
mais assumida entre as prioridades dos planos diocesanos de
pastoral. Contribuiu para tanto a visita do Papa à favela do
Vidigal, no Rio de Janeiro, e aos Alagados, em Salvador.
134.
Nas
Comunidades Eclesiais de Base, o povo encontra o espaço de
vida cristã renovada, que o leva a acreditar em sua dignidade e
vocação, e a participar, livre e responsavelmente, em comunhão
fraterna, à luz da Palavra de Deus, na construção de um novo
tipo de convivéncia mais humana e mais fraterna.
135.
Consciente,
cada vez mais, da capacidade do povo em resolver seus próprios
problemas, a Igreja incentiva-o a participar de todas as decisões
que Ihe dizem respeito, apoiando as diversas formas de organização
e mobilização populares, tais como os movimentos de defesa
dos favelados.
136.
Nesse
sentido, promove realização de encontros, seminários e
congressos, em Regionais e Dioceses, com publicações de subsídios
e conclusões sobre o assunto, bem como encontros de
representantes
das classes dirigentes, em que se questionam e debatem
problemas de moradia popular.
137.
Desenvolve
estudos e pesquisas sobre a cultura dos favelados e do morador
de cortiço, sobre sua vida e aspirações.
138.
Através
de comissões jurídicas e cartilhas de morador, ou esforça-se
por difundir e explicar a legislação vigente, com vistas à
conscientização dos direitos de morar e uso do solo.
139.
Procura
intervir, junto ao Poder Executivo, objetivando desapropriações
por interesse social, em apoio às reivindicações populares.
140.
Desenvolve
gestões junto a órgãos públicos, para solução de situações
de conflito ligadas ao solo urbano.
141.
Constitui
grupos de trabalho para elaborar projetos - originais e
substitutivos - a serem encaminhados ao Poder Público.
142.
Mediante
serviços jurídicos, colocados à disposiçáo das populações
carentes, encaminha soluções de conflitos, seja através de
negociações junto ao setor privado, seja através do Poder
Judiciário.
143.
Em coerência
com essas iniciativas, algumas Dioceses promovem a remissão
de foro em terras sob regime de enfiteuse, ocupadas por populações
de baixa renda. Outras promovem estudos para melhor utilizar
suas propriedades para fins pastorais.
144.
Com a
preocupação de atingir os problemas em suas causas, desenvolve
esforços pela fixação do homem no campo, apoiando iniciativas
dos trabalhadores rurais que reivindicam uma política agrária
voltada para a produção abundante de alimentos e por uma
nova ordem fundiária, que ponha freio ao êxodo rural e à
conseqüente ìnchação das cidades.
145.
Instituições
da Igreja se ernpenham em colaborar na solução do
problema:
-
A Cáritas Brasileira tornou possível a construção
de casas para populações em situação de emergência, sob
forma de mutirão, com aproveitamento de recursos naturais e
fabricação local de material de construção. Muitas
Dioceses têm colaborado para esse fim com a doação de terras
de sua propriedade.
-
Comissões de Justiça e Paz, Comissões de Pastoral da Terra,
Centros de Defesa de Direitos Humanos, serviços de assistência
jurídica e outras formas de ação empenham-se em ações de
defesa do direito ao solo e à moradia condigna para as populações
necessitadas.
-
Também diversas Universidades Católlcas voltam sua atenção
para os interesses dos favelados.
3.3.2.
Algumas propostas de ação
146.
- Não obstante esta ação realizada, a Igreja reconhece que,
em maior ou menor grau, falta: 147. - estender as
atividades acima mencio
nadas
a cidades e a áreas em que se fazem necessárias;
148.
-
comprometer a Igreja toda, em seus vários níveis e movimentos
apostólicos, com a solução do problema urbano. Importa,
para tanto, inculcar o conhecimento da cidade naquilo que ela
tem de mais trágico e iníquo - o pecado social das favelas -
as quais precisam ser conhecidas por todos os cristãos no
sentido de uma sensìbilização e conversão humanas à
verdadeira justiça e fraternidade;
149.
-
difundir o conceito de "hipoteca social" que pesa
sobre toda a propriedade e da primazia do direito natural à
moradia sobre a lei positiva que preside à apropriação
privada do solo;
'Í50.
- Ìutar
para que se corrija a imagem negativa que pesa como um estigma
sobre as populações necessitadas, confundindo-se o favelado
com o criminoso ou o marginal;
151.
-
incentivar a criaçâo de assessorias que viabilizam as
iniciativas propostas; 152. - tornar conhecidos e aplìcados
os instru
mentos
jurídicos que favoreçam as classes pobres;
153.
-
denunciar a mistificação que confunde a luta do pobre pela
justa posse do solo com a subversão;
154.
- incentivar
a coordenação e animação das pequenas comunidades cristâs
ou grupos existentes nas favelas, mediante encontros regulares
de seus líderes, realização de semanas de comunidade ou
pequenos congressos, com vistas à formação de uma consciência
crítica e construtiva frente aos problemas das mesmas populações
faveladas;
155.
- fazer
perceber que o problema da talta de condições para adquirir
terreno e moradia está intimamente articulado com os salários
insuficientes, com o subemprego e o desemprego;
156.
- no
campo do próprio testemunho, a Igreja reconhece que há
ainda muito caminho a percorrer.
v.vm.uasw
157. Melhorar
as condições de vida na cidade
não
é apenas uma questão de beneficência, de caridade ou de justiça,
mas é também uma questão de sobrevivência para todos.
158.
- Nâo basta que nos preocupemos com o problema do solo urbano.
Para
superar a situação de injustiça, para remir a cidade do estado
de pecado social, é indispensável despertar, por todos os meios,
a consciência de todos os b.~asileiros sobre a gravidade do
problema.
159.
- Fazemos
assim um apelo aos católicos, presentes nas esferas
governamentais e em todos os setores da vida nacional, para que
tomem consciêncía desta grave situação e para que se empenhem,
através de suas iniciativas e influência, em colaborar
efetivamente com aqueles que, sofrendo mais com o problema, devem
ser os agentes primeiros de sua solução.
Apelamos,
também, a todos os cristãos e pessoas de boa vontade a fim de
que, pelo seu esforço, a cidade não seja mais o palco de tanta
miséria e sofrimento, mas o lugar privilegiado para o encontro
de pessoas e famílias na paz, na justiça e na fraternidade.
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