Migrante
Cidadão
Edite
Faial
O
conceito de cidadão vem mudando através das diversas fases da história
do mundo ocidental. Muito nos impressiona a resposta do Corifeu à
rainha Atossa, esposa de Dano, que lhe pergunta quem comanda o exército:
“Eles não são escravos nem súditos de nenhum mortal (Os Persas, Ésquilo)”.
Aquele grupo de guerreiros representa uma coletividade, porque não
havia mais tiranos em Atenas. Que um artista como Ésquilo, naquela época,
tenha essa consciência quando ao seu redor, no resto do mundo
conhecido, só havia lugar para nomes individuais e poderosos senhores,
desperta em nós um sentimento de admiração e reverência ante o grau
de civilização atingido pelos gregos em tempos tão distantes.
Substituía-se a tirania pela democracia.
No
entanto, em Atenas o número de escravos era significativo, e aos
estrangeiros ainda não se concedia o direito de cidadania. Excluíam-se
porque não podiam pedir proteção e invocar os deuses da cidade.
Deuses exclusivos que não os admitiam em seus templos, já que preces e
dádivas só podiam vir dos que tinham participação no culto da
cidade, de onde advinham todos os direitos civis e políticos.
O
estrangeiro era o inimigo a quem se devia odiar. Daí ser punido com a
morte ao atrever-se entrar no recinto sagrado. O próprio sacerdote
protegia-se para que seus olhos não avistassem o rosto de alguma pessoa
estranha enquanto presidia qualquer cerimônia, porque se tal
acontecesse poria em risco o futuro da cidade. Tudo apresentava certa
continuidade se nos lembrarmos que o fogo sagrado de cada família, em
tempos ainda mais remotos, tanto em Atenas quanto em Roma, nunca era
colocado fora de casa nem perto da porta, para evitar que um estranho o
visse. Protegia-se o fogo sagrado do olhar de alguém que não pertencia
à mesma família.
Não
era com o passar do tempo e o crescimento da população que se formava
uma cidade, entre os antigos. Fundava-se a cidade em um só dia, após a
difícil tarefa de certas famílias, fratrarias e tribos terem
concordado em unir-se. Mas havia todo o cuidado para manter o estranho,
o estrangeiro, longe de suas portae. Conhecia-se o seu fundador, e
Atenas e Roma festejavam o dia de sua fundação.
Pelo
que nos dizem os historiadores e cronistas e, principalmente, pelo que
percebemos e intuímos pelas obras dos poetas e dramaturgos da
antiguidade greco-latina, o cidadão tinha seus direitos e deveres
perfeitamente determinados e havia profunda repulsa ao estrangeiro,
pois, ao exclui-lo, protegiam-se as cerimônias sagradas.
Se
um estrangeiro cometesse algum crime, as leis da cidade não existiam
para ele. Era tratado como escravo e punido sem processo. Além disso,
em Roma e Atenas, não podia ter propriedades e não tinha o casamento
reconhecido. E, na verdade, só depois de certo tempo pôde exercer o
comércio. Talvez o escravo, por vezes, se sentisse mais à vontade nas
sociedades de então, pois, como membro de uma família, ligava-se à
cidade e, consequentemente, tinha a proteção dos deuses.
Tanto
em Roma como em Atenas, era necessário que o estrangeiro se tornasse
cliente de um cidadão para poder usufruir de alguns benefícios e proteção
das leis. E a libertação dos clientes foi lenta como outras revoluções
no âmago das sociedades humanas. Afinal, não podemos deixar de citar
as lutas entre plebeus e patrícios. A cidade pertencia aos que tinham
antepassados, aos patrícios, que durante muito tempo viviam no monte
Palatino, e os plebeus ficavam na encosta do monte Capitolino, porque
eram considerados estrangeiros e não tinham permissão para entrar na
cidade. A plebe longe dos tribuni plebis figuras sacrossantas que surgem
exatamente para defendê-la e conter a ousadia do patriciado vive à
margem.
Mas
os poetas gregos começaram a andar de cidade em cidade. Surge uma forma
de expressão nova, pouco ligada à religião. Tinha suas raízes na
arte, fazia uso da imaginação. Lentamente a revolução intelectual
foi criando o que passou a ser para o mundo ocidental, ainda hoje, o
modelo insuperável a imitar. Aparece a filosofia, que desperta o homem
para a reflexão, e, como todos nós sabemos, nem um conquistador como
Alexandre subestimou o espírito grego.
Emigra-se
com mais frequência, e o homem ocidental já não teme o exílio como
antes. Deixa a sua cidade, busca outro lugar, onde leis, instituições,
direitos e segurança o favoreçam.
Então,
o conceito de cidadão passa a ter implicações bem mais complexas do
que as dos séculos anteriores. As muralhas de uma cidade não
determinam mais os limites dos homens. Quando William Shakespeare, em Júlio
César, uma das suas peças históricas, apresenta entre os seus
personagens (por que não chamá-los assim) esses homens livres que
interrogam Brutus, Cássio e Marco Antônio, no Fórum Romano, pouco
depois do assassinato de Júlio César (100-44 a.C.), ocorre-nos a
pergunta: donde vinham precisamente todos esses cidadãos?
Afinal,
é oportuno lembrar que, já na era cristã, Trajano (53-117 d.C.)
nasceu perto de Sevilha, vinha de uma família espanhola, tinha
possivelmente algum sangue italiano; e seu sucessor, Adriano (76-138
d.C.), também era da mesma região. Ambos são considerados, por
motivos diversos, proeminentes imperadores romanos.
Mas
mesmo que alguns daqueles cidadãos romanos, em 44 a.C., e os dois
eminentes imperadores não tenham nascido em Roma, o fascínio da cidade
permanece inalterado se atentos subirmos as suas colinas e a
reconstruirmos com a força e plasticidade da nossa imaginação.
Assim,
não nos parece raro que entre os poemas e hinos que lembram a fundação
de uma cidade antiga, nada se compara ao épico de Virgílio (70-19
a.C.), a Eneida, cujo herói deixa a cidade de Tróia em chamas e
seguindo o comando de Heitor — que em sonho fala-lhe da missão de
fundar uma grande cidade além-mar inicia longa viagem, levando consigo
as pequenas imagens dos deuses da cidade destruída pelos gregos. O
fantasma da esposa perdida na confusão da cidade em chamas indica-lhe a
rota. Enéias devia ir para uma terra a oeste, onde o rio Tibre fluía.
Ao longo da viagem, as aventuras e dificuldades foram muitas até chegar
perto de Cartago, onde naufragou. Lá, contou sua história à rainha
Dido. Apaixonaram-se, e Enéias, por algum tempo, esqueceu-se de sua
missão. Mas Mercúrio lembrou-lhe que Cartago não era Roma. Deixou
Dido, que, inconsolável, suicidou-se, e continuou a viagem até chegar,
finalmente, à foz do Tibre, onde veio a fundar Lavinio, cidade fonte de
Roma.
Virgílio
apresenta o troiano não somente como o guerreiro heróico, mas também
como alguém que obedece ao comando divino, às vozes dos seus mortos, a
quem sacrifica os seus impulsos naturais.
Recordamos,
também, que, ao trabalhar de forma magistral a lenda de Enéias, o
troiano, Virgílio inclui-se entre os escritores patriotas que, com a
expansão de Roma, começaram a criar uma tradição mítica que
associaria Roma a tempos bem mais remotos e, de certa forma,
demonstraria certo desdém pela superioridade grega.
Com
precisão é impossível dizer-se quando as muitas cidades da Grécia e
da Itália “desapareceram” ante o predomínio da cidade Romana.
Sabe-se, no entanto, que Roma, ao ampliar o seu Império, leva os homens
a cobiçar apenas o título de cidadão romano, que, com o passar do
tempo, é concedido a um número significativo de homens livres.
O
Cristianismo, surgindo numa época em que a sociedade não judaica não
é mais propriamente governada pela religião, traz surpreendentes
novidades. Não é, para espanto de muitos — incluam-se aí também os
primeiros discípulos — uma religião nacional, de uma cidade ou de
uma raça. Jesus Cristo chama a humanidade inteira. Como admitir que o
Deus dos judeus pudesse ser adorado por estrangeiros? Afinal, tal qual
os romanos e os gregos de outros tempos, os judeus criam que cada raça
tinha o seu deus. Mas, para o Cristianismo, o estrangeiro não profanava
mais o templo e proibia-se odiar outros seres humanos. Para São Paulo
“não há nem gentio, nem judeu; nem circuncidados, nem incircuncisos;
nem bárbaros, nem cita..." (Cl 3,11). Todo o gênero humano está disposto na
unidade.
Jesus
escandalizava os judeus ao pôr em segundo plano o patriotismo tribal e
os laços de família, fortes características do povo de Israel.
“Estando ele ainda a falar ao povo, eis que sua Mãe e seus irmãos se
achavam fora e desejavam falar-lhe. Alguém disse-lhe:
Tua
mãe e teus irmãos estão ali fora e desejam falar-te. Ele, porém,
respondendo ao que lhe falava, disse-lhe: Quem é minha mãe e quem são
os meus irmãos? E, estendendo a mão para seus discípulos, disse: eis
minha mãe e meus irmãos. Porque todo aquele que fizer a vontade de meu
Pai, que está nos céus, esse é meu irmão e irmã e mãe” (Mt
12,46-50). O amor universal de Deus por toda a humanidade e a
fraternidade estão claramente explícitos na resposta de Jesus.
O
Cristianismo traz uma nova forma de respeito pelo ser humano e os
ensinamentos de Jesus, preservados no Novo Testamento, condenam a
subjugação do homem pelo homem. Nenhuma outra revolução posterior
traz no seu âmago tamanho humanismo.
Não
é nossa intenção continuarmos seguindo, passo a passo, a evolução
da liberdade e mobilidade do homem, no mundo ocidental, a partir do
advento do Cristianismo até os nossos dias. Teríamos de nos referir,
no mínimo, ao papel da Igreja Católica reconhecidamente relevante para
a preservação da civilização ocidental ~, à Idade Média, ao
Renascimento e à Reforma.
Por
isso, permita-nos o leitor dar um salto na História e perguntar: por
que há pouco mais de duzentos anos foi necessário pensar-se em
“liberdade, igualdade, fraternidade” no pais (com exceção da Rússia)
mais populoso da Europa, na época? Ainda hoje o
petit Larousse refere-se à Revolução sem dizer qual, e entre
as definições da palavra citoyen vem a de ter substituído monsieur.
A
revolução mais importante dos tempos modernos trouxe, entre outras
grandes mudanças que não nos compete mencionar aqui, a Declaração
dos Direitos do Homem e do Cidadão, que, podendo ser aplicada a
qualquer tipo de governo, republicano ou monárquico, passou a ser a
“Carta Magna”, o guia maior de todos os movimentos que se propõem a
defender o ser humano de qualquer abuso ou injustiça.
Cremos,
no entanto, que nada mais completo, abrangente, do que os ensinamentos
do jovem galileu, há quase dois mil anos. O que Jesus diz marca, de
fato, uma nova fase na vida moral e espiritual da raça humana. A insistência
de Jesus na existência de um Deus universal, na implícita fraternidade
de todos os homens, no que há de sagrado em cada um de nós como
templos vivos de Deus produz efeitos subsequentes profundos na vida
social e política da humanidade.
Entretanto,
o século XX trouxe-nos espantosas demonstrações de escárnio pelo
diferente, pelo estrangeiro. E mesmo antes da grande perseguição aos
judeus desencadeada pelo Nacional Socialismo alemão com o apoio, também,
de boa parte da população dos países conquistados durante a Segunda
Guerra, assistimos ao genocídio do povo armênio — a divulgação do
martírio dos cristãos armênios ainda não atingiu a dimensão
desejada — pelos turcos, no início do século. Hoje, o governo turco
ocupa-se em destruir vestígios da permanência dos armênios em
determinadas regiões da Turquia. As ruínas de antigas igrejas cristãs
armênias desaparecem ante a força e eficácia das escavadoras.
Nestas
últimas décadas do pós-guerra, o repúdio manifestado, das mais
diversas formas, ao anti-semitismo pode parecer-nos suficiente para pear
ódios contra raças ou credos. Mas não é.
Basta-nos
lançar um olhar por certos países — limitamo-nos, uma vez mais, ao
mundo ocidental — para percebermos que o estrangeiro e o migrante
continuam em perigo. Na França, surgiu a Frente Nacional do senhor Le
Pen, que vai aumentando o número de votos a cada eleição, e na
Alemanha os movimentos neonazistas são bem conhecidos. Um bom número
de alemães discrimina os imigrantes turcos, outros tantos franceses
hostilizam os imigrantes das ex-colônias, que chamam indiferentemente
de “árabes”. E, nos Estados Unidos, os hispânicos unem-se para não
padecer ante a arrogância dos que se consideram legítimos descendentes
dos primeiros colonizadores e, consequentemente, “donos” do País.
Soubemos,
no ano passado, que um grupo de neonazistas britânicos tomou conta de
um vilarejo abandonado no sul da Espanha para treinar uma comunidade
nacionalista branca. Uma comunidade de “soldados voluntários”. E,
pasmem, os relatórios mostram que uma proporção significativa do
dinheiro para a construção e outros trabalhos veio de uma instituição
de caridade com sede em Londres, a St. Michael the Archangel, que
gerencia um grupo de lojas de artigos usados (The Guardian Weekly, 25 de
novembro a 1º de dezembro). Além disso, no mesmo jornal, em longo
artigo, Linda Grant refere-se à Suíça, onde é visível o aumento de
forças nacionalistas que se opõem à imigração e constata-se que o número
de eleitores que apóia medidas extremistas em relação aos
estrangeiros é cada vez maior.
Ainda
na Europa, vale citar a Itália do norte, que vê nos italianos do sul
cidadãos de segunda categoria e lembrar, também, que a idéia
separatista persiste entre os seguidores da Lega Nord.
Acontecimentos,
não tão surpreendentes assim, vêm demonstrando a persistência em
discriminar, afastar, o estrangeiro, o migrante. Nada mais significativo
do que a formação, no início do mês de fevereiro de 2000, de um
governo austríaco que inclui um partido de extrema direita. Sabe-se
muito bem que o Senhor Haider, em diversas ocasiões teceu elogios a
Hitler, qualificou os veteranos das SS de “homens honrados” e não
esconde o seu mal-estar ante pessoas de outros credos, raças, nações
que pretendem estabelecer-se na Áustria. É abertamente contra o
migrante, o estrangeiro.
Mas
há sinais de luz. Sim, há movimentos, organizações e pessoas
extraordinárias que defendem o migrante. Constatarmos, que pelo mundo
iodo, homens e mulheres destemidos, conscientes e profundamente humanos
zelam pelos direitos fundamentais do estrangeiro, do refugiado, do
migrante perseguido, do migrante pobre, do migrante indocumentado, do
migrante de qualquer credo ou raça — o migrante cidadão — dá-nos
certo alento e confiança no destino da raça humana.
Oportuna,
pois, a citação de um pequeno trecho de um artigo do Cardeal Martini,
publicado na primeira página do Corriere della Sera em maio de 1998. O
Cardeal de Milão refere-se à criação da moeda única na Europa sem
deixar de ver os riscos da hegemonia das finanças, do predomínio dos
aspetos econômico-mercantis e da defesa” do continente contra a
imigração: la moneta unica non è esente da rischi. C’è il rischio
dell’egemonia della finanza e del predominio degli aspetti
economico-mercantilistici. C’é il rischio dell’innalzanzento di
nuovi muri in Europa, rivolti soprattutto all’Est, per proleggere le
economie più forti e difendersi dalle immigrazioni.
Bibliografia
Fustel
de Coulanges, A Cidade Antiga São Paulo: Editora das Américas, 1961.
Junito
de Souza Brandão, Teatro Grego: Tragédia e Comédia Petrópolis
Editora Vozes, 1984.
William
Shakespeare, Julius Caesar Londres: Spring Books, 1966).
Virgílio,
Eneida, tradução de Tassilo Orpheu Spalding. São Paulo: Editora
Cultrix, 1999.
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