Migração
e Políticas Públicas
Helio
Bicudo
João
XXIII, na encíclica Pacem in Terris ao tratar do que chamava de
solidariedade dinâmica, indaga qual o panorama que nos oferece a época
atual, em que as relações internacionais devem desenvolver-se em uma
dinâmica da solidariedade, mediante variadas formas de colaboração:
econômica, social, política, cultural, sanitária. E adverte que o
poder público não foi instituído para encerrar os súditos dentro das
fronteiras nacionais, mas para tutelar, antes de tudo, o bem-estar
nacional, mesmo porque é preciso evitar cuidadosamente que o interesse
de um grupo de nações venha a danificar outras, em vez de estender a
estas os seus reflexos positivos.
O bem comum universal exige, ademais, que
as nações fomentem toda espécie de intercâmbio, quer entre seus
cidadãos, quer entre os respectivos organismos intermediários. Não
devem, como conclui a encíclica, as peculiaridades de um grupo étnico
transformar-se em compartimentos estanques de seres humanos impossibilitados
de relacionar-se com pessoas pertencentes a outros grupos étnicos.
Deve-se, portanto, reconhecer o direito e o dever de viver em comunhão
uns com os outros.
Por
ocasião do 800 aniversário da Rerum Novarum, Paulo VI, na encíclica
Octogésima Adveniens, referindo-se especificamente ao direito à emigração,
escreve: “nosso pensamento vai também para a situação precária
de um grande número de trabalhadores emigrados, cuja condição de
estrangeiros lhes torna assaz difícil a reivindicação social de sua
parte, não obstante a sua real participação no esforço econômico
do pais que os acolhe. É urgente que se procure superar, em relação a
eles, uma atitude estritamente nacionalista, a fim de lhes criar um
estatuto que reconheça seu direito à emigração, favoreça a sua
integração e facilite a própria promoção profissional e lhes
permita acesso a uma habitação decente, em que possam vir a
juntar-se-lhes, se for o caso, as suas famílias”.
Depois
de chamar atenção para as populações que para poderem encontrar
trabalho ou escapar a uma catástrofe ou a um clima hostil, abandonam
suas próprias regiões, assevera Paulo VI que é dever de todos
trabalhar energicamente para ser instaurada a fraternidade universal,
base indispensável de uma justiça autêntica e condição de uma Paz
duradoura.
Por
sua vez João Paulo II, na encíclica Laborem Exercens a propósito do
90(1 aniversário da mesma Rerum Novarum, como que resumindo tudo o que
a respeito se tem escrito, reconhece que o homem tem sempre o direito de
deixar o próprio país de origem por quaisquer motivos que sejam —
como também de a ele voltar — e de procurar melhores condições de
vida em outro país, e esclarece que, embora a sua emigração seja sob
certos aspectos um mal, em determinadas circunstâncias é, como se
costuma dizer, um mal necessário. Devem, então, envidar-se todos os
esforços — e certamente muito se faz com tal finalidade — para que
este mal no sentido material não comporte danos de maior monta no
sentido moral, até mesmo porque, na medida em que seja possível,
advenha uma melhoria na vida pessoal, familiar e social do emigrado.
Da
posição da Igreja, não obstante os grandes obstáculos que vem
ganhando espaço na reconstrução de uma doutrina que não mais
consulta os reclamos de uma comunidade global e solidária, aferrada,
ainda, aos velhos e ultrapassados conceitos de soberania, os povos
reunidos em congressos e conferências internacionais, vêm buscando
instituir normas de convivência, para ressaltar sobretudo, dentro da
temática dos Direitos Humanos, a dignidade da pessoa humana.
Nesse
sentido, a Declaração Universal dos Direitos e Deveres do Homem,
enunciada em maio de 1948, já dispunha que “toda pessoa tem direito a
que seja reconhecida em qualquer parte como sujeito de direitos e obrigações
e, assim, possa gozar dos direitos civis fundamentais” (artigo XVII).
E mais, que “toda pessoa tem o dever de trabalhar, dentro de sua
capacidade e possibilidades, a fim de obter os recursos para sua subsistência
ou em benefício da comunidade” (artigo XXXVI).
Por
sua vez, a Convenção Americana de Direitos Humanos prevê o direito à
circulação e residência e estabelece que “toda pessoa tem direito
de sair livremente de qualquer País, inclusive do próprio” (artigo
22, 2), bem como estabelece toda uma série de proibições relativas
a práticas contrárias aos direitos internacionalmente reconhecidos a
estrangeiros residentes (artigo 22, 5, 6, 8 e 9 ).
No
mesmo sentido a Declaração Universal dos Direitos Humanos dispõe em
seu artigo 20 que “toda pessoa tem capacidade para gozar os direitos e
liberdades estabelecidas nesta. Declaração, sem distinção de
qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião
política, origem nacional ou social, riqueza, nascimento ou qualquer
outra condição”.
Dom
Pedro Casaldáliga, ao comentar esse dispositivo da Declaração,
escreve que a “Pastoral da Migração” sintetizou num slogan simples
e cabal — “somos iguais, somos diferentes” — a verdade, o
compromisso e a esperança que encerra o artigo 20 da Declaração
Universal dos Direitos Humanos. E diz mais: “uma perspectiva mais
‘burguesa’ dificilmente saberia conjugar as duas dimensões do enunciado.
Também não saberia conjugá-las numa perspectiva socialista ou de
Primeiro Mundo, para dar o nome aos bois de hoje”. Somos iguais,
prossegue Dom Pedro, pela Igualdade fundante de nosso ser de pessoas
humanas. Ser pessoa é a raiz de todos os direitos humanos que se
possam reivindicar e reconhecer. Porque ser pessoa é um fim em si,
mesmo que relacional; é um absoluto, mesmo que relativo. Essa matriz
de direitos, que pertence por natureza a todo o ser humano, fundamenta e
possibilita todos os direitos civis, sociais, econômicos, culturais e
religiosos.
Destarte,
quando se menciona o conceito de Política Migratória, cabe
esclarecer que este não se reduz ao fato de explicar como é a Legislação
interna de um País, isto é, se a norma migratória é mais ou menos
rigorosa para o trabalhador migrante que decide radicar-se no Brasil,
Argentina, Chile ou outro país. Ao contrário, o tema é muito mais
complexo.
Diferentes
variáveis encontram-se no conceito de políticas migratórias, tais
como a legislação vigente num país, a integração fronteiriça no
caso de países limítrofes e, fundamentalmente, a adequada incorporação
dos migrantes nas sociedades que os acolhem.
Este
esclarecimento é necessário para não simplificar a problemática do
migrante às hipóteses de se lhe permitir ingressar ou não em
determinado País. Não basta que o imigrante cruze as fronteiras, uma
vez que, não obstante o ingresso legal, existem maneiras irregulares
de fazê-lo, pois não obstante em situação de flagrante
ilegalidade, o estrangeiro muitas vezes permanece em outro Estado, por
toda a sua vida.
E
importante assinalar que o migrante é muito mais que um número a ser
registrado numa dada estatística ou num trâmite burocrático de
documentos na fronteira; é um homem e uma mulher que devem ser
respeitados em virtude de sua dignidade enquanto pessoas, muito além
do regime vigente ou do lugar onde residem. Seus direitos não derivam
do fato de pertencem a um Estado ou Nação, mas de sua condição de
pessoa cuja dignidade não pode sofrer variações ao mudar de um País
para outro.
Isso
significa que um Estado deve dar ao migrante os meios para facilitar sua
permanência e possibilitar-lhe um modo de vida digno, onde o migrante,
como qualquer outro cidadão nativo, tenha acesso> à saúde, à
seguridade social e à educação, no caso dos filhos.
Contudo,
lamentavelmente, a intensidade do movimento migratório que se
registra hoje em dia em quase todos os países, encontra fronteiras
progressivamente fechadas; quase inexistência de espaços sociais de
acolhida; e a insegurança de perspectivas.
Atualmente,
no contexto internacional, a situação se complica ante o agravamento
dos desequilíbrios econômicos entre os países pobres, de que os
migrantes fazem parte, e os industrializados por eles procurados.
Muitos
dos migrantes dirigiram-se até a América do Norte (Estados Unidos e
Canadá), Oceania e outros mais até a Europa. Somente entre os anos
1973 e 1974, os países da Europa receberam uma média de 850 mil
imigrantes ao ano. A esse tempo, esses imigrantes não só encontraram
as portas abertas, bem como a possibilidade de emprego e uma vida mais
segura do que aquela em seus países de origem.
Entretanto,
na atualidade, a política migratória dos países desenvolvidos se
constitui tendo em vista, principalmente, consequências dos conflitos
do Cáucaso e dos Balcãs, do Golfo Pérsico, a constante corrente
migratória da África, em particular do Mangreve à França e dos
paquistaneses à Inglaterra, e sobretudo do reatamento das relações
com os países do este europeu, depois da queda do muro de Berlim.
Com
relação a nós, na generalidade dos países latino-americanos o
centro de interesse de suas políticas migratórias modificou-se. De
algum tempo até agora, salvo exceções, está encerrada a fase de
imigração massiva. Esta região se caracteriza pelos fluxos humanos
fronteiriços e intra-regionais que se movem ao compasso econômico, em
torno de certos pólos de atração. E o caso de bolivianos,
paraguaios, uruguaios, chilenos e mais recentemente de peruanos,
colombianos, brasileiros e dominicanos que se dirigem à Argentina.
Este
fluxo constante de migrantes para a Argentina traz consigo não só suas
necessidades, senão sua força de trabalho (mão de obra), muitas vezes
mais apreciada que as dos próprios nacionais, como é o caso de
bolivianos e paraguaios na construção civil.
Não
obstante, a resposta nestes últimos anos tem sido a de uma política
migratória restritiva e de caráter seletivo.
A
legislação brasileira (Lei 6.815, de 10/10/80) vai nesse sentido.
Leiam-se os artigos 70, 14, 15, 17, 18, 101, 106 (vedações ao estrangeiro),
artigo 125 (penalidades); o Decreto 2.771, de 08/09/ 1998, sobre o
registro provisório de estrangeiro em situação ilegal (ver artigo
9”). Outras restrições relativas à permissão para o trabalho,
reconhecimento de diplomas estrangeiros, salários e outras condições
de emprego, acesso aos serviços de saúde, educação e moradia, trabalhadores
e migrantes mais vulneráveis, como mulheres e crianças.
Trata-se,
sem dúvida, de um paradoxo, pois a Região do Cone Sul se encontra em
pleno processo de integração. Ninguém discute esse grande
empreendimento denominado Mercosul, que hoje parece ser o único
caminho que se há de percorrer para evitar o isolamento de nossos países,
enquanto o mundo globaliza a sua economia. Contudo, o espaço e o
tratamento que se dá ao migrante no Mercosul é bastante decepcionante.
Neste instante, diz-se, o problema das migrações não se põe.
Deve-se esperar outros tempos, opinam os tecnocratas. Primeiro se deve
priorizar a circulação de bens e dos fatores de produção, portanto,
ainda não há lugar para os trabalhadores. E isso é, sem dúvida, um
equívoco, porque a migração continua, desafortunadamente em condições
de ilegalidade, com as inevitáveis consequências de todos conhecidas.
De
outra parte, é evidente que as políticas migratórias devidamente
articuladas e harmonizadas nos processos de integração se impõem para
otimizar a migração como fator dinâmico e transformador, e não
como um elemento contrário ou entorpecedor do próprio desenvolvimento
econômico.
Nessas
circunstâncias, o Mercado Comum do Sul deverá servir principalmente
aos excluídos, aos migrantes, aqueles que não têm opção e que são
maioria na região, entendendo-se desde logo que a integração não é
somente econômica, pois deve supor prioritariamente um processo que
pode e deve servir para o verdadeiro desenvolvimento dos povos.
Um
dos fatos mais significativos e de grande amplitude na proteção dos não
nacionais são as “Convenções Internacionais (OIT 97/1949 e
1.431/85) sobre a proteção de todos os trabalhadores migrantes e
membros de suas famílias” e a Recomendação 151/75, sobre o mesmo
tema. O cumprimento de suas normas por todos os países do mercado terá
um efeito fundamental sobre o tratamento aos migrantes e aumentará o
respeito aos direitos.
O
que dizem essas Convenções e suas recomendações: em primeiro lugar
deve-se anotar que o Brasil subscreveu e ratificou a Convenção 97, de
1949, da Organização Internacional do Trabalho.
É
certo que, depois dessa ratificação, tivemos as Constituições de
1967, 1969 e, por último, a de 1988. Ora, nenhuma dessas Constituições
contêm dispositivos que contrariam os termos da Convenção 97.
Portanto, consideram-se as normas deles constantes, recebidas pelo atual
texto constitucional, nos termos de seu artigo 50, parágrafo 2º, onde
se diz que se incorporam ao rol dos direitos e garantias individuais,
aqueles contemplados em tratados que tenham sido subscritos e
ratificados pelo Brasil.
Seria
conveniente a leitura de alguns artigos dessa Convenção, para que
possamos ter idéia de sua extensão e devida aplicação, muitas vezes
desconhecidas das autoridades migratórias e por igual do próprio Poder
Judiciário.
Convém,
por último, distinguir as migrações internas do fenômeno dos
deslocados internamente. Na primeira hipótese se trata de movimentos
internos de pessoas que se deslocam de um lugar para outro dentro de um
mesmo País. É o caso dos flagelados pelas secas do Nordeste, que se
deslocam para o Centro-Sul e o Sul do País, em busca de melhores condições
de vida. No segundo, que o direito internacional humanitário não alcança
protegê-las, são populações civis atingidas por conflitos
internos, especialmente quando estas pessoas não cruzam as fronteiras
de seu país de origem, porque o conflito não alcançou o grau de
intensidade requerido para a aplicação do Protocolo Adicional II, de
1977, do Convênio de Genebra, de 1949, único instrumento que se ocupa
destas situações violatórias de direitos humanos.
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