Guilherme
da Cunha*
Meu
país não está na geografia, está no tempo. Aqueles que vivem quando eu
vivo são meus compatriotas e o que fizermos desse tempo será nossa
medida.
Roberto
Matta, pintor chileno radicado em Paris.
Introdução
A
reflexão de Matta ilustra perfeitamente a visão maior ou do sistema das
Nações Unidas sobre os problemas que afetam o conjunto da humanidade.
Ela enfatiza a importância da responsabilidade dos cidadãos e dos
governos diante dos problemas transnacionais do mundo contemporâneo.
O
final da guerra fria e a bipolaridade do poder mundial significaram mudanças
radicais nas relações internacionais. Vivemos, hoje, um momento de
ruptura histórica, de transição entre uma ordem internacional que
deixou de existir e uma nova ordem cuja natureza, valores e projeto de
civilização ignoramos. Nessa viagem interminável, navegamos, por assim
dizer, em águas desconhecidas, com pouca visibilidade e muita turbulência.
Devemos evitar, ao mesmo tempo, os escolhos de um triunfalismo que tomou
conta de nós com a queda do muro de Berlim e os empecilhos de um
pessimismo excessivo que parece caracterizar o presente e o futuro das
relações internacionais. A impressão imediata e mediatizada que temos
da conjuntura internacional atual é como se ela resultasse de uma combinação
estranha, às vezes explosiva, de movimentos simultâneos de aceleração,
estancamento e repetição.
Uma
reflexão crítica sobre o atual estado do mundo supõe entender os avanços
e os retrocessos ocorridos nos últimos anos durante o permanente combate
entabulado contra a barbárie para preservar e consolidar o Estado de
Direito democrático herdado de nossos antepassados. A este respeito
devemos destacar os êxitos alcançados, nesta última década, tais como
o desaparecimento de estados totalitários, o avanço do processo de
democratização no mundo, o final do regime do apartheid,
um relativo progresso na política mundial de desarmamento e a
consideração progressiva da temática do gênero. Tais avanços
sustentam-se nas distintas Declarações e Programas de Ação adotados
pela Comunidade Internacional, durante as cúpulas mundiais organizadas
pela ONU, sobre diversos temas relacionados com o desenvolvimento humano.
No
presente trabalho, ocupar-me-ei do fenômeno migratório latu sensu que inclui a categoria dos refugiados, estes últimos
considerados como subespécie sui
generis por serem migrantes forçados que se viram obrigados a fugir
de seu país e a buscar asilo. Analisarei também o marco jurídico aplicável
a ambas as categorias, a normativa relativa à proteção do ser humano,
aos direitos humanos dos refugiados, e a problemática que a crise atual
do asilo apresenta. Para finalizar, apresentarei uma série de propostas
que constituiriam uma estratégia para encarar o século XXI.
Sobre o fenômeno migratório
A
população mundial já supera a marca dos 5,6 bilhões de pessoas e,
segundo as projeções das Nações Unidas, alcançará 11 bilhões em
meados do próximo século. Noventa e cinco por cento deste aumento
ocorrerá nos países mais pobres. No ano 2000, 8 entre cada 10 cidades
com mais de 15 milhões de habitantes estarão localizadas nos países do
Terceiro Mundo. No ano 2025, a população do mundo industrializado –
Europa, América do Norte, Austrália e Japão – crescerá de 1,2 para
1,35 bilhões de pessoas, enquanto a população do Terceiro Mundo crescerá
de 4,1 bilhões para 7,2 bilhões. Com certeza, este crescimento demográfico
desproporcional supõe um rejuvenescimento da população nos países mais
pobres, nos quais os jovens dificilmente encontrarão trabalho. Esta situação
coincide com a política de imigração zero dos países ricos que se
debatem com a recessão econômica e o fantasma do desemprego.
Segundo
as Nações Unidas, existem mais de 100 milhões de imigrantes no mundo. O
número de refugiados e outras pessoas que se encontram sob a proteção
do ACNUR, ou seja, vítimas de perseguição, de guerras e de intolerância,
aproxima-se de 23 milhões de pessoas, enquanto o número dos deslocados
internos, em seus países, ultrapassa 30 milhões.
O
poeta e filósofo mexicano Octavio Paz, ao considerar o fluxo migratório
procedente da América Central e do México em direção aos Estados
Unidos, compara-o ao vento e às correntes marítimas, como se fossem fenômenos
naturais e, portanto, incontroláveis. A mesma reflexão pode ser aplicada
a outras regiões do planeta que funcionam como corredores de fluxos
migratórios, tais como a fronteira Odernisse,
entre a Polônia e a Alemanha; o Mediterrâneo Ocidental, entre os países
magrebinos e subsaarianos e a fronteira sul da União Européia; e o mar
do sul da China, entre os países mais pobres e os outrora denominados
“tigres do Sudeste Asiático”.
O
fenômeno migratório acompanhou a história da humanidade e, na maioria
das vezes significou modernização e progresso humano. Nesse sentido
amplo, somos todos, salvo os autóctones, resultado dos deslocamentos de
população que nos antecederam.
De
um ponto de vista histórico, devemos desdramatizar o fenômeno migratório
e impedir que em momentos de crise, como o atual, sejam os movimentos
nacionalistas radicais, xenófobos e racistas, os inspiradores de políticas
públicas sobre migração. Atribuir ao outro, diferente de nós, a
responsabilidade de todos os nossos males é o que dá origem a tensões e
conflitos entre diferentes grupos étnicos. Denunciar sem trégua nem silêncio
a manipulação política dos movimentos migratórios e o pretexto de
“bode expiatório” contribui para formar uma consciência de cidadania
democrática.
Naturalmente,
nesta época de crise econômica, de turbulência política e de
crescimento demográfico desigual na qual vivemos, os interesses objetivos
dos Estados afetados deverão ser atendidos sempre e quando os fluxos
migratórios forem de massa e atentem contra a segurança nacional e a
estabilidade econômica dos países de acolhida. Alcançar este equilíbrio,
que implica necessariamente o respeito aos direitos humanos dos
imigrantes, forçados ou não, dependerá de uma política regional e
concertada entre os Estados-membros da Comunidade Internacional. É
imperativa uma política global fundamentada no princípio da divisão da
carga – burden sharing – e,
orientada basicamente para eliminar as causas do atraso econômico e político
que afeta os Estados mais vulneráveis ou periféricos do planeta onde as
pessoas, mais que cidadãos, são indivíduos que deambulam entre a
sobrevivência violenta e a imigração.
A
pobreza e a incapacidade de ganhar ou produzir suficientemente para a própria
subsistência ou a da família são as principais razões por trás do
movimento de pessoas de um Estado para outro em busca de trabalho. O fenômeno
migratório não é um produto deste século, mulheres e homens
abandonaram suas terras de origem, buscando trabalho em outros lugares,
desde o aparecimento do sistema de trabalho remunerado. Atualmente, tal
fenômeno engloba milhões de pessoas e podemos dizer, sem dúvida, que não
há nenhum continente, nem região no mundo que não tenha seu contingente
de trabalhadores migrantes.
A
Convenção Internacional sobre a Proteção dos Direitos de Todos os
Trabalhadores Migrantes e de seus Familiares, aprovada pela Assembléia
Geral em sua resolução 45/158, de 18 de dezembro de 1990, que
entretanto, não entrou ainda em vigência, estabelece em seu artigo 2
que:
“se entenderá por ‘trabalhador
migrante’ toda pessoa que vá realizar, realize ou tenha realizado
atividade remunerada em um Estado do qual não seja nacional”.
Os
trabalhadores migrantes são estrangeiros e, apenas por este motivo, podem
despertar suspeitas ou hostilidades nas comunidades onde vivem e
trabalham, ou ser objeto de discriminação. Na maioria dos casos, são
economicamente pobres e compartilham os problemas dos grupos menos
favorecidos da sociedade do Estado, que os acolhe. Neste sentido, a Convenção
estabelece que os trabalhadores migrantes gozarão de tratamento não
menos favorável do que o recebido pelos nacionais do Estado de emprego,
no que se refere à remuneração e a outras condições de trabalho e de
emprego. Os trabalhadores migrantes e seus familiares gozarão de
igualdade de tratamento e respeito dos nacionais em relação ao acesso a
instituições e às redes de ensino, aos serviços de orientação
profissional e de emprego, ao acesso à moradia e à proteção contra a
exploração em relação a aluguéis, aos serviços sociais e de saúde,
à vida cultural e participação nela; usufruirão, além disso, de
igualdade de tratamento em matéria tributária. A Convenção estabelece
que os trabalhadores migrantes e seus familiares terão, no Estado de
emprego, direito à liberdade e à segurança pessoais, direito de
circular livremente e de
escolher livremente sua atividade remunerada, direito de filiar-se
livremente a sindicatos ou outras associações estabelecidas, conforme a
lei, com vistas a defender seus interesses econômicos, sociais e
culturais. Terão, portanto, direito a manter vínculos culturais com seu
Estado de origem, participar nos assuntos públicos, votar e serem eleitos
em eleições realizadas nesse Estado. A Convenção limita o arbítrio do
Estado de emprego no que se refere à expulsão e estimula a integração
dos trabalhadores migrantes e suas famílias a seu ambiente social, sem
perder sua identidade cultural.
A
pobreza em massa, o desemprego e o subemprego existentes em muito países
em desenvolvimento oferecem a empregadores e a agentes privados
inescrupulosos um terreno fácil para a contratação ilegal. Em alguns
casos, o translado clandestino dos trabalhadores adquire caráter de operação
delituosa. Os trabalhadores migrantes ilegais são objeto de exploração,
sendo a situação destes, no pior dos casos, semelhante à escravidão ou
ao trabalho forçado. O trabalhador migrante ilegal, aprisionado nessa
armadilha, é uma vítima que raramente recorrerá à justiça por medo de
ser descoberto e expulso. Em virtude do disposto no artigo 68 da Convenção
Internacional sobre a Proteção dos Direitos de Todos os Trabalhadores
Migrantes e de seus Familiares, insta-se aos Estados-Partes colaborar
“com vistas a impedir e a eliminar os movimentos e o emprego ilegais ou
clandestinos dos trabalhadores migrantes em situação irregular”,
exortando-os, assim, para que adotem medidas adequadas contra a difusão
de informação enganosa no que se refere à emigração e à imigração,
para detectar e eliminar movimentos ilegais ou clandestinos e para impor
sanções efetivas a pessoas, grupos ou entidades que organizem ou dirijam
a imigração ilegal ou clandestina ou prestem assistência neste sentido,
façam uso da violência, ou de ameaças ou intimidações contra os
trabalhadores migrantes em situação irregular, ou dêem emprego a esses
trabalhadores. Entretanto, há poucas esperanças de acabar com o tráfico
clandestino de mão-de-obra estrangeira se não forem atacadas as causas
subjacentes da migração de trabalhadores, tais como o subdesenvolvimento
econômico e o subemprego crônico. De fato, torna-se imperativo adotar
medidas para promover o desenvolvimento econômico e reduzir o fosso
existente entre os países industrializados e as regiões em
desenvolvimento.
A
Convenção Internacional sobre a Proteção dos Direitos de Todos os
Trabalhadores Imigrantes e de seus Familiares ficou em aberto desde sua
aprovação, em 1990, para assinatura de todos os Estados-Membros das Nações
Unidas e entrará em vigor após a ratificação ou a adesão de vinte
Estados. Até a presente data apenas seis Estados haviam ratificado a
Convenção (Colômbia, Egito, Filipinas, Marrocos, Seychelles e Uganda) e
três a haviam assinado (Chile, México e Mônaco).
Atento
à emergência de novas tendências racistas e xenófobas que poderiam
afetar o bem-estar social dos trabalhadores migrantes e de seus
familiares, e levando em conta que o objetivo essencial da Convenção é
que todos os trabalhadores migrantes possam gozar dos direitos humanos
independentemente de sua situação jurídica, é crucial e necessário
que os Estados a ratifiquem o mais breve possível. Lamentavelmente e
diante da inexistência de regulamentação vigente nessa matéria, não há
dúvidas de que se aplica a essa categoria de pessoas o Direito
Internacional dos Direitos Humanos.
As normas jurídicas relativas à proteção
do ser humano
A
intolerância, a perseguição dos dissidentes, a violação dos direitos
humanos, as guerras, a violência generalizada, a extrema pobreza ou o
caos econômico e político que parecem ter-se instalado em algumas regiões
do planeta geraram deslocamentos maciços de população. Entre as pessoas
afetadas por esses flagelos, encontram-se os refugiados cujo estatuto
migratório está regulamentado pelo Direito Internacional Público.
Contrariamente ao que sucede com os migrantes econômicos que se deslocam
legitimamente em busca de melhores condições de vida, os refugiados
deslocam-se para preservar suas vidas, liberdade e segurança.
O
artigo 3 da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 estabelece
que:
“Todo indivíduo tem direito à vida, à
liberdade e à segurança de sua pessoa”
Quando
esses valores fundamentais que estão protegidos legalmente pelo Estado de
Direito democrático são ameaçados ou constituem objeto de discriminação
por motivo de raça, religião, nacionalidade ou por pertencer a um
determinado grupo social ou opiniões políticas, estão dadas as condições
para que uma pessoa recorra à proteção substitutiva de um terceiro país.
O
artigo 14 da mesma Declaração Universal define, nesse sentido, que:
“Em caso de perseguição toda pessoa tem
direito a buscar asilo e a desfrutar dele, em qualquer país”
e
recorda em seu parágrafo 2 que:
“Este direito não poderá ser invocado
contra uma ação judicial realmente originada por delitos comuns ou por
atos opostos aos Propósitos e Princípios das Nações Unidas”.
Em
âmbito regional, o artigo 22 da Convenção Americana sobre os Direitos
Humanos – Pacto de São José da Costa Rica, de 1969 –, ao tratar do
direito de circulação e de residência, determina com maior rigor ainda
o direito de asilo, no caso de perseguição e impõe aos Estados signatários
o respeito absoluto ao princípio de não-devolução (parágrafos 7 e 8).
É
necessário esclarecer que, apesar das semelhanças de propósitos, existe
uma diferença substancial entre os institutos jurídicos de asilo e de
refúgio. O direito internacional dos refugiados reconhece o asilo em seu
sentido amplo de proteção, acesso ao território e respeito ao princípio
de non-refoulement ou de não-devolução, expulsão ou extradição
de um refugiado a seu país de origem, onde sua vida, liberdade e segurança
corram perigo.
O
direito de asilo, seja político, territorial ou diplomático, existe
apenas na América Latina onde os Estados signatários de tais tratados
estão obrigados a conceder proteção àquelas pessoas perseguidas por
motivos políticos, ou porque cometeram um delito comum conexo com a política.
Esse
costume ou prática regional é secular e está relacionado com a turbulência
histórico-política do continente. Nem por isso é menos significativa a
contribuição dos juristas latino-americanos ao tema da proteção
internacional dos refugiados cuja regulamentação é posterior à Segunda
Guerra Mundial.
Nesta apresentação, utilizo o conceito de asilo como equivalente à
concessão do estatuto de refugiado segundo aquela regulamentação.
O
Direito Internacional Público contempla três conjuntos de normas
destinadas à proteção da pessoa humana:
(i)
o Direito Internacional Humanitário, composto pelas quatro Convenções
de Genebra e supervisionado pelo Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICR)
estabelece um regime de proteção do ser humano em situações de
conflito armado internacional ou não-internacional;
(ii)
o Direito Internacional dos Direitos Humanos, composto basicamente pela
Declaração Universal dos Direitos Humanos, os dois Pactos Internacionais
sobre direitos civis e políticos e sociais, econômicos e culturais de
1967, as Convenções regionais sobre direitos humanos, as Convenções
contra a tortura e a Convenção contra todo tipo de discriminação
contra a mulher e,
(iii)
o Direito Internacional dos Refugiados, composto basicamente pela Convenção
da ONU, de 1951, relativa ao Estatuto dos Refugiados e seu Protocolo
Adicional de 1967, supervisionados pelo Alto Comissariado das Nações
Unidas para os Refugiados (ACNUR).
O
Prof. Dr. Antonio Augusto Cançado Trindade analisa, com detalhes, em seu
profundo e utilíssimo Tratado de Direito Internacional de Direitos
Humanos,
as semelhanças e convergências entre as três vertentes da proteção
internacional da pessoa humana e conclui que elas constituem um corpus
juris consistente e complementar. A coexistência normativa,
conceitual e operacional destas normas que perseguem o mesmo objetivo, a
saber, a proteção do ser humano em toda e qualquer circunstância,
permite sua aplicação simultânea, sobretudo em situações de emergência
humanitária tão comuns neste aparentemente caótico final de milênio.
O
jurista e filósofo italiano Norberto Bobbio, ao refletir sobre o
reconhecimento progressivo dos direitos humanos, diz: ”Direitos humanos,
democracia e paz são três momentos necessários do mesmo movimento histórico:
sem direitos humanos reconhecidos e protegidos, não há democracia; sem
democracia, não existem condições mínimas para a solução pacífica
dos conflitos”. Ao enfatizar o ideal kantiano da “paz perpétua”,
Bobbio postula que o progresso moral e político da humanidade, assim como
o caráter democrático de nossas sociedades depende, em grande parte, da
correta e eficaz observância destes direitos.
Os direitos humanos dos refugiados e a
crise do asilo
O
refugiado é, antes de tudo, uma vítima da violação de seus direitos
humanos. A concessão do asilo permite recuperar a dignidade cidadã
ignorada em seu país de origem. Os refugiados são seres humanos
desesperados, imersos em uma situação que os vence uma vez rompido o vínculo
de pertencer à sua comunidade de origem. Assim como os imigrantes, eles
podem contribuir para a mudança, para o desenvolvimento e para a inovação
cultural dos países que lhes concedem asilo. Muitos são, na história,
os exemplos de refugiados que contribuíram para o progresso humano.
O
ACNUR foi criado após o término da Segunda Guerra Mundial e sua missão
consiste em promover, juntamente com os Estados e os organismos não-governamentais,
a proteção internacional e a assistência aos refugiados, entendendo por
isso a busca de soluções a seus problemas. A Missão ou o Estatuto do
ACNUR define que suas atividades são de caráter estritamente humanitário
e apolítico. A criação do ACNUR levou a Comunidade Internacional a
elaborar uma Convenção que determinará os direitos e as obrigações
dos refugiados por meio de um estatuto migratório próprio. Deste
encontro, ocorrido em julho de 1951, em Genebra, resultou a Convenção
das Nações Unidas relativa ao Estatuto dos Refugiados.
A
Convenção de Genebra, de 1951, é conhecida como Carta dos Direitos dos
Refugiados. Ela regulamenta a situação jurídica dos refugiados em um
marco migratório determinado, outorgando-lhes os direitos de residência,
de trabalho remunerado, de propriedade, de associação, de acesso aos
tribunais, à educação e à assistência social, a documento de
identidade e de viagem e, sobretudo, o direito a não ser devolvido,
contra sua vontade, a seu país de origem, onde sua vida, liberdade e
segurança estejam em perigo. Alguns autores, como Hector Gros Espiell,
consideram o princípio do non-refoulement
(art. 33 da Convenção) como parte integrante do jus cogens.
Em seu artigo 1º, A, 2, a Convenção define o termo “refugiado”,
indicando que este se aplicará a qualquer pessoa que:
“... em decorrência dos acontecimentos ocorridos na Europa antes de 1º
de janeiro de 1951 e devido a temores fundados de ser perseguida por
motivos de raça, religião, nacionalidade, ou por pertencer a determinado
grupo social ou opiniões políticas, se encontre fora do país de sua
nacionalidade e não possa ou, devido a tais temores, não queira recorrer
à proteção de tal país; ou que, carecendo de nacionalidade e se
achando, em conseqüência de tais acontecimentos, fora do país onde
antes tinha sua residência habitual, não possa ou, devido a tais
temores, não queira regressar a ele”.
Essa
definição constitui o conceito jurídico clássico de refugiado
orientada para a proteção do indivíduo que, temendo ser vítima de
perseguição pelos motivos indicados, abandona seu país e busca asilo. A
concessão do estatuto de refugiado pelo Estado signatário deverá
observar as causas, os critérios geográficos e temporais da definição,
assim como avaliar um justo equilíbrio entre o temor fundado de perseguição
(elemento subjetivo) e as condições existentes no país de origem do
solicitante de asilo (elemento objetivo).
Não
há dúvida alguma de que a definição do termo “refugiado” e a
codificação internacional de seus direitos e obrigações significou uma
conquista importante para a humanidade em geral e para o Estado de Direito
democrático, em particular. Entretanto, esta definição considera
algumas limitações devido ao contexto histórico-político em que foi
elaborada. Tais limitações são de ordem geográfica (acontecimentos
ocorridos na Europa), temporal (antes de 1º de janeiro de 1951) e político-ideológica
(guerra fria).
O
Protocolo Adicional de 1967 procurou sanar algumas dessas limitações ao
suprimir a data limite de 1951 (reserva temporal), assim como a referência
explícita ao espaço geográfico europeu (reserva geográfica),
concedendo, desse modo, caráter universal à Convenção de Genebra, de
1951. Era evidente que o problema dos refugiados não se restringia apenas
à Segunda Guerra Mundial ocorrida na Europa, mas que a proteção dos
refugiados devia se impor igualmente em outros continentes, palcos de
novos conflitos e convulsões.
O
continente africano, em pleno processo de descolonização e de guerras de
liberação nacional durante os anos 60, foi o primeiro a ser afetado
pelos deslocamentos em massa da população. Os Estados africanos,
conscientes do desafio que representava essa nova situação, decidiram
adotar, em 1969, a Convenção da Organização da Unidade Africana (OUA)
para tratar dos aspectos específicos do problema dos refugiados na África.
Esta Convenção preserva, em sua totalidade o conjunto de artigos da
Convenção de 1951 e de seu Protocolo Adicional de 1967, porém inova no
sentido de estender o benefício da proteção internacional a outra
categoria de pessoas que, segundo a Convenção de 1969, merecia,
igualmente, o estatuto de refugiados.
De
fato, o artigo 1º, parágrafo 2 da Convenção estabelece que:
“O termo refugiado será aplicado também a toda pessoa que,
devido a uma agressão externa, ocupação ou dominação estrangeira, ou
acontecimentos que perturbem gravemente a ordem pública, em parte ou na
totalidade de seu país de origem, ou do país de sua nacionalidade, está
obrigada a abandonar seu domicílio habitual para buscar refúgio em outro
lugar fora de seu país de origem ou do país de sua nacionalidade”.
A
Convenção da OUA representa um claro avanço em relação à Convenção
de 1951, por estender a proteção internacional àquelas pessoas que
cruzam uma fronteira internacional por motivos adicionais aos indicados
nessa última em seu artigo 1, A, 2, tais como: causa de agressão
externa, ocupação, domínio estrangeiro ou acontecimentos que perturbem
gravemente a ordem pública. Dizemos que se trata de um avanço toda vez
que amplia o âmbito de aplicação de um instrumento de Direito
Internacional dos Refugiados a todos aqueles que necessitam ser
protegidos.
Da
mesma forma, em outro contexto, o da América Central dos anos 80, um
grupo de juristas latino-americanos, reunidos em um Colóquio organizado
pelo ACNUR, em 1984, em Cartagena das Indias, Colômbia, ampliou ainda
mais o conceito de refugiado previsto na Convenção de 1951 e na Convenção
da OUA de 1969. Resultado disso é o que foi transmitido com a definição
de Cartagena, contida na conclusão terceira da Declaração, ao propor
que o conceito de refugiado deveria também ser estendido a todas as
pessoas que:
“...fugiram de seus países porque sua vida, segurança ou liberdade
foram ameaçadas pela violência generalizada, agressão estrangeira, os
conflitos internos, violação em massa dos direitos humanos ou outras
circunstâncias que tenham perturbado gravemente a ordem pública”.
É
importante reiterar que, tanto a definição contida na Convenção da OUA,
de 1969, como na Declaração de Cartagena, de 1984, não substituem a
definição do artigo 1, A, 2) da Convenção de Genebra de 1951 e
tampouco excluem o regime jurídico de tratamento dos refugiados ali
estabelecidos. Ambas as definições incorporam e, ao mesmo tempo, ampliam
o conceito clássico de refugiado a outros beneficiários, adaptando-o às
novas realidades histórico-políticas do mundo contemporâneo, sem
renunciar ao marco jurídico da Convenção de Genebra, de 1951, e seu
Protocolo Adicional de 1967.
A
definição ampliada do conceito de refugiado que figura na Convenção da
OUA e na Declaração de Cartagena pretende responder às novas situações
criadas pelos conflitos étnico-nacionais que se intensificaram com o
final da guerra fria. A desintegração dos Estados, as guerras, a violência
generalizada e a violação sistemática dos direitos humanos constituem
as principais causas dos deslocamentos em massa da população. O
reconhecimento da condição de refugiado deixa de ser individualizado e
as condições objetivas existentes nos países de origem dos solicitantes
prevalecem sobre o critério subjetivo relativo ao temor fundado de
perseguição. Cabe mencionar, a respeito, a reflexão do jurista
brasileiro Antonio Cançado Trindade, ao afirmar que: “... dentro dessa
mesma evolução, o critério subjetivo clássico de qualificação dos
indivíduos – que abandonam seus lares em busca de refúgio –
mostra-se, em nossos dias, anacrônico, sendo substituído pelo critério
objetivo, centrado preferencialmente nas necessidades de proteção”.
Tal
enfoque é compatível com a prática de proteção internacional exercida
pelo ACNUR, em todo o mundo, onde a maioria dos refugiados reconhecidos o
são, tendo presente a magnitude e a complexidade das atuais crises de
emergência humanitária que afetam os diversos continentes. Assim, por
exemplo, em situações de conflito e de violência generalizada
existentes na África Central (região dos Grandes Lagos), nos Balcãs (ex-Iugoslávia
e Albânia) ou na Ásia Central (Estados da ex-União Soviética como
Chechenia, Arzeibajão, Armênia, Tajikistão ou Georgia), é praticamente
impossível proceder ao reconhecimento individualizado ou avaliar o temor
fundado de persecução de cada pessoa que abandona seu país em busca de
refúgio. São milhares e, algumas vezes, milhões de pessoas afetadas, em
sua maioria mulheres, crianças e velhos que não participam dos combates
e que necessitam ser protegidas.
Aplicar
a noção de “refugiado” em sentido amplo significa, na prática,
estender a missão original do ACNUR e, além disso, ampliá-lo a outras
categorias de beneficiários como as vítimas de guerra, da violência
generalizada ou da violação sistemática dos direitos humanos e, algumas
vezes, às pessoas deslocadas em seus próprios países que se encontram
em situação similar à dos refugiados sem que houvessem cruzado uma
fronteira internacional (província iugoslava do Kosovo, atualmente, com
mais de 200 000 deslocados internos, Bósnia Herzegovina, Colômbia, Peru,
República Democrática do Congo, Ruanda, Somália, Sri Lanka, Sudão,
entre outros exemplos). No caso particular da Colômbia, e a pedido de seu
governo, o ACNUR, com prévia autorização do Secretariado-Geral, criou
um Escritório de Encarregado de Missão, em Bogotá. Segundo as informações
disponíveis, o número de deslocados internos, vítimas da violência
desencadeada naquele país, entre os anos 1985 e 1996, é estimado em
900.000 pessoas.
A
esse respeito, deve-se destacar a Declaração de São José sobre os
Refugiados e Pessoas Deslocadas, de 1994, que foi adotada no marco do décimo
aniversário da Declaração de Cartagena. A Declaração de São José
atualiza, reitera e amplia o âmbito de aplicação da Declaração de
Cartagena, ao enfatizar a importância dos direitos humanos dos refugiados
e das pessoas deslocadas internamente na América Latina e no Caribe,
incluindo os movimentos migratórios forçados, provocados por causas
distintas das previstas na Declaração de Cartagena. A nova Declaração
afirma que a plena observância dos direitos econômicos, sociais e
culturais constituem a base do desenvolvimento humano sustentável, da
construção da paz e da consolidação da democracia no continente. A
Declaração de São José inova, assim mesmo, ao considerar a importância
do enfoque de gênero, dos direitos das populações indígenas e das
crianças, assim como, das pessoas que emigram por motivos econômicos,
recordando-nos que elas são, em primeiro lugar, “
titulares de direitos humanos que devem ser respeitados em todo momento,
circunstância e lugar.”
Hoje
em dia, o direito de asilo está em crise. Esta crise é universal, porém,
talvez se requeira mais ajuda dos países desenvolvidos cujos governos
estejam adotando políticas cada vez mais restritivas a respeito. Incumbe,
naturalmente, à cidadania organizada e aos governos dos Estados-membros
impedir, por todos os meios, que esta importante conquista da humanidade
se debilite ou, pior ainda, desapareça do marco jurídico-institucional
do Estado de Direito democrático.
O
aumento considerável do número de refugiados e de pessoas deslocadas
internamente, nestes últimos anos, chegou a preocupar a Comunidade
Internacional e sua expressão político-institucional, as Nações
Unidas; ambas preocupadas ou pouco aptas para enfrentar as causas políticas
e econômicas que deram origem a este grave problema humanitário.
A
crise do direito de asilo agravou-se com o fim da guerra fria e a
desintegração do mundo comunista. O desaparecimento da ex-União Sociétiva
anulou a vantagem ideológica ou geopolítica que representavam os
refugiados para ambos os blocos do poder mundial. Atualmente, a maioria
das crises humanitárias, com exceção da Guerra do Golfo e, até certo
ponto, a desintegração da ex-Iugoslávia, não ameaçam diretamente os
interesses estratégicos das grandes potências. O que está ocorrendo na
província iugoslava do Kosovo ilustra perfeitamente o mencionado
anteriormente.
De
fato, nos países desenvolvidos parece consolidar-se a tendência
restritiva no tratamento outorgado à situação migratória dos
estrangeiros em geral e dos refugiados, em particular. A crise econômica
que nos afeta, particularmente, o fenômeno do desemprego, conduz os
governos, apoiados pela opinião pública, a restringir a entrada de
estrangeiros pobres e pouco qualificados em seus territórios. Imposição
de visto de entrada, sanções às companhias aéreas que transportam
estrangeiros sem documentos, severos controles de fronteira, procedimentos
de elegibilidade acelerados, detenções, limitações ao direito de reunião
familiar e aplicação restrita do conceito de refugiado (Art. 1, A 2) da
Convenção de Genebra de 1951 e tantas outras medidas de caráter
administrativo, levam a relacionar indiscriminadamente migrantes econômicos
e solicitantes de asilo. Tal tendência é ainda mais perigosa quando
prepondera nas políticas públicas o enfoque que amalgama solicitantes de
asilo, refugiados, migrantes econômicos e terrorismo. Nesse mesmo
contexto, os movimentos sociais de caráter racista e xenófobo, que
imaginávamos enterrados, ressurgiram com força e, em alguns países, são
os que sustentam políticas públicas anti-imigrantes e refugiados. É bom
lembrar que políticas públicas dessa natureza debilitam o Estado de
Direito democrático, em geral, e o direito de asilo, em particular.
A
esse respeito, vale citar a profunda e oportuna reflexão do filósofo
espanhol Fernando Savater sobre a “Obrigação Democrática do Asilo”,
na qual diz:
“Uma das mentes mais lúcidas e vigorosas
do pensamento contemporâneo, Hannah Arendt, profetizou que nosso século
acabaria marcado pela existência de refugiados em massa, fugitivos, gente
despossuída de todos seus direitos e obrigada a buscá-los longe de sua pátria.
Acertou plenamente, por infortúnio, as imagens dos que fogem da guerra,
do racismo, da intolerância religiosa ou ideológica, ou simplesmente da
fome, dos que fogem arrastando como podem seus escassos pertences, desses
homens e mulheres que se apressam sem saber para onde, jovens, velhos ou
crianças, com a bruma do espanto e do despojamento no olhar, as imagens
dos que atravessam a pé os montes e as brasas dos desertos, dos que
dormem sonhos de acossados no lodo, dos que entulham embarcações precárias
que, as vezes, afundam nas ondas, as imagens dos que cruzam cercas e
sorteiam como podem os disparos de guardiões implacáveis, essas imagens
são hoje o equivalente moral do que foram em seu tempo as cenas dos
reclusos famélicos e aterrorizados nos campos de concentração nazistas
e comunistas. Se diante de filmes como: “A Lista de Schindler” nos
sentimos obrigados a soluçar “nunca mais!”, a sinceridade desse
movimento de justiça e compaixão será medido por nossa atitude diante
dos perseguidos e fustigados de hoje: ontem, era imperativo libertá-los
de seus cárceres, hoje, trata-se de acolhê-los em nossos países, sob
nossas leis e compartilhar nossas liberdades”.
“A história sempre foi uma catástrofe, cujos resultados positivos
foram pagos ao preço terrível de lágrimas e sangue. Nosso século não
constituiu exceção, ao contrário: as ideologias cientificamente
exterminadoras em nome de uma raça ou de uma classe, as armas de destruição
em massa, o próprio aumento da população humana, contribuíram para
aumentar seus semelhantes. A obrigação de asilo é uma das poucas tradições
que podemos qualificar, sem dúvida, como realmente civilizada. E é também
o grande desafio atual que se coloca à nossas democracias. Os
solicitantes, é sabido desde Esquila, devem ser acolhidos: a barbárie
que os persegue é sua carta de cidadania diante dos quais nos temos como
diferentes e melhores que os bárbaros. Não há desculpas, apenas reparos
prudentes. Afinal de contas, a condição do desterrado lembra-nos, não
apenas a todo democrata, a todo ser humano reflexivo, a nossa própria.
Pois, como disse Empédocles, “a alma também está exilada: nascer é
sempre viajar para um país estrangeiro”. De nós depende que o acossado
e o desassossego desta condição comum se convertam em fraternidade cívica”.
Por
outro lado, verifica-se, na prática, uma dificuldade cada vez maior em
distinguir um imigrante de um solicitante de asilo. Na verdade,
considerando o contexto econômico, social e político do país de onde
procedem, ambas as categorias de pessoas confundem-se e ambas necessitam
de proteção internacional. Impõe-se, portanto, evitar que um refugiado
genuíno seja devolvido a seu país de origem onde sua vida, liberdade e
segurança corram perigo.
As
pessoas que se deslocam o fazem, fundamentalmente, por motivos econômicos
ou políticos e, na maioria dos casos, levando em conta a conjuntura
internacional atual; não pretendem chegar a nenhum paraíso, senão,
escapar do inferno existente em seu país. Os cidadãos bósnios,
albaneses, liberianos, kosovarianos, angolanos, haitianos, congoleses e
tantos outros, encontram-se nessa categoria de indivíduos à deriva e
seria pouco humano ou democrático negar-lhes proteção.
Como
disse a Sra. Sadako Ogata, atual Alta Comissionada das Nações Unidas, o
problema dos refugiados é um problema de humanidade e da humanidade.
Estratégias de solução no limiar do século
XXI
Os
temas relativos à problemática que encerra o fenômeno migratório
ocupa, hoje, um alto grau de prioridade na agenda política dos Estados
desenvolvidos.
Como
disse anteriormente, embora tenhamos presenciado, durante os últimos dez
anos, uma série de acontecimentos positivos na ordem internacional, tais
como a democratização de Estados totalitários ou o aumento do nível de
vida de muitos países em desenvolvimento, como também, obtido sucessos
importantes sobre a situação dos refugiados, ao verificar-se que milhões
de pessoas puderam retornar a seus lares e retomar sua vida de maneira pacífica
e produtiva e que muitos países continuarão concedendo asilo àqueles
que se viram obrigados a fugir de seus lares, não é menos certo dizer
também que existem tendências negativas realmente preocupantes. Neste
sentido, o ACNUR enfrenta, atualmente, uma crise que afeta severamente a
proteção internacional dos refugiados, ao mesmo tempo em que o
deslocamento de pessoas está crescendo. São muitos os países que ainda
apresentam evidente fragilidade política, social e econômica que os
torna vulneráveis a possíveis conflitos armados internos e que se
mostram incapazes de proteger seus cidadãos e, o que é pior ainda, não
estão dispostos a fazê-lo. Os etnonacionalismos e as tendências
separatistas das comunidades exacerbam, na maioria dos casos, os governos
autoritários, grupos rebeldes e senhores da guerra a recorrer à tática
do terror, que compreende ataques aos campos de refugiados, limpeza étnica,
deslocamento forçado, em massa, de populações e outras atrocidades como
tortura, execuções sumárias e violações de mulheres e meninas. Diante
de situações como as apresentadas, não devo fazer menos do que afirmar
que não pode haver segurança nos Estados enquanto não houver, nem se
garantir, a segurança dos cidadãos.
O
ACNUR refletiu sobre como proceder para que os Estados assumam suas
responsabilidades para atenuar a tensão existente entre os interesses dos
Estados e a proteção dos refugiados e como conseguir diminuir o fosso
existente entre as obrigações humanitárias que lhes cabe e suas políticas
e práticas públicas em matéria de proteção dos refugiados. Em recente
publicação do ACNUR, intitulada La
situación de los Refugiados en el Mundo – Un Programa Humanitário,
desenvolve-se uma estratégia mundial para enfrentar os problemas
referentes aos deslocamentos, em massa, de populações, que apela para a
um programa político e econômico voltado para a prevenção e que pode
ser resumido como segue:
Erradicar a pobreza,
para alcançar um crescimento econômico equitativo e o desenvolvimento
humano. Isto constitui um caminho bastante eficaz para salvaguardar a
segurança das pessoas. Para lográ-lo, o Programa das Nações Unidas
para o Desenvolvimento, em seu informe sobre o Desenvolvimento Humano de
1997, propõe como prioridade de ação:
a.
capacitação das pessoas e das comunidades pobres, de maneira tal que
possam participar das decisões que afetam suas vidas e ter acesso a
outras vantagens que os converta em pessoas menos vulneráveis;
b.
conseguir a igualdade entre os sexos e terminar com todo tipo de
discriminação contra a mulher, no sentido de que possam ter acesso a
oportunidades de emprego;
c.
promover formas de crescimento econômico que favoreçam os mais pobres,
garantindo o pleno emprego;
d.
ter mais cuidado com a gestão do processo de mundialização, de tal
maneira que se preste atenção à equidade e se possa reduzir a distância
entre as sociedades “vencedoras” e as “perdedoras”;
e.
garantir o estabelecimento de Estados fortes e legítimos, responsáveis
pela segurança de seus cidadãos e preocupados em promover os interesses
dos mais pobres;
f.
oferecer aos países mais pobres apoio internacional fundado no perdão
parcial de suas dívidas, na introdução de melhorias quanto à qualidade
e à quantidade da ajuda e na abertura dos mercados de todo o mundo às
explorações agrícolas.
Investir na paz, para
conseguir a estabilidade e a consolidação da paz naqueles países que saíram
de recentes conflitos armados, pois, do contrário, a ameaça da guerra
permanecerá latente, afetando não apenas a região envolvida, mas também
a comunidade internacional em seu conjunto. A pacificação exige um
compromisso continuado, é um processo no qual não basta que a comunidade
internacional negocie um acordo de paz ou desmobilize os combatentes,
supervisione as eleições e, em seguida, abandone o país à sua sorte. A
questão dos processos de paz deve ser abordada a partir de uma
perspectiva mais ampla, planificada de maneira conjunta, coordenada e a
longo prazo, levando em conta não apenas a ação humanitária, mas também
a política e o desenvolvimento.
Limitar o comércio de armas, por
meio da imposição de maiores restrições à fabricação, venda e uso
de armas mortíferas, tornar ilegais os instrumentos de guerra mais
destrutivos, limitar a aplicação de novas tecnologias armamentistas. É
necessário que os países compreendam que é perfeitamente possível
possuir economia próspera sem uma grande indústria armamentista.
Promover a democracia e os direitos humanos,
como únicos pilares possíveis para a manutenção e a consolidação da
paz, pois os países com governos democráticos não entram em guerras nem
recorrem a purificações étnicas de suas próprias populações, bem
como é pouco provável que se produzam neles insurreições de grupos étnicos
que levem seus habitantes a terem de fugir para proteger suas vidas. Para
alcançar este objetivo, a comunidade internacional não deve deixar de
valer-se da imposição de sanções diplomáticas, econômicas e
militares nos casos em que os governos sejam responsáveis por flagrantes
violações dos direitos humanos e das minorias.
Garantir que os Estados respondam por seus atos, ressaltando
o conceito de
“responsabilidade”, por meio da qual os Estados devem garantir a seus
cidadãos condições que não os obriguem a fugir em conseqüência do
medo ou da miséria. Tal responsabilidade deve ser entendia em seu sentido
amplo, tornando-se extensiva a todas as demais pessoas que participam nos
assuntos nacionais e internacionais, tais como grupos rebeldes, dirigentes
e partidos políticos, senhores da guerra e facções militares, entre
outros. Porém este conceito de responsabilidade coletiva deve estar
harmonizado com o de responsabilidade individual, toda vez que os
movimentos de refugiados e de deslocados internos não forem produtos do
acaso nem fruto de forças históricas abstratas ou anônimas; ocorrem
porque determinados indivíduos decidem violar os direitos de outros,
colocar em perigo suas vidas e tonar impossível viver em segurança em
seus próprios lares. Em decorrência do acontecido na ex-Iugoslávia e em
Ruanda, os tribunais internacionais, criados para julgar os crimes de
guerra perpetrados nestes países, encontraram-se com numerosos problemas
e terminaram por não poder processar os suspeitos mais importantes. Sem
prejuízo disto, a recente criação do Tribunal Penal Internacional,
materializada pelo “Tratado de Roma”, de julho do presente ano, que
permite julgar os crimes de guerra, de agressão, de genocídio e contra a
humanidade, com a finalidade de acabar com a impunidade dos grandes
crimes, é um avanço histórico fundamental para as gerações futuras e
um limite ao autoritarismo.
Nesse
marco sucintamente explicado, o ACNUR espera que, no processo de consolidação
de um espaço humanitário, isto é, um espaço de distensão, construído
segundo princípios e práticas humanitárias, os Estados assumam
cabalmente suas responsabilidades em matéria de migrantes e de
refugiados, tanto no que se refere à proteção efetiva de seus direitos
como à integração social e econômica nos países de acolhida.
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