Cidadania ecológica
Carlos Minc (1)
"As
5.000 motosserras distribuídas são instrumentos de
trabalho"."Sem o mercúrio não há garimpo nem
ouro ". "Se
Angra I(2) parar algum tempo, haverá racionamento de
energia". "Sem
a mistura de 33% de metanol haverá racionamento de álcool". "Se
a CSN(3) instalar todos os sistemas de tratamento exigidos, irá
à falência". "Sem
o carvão vegetal das matas nativas, as usinas de ferro-gusa
do Programa Grande Carajás terão de fechar". "Os
índios estão aculturados e ocupam um território muito maior
do que sua população necessita". "Proibir
a pesca à baleia implica fechar empresas no Nordeste". "O
tombamento de várias áreas urbanas irá inviabilizar a
construção civil". "O
submarino nuclear tem fins pacíficos e é indispensável ao
nosso desenvolvimento tecnológico". "A
eficiência da agricultura moderna depende dos defensivos químicos".
Essas frases e muitas outras com
o mesmo sentido foram repetidas nos últimos tempos.
A preocupação com a defesa da
vida, da natureza e da solidariedade com as gerações futuras
é desqualificada como um obstáculo ao crescimento econômico e
ao progresso.
Apesar da insensibilidade
produtivista, aumenta a consciência ecológica no país. As
universidades e os institutos de pesquisa se dedicam cada vez
mais a analisar todas as agressões aos ecossistemas e a buscar
alternativas tecnológicas que compatibilizem desenvolvimento e
ecologia. A imprensa, o Parlamento, a Justiça, as associações
civis estão cada vez mais atentas às questões que envolvem a
defesa das florestas, da fauna e da qualidade de vida.
Podemos considerar estas
manifestações como o prenúncio do desenvolvimento de uma nova
dimensão da cidadania?
Há meio século o sociólogo
Marshall refletia acerca do percurso histórico do
desenvolvimento dos campos de direitos de cidadania,
sucessivamente conquistados e incorporados, apesar da resistência
dos grupos dominantes e dos interesses econômicos.
A instituição da Cidadania
Civil consagrou no século XVIII as liberdades individuais, como
a liberdade de expressão, de pensamento e de credo religioso.
Apenas no século XIX a Cidadania Política é ampliada com a
extensão do direito de voto e de participação dos cidadãos
no exercício do poder político. A base da Cidadania Social e
Econômica é consagrada no século XX, com o reconhecimento do
direito à educação, à saúde, ao salário digno, à terra.
Albert Hirschman nota o espaço de um século entre cada uma
destas grandes dimensões de cidadania conquistadas e analisa
como o pensamento reacionário fustiga os conceitos e as políticas
que as incorporam, desqualificando sobretudo as medidas que se
propõem a assegurar a Cidadania Social e Econômica.
Mantidos os intervalos seculares
de incorporação das dimensões da cidadania, o século XXI
deverá consagrar a Cidadania Ecológica, e o que assistimos
hoje é à mesma resistência desesperada de interesse econômico,
tal como sucedeu nos séculos anteriores. Pelo aumento do tom e
da agressividade, os porta-vozes do racionalismo econômico
evidenciam o presságio de uma nova era. As instituições econômicas
de maior densidade e de horizonte temporal já se programam e
investem em tecnologia alternativas e não poluentes e no
mercado de produtos ecológicos naturais, reciclados, biodegradável,
que, por sua natureza, já constituem a sua própria propaganda.
A Áustria, a Itália e a Suécia,
através de plebiscitos, decidiram-se a não expandir seus
programas nucleares e a investir em energias alternativas,
inclusive a eólica, a solar e a geotérmica. Até países que têm
poucos meses de sol por ano investem em pesquisa de energia
solar, enquanto no Brasil, a Terra do Sol, se investe em
submarino nuclear. A frente do programa israelense de energia
solar estão dois brasileiros, que não encontram oportunidade
no seu próprio país. É triste.
O acidente do Césio 137 em Goiânia
mostrou que a desinformação do povo e o despreparo total das
autoridades podem transformar 100 gramas radioativas num terrível
pesadelo de uma cidade, numa Goianobyl, e o drama de muitas
destas famílias atingidas continua.
Os cientistas e físicos
independentes que realizam a perícia gratuitamente, como cidadãos
responsáveis, sobre as condições de segurança de Angra I e
os sucessivos juizes federais que acolheram a indicação destes
laudos, não contestados em tempo hábil por Furnas, não podem
ser responsabilizados por qualquer pane do sistema energético.
Perguntamos: quem é responsável
pelo desperdício de 30% da energia gerada no país? Quem é
responsável pelo indefinido atraso na pesquisa e adoção de
tecnologias poupadas de energia e de energias alternativas? Quem
será responsável, em caso de acidente nuclear improvável, mas
não impossível, numa situação de queda de barreiras no
Rio-Santos, se Angra for transformada numa ratoeira nuclear?
O caso do metanol foi exemplar. A
incompetência dos responsáveis pela política energética do
país e os favorecimentos ilícitos obtidos por uma década
pelos usineiros, que se descompromissaram com o abastecimento do
álcool, são obscurecidos em nome do santo remédio que evitará
a crise: o metanol. O descumprimento das leis e da Constituição
, a ausência de relatórios de impacto e de prévio treinamento
dos frentistas são também escamoteados numa guerra contra os
que advertiram riscos, exigiram que as normas legais fossem
obedecidas e quiseram ver tomadas as medidas, conhecidas há três
anos, que poderiam evitar esta crise. As posições críticas à
adoção do metanol numa mistura de 33%, sem estudos confiáveis,
tomadas pela Sociedade Brasileira de Química, pela Sociedade
Brasileira de Bioquímica e Biologia Molecular e por diversos
cientistas e médicos foram menos divulgadas do que os não-desinteressados
apelos dos usineiros e das montadoras de veículos.
A população tem o direito de
saber de tudo o que diz respeito à sua saúde, à sua segurança
e à sua vida. O pânico vem da desinformação, como Goianobyl
nos ensinou. É bom que todos nos habituemos a respeitar nossa
Constituição, porque a população e a Justiça estão
atentas. A ecologia é saudada por todos enquanto é
bem-comportada, lírica, institucional, e não incomoda. Quando
imensos interesses estão em causa, a reação é violenta e
pretende desqualificar as entidades ambientalistas. Esta reação
não é diferente da que tenta obstaculizar a implantação do
combate biológico a pragas para defender o lucrativo mercado
dos agrotóxicos, ou da que impede a efetiva demarcação das
reservas extrativistas na Amazônia para defender os interesses
de madeireiros e pecuaristas.
Uma nova era, no entanto, se
aproxima, em que a natureza será tratada como nossa aliada e não
como nossa inimiga, e o ambiente como um patrimônio genético e
social, base da qualidade de vida da população. Quando as
sociedades incorporarem de fato a Cidadania Ecológica, os
direitos dos índios, os seringueiros, o direito ao ar puro, ao
verde serão tão cristalinos como é hoje o direitos à informação
e ao voto universal. Os que hoje se negam a instalar estações
de tratamento dos efluentes industriais ou a submeterem relatórios
de impacto ambiental à avaliação pública cumprem o mesmo
papel daqueles que resistiram à extensão do voto às mulheres
ou à adoção da jornada de oito horas de trabalho: monumentos
do atraso na história da constituição da Cidadania.
Notas
(1) Deputado Estadual PV/RJ.
(2) Usina Nuclear existente na
cidade de Angra dos Reis/RJ.
(3) Companhia Siderúrgica
Nacional.
|