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RODRIGO CORRÊA TEIXEIRA

HISTÓRIA DOS CIGANOS NO BRASIL 

 

Núcleo de Estudos Ciganos

E-Texto no. 2

Recife, 2000

 

INTRODUÇÃO

História dos Ciganos no Brasil
Rodrigo Corrêa Teixeira
PDF 0,66 MB

Os ciganos

Este livro tenta narrar, na medida do possível, parte da história de um povo, ou melhor, de um conjunto de comunidades dispersas pelas mais diversas regiões do Brasil, os assim chamados  “ciganos”. Suas origens são incertas, seus costumes e línguas variam entre os muitos grupos em que se dividem. As relações entre estes assim chamados ciganos e os membros das sociedades envolventes, por terem se diferenciado bastante, no tempo e no espaço, nunca forma tranqüilas.

À parte a complexa definição da identidade cigana, a documentação conhecida indica que sua história no Brasil iniciou em 1574, quando o cigano João Torres, sua mulher e filhos foram degregados para o Brasil.[1] Em Minas Gerais, a presença cigana é nitidamente notada a partir de 1718, quando chegam ciganos vindos da Bahia, para onde haviam sido deportados de Portugal.

Em Minas Gerais, durante o século XIX, praticamente só se falava de ciganos quando sua presença inquietava as autoridades. Isto ocorria, por exemplo, quando eram acusados de roubarem cavalos. Nas poucas vezes que se escrevia sobre aspectos culturais dos ciganos, não havia qualquer interesse sobre como eles próprios viam sua cultura. Os contadores da ordem pública, com os chefes de polícia, os compreendiam como sendo "perturbadores da ordem", responsáveis pelos mais hediondos crimes.

Outras fontes, como viajantes e memoralistas, recorriam aos estereótipos corriqueiros, como "sujos", "trapaceiros" e "ladrões". Isto funciona como um indicador: os ciganos eram raramente considerados por si mesmos, e com freqüência, eram sinônimos de barbárie, imundice, desonestidade e imoralidade. Assim, a documentação se detém pouco sobre os ciganos singulares, que tornam-se desprovidos de existência. Quase sempre incidem sobre "o cigano", entidade coletiva e abstrata à qual se atribuem as características estereotipadas.

A documentação sobre ciganos é escassa e dispersa. Sendo ágrafos, os ciganos não deixaram registros escritos. Assim, raramente aparecendo nos documentos, aproximamo-nos deles indiretamente, através de mediadores, chefes de polícia, clérigos  e viajantes, por exemplo. Nestes testemunhos, a informação sobre os ciganos é dada por intermédio de um olhar hostil, constrangedor e estrangeiro.

Os ciganos nas cidades mineiras estavam em dissonância aos ideais de civilização e progresso, tão marcantes deste período. São identificados como elementos incivilizáveis, inúteis à sociedade, supersticiosos, corruptores dos costumes, vândalos, enfim, uma anomalia social e racial. Uma vez vistos desta maneira, as autoridades tentavam controlá-los, no entanto, sem obterem grande eficácia. No final do século XIX e início do XX, ocorreu o ápice dos confrontos entre a polícia e os ciganos. Foram as "Correrias de ciganos" que, como veremos mais adiante, eram movimentações destes em fuga, por estarem sendo perseguidos pela polícia. Nestas correrias haviam freqüentes tiroteios, que resultaram em mortos de ambos os lados.

A fim de adiantarmos algo sobre a percepção das nuances no discurso sobre os ciganos, iremos dar uma rápida prova disto, analisando duas definições de ciganos em dicionários. Pierre Bourdieu, acertadamente, afirma que "o dicionário está cheio de uma certa mitologia política".[2] No entanto, quando se fala da opinião formada em torno dos ciganos, deve-se considerar que algumas vezes, eles mesmos contribuíram para a construção de uma "mitologia". Assim, "em algumas ocasiões, as autoridades locais e os próprios ciganos produziram por diferentes razões ideológicas, mitos coincidentes sobre o verdadeiro cigano."[3]

Primeiramente, vejamos como o Padre Raphael Bluteau, autor do primeiro dicionário de Portugal, repercute as preocupações que a Igreja tinha com o comportamento considerado herege dos Ciganos, no início do século XVIII:

 

"Ciganos – Nome que o vulgo dá a uns homens vagabundos e embusteiros, que se fingem naturais do Egito e obrigados a peregrinar pelo mundo, sem assento nem domicílio permanente, como descendentes dos que não quiseram agasalhar o Divino Infante quando a Virgem Santíssima e S. José peregrinavam com ele pelo Egito."[4]

 

O fato de não empregarem os sacramentos católicos (casamento ou batismo de crianças, por exemplo), em favor de seus costumes, desafiava a moral religiosa, que pretendia controlar todas as parcelas da sociedade. Tomada como afronta a Igreja, as cerimônias que os ciganos faziam a sua maneira, gerou uma duradoura antipatia do clero. Embora a "feitiçaria" cigana poucas vezes ia além da prática da buena dicha, ela era rigorosamente atacada pelos religiosos. O agravante disto, era que uma vez atingida a Igreja, a coroa Portuguesa também se sentia afetada.[5]

No século XIX, os ciganos continuaram a serem vistos como um grupo desprezível, por não se guiarem por preceitos católicos. No entanto, esta visão foi suavizada, porque a compreensão dos ciganos enquanto raça e grupo socialmente desclassificado obteve maior importância.

Um século depois, o dicionário do Padre Blateau passou a ser reeditado sob a direção do brasileiro Antonio de Moraes Silva, que define os ciganos da seguinte forma:  

"Raça de gente vagabunda, que diz vem do Egito, e pretende conhecer de futuros pelas rayas, ou linhas da mão; deste embuste vive, e de trocas, e baldrocas; ou de dançar, e cantar: vivem em bairro juntos, tem alguns costumes particulares, e uma espécie de Germania com que se entendem. (...) Cigano, adj. que engana com arte, subtileza, e bons modos."[6] 

As idéias de trambiqueiros, de divulgarem terem vindo do Egito, e a de vagabundo, que contém em si também a de nômade, permanecem. Mas as menções religiosas foram retiradas, e não apenas porque o novo editor não era um clérigo, mas porque realmente a imagem se transformou. Continuavam como um grupo criminalizado, mas dá-se ênfase aos seus aspectos culturais.

Na consulta de outras fontes, muitos outros adjetivos negativos foram listados; imorais, sem honra, gananciosos, esbanjadores, sujos etc. Cada uma destas imagens teve períodos de maior e menor destaque. Além disto, combinaram-se entre si das mais diversas maneiras, produzindo um painel extremamente amplo de imagens dos ciganos. 

A história e os ciganos. 

Da simples intenção de se estudar os ciganos em Minas Gerais durante o século XIX à construção da hipótese principal, foi preciso que o árduo trabalho de arquivo, em conexão com uma bibliografia sobre o período e sobre os ciganos, fosse realizado num ir e vir incessante.

Comparando os restritos testemunhos literários, com os relativamente abundantes trechos de memórias e relatos de viagens, a série de posturas municipais, as notícias de jornais, a documentação policial e outras fontes menos expressivas, conseguiu-se perceber tanto as semelhanças e diferenças do todo dessa documentação quanto estabelecer referências mais precisas para as balizas cronológicas.

Primeiramente, abriram-se duas possibilidades de estudo: a transformação do papel sócio-econômico dos ciganos e as mudanças na imagem que a sociedade formara deles. E descartar a perspectiva de um estudo exaustivo do cotidiano cigano, já que as fontes não propiciavam fazê-lo.

As datas limites deste estudo são 1808 e 1903. Este período de quase cem anos justifica-se pela primazia dada às relações entre os ciganos e a sociedade que os abriga. Isso requisitou uma perspectiva que permitisse perceber um movimento, relativamente lento, de transformação das imagens e dos papéis dos ciganos na sociedade. Também a escassez da documentação exigiu que se estendesse tanto os marcos temporais. Pois apenas assim foi possível compreender determinados sentidos da documentação que, se considerada parcialmente e em períodos menores, não permitiria tal contemplação. A instalação da Corte Portuguesa no Rio de Janeiro em 1808, junto com as suas conseqüências imediatas (como a abertura dos portos às nações amigas ¾ leia-se Inglaterra) e as muitas mudanças profundas na política, economia e sociedade (principalmente, a interiorização da metrópole), proporcionou a ascensão sócio-econômica dos ciganos, principalmente dos comerciantes de escravos, no Rio. Os ciganos, em Minas Gerais, viveram um momento de expansão desse tipo de comércio, embora não tivessem gozado do mesmo prestígio e riqueza que seus congêneres cariocas.

Em 1798, a população escrava representa 48,7% do total populacional.[7] Isto dá uma idéia da importância do mercado escravista no Brasil. Aproveitando-se do aquecimento econômico, atrelado ao estrondoso crescimento populacional vivido pela cidade do Rio de Janeiro[8], os ciganos, estabelecidos de forma concentrada no Campo de Santana, aproveitaram-se do espaço desocupado no mercado de escravos de segunda mão, que atendia a proprietários de plantéis menores.

Além dos mercados na rua do Valongo, os ciganos comerciaram escravos por várias partes do interior do país; em Minas Gerais, podemos confirmar que tiveram um papel importante nesse comércio. Isto proporcionou uma maior aceitação e mesmo valorização social dos ciganos, já que exerciam uma atividade reconhecida como útil por grande parte da população. Alguns ciganos tornaram-se ilustres, patrocinando até festividades na Corte. Esse momento sui generis da história cigana no Brasil coincidiu com a ascensão do movimento romântico na Europa que repercutia no Brasil, com a visão de que o cigano era a encarnação dos ideais da vida livre e integrada a natureza. Além disso, houve uma idealização da mulher cigana, agora não mais uma miserável e desonesta quiromante, mas uma mulher forte, sensual e, ainda que vingadora e passional, fascinante.

Em fins da década de 1820, viram esse breve momento de prestígio começar a ruir, com os movimentos políticos pela Independência. Somaram-se a isso, a partir de meados do oitocentos, os golpes fatais sobre o escravismo (1850, 1871 e que culminaram com 1888).

O impulso que a política de construção de uma identidade nacional teve, a partir da Independência, gerou um cerceamento cada vez maior tanto dos deslocamentos quanto da própria identidade dos ciganos. Tal fato se deu pelo crescimento de importância da idéia de modernização e civilização dos costumes junto às elites brasileiras, que "pretenderam estabelecer um reordenamento físico das cidades, higienizar as vias públicas e excluir dos centros urbanos todos os indivíduos que não se adequaram à nova ordem."[9]  Embora "civilização" e "progresso" fossem expressões fundamentais na cultura européia desde os fins dos setecentos, no Brasil, foi no transcurso do século XIX que se almejaram tais metas, cada vez mais. Desse momento em diante, intensificou-se a repressão às populações marginalizadas, entre elas os ciganos. Eles tanto não se enquadravam na nova ordem como, também, segundo a sociedade acreditava, a ameaçavam. Assim, a segregação ou expulsão dos ciganos da cidade passa a integrar o projeto "civilizador" das autoridades imperiais.

A condenação pública do escravismo cada vez mais acentuada e as respectivas leis restritivas debilitaram o comércio escravista e os ciganos passaram a se concentrar nas transações de cavalos e mulas. Em 1872, a população escrava era apenas de 15,2%, muito distante dos quase 50% de sete décadas antes.[10] O comércio de escravos foi sendo visto, no transcurso da segunda metade do século XIX, cada vez mais como um ofício degradante e vil. Após a abolição da escravatura, em 1888, os poucos ciganos que ainda insistiam neste comércio, perderam sua principal fonte de renda e se tornaram miseráveis (como tantos outros ciganos na época) o que os levou a tentar se adaptar à nova conjuntura sócio-econômica.

Dos fins do período Imperial até os primeiros anos depois de instalada a República, ocorreram inúmeras diligências policiais no encalço de bandos ciganos em Minas Gerais, que resultaram em sangrentos confrontos. Os anos de maior destaque dessas fugas e perseguições relatadas na imprensa e nos relatórios policiais, foram 1892 e 1897. Depois de 1903, no entanto, foi interrompida a enorme preocupação policial com os ciganos, desaparecendo as referências documentais sobre correrias ciganas. Passados alguns anos, eventualmente, houve problemas entre ciganos e polícia (1909, 1912, 1916 e 1917).[11] Mas não houve qualquer continuidade das "Correrias de Ciganos" ocorridas até 1903, o que justifica o marco cronológico final.

Não se conseguiu identificar, na lacuna que se seguiu (pela ausência de acontecimentos) o fim das correrias. Nem o contexto histórico forneceu indícios que pudessem sustentar qualquer hipótese viável para o término desses eventos. No entanto, hipoteticamente, pode-se considerar que o grande afluxo de imigrantes tenha polarizado, cada vez mais, as preocupações das autoridades, que tentavam estabelecer planos de assimilação para eles. Com isto, tendo um problema demograficamente mais importante para resolver, o controle sobre os ciganos pode ter se tornado frágil. Também, como hipótese, outro fator pode ter atuado: os ciganos teriam, gradativamente, se reacomodado econômica e socialmente, estabilizando seus negócios e necessitando de realizar menos movimentações, que tanto preocupavam as autoridades policiais. 

Denominações e diversidade 

Desde o século XV a palavra “cigano” é utilizada como um insulto.[12] O termo aparece registrado pela primeira vez em português em A farsa das ciganas de Gil Vicente, provavelmente em 1521. Nesta obra os ciganos são considerados como originários da Grécia.[13] No século XIX, no Brasil, não se fala nem que são originários da Grécia nem da Índia. Apesar de ganhar cada vez mais força, na Europa, a explicação de que os ciganos teriam vindo do subcontinente indiano. No entanto, há menções sobre ciganos, no Brasil, em que eles se diziam descendentes de antigos egípcios: 

"No Brasil os ciganos afirmam também que procedem do Egito; e contam a velha lenda de que, por terem recusado hospedagem à Virgem Maria quando ela fugia, peregrinam sobre a terra dispersos, sem pátria, por todos os tempos."[14] 

Algumas vezes são chamados de turcos. Notícias de O Pharol, de Juiz de Fora, referem-se a esses "turcos" pedindo esmolas e impingindo bugigangas às pessoas.[15] Há ainda uma "reclamação vinda de Porto das Flores sobre a presença de 'turcos' naquela localidade."[16]

Em geral, nas posturas municipais que tratam de ciganos, em primeiro lugar, eles são associados às "pessoas desconhecidas e suspeitas." Em seguida, são definidos como sendo "os que são por taes havidos", ou seja, reconhecidos socialmente como ciganos. Reconhecimento dado porque eles "costumão a fazer freqüentes trocas e compras de animaes, e vendas de escravos, e não são moradores no Termo, ou não há pessoa capaz, que os conheça, e abone." Assim, eram relacionados, a priori, ao comércio de mercadorias roubadas (escravos, animais e objetos variados), a não ser que houvesse alguém que afiançasse sua honestidade. A idéia que orientava este prejulgamento, era a de que apenas seria confiável o indivíduo com residência fixa. Pois o nômade não tinha  morador que o conhecesse e o abonasse.

O historiador traz na mente um cigano típico (um protótipo), mas que necessita ser desmontado pelas evidências de grupos ciganos na diversidade de situações em que se encontram. Se for sensível, compreenderá que, antes de tudo, deve desconstruir o modelo sobre os genericamente chamados ciganos. Uma história de ciganos deve ser feita de muitas exceções, impossibilidades, contradições, incongruências, contra-sensos. Essa perspectiva tem um cigano que extrapola a coerência que a escrita tradicional do historiador exige; as condições espaciais e temporais individualizam muito os ciganos; a história dos ciganos é a história de um mosaico étnico. Este cigano - total abstração - é como a repetição infinita de um modelo ou motivo que se realiza através de variantes ilimitadas.[17]

Nas últimas décadas, pesquisadores, ciganos ou não, consagraram a distinção dos ciganos, no Ocidente, em três grandes grupos. O grupo Rom[18], demograficamente majoritário, é o que está distribuído por um número maior de países. É dividido em vários subgrupos (natsia, literalmente, nação ou povo), com denominações próprias, como os Kalderash, Matchuara, Lovara e Tchurara. Teve sua história profundamente vinculada à Europa Central e aos Balcãs, de onde migraram a partir do século XIX para o leste da Europa e para a América. Muitas organizações ciganas e vários ciganólogos têm tentado substituir, no léxico, Ciganos por Rom. A este processo tem-se denominado romanização, e tem a intenção de conferir legitimidade a estes grupos como sendo o dos "verdadeiros ciganos." Há ainda, pelo menos, duas derivações dessa política. A primeira, a do subgrupo Kalderash, autoproclamada a mais "autêntica" e "nobre" entre as comunidades ciganas. A segunda é a do grupo lingüístico vlax romani, considerado, por muitos pesquisadores, como portador da "verdadeira língua cigana".



[1].    Coelho, F.  A., Os ciganos de Portugal; com um estudo sobre o calão, Lisboa, Dom Quixote, 1995. (Original: 1892). p. 199-200.

[2].    Bourdieu, P. , Questões de Sociologia, Rio de Janeiro, 1983. p. 30.

[3].    Acton,  Th., Gypsy politics and social chance,  London and Boston, Routledge & Keghan Paul, 1974. p. 54.

[4].     Bluteau, R., “Cigano”, In: Vocabulário portuguez, & latino, aulico, anatomico, architectonico...; tomo II, Coimbra, Real Collegio das Artes da Companhia de Jesu; Lisboa Ocidental, Pascoal da Sylva, 1712. p. 311-312.

[5].     Donovan, B., “Changing perceptions of social deviance: gypsies in early modern Portugal and Brazil”,  Journal of Social History,  Vol. 26,  1992,  p. 35.

[6].    Silva, A. de Moraes, “Cigano”,  Dicionário da lingua portuguesa,  Rio de Janeiro, Officinas de S.A. Litho-Typographia Fluminense, 1922, Tomo Primeiro. p. 396.

[7].     Schwarcz, L. Moritz, O espetáculo das raças; cientistas, instituições e questão racial no Brasil, 1870-1930.  São Paulo,  Cia. das Letras, 1993. p. 13.

[8].      Passando de cerca de 60 mil em 1808 para 122.695 habitantes em 1821, ano de regresso da família Real para Portugal; cf. Mattos, I. Rohloff,  O tempo Saquarema; a formação do estado imperial., São Paulo, Hucitec, 1990. p. 50.

[9].      Fraga Filho, W., Mendigos, moleques e vadios na Bahia do século XIX, São Paulo, HUCITEC; Salvador, EDUFBA, 1996, p. 179.

[10].   Schwarz, 1993. p. 13.

[11].   Cf. Dornas Filho, J., “Os ciganos em Minas Gerais”,  Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais, Belo Horizonte, ano III, vol. III, 1948, p. 166.

[12].   Fraser, A.,  The gypsies, Oxford, Blackwell Publishers, 1992, p. 48.

[13].   Vicente, G., Obras completas,  Vol. 5,  3ª ed. Lisboa,  Livraria Sá da Costa, s.d. [“A farsa das ciganas” (1521?), pp. 319-329].

[14].   Pohl, J. B. E., Viagem no interior do Brasil,, [Primeira Parte], Rio de Janeiro, MEC/INL, 1951  (Original: 1832),  p. 274.

[15].   Goodwin Junior, J. W., “Império do Brasil: nesta nação nem todo mundo é cidadão!”, Caderno de Filosofia e Ciências Humanas, Belo Horizonte, ano V, nº 9,  1997. p. 32; baseando-se em: O Pharol, Juiz de Fora, 27 set. 1884 e 07 fev. 1885.

[16].   Goodwin Junior 1997,  p. 32; baseando-se em O Pharol, Juiz de Fora, 07 abril 1988.

[17].  "A grande falha da literatura sobre ciganos, oficial e acadêmica, é a supergeneralização, observadores têm sido facilmente levados a acreditar que práticas de grupos particulares são universais, com a concomitante sugestão de que qualquer grupo que não seguisse as mesmas práticas não seriam 'verdadeiros' ciganos." (Acton, Th., Gypsy politics and social change,  London and Boston, Routledge & Kegan Paul, 1974. p. 3).

[18].  Rom, substantivo singular masculino, significa homem e, em determinados contextos, marido; plural Roma; feminino Romni e Romnia. O adjetivo romani é empregado tanto para a língua quanto para a cultura. Apesar disto, como fazem muitos outros ciganólogos, a seguir sempre escreveremos "os Rom" e não "os Roma", da mesma forma "os Calon", "os Sinti", etc. Na falta de um acordo formal sobre a grafia das autodenominações ciganas, aplicou-se também a estas a "Convenção para grafia dos nomes tribais", que "se escreverão com letra maiúscula, facultando-se o uso de minúscula no seu emprego adjetival", e "os nomes tribais não terão flexão portuguesa de número ou gênero, quer no uso substantival, quer no adjetival" (“Convenção para a grafia dos nomes tribais”, Revista de Antropologia, São Paulo, vol. 2, nº 2, 1954, p. 152).

Os Sinti, também chamados Manouch, falam a língua sintó e são numericamente expressivos na Alemanha, Itália e França. No Brasil, nunca foi feita uma pesquisa apurada sobre sua presença. Provavelmente, os primeiros Sinti chegaram ao país também durante o século XIX, vindos dos mesmos países europeus já mencionados.

Os Calon, cuja língua é o caló, são ciganos que se diferenciaram culturalmente após um prolongado contato com os povos ibéricos. Da Península Ibérica, onde ainda são numerosos, migraram para outros países europeus e da América. Foi de Portugal que vieram para o Brasil, onde são o grupo mais numeroso. Embora os Calon tenham sido pouco estudados, acredita-se que não haja entre eles algo que se assemelhe à complexa subdivisão dos Rom.

Historicizar os ciganos nos remete a compreendê-los na sua pluralidade e no seu excepcionalismo. Há uma generalidade reducionista ao se chamar de ciganos indivíduos e/ou comunidades com diferenças significativas entre si. Precisa-se, assim, tomar cuidado ao denominar "cigana" a identidade de grupos que chegaram ao Brasil deportados de Portugal, desde o século XVI e, ao mesmo tempo, a identidade de famílias oriundas dos Balcãs e da Europa Central, que chegaram ao país no final do século XIX. Trata-se de uma enganosa generalização, sem dúvida, pois que o espaço e o tempo modificam sensivelmente a constituição desses "sujeitos".

Assim, um cigano Calon  e um cigano Rom só possuem predicado idêntico no domínio da linguagem, quando emitimos proposições como: "Este Calon é cigano" ou "Aquele Rom é cigano". Mas a percepção atenta das singularidades nega, taxativamente, a suposta identidade dos nomes e dos predicados.

Em contraposição a isso tudo, os ciganos pensam em si próprios de forma fragmentária. Cada cigano tem uma forte identificação com seu grupo familiar ou com as famílias que têm o mesmo ofício. Mas não existe uma identidade única entre todos os ciganos.

Entretanto, apesar de não corresponder aos atributos percebidos ao nível da singularidade dos indivíduos, o tempo cigano é capaz de nos levar a um reconhecimento ou a uma diferenciação mínima. Por exemplo, não se confundia um cigano com um índio ou um mascate libanês.

Quando alguém usa o predicado "cigano" para qualquer "sigano" ou "pessoa assiganada" (como aparece em documentos coloniais), está querendo propor que este predicado representa uma relação de semelhança entre identidades. Isso é aceitável. Mas não concordamos com a concepção ingênua de que esse predicado estivesse contendo uma correspondência perfeita com os seus referentes.

No domínio dos ciganos, não existem senão múltiplas identidades. Daí que o termo cigano não designa as comunidades por nomes que elas próprias dão para si. Ele designa, isto sim, uma abstrata imbricação de comunidades ciganas. A diferença é muito grande, pois na realidade não existem ciganos, mas sim diversas comunidades (historicamente diferenciadas) chamadas de ciganas, mantendo relações de semelhança e/ou dissemelhança umas com as outras.

O termo cigano traz consigo uma série de inquietudes semânticas, ideológicas, antropológicas etc. Uma vez diagnosticada a complexidade e as ambigüidades inerentes à referida expressão, ao dissertarmos, torna-se impossível termos pretensões de elaborar sínteses conclusivas. Pois o complexo de certezas sobre o qual se apoia essa noção é bastante instável.

A dispersão e o nomadismo, que tiveram início há mais de dez séculos, propiciou tantos contatos interétnicos e adaptações às condições espaço-temporais, que aplicar qualquer termo para o conjunto das comunidades ditas ciganas é um tanto arriscado.

O que nos parece claro é que os ciganos não são um grupo religioso ou uma nacionalidade. Além do mais, preferiu-se não chamar os ciganos de povo, pois também esta expressão tem significados pouco precisos e muito ambíguos.

Na falta de um vocábulo que designe com propriedade o conjunto completo de todas as comunidades ciganas, adotar-se-á a expressão "ciganos", cujo sentido é aceito na sua generalidade, para referir-se a todos os indivíduos assim chamados. Embora se reconheça que tal uso nunca tenha tido plena legitimidade no seio das várias comunidades analisadas.

A categoria "cigano" opera inúmeras descontinuidades, enquanto a narrativa do historiador necessita de conceitos que expressem um mínimo de continuidade. Ao contrário, estar-se-ia a cada momento escrevendo a história de um novo objeto de estudo.

Os segmentos do mosaico existem, sobretudo, no domínio das descrições ou das teorias ciganológicas, influenciada pela insistência de classificação neopositivista. Ora, o que temos são grupos e suas variantes, decorrentes de combinações diversas, condicionadas por tempos e espaços particulares. Assim, os ciganos são múltiplos e unos.

Nenhum cigano conhece todos os detalhes da identidade em que está inserido. Tal como não conhece todo o espaço cultural que o comporta, não sabendo, pois, ler todo o seu "mapa cultural". Toda cultura, afinal, oferece uma margem de manobra para os seus membros. Há aspectos da identidade cigana compartilhados por todos os ciganos, outros que são particulares de cada subgrupo e ainda outros selecionados pelo indivíduo num leque de opções. Cada cigano é portador de um conjunto singular de elementos dessa identidade, embora, não haja uma noção de individualidade tal como no mundo ocidental.

Toda história dos ciganos é, na verdade, uma viagem nas línguas, nas estéticas, nas políticas antivagabundos e antiartistas, nas religiões, nas concepções de mundo, com os quais vários grupos ciganos, sucessiva e contraditoriamente, tiveram contato. Nisso a universalidade dos ciganos se manifesta.

Nesta história dos ciganos a diferença não pode se dissipar. Para ser honesta, ela deve mostrar muitas precauções para não condensar num padrão as particularidades de grupos variados (em momentos e espaços distintos), porque assim o discurso perderia informação, e a história, o sentido. Não se pode também confundir os ciganos com os discursos que os descrevem, ainda que se reconheça a existência de uma conexão entre eles.

Dito isto, ressalta-se que as diferenças  e a diversidade entre os ciganos não impedia que houvesse solidariedade. Os ciganos faziam da própria fluidez, da flexibilidade, de sua identidade um fator de fortalecimento desta solidariedade. Pois rearranjavam sua identidade de acordo com suas necessidades, por meio de alianças matrimoniais ou pelas festas que envolviam comunidades distintas. Além disto, colocadas em oposição aos não-ciganos, as várias comunidades se sentiam irmanadas.

As narrativas históricas sobre os ciganos, muitas vezes, perdem-se pela generalização exagerada (fala-se dos "ciganos" como tendo apenas uma única cultura); apenas umas poucas linhas sustentam o caráter diferencial de cada comunidade cigana estudada. E quando os autores se cansam das individualidades, esboçam a unidade (frágil e talvez inexistente) de múltiplos ciganos. Tanto o historiador quanto o ciganólogo escrevem como se todos os ciganos fossem apenas um só (o "cigano típico" ou o "cigano genérico").

Portanto, resta desconstruir essa unidade discursiva sobre os ciganos, pelo estudo das particularidades do caso em questão, tentando perceber as visões positivas e negativas que orientaram as ações da sociedade mineira frente aos ciganos. E também, como os ciganos flexibilizaram sua identidade diante das transformações conjunturais pelas quais passaram.

 

População cigana no Brasil. [1]

 

Quase nada sabemos sobre os ciganos brasileiros na atualidade. As pesquisas até agora realizadas no Brasil provam a existência de ciganos de pelo menos dois grupos diferentes: os Calon que migraram para o país, voluntária- ou compulsoriamente, já a partir do Século XVI, e os Rom que, ao que tudo indica, migraram para o Brasil somente a partir de meados do Século XIX. Nenhuma publicação trata de ciganos Sinti, mas que com certeza também devem ter migrado para o Brasil, junto com os colonos alemães e italianos, a partir do final do Século XIX. Segundo dados oficiais, de 1819 a 1959 migraram para o Brasil 5,3 milhões de europeus, dos quais 1,7 milhão portugueses, 1,6 milhão italianos, 694 mil espanhois, 257 mil alemães e 125 mil russos.[2] No desembarque registrava-se apenas a nacionalidade do imigrante, e não a sua identidade étnica. É mais do que provável que no meio dos quase dois milhões de imigrantes italianos e alemães também tenham vindo ciganos Sinti, principalmente durante e após a II Guerra Mundial.

Segundo Vilas Boas da Mota, os Rom brasileiros pertencem aos seguintes sub-grupos: “Kalderash, que se consideram nobres e, por conseguinte, os verdadeiros guardiães da identidade cultural cigana; os Macwaia, muito propensos à sedentarização ... e, por isto mesmo, inclinados à perda da identidade étnica... ; os Rudari, provenientes sobretudo da Romênia, localizam-se em São Paulo e no Rio de Janeiro e com bom nível econômico-financeiro; os Horahané, oriundos da Turquia e da Grécia, são renomados vendedores ambulantes; os Lovara, em franco recesso cultural, fazem-se passar por emigrantes italianos”.[3] Nenhum autor brasileiro faz referência a sub-grupos Calon com denominações específicas.

Também não existem dados sobre o número de ciganos no Brasil atual, nem sobre a sua distribuição geográfica. Os censos de­mo­gráfi­cos brasileiros nada informam so­bre ciganos ou indivíduos que são identificados ou se auto-identificam como tais, e até hoje ninguém se interessou ou foi capaz de saber, nem sequer aproximadamente, quantos ciganos vivem num determinado Estado, e menos ainda no Brasil todo. Dispomos de dados demo­gráficos detalhados, bastante confiáveis e constan­temente atuali­zados so­bre quase todos os povos indí­genas no Brasil, mas nada sabemos sobre a demografia das minorias ciganas.

Apesar disto, Costa Pereira escreveu em 1985: “Pode-se afirmar que hoje há cerca de 150.000 ciganos espalhados por todo o Brasil, nômades ou semi-sedentários. Isto sem nos referirmos aos que negam a sua ciganidade, o que triplicaria este número”. A autora não informa como ela conseguiu contar estes 150.000 ciganos, e menos ainda como contou os cerca de 300.000 ciganos brasileiros que não mais se identificam como ciganos, ou seja, ciganos invisíveis, ou melhor ainda, do ponto de vista antropológico, ex-ciganos. Na realidade, estes números nem sequer são estimativas, mas mera fantasia, uma miragem. Em 1990, a mesma Costa Pereira, informando base­ar-se em dados da Romani Union de Madrid (mas sem citar a fonte bibliográfica), afir­mou que a po­pu­lação cigana brasileira era de cerca de 800.000 pes­soas, mas dois anos depois, com supostos dados da Unesco, sem maiores explicações (e mais uma vez sem citar qualquer fonte bibliográfica), di­minuiu este nú­me­ro para 500.000.[4] O mais grave é que estes dados foram publicados numa revista italiana, pelo que os estrangeiros podem pensar que os brasileiros, em apenas dois anos, eliminaram uns 300.000 ciganos. Um verdadeiro genocício, um novo holocausto brasileiro, e que obviamente não ocorreu!

Todos estes números, no entanto, são mera fantasia, são apenas delírios psicodélicos, porque nenhum ciganólogo, e nenhuma organização cigana ou pró-cigana de qualquer parte do Mundo, e menos ainda a Unesco, tem auto­ri­dade alguma para divulgar estimativas popu­lacio­nais ci­ganas seja de que país for, a não ser que estas estimativas se­jam base­adas em dados confi­áveis fornecidos por cien­tistas ou institui­ções de pes­quisa da­quele país. E no Brasil, até hoje, nem o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), responsável pelos censos demográficos oficiais, nem qualquer ou­tra instituição de pes­qui­sa demográfica, nem qualquer Organização Não-Governamen-tal (ONG), nem cientista al­gum tem feito um le­vantamento sis­te­mático e confiável da população ciga­na.

Em resumo: nada, mas absolutamente nada, sabemos sobre o número de ciganos nômades, semi-nômades e sedentários atualmente existentes no Brasil, nem sobre sua distribuição geográfica.

 

 

 


Capítulo 1.

HISTÓRIA GERAL DOS CIGANOS NO BRASIL. [5]

 

 

 

Ciganos no Brasil: Séculos XVII e XVIII.

 

Com as fontes históricas conhecidas até agora, é praticamente impossível procurar exatidão em quaisquer dados histórico-demográ-ficos sobre os ciganos no Brasil. As informações sobre os ciganos nos Séculos XVI e XVII são muito limitadas, embora sejam conhecidos documentos relativos às políticas anti-ciganas portuguesas.

Essa documentação referente ao Brasil torna-se menos escassa somente a partir do Século XVIII. Isto porque a partir do reinado de Dom João V, que durou de 1706 a 1750, a perseguição aos ciganos portugueses se acentuou e dezenas deles foram degredadas para as colônias ultramarinas, inclusive para o Brasil. No entanto, é bastante difícil, praticamente impossível, determinar quantos ciganos vieram para o Brasil até 1822. Segundo Donovan: "Enquanto a Gazeta de Lisboa menciona grandes grupos de deportados, nenhuma lista oficial de criminosos exilados tem sido trazida à luz. Assim o número de indivíduos e famílias embarcadas nos cargueiros anualmente, o volume daqueles transportados, permanece desconhecido."[6] Inclusive o número de ciganos deportados, que certamente constavam nestas listas de criminosos exilados, e eventualmente os motivos dessas deportações.

Mas não há dúvida alguma que os primeiros ciganos que desembarcaram no Brasil foram oriundos de Portugal, e que estes não vieram voluntariamente, mas expulsos daquele país. Foi o que parece ter acontecido, por exemplo, já em 1574, com um certo João de Torres e sua mulher Angelina que foram presos apenas pelo fato de serem ciganos. Inicialmente João foi condenado às galés e Angelina deveria deixar o país dentro de dez dias, levando seus filhos. Alegando, no entanto, que “era fraco e quebrado, e não era para servir em coisa de mar e muito pobre, que não tinha nada de seu”, João pediu para poder sair do Reino, ou então que pudesse ir para o Brasil para sempre.

O “pobre” cigano João de Torres deve ter pago um bom suborno porque logo, em poucos dias, seu pedido foi deferido e a pena foi mudada para “cinco anos para o Brasil, onde levará sua mulher e filhos”.[7] O número de filhos não é mencionado, mas devem ter sido alguns poucos, talvez dois ou três, porque certamente não iriam deportar gratuitamente para o Brasil um (auto-declarado) miserável e inútil cigano João, sua mulher e uns dez ou quinze filhos.

Por causa deste documento João de Torres sempre é citado como o primeiro cigano a entrar no Brasil. Não se sabe, porém, se ele realmente embarcou (ele pode ter pago outros subornos para se livrar disto), se “fraco e quebrado” aguentou a longa viagem marítima, na qual certamente não teve tratamento de primeira classe, ou se chegou ao seu destino, nem aonde desembarcou, nem quanto tempo ficou no Brasil, nem se depois dos cinco anos voltou a Portugal, algo pouco provável. Ou seja, nada, mas absolutamente nada se sabe sobre o destino dele e de sua família. É possível que nunca tenha chegado ao Brasil. De qualquer forma, se ele realmente embarcou, veio acompanhado apenas pela mulher e alguns poucos filhos e não “liderando um bando de ciganos” ou “chefiando numerosas famílias que o acompanhavam”, como erroneamente informam alguns autores, que preferiram usar a fantasia em vez de ler o documento original.

A deportação de ciganos portugueses para o Brasil, ao que tudo indica, só começou mesmo a partir de 1686. Dois documentos portugueses daquele ano informam que os ciganos deviam ser degredados também para o Maranhão.[8] Antes eram degredados somente para as colônias africanas.[9]

A escolha da Coroa pela capitania do Maranhão visava pelo menos a dois objetivos. Primeiro, colocar os ciganos "bastante afastados das áreas brasileiras de mineração e de agricultura assim como longes dos principais portos da colônia, do Rio de Janeiro a Salvador."[10] Segundo, esperava-se que os ciganos ajudassem a ocupar extensas áreas dos sertões nordestinos, então ainda ocupadas por índios. Ainda que perigosos, preferia-se os ciganos aos índios. Não foram ainda descobertos documentos com dados sobre o número de ciganos deportados para o Brasil nesta época, para quais capitanias e por quais motivos.

Mas sabemos que também outras capitanias receberam ciganos, principalmente a partir de 1718, outro marco na política portuguesa de deportação de ciganos. Segundo Donovan:

 

"Como uma forma de expor publicamente sua determinação João V ordenou a deportação imediata de uma pequena comunidade cigana consistindo de cinquenta homens, quarenta e uma mulheres e quarenta e três crianças, então detidos na prisão municipal de Limoeiro. Seu banimento foi um procedimento cuidadosamente planejado, servindo como um ato de Estado. A justiça do início do período moderno era praticada de uma forma deliberadamente cerimonial. Oficiais publicizavam o evento antes através de anunciamentos boca a boca ou públicos. Nesse caso o embarque do navio brasileiro, que sempre atraía grandes multidões, forneceu o palco. A visão dos ciganos partindo acorrentados demonstrava para os espectadores o esforço da coroa pelo controle social. Isso é a publicação dos banimentos subsequentes assinalavam, sem dúvida, que a assimilação não era mais uma opção dos ciganos para escapar de seu status criminoso."[11]

 

Em 15 de abril daquele ano, foi expedida comunicação de Lisboa para o governador de Pernambuco, apoiando-se no decreto já mencionado de Sua Majestade. Informa-se o embarque de ciganos para aquela capitania, mas parte dos quais deveria ser remetida depois para o Ceará/Brasil, e outra parte para Angola/África. Também devia-se tomar cuidado para que nenhum cigano ficasse em Pernambuco, e aos governadores do Ceará e de Angola recomendou-se que não deixassem os ciganos retornar a Portugal, nem permitissem o uso de sua língua, chamada também de geringonça.[12]

Apesar disto, muitos ciganos permaneceram em Pernambuco, entre eles alguns que solicitaram licença de permanência, ou então permissão de mudar-se para outras províncias.[13] Pereira da Costa informa que:

 

 “(.....) ficaram na capitania [de Pernambuco] vários ciganos, aos quais concedeu o vice-rei, por ordem de 14 de dezembro de 1720, que eles fossem estabelecer a sua moradia em Sergipe del-Rei. Permanecendo em Pernambuco avultado número de ciganos, apesar das ordens em contrário, representa contra eles a câmara de Olinda em 16 de dezembro de 1723, dizendo na carta que dirigiu ao soberano, que viviam eles espalhados pela capitania, cometendo toda a sorte de crimes, principalmente de furtos e assassinatos, e em tal escala, que não se podia mais tolerá-los, concluindo que S. Majestade houvesse de os mandar para o Ceará, onde poderiam prestar algum serviço na conquista do gentio bravio, e ficar assim o povo com algum sossêgo”.[14]

 

Também em 1718, foram enviadas de Portugal para a Bahia "diversas famílias de ciganos."[15] Por isto, Dom João V ordenou ao vice-rei, de forma semelhante ao que já havia feito ao governador de Pernambuco, o seguinte:

 

"Eu, Dom João, pela Graça de Deus, etc., faço saber a V. Mercê que me aprouve banir para essa cidade vários ciganos - homens, mulheres e crianças -  devido ao seu escandaloso procedimento neste reino. Tiveram ordem de seguir em diversos navios destinados a esse porto, e, tendo eu proibido, por lei recente, o uso de sua língua habitual, ordeno a V. Mercê que cumpra essa lei sob ameaça de penalidades, não permitindo que ensinem dita língua a seus filhos, de maneira que daqui por diante o seu uso desapareça."[16]

 

Os documentos históricos comprovam que a então comunidade cigana em Salvador apresentou um grande crescimento demográfico e econômico.[17] A primeira capital colonial brasileira tornou-se também a mais importante cidade para os ciganos do Brasil. Consta que em Salvador os ciganos inicialmente foram alojados no bairro da Mouraria, e posteriormente também no bairro de Santo Antonio d’além do Carmo”.[18] De Salvador saíram muitos ciganos rumo a região das minas (hoje Minas Gerais), causando grande incômodo às autoridades.

Sem indicarem as fontes nas quais se basearam, historiadores como Augusto de Lima Júnior e João Dornas Filho apontam a presença de ciganos nas Minas de Ouro (hoje Minas Gerais) já nos fins do século XVII. Lima Júnior acredita que os ciganos chegaram a Minas logo após o descobrimento do ouro: "os judeus e cristãos-novos, bandos imensos de ciganos, atiraram-se para as terras ultramarinas, buscando a fortuna e a redenção na largueza dos sertões infindos, onde dificilmente chegariam as importunações do Santo Ofício."[19]

Na verdade, sabe-se que a Inquisição se preocupou pouco com os ciganos. O autor ainda informa sobre a preocupação das autoridades com eles. Descrevendo a alarmante escassez de víveres de 1700 em Ouro Preto e arredores, comenta que, naquele ambiente de desespero e desolação, "os negros escravos e os bandos de ciganos bem armados salteavam os vivos e saqueavam os mortos."[20] Mais adiante, quando o autor menciona "a confusão e a desordem reinantes nessas Minas Gerais recém-nascidas", acrescenta que "bandos de ciganos ágeis e aguerridos percorriam as estradas entregues à mais solta rapina."[21]  Para esses supostos crimes ciganos, Lima Júnior também não apresenta nenhuma fonte.

João Dornas Filho, sem apresentar qualquer documento, afirma que os ciganos chegaram a Minas Gerais possivelmente penetrando "pelo Rio São Francisco com as primeiras entradas baianas."[22] Mesmo tendo-se dúvida quanto à presença de ciganos em Minas Gerais no Século XVII, ou mesmo antes, quando das primeiras entradas baianas, parece bem provável que a penetração tenha se dado pelo vale do São Francisco. Pela extensão e características físicas do território, ainda que Minas dispusesse de inúmeras estradas e caminhos, eram os vales fluviais que cumpriam a função de ser a principal forma de adentrar o sertão.

As afirmações dos historiadores acima são duvidosas, porque não citam fontes documentais. Certamente alguns ciganos chegaram até as Minas de Ouro em seus primeiros tempos.[23] Mas foi somente a partir de 1718 que diversas famílias ciganas vieram juntas para o território mineiro.[24] A presença comprovada de ciganos em Minas Gerais é registrada desde o início do Século XVIII, ao que tudo indica contrariando as intenções originais da Coroa portuguesa.

Dom Lourenço de Almeida, num bando de 15 de julho de 1723, fazendo uma variação do decreto de 1718, recorda que El Rey havia remetido ciganos ao Brasil, apenas para que seguissem em direção a Angola, e não para que ficassem no continente americano. Acrescentando, reclama: "por ser hua gente muito prejudicial aos seos povos porque não vivem se não dos roubos q. fasem, cometendo exacrandos insultos, e porque pelo descuido que houve el algua das praças da Marinha vieram para estas Minas vartas familias de ciganos, onde podem fazer mayores roubos q. em outra nenhua parte (...)."[25]

Um documento de 1723, de Vila Rica (hoje Ouro Preto) informa que “pelo descuido que houve em alguma das praças da Marinha vieram para estas Minas várias famílias de ciganos”, e manda prender todos eles e remeter para o Rio de Janeiro, de onde então seriam deportados para Angola. Não somente manda prender os ciganos, que o documento chama de “ladrões salteadores”, mas também seriam presos e degredados para Angola todos aqueles que se encontrarem em sua companhia ou lhes hospedarem em suas casas ou fazendas. Além disto, qualquer cidadão podia prender ciganos e entregá-los na cadéia mais próxima, podendo a pessoa tomar-lhes todos os bens, ouro, roupas ou cavalos.

Porém, em 1737 o governador de Minas Gerais adverte: “Pelo que toca a ciganos as queixas que há são só por serem ciganos, sem que se aponte culpa individual  (.....) tenho recomendado que prendam e me remetam os que fizerem furtos”, ou seja, não qualquer cigano apenas pelo fato de ser cigano.

E como tudo que é ruim só podia ser de origem cigana, houve quem suspeitasse que a epidemia de varíola que naquele ano grassava em Minas Gerais tinha sido trazido pelos ciganos![26]

Dornas Filho acrescenta longas narrações sobre a ação de salteadores, principalmente na Serra da Mantiqueira, até o final do Século XVIII, citando inclusive cartas de Tiradentes que, segundo ele, “comandou por mais de uma vez a tropa de assalto ao reduto desses malfeitores, prendendo e matando ciganos às dúzias”.[27]  Ou seja, o heroi mineiro e nacional Tiradentes assassinou covardamente também algumas dezenas de ciganos, quase todos eles certamente desarmados e trabalhadores honestos, mas um genocídio que na época era motivo até de recompensas financeiras e honrarias especiais.

O leitor fica com a impressão que em todos estes casos citados por Dornas Filho se trata de ciganos, porém a maioria dos documentos não faz absolutamente nenhuma referência a ciganos, mas apenas a bandidos em geral ou, quando muito, fala de “ciganos e outros malfeitores”. Alguns podem até ter sido ciganos, mas com certeza a quase totalidade destes bandidos, assaltantes e assassinos da época eram portugueses, mineiros ou brasileiros, não-ciganos. No entanto, sempre quando algo de ruim acontecia e um cigano por acaso estivesse na redondeza, já se sabia a quem atribuir a culpa.

Em 1726 há notícia de ciganos em São Paulo, quando foram solicitadas medidas contra ciganos que apareceram na cidade e que eram “prejudiciais a este povo porque andavam com jogos e outras mais perturbações”, pelo que tiveram que abandonar a cidade dentro de 24 horas, sob pena de serem presos. E em 1760 os vereadores de São Paulo resolveram “que por ser notório que nesta cidade se acha um bando de ciganos composto de homens, mulheres e filhos sendo público terem sido expulsos de Minas Gerais por serem perniciosos naquelas povoações e assim se vieram acolher a esta cidade aonde já vão havendo algumas queixas (....)”.

Também estes receberam um prazo de 24 horas para sair da cidade.[28] Ou seja, trata-se da velha política de “mantenho-os em movimento”: Minas Gerais expulsa seus ciganos para São Paulo, que os expulsa para o Rio de Janeiro, que os expulsa para Espírito Santo, que os expulsa para a Bahia, de onde são expulsos para Minas Gerais, etc. Ou seja, o melhor lugar para os ciganos sempre é no bairro, no município ou no Estado vizinho; ou então no país vizinho ou num país bem distante. Um alvará de 1760 informa:



[1].   Co-autor desta  parte: Frans Moonen

[2].   Diégues Junior, M., Imigração, urbanização, industrialização, Rio de Janeiro, 1964, pp. 26-28

[3].   Vilas-Boas da Mota, A.. “Os ciganos do Brasil”, Correio da Unesco, ano 12, 1984, p. 32; “Os ciganos, uma minoria discriminada”, Revista Brasileira de Política Internacional, ano XXIX, vol. 115/116, 1986, p.32. 

[4].   Costa Pereira, C. da, Povo Cigano, Rio de Janeiro,  1985, p.31; “Gli zingari in Brasile”, Lacio Drom, ano 26, n.  6, 1990, p. 3; “La situazione sociale degli zingari in Brasile”, Lacio Drom, Suplemento ano. 1-2, 1992, p.121.

[5].    Co-autor deste capítulo: Frans Moonen.

[6].    Donovan, B. M., “Changing perceptions of social deviance: gypsies in early modern Portugal and Brazil”,  Journal of Social History, Vol. 26, 1992,  p. 42; o autor informa que "o terremoto de Lisboa destruiu a maioria da documentação referente às deportações antes de 1755. O anexo dos Feitos Findos do Arquivo Nacional da Torre do Tombo possui manuscritos não-catalogados sobre deportação" ( p. 52, nota 49); acrescenta-se que ainda não foi feita em Portugal nenhuma pesquisa exaustiva sobre a documentação referente a ciganos.

[7].   Coelho, A., Os ciganos de Portugal,  Lisboa, Dom Quixote, 1995, pp. 199-200 [1a. edição 1892]

[8].    Coelho 1995, pp. 218-220

[9].   Couto, C., “Presença cigana na colonização de Angola”, Studia, Lisboa, no. 36, 1973, pp. 107-115.

[10].     Donovan 1992. p. 38.

[11].     Donovan 1992,  p. 38.

[12].    Costa, F. A. Pereira da,  Anais Pernambucanos, Vol. V (1701-1739),   Recife, Arquivo Público Estadual, 1983. p. 299.

[13].    ORDEM por que o Excelentíssimo Senhor Vice-Rei concedeu licença a Luiz de Souza e outros, todos ciganos, todos moradores em Pernambuco para irem morar a Sergipe de El-Rei. Documentos históricos, Rio de Janeiro, vol. 69, p. 121-122, 1945. Para saber mais sobre ciganos no Nordeste deve-se consultar Costa (1983, p. 299-303). Segundo Charles R. Boxer (A idade do ouro no Brasil.  São Paulo, Cia Editora Nacional, 1969. p. 371), os Anais Pernambucanos (5 volumes) de Costa foram compilados em fins do século XIX e início do século XX, embora apresentem um material significativo retirado de fontes manuscritas, "infelizmente nem sempre com as referências adequadas", baseando-se principalmente em: Fernandes Gama, J. B. Memórias históricas da província de Pernambuco. 4 vols. Pernambuco, 1844-1848.

[14].   Costa 1983, V ,  pp.299-300

[15].   Kidder , D. P., Reminiscências de viagens e permanências nas províncias do Norte do Brasil, Belo Horizonte, Itatiaia / São Paulo, Edusp,  1980, p. 39 [tradução da primeira parte do original de 1845].

[16].   Kidder 1980,  p. 39.

[17].   China, J. B. D'Oliveira. “Os ciganos do Brasil; subsídios históricos, etnográficos e lingüísticos”, Revista do Museu Paulista, Tomo XXI,  São Paulo,  1936,  p. 402.

[18].   China  1936,  p.402

[19].  Lima Junior, A. de. A capitania de Minas Geraes; origens e formação,  Belo Horizonte,  Instituto de História, Letras e Artes, 1965,  p. 54.

[20].   Lima  1965,  p. 47.

[21].   Lima  1965,  p. 60.

[22].   Dornas Filho, J,  “Os ciganos em Minas Gerais”, Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais,  Belo Horizonte, ano III, vol. III, 1948,  p. 146 [este ensaio foi publicado nas pp. 138-187 da revista citada acima,  mas quase todos os ciganólogos brasileiros citam uma ‘separata’ deste ensaio, que inicia na página 1]. 

[23].   A Capitania de São Paulo e das Minas de Ouro foi criada em 1709,  separando-se do governo do Rio de Janeiro. Em 1720, Minas de Ouro desmembrou-se da Capitania de São Paulo.

[24].   Moraes Filho, A. F. de Mello, Os ciganos no Brasil & Cancioneiro dos ciganos, Belo Horizonte, Itatiaia /  São Paulo,  EDUSP, 1981,  pp. 26-27. [edições originais de 1886 e 1885,  respectivamente]

[25].   Bando de 15 de Junho de 1723 de Dom Lourenço de Almeida; apud Dornas Filho 1948.

[26].  Dornas Filho 1948,  pp.11-12

[27].  Dornas Filho 1948,  p.14

[28]. China 1936,  pp.404-405

 

“Eu El Rei faço saber aos que este Alvará de Lei virem que sendo me presente que os ciganos que deste Reino tem sido degredados para o Estado do Brasil vivem tanto à disposição de sua vontade que usando dos seus prejudiciais costumes com total infração das minhas Leis, causam intolerável incômodo aos moradores, cometendo continuados furtos de cavalos, e escravos, e fazendo-se formidáveis por andarem sempre encorporados, e carregados de armas de fogo pelas estradas, onde com declarada violência praticam mais a seu salvo os seus perniciosissimos procedimentos; considerando que assim, para sossego público, como para correção de gente tão inútil e mal educada se faz preciso obrigá-los pelos termos mais fortes e eficazes a tomar vida civil, sou servido ordenar que os rapazes de pequena idade filhos dos ditos ciganos se entreguem judicialmente a Mestres, que lhes ensinem os ofícios e artes mecânicas, aos adultos se lhes assente praça de soldados, e por algum tempo se repartam pelos presídios de sorte que nunca estejam muitos juntos, em um mesmo presídio, ou se façam trabalhar nas obras públicas pagando-lhes o seu justo salário, proibindo-se a todos poderem comerciar em bestas e escravos e andarem em ranchos; que vivam em bairros separados, nem todos juntos, e lhes não seja permitido trazerem armas, não só as que pelas minhas leis são proibidas, que de nenhuma maneira se lhes consentirão, nem ainda nas viagens, mas também aquelas que lhes poderão servir de adorno. E que as mulheres vivam recolhidas e se ocupem naqueles mesmos exercícios de que usam as do país. E hei por bem que pela mais leve transgressão do que neste alvará ordeno, o que for compreendido, nela seja degredado por toda a vida para a ilha de São Thomé, ou do Príncipe, sem mais ordem e figura de juizo..... ”.[1]

    

Ao que Oliveira China acrescenta: “A parte curiosa desse documento é a que nos revela que em nossas plagas a ‘atividade’ desses nômades não se limitou ao furto de animais, na prática do qual, como é sabido, são useiros e vezeiros; ela foi além, pois estendeu-se também ao furto ou roubo de escravos! Fato sem dúvida, original, e que ainda mais ressalta a ‘habilidade’, por assim dizer inata, que eles têm para a rapina, encarada sob todos os seus aspectos e particularidades..”.[2] Por onde se vê que também Oliveira China não escapava dos preconceitos anti-ciganos: se os ciganos vendiam escravos, estes só podiam ser roubados, da mesma forma que qualquer cavalo de um cigano só pode ser um cavalo roubado!  Nunca alguém pensa que estes cavalos ou escravos podem ter sido adquiridos honestamente. Vários outros documentos confirmam que, no Brasil, os ciganos também se dedicavam ao comércio de escravos, mas nenhum prova que roubavam escravos.

Numa carta de 1761, do governador interino José Carvalho de Andrade ao Conde de Oeiras, consta que os ciganos baianos, então já em número de “alguns mil”, tiveram antecipadamente conhecimento do alvará acima citado, pelo que “(....) foram insensivelmente desertando, o que lhes foi fácil por morar em bairros apartados, e por ser gente que costumava muitas vezes deixar as casas para irem fazer trocas e vendas pelos sertões. Ficaram poucos na cidade”. Continua a carta:

 

“Logo mandamos ordens a todos os ouvidores, capitães mores, juizes de fora e ordinários, que prendessem todos, os que não fossem dessas terras moradores, e ainda a esses os obrigassem à regularidade da dita lei. Escrevemos logo ao governador do Rio de Janeiro e ao de Pernambuco, para que os não deixassem viver nos matos. Alguns que nos vieram falar, e são velhos e casados os mais deles, nos requerem que lhes deixemos arrendar fazendas e viver da lavoura, o que lhe facultamos, com tanto que os filhos adultos os entreguem para soldados e os pequenos para se porem aos ofícios. As filhas será mais difícil acomodá-las, porque na Bahia não se querem servir com brancas e menos com filhas de ciganos, temendo que alguma noite se ajustem com os pais para roubar as casas e sobretudo quererem só servir-se com mulatas e pretas. (...) (Os ciganos) se se juntarem serão alguns mil em toda a capitania, além dos escravos que possuem, tais como eles, e de alguns índios que poderão coadunar. Por isso lhe temos proposto aos que nos falam, que deles se não procuro outra coisa mais, do que viver como portugueses, vassalos de S. M., que eles mesmos escolham mestres e ofícios para os filhos de menor idade e aos adultos que os tragam para se lhe assentar praça, donde eles elegerem que os velhos e casados e as mulheres se firmem em lojas de vendas nesta cidade donde lhe parecer, para que se lhe darão despachos e guias para as justiças das terras. Com isto alguns tem vindo e entregue os filhos para os ofícios e outros se lhe destina sítio perto desta cidade para lavouras, depois de trazerem arrendamentos dos senhorios....”.

 

Dois meses depois, numa segunda carta, o mesmo autor informa:

 

“Os ciganos vem vindo bastantes a querer tomar vida regrada, porque por todas as partes os prendiam ..... Os casados entregam os filhos solteiros aos oficiais mecânicos se são de idade competente e os adultos alguns assentaram praça, mas muito raros, por não apparecerem ou porque esta gente casa logo nestas terras de mui pouca idade. Os mais vão arrendando terras, ocupando-se com suas mulheres em lavouras e em abrir terras de novo, deixando totalmente o ilícito comercio e o modo libertino que tinham de vida....”. [3]

    

O mesmo deve ter acontecido também em outras capitanias. Resta saber se os ciganos arrendavam propriedades rurais para se dedicarem realmente às atividades agrícolas, completamente estranhas à sua cultura por ser incompatível com a vida nômade, ou se era apenas mais uma estratégia para, longe dos olhos dos portugueses, terem pontos de apoio para continuarem, unidos e em bandos, a sua antiga vida de comerciantes de animais, de escravos e de produtos artesanais.

Pereira da Costa, falando dos ciganos em Pernambuco, também se refere a ciganos que ganhavam seu sustento honestamente:

 

“Os ciganos andavam em bandos mais ou menos numerosos, e aqueles que não se entregavam à pilhagem, e a certos negócios, como a compra e venda de cavalos, nos quais os indivíduos pouco experientes sempre saíam logrados, eram geralmente caldeireiros ambulantes, e onde quer que chegassem, levantavam as suas tendas, e saíam à procura de trabalho que consistia, especialmente, no conserto de objetos de latão e cobre. As mulheres, porém, importunas, astutas e nímiamente loquazes, saíam a esmolar, e liam a buena dicha pelas linhas das mãos, predizendo a boa ou má-sorte do indivíduo, mediante uma remuneração qualquer”.[4]

    

A deportação de ciganos portugueses continuou pelo menos até o final do Século XVIII. De 1780 a 1786, o secretário de Estado da Marinha e Domínios Ultramarinos, Martinho de Melo Castro, enviou grupos de 400 ciganos anualmente para o Brasil. Julgando pelo teor de uma carta de 1793, vê-se que os ciganos deportados "não eram úteis à coroa nem ao Brasil." Mesmo assim, as deportações continuaram pelo menos até o fim do século.[5]

De acordo com uma correspondência de 1761, entre uma autoridade da Capitania da Bahia e o Conselho Ultramarino, "se se juntarem [os ciganos] serão alguns mil em toda a capitania, além dos escravos que possuem, taes como elles e de alguns índios, que poderão coadunar".[6]

 

Os ciganos na Corte do Rio de Janeiro.

 

A presença de ciganos no Rio de Janeiro é certa, desde pelo menos o início do século XVIII.[7] Primeiramente ocuparam uns brejos, que pela dificuldade de edificar e pela insalubridade, eram terrenos desvalorizados. Esta área viria a ser o Campo de Sant'Ana, conhecido também por Campo dos Ciganos. Posteriormente, a partir de 1821, viria a ser o Largo do Rossio (atual Praça Tiradentes). Este terreno era remanescente de duas chácaras que ficavam em lados opostos:

 

"uma área que parece ninguém pretendera por inaproveitável. Constituída de brejos e alagadiços que as menores chuvas inundavam, tinha fama de pestilenta pelos miasmas que dela se exalavam. Os pauis que a formavam tornavam-na imprópria tanto para a lavoura como para que nela se erigissem construções permanentes. Nesse pantanal abandonado e desprezado, onde ninguém os viria incomodar, ergueram os seus míseros e toscos casebres de moradia dos ciganos."[8]

 

Quando Luís de Vasconcellos e Sousa. vice-rei entre 1779 e 1790, iniciou o saneamento desses brejos, os ciganos foram obrigados a se mudar:

 

"Não foram para longe. Com o consentimento tácito ou formal da Ordem do Carmo, instalaram–se na chácara que fôra de Paula Carvalho, junto às divisas das terras de Coelho da Silva. Aí levantaram as suas casas, formando uma nova rua, em ângulo reto com a de São Jorge e que deles tomou o nome, conservando-o até à época da Independência. Desde então até hoje a antiga rua dos Ciganos manteve a designação de rua da Constituição, ligando o Largo do Rossio à atual Praça da República."[9]

 

Foi nessa área que concentrou-se, majoritariamente, a população cigana no Rio durante todo o século XIX, quando viveram momentos radicalmente extremos em sua economia e em seu status social.

Nos anos que precederam a Independência, durante a permanência da Corte portuguesa no Brasil, parece ter sido o momento de maior aceitação e de valorização romântica da comunidade cigana, ao menos no Rio de Janeiro, durante o oitocentos. Essa comunidade vivia em pleno florescimento econômico e artístico. Apesar de a comunidade do campo de Sant'Ana ter se formado a partir de miseráveis famílias deportadas no início do século XVIII[10], diversos ciganos tornaram-se realmente ricos. Entre estes os que tiveram maior sucesso econômico foram os comerciantes de escravos, como veremos mais adiante em detalhes. Mas eram muitas as suas profissões.

Além da atividade artística, "o ofício de meirinho tinha para eles especial atração. Talvez por ser a porta modesta que arrombavam para derrogar a velha proibição do exercício de cargos públicos. O fato é que houve época em que quase todos os oficiais de justiça do fôro do Rio de Janeiro eram ciganos."[11]

Apesar da diminuição da comunidade cigana em fins do século XIX, mesmo assim, ainda havia ciganos nesse trabalho. Recordando essa época, o lingüista Raul Pederneiras dá o seguinte depoimento a Oliveira China:

 

"Tivemos aqui um quarteirão habitado por ciganos, quando eu era estudante do Pedro II. A rua principal era a da Constituição (que o povo denominava 'Rua dos Ciganos'). Mais tarde, quando estudante de Direito, encontrei nessa mesma rua, muitos ciganos em atividade. Era notável o número delles na funcção de 'officiaes de justiça', ou meirinhos e, nessa mesma rua estavam situados os principaes juizados e cartorios forenses. (...) Anos depois, alguns elementos típicos, ainda meirinhos (a profissão passava de pais a filhos), ainda resistiam esparsos  pelos cartórios e juizados, sendo notável o característico racial da tez morena bronzeada e os olhos garços”.[12]

 

Entre os comerciantes de escravos, quem mais destacou-se foi José Rabelo, "que acumulou grande fortuna, sendo, na época da Independência, um dos homens mais ricos da cidade."[13] Entre os ciganos que moravam na Rua dos Ciganos, nenhum foi mais rico que José Rabelo, "grande traficante de escravos no Valongo no começo do Oitocentismo."[14]  Segundo Coroacy, este José Rabelo

 

"morava em casa própria no Campo de Sant'Ana (praça da República) e diz a lenda, pois deve ser lenda, que guardava grande parte da fortuna em barras de ouro depositadas no fôrro da casa. Tamanho seria o peso desse ouro acumulado que Rabello se viu forçado a escorar com colunas de ferro o teto para que não lhe caísse sobre a cabeça. Invencionices de má língua do povo, provavelmente. Rabello, que obtivera uma patente militar, dedicava-se a operações bancárias e financeiras. O que significa que era prestanista. A juros algos naturalmente. E a lenda das barras de ouro escondidas no fôrro teria sido inventada por algum dos que a ele recorreram." [15]

 

Possivelmente, os ciganos mais ricos tentassem se passar por brancos de origem européia (não-ciganos), ocultando sua identidade, pela posse de bens (escravos e jóias, por exemplo), desde que "a posse de bens tinha a curiosa faculdade de 'branquear' até mesmo pessoas de tez mais escura."[16] Pelo menos no Rio de Janeiro, onde estavam os ciganos mais ricos do Brasil, eles deviam se interessar em se passar por brancos "autênticos", para conseguir negociar sem que os clientes desconfiassem de possíveis trapaças.

Não apenas a riqueza fez com que ciganos se destacassem, também o comportamento de alguns os tornou notáveis. "O rico e humanitário cigano Joaquim Antônio Rabelo" (trata-se do mesmo José Rabelo) patrocinaria as danças e homenagens ciganas, por ocasião dos desposórios de D. Pedro I com a Princesa Leopoldina, em 1813[17]. Ele recebeu a patente de "sargento-mor do 3º regimento de milícias da corte", que "lhe foi concedida a mercê de melhoramento de reforma no posto de tenente-coronel." Além disto, na mesma ocasião, foram nomeados alferes diversos ciganos "agregados das Ordenanças da Corte."[18]

Para os portugueses e outros europeus que chegavam em grande quantidade ao Rio, após a transferência da família real, ávidos por encontrar os mais exóticos tipos humanos nos trópicos, os ciganos correspondiam bem a esta expectativa. Atos inconcebíveis em Portugal ocorriam no Rio, como a participação de dançarinos ciganos em festividades reais.

Os ciganos participaram das festividades de casamento da princesa da Beira, filha mais velha de D. João VI, com um infante de Espanha, em 1810, dançando no desfile o fandango espanhol, "em que os homens entravam na praça a cavalo com as mulheres à garupa."[19] Segundo o testemunho ocular do Barão de Eschewege,

 

"os moços dessa nação entraram no circo montando belos cavalos ricamente ajaezados e levando na garupa as suas noivas. Os casais saltaram ao chão com incrível agilidade e executaram, em conjunto, as mais lindas danças que já vi até hoje. Todos os olhos se achavam voltados para os jovens ciganos, e se tinha a impressão de que as outras danças tinham por único objetivo fazer ressaltar a beleza das suas."[20]

 

Logo depois, um outro evento demonstraria, mais nitidamente ainda, a nova imagem que os portugueses e seus descendentes formavam dos ciganos. Quando se comemorou a elevação do Brasil a Reino Unido em 1815, no segundo dos três dias de celebrações, "Dom João VI levou a corte inteira e a delegação estrangeira do Campo dos Ciganos para uma tarde e noite de danças e entretenimento."[21]

Posteriormente, quando dos desposórios do Príncipe Real Dom Pedro, em 1818, os ciganos foram novamente convidados para apresentarem suas danças e músicas:

 

"e logo entrou na praça a célebre dança dos ciganos, que se compunha de seis homens, e outras tantas mulheres vestidos todos com muita riqueza; depois tudo quanto apresentaram de ornato era veludo; e ouro: precedia-os uma banda de música instrumental; e sobre um estrato fronteiro às reais pessoas executaram com muito garbo, e perfeição, várias danças espanholas, que mereceram universal aceitação."[22]

 

Segundo alguns rumores, Dom João VI cultivava um fascínio especial por uma cigana. O que visto em perspectiva não deixa de ser irônico, pois o pouco apreço de seu avô (Dom João V) pelos ciganos foi o responsável pela vinda de dezenas de famílias acorrentadas para o Brasil. Em meados e fins da década de 1810, o Campo dos Ciganos "havia se tornado o bairro boêmio do Rio, uma área conhecida por uma vida noturna alegre e pelos artistas brasileiros e estrangeiros que ali viviam."[23] Também foi cenário para algumas das divertidas noitadas de Dom Pedro que, como seu pai, lançava olhares às jovens e belas ciganas:

 

"Mais para o Rocio vivia um casal de artistas famosos (ciganos), João Evangelista da Costa e a Ludovina, de encantos fabulosos. Destabocado como era, D. Pedro I saiu certa noite a persegui-la depois do teatro, entrando-lhe pela porta a dentro, talvez por não vê-la fechar-se à sua cara. Mas era que lá em cima, no sobrado, se festejava um aniversário, estando a mesa posta para a ceia e a sala repleta de comediantes e cantores da deles e de outras companhias. E todos, numa reverência, o saudaram ruidosamente, confessando-se honrados em sentar-se pela primeira vez ao seu lado numa festa..."[24]

 

Ressalta-se que os contatos entre a família real e alguns ciganos cariocas não significavam boas relações entre os demais ciganos e a sociedade como um todo. Mesmo durante a estada da corte portuguesa no Rio, período em que o status dos ciganos esteve mais elevado, os ciganos não deixaram de estar associados à criminalidade. Há inúmeros testemunhos de viajantes que falam do temor popular, no interior do país, quanto a supostos furtos cometidos por ciganos. Em 1823, dois anos depois da volta da família real, Maria Graham escreve em seu diário de viagem: "Alguns deles dedicam-se ao comércio e muitos são extremamente ricos, mas são ainda considerados ladrões e trapaceiros, e chamar um homem zíngaro (cigano) equivale a chamá-lo de velhaco."[25]

Assim, em fins da década de 1820, os ciganos já não eram mais requisitados para se apresentarem nas festividades na Corte do império recém-fundado. Não havia qualquer possibilidade de eles servirem ao perfil que se queria para o "ser brasileiro".

Já nos inícios do século XIX, a questão da raça era um tema fundamental na definição da identidade nacional, mesmo que através de uma afirmação romântica do exotismo.[26] No momento imediatamente posterior a Independência, buscou-se descrever a nação de forma “ahistórica”, via paisagem natural.[27] Afluíam naturalistas ao Brasil, a princípio, procurando pesquisar a flora e a fauna, mas que passaram a se interessar pela população, principalmente das cidades, distinguindo os tipos humanos e analisando os efeitos da miscigenação. A gradual incorporação do discurso científico ao conceito de "ser nacional" teve seu marco bem assentado no ano de 1838, quando foi criado o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Isso ia ao encontro da prática historiográfica que vinha se desenvolvendo na Europa. Em meados do século XIX, o Império elegeu o indígena como seu símbolo fundamental e fez-se o discurso de que a miscigenação entre o branco, o negro e o índio promoveria o patriotismo e consolidaria a nação.

Diante disso, a presença dos ciganos na composição da população seria omitida, pois era uma minoria difícil de ser apreendida por esse discurso nacionalista. Negando-se aos ciganos o direito à história, tentava-se colocá-los à margem da "boa sociedade." Como se verá mais adiante, paulatinamente, uma série de medidas repressivas fecharam o cerco sobre os ciganos.

 

Ciganos no Brasil: Século XIX.

 

Elaborar estimativas da população cigana no Brasil na época de Dom João VI (1808-1821) é bastante arriscado. Infelizmente, para as autoridades da época e os historiadores atuais, a mobilidade geográfica e a marginalidade social da maioria dos ciganos tornaram os ciganos praticamente ausentes nos recenseamentos e registros paroquiais.

Conforme Donovan: "Nenhuma evidência foi trazida à luz, ainda, sobre, por exemplo, a taxa de reprodução natural: eram as famílias ciganas no Brasil maiores, menores, ou do mesmo tamanho que outras famílias, brancas ou de forros?"[28]. Tanto os depoimentos de cronistas, viajantes e memorialistas, quanto a documentação jurídica e policial, na maioria das vezes não quantificam o número de indivíduos dos bandos ciganos encontrados. Apesar da imprecisão das informações sobre diversos bandos ciganos, fazendo-se um esforço considerável, chega-se a algumas estimativas. Ao que tudo indica, numericamente, os principais grupos de ciganos sedentários estavam na Bahia e no Rio de Janeiro, ou seja, nos dois mais importantes portos marítimos da época.

Sobre os ciganos residentes no Rio de Janeiro, no início do século XIX, sabemos que "quatrocentos ciganos formavam uma comunidade na periferia sul da cidade e outro grupo vivia dentro da cidade em torno da Rua dos Ciganos, Campo de Sant-'Anna e o mercado de escravos da cidade".[29]

Para outras províncias, como a Bahia, são mencionados bandos menores compostos de pelo menos duas dezenas de ciganos. Porém a documentação de modo algum é exaustiva. Donovan acredita que "excluindo escravos e outros itinerantes morando com eles, numa estimativa conservadora de no mínimo quatro até sete mil ciganos viviam no Brasil nas décadas precedendo a independência", conquistada em 1822.[30]

Alguns testemunhos dão uma idéia do número de indivíduos em bandos ciganos. Em viagem ao norte de Minas (em Contendas, atual Brasília de Minas), James Wells encontrou um grupo de ciganos que "compunha-se de cerca de cinqüenta homens e mulheres e diversas crianças."[31] Um fato interessante é que tal comunidade já então era sedentária. No terreno, existiam "umas poucas casas e certa quantidade de barracas brancas."[32] As “barracas brancas” certamente eram barracas ou tendas de lona.

Em todo século XIX predominam noticias sobre ciganos nômades transitando pelo território mineiro, o que dificulta ainda mais as estimativas sobre a população cigana. Mas Raimundo José da Cunha Matos, já em 1837 descrevia as "pequenas casas" dos ciganos em Minas, ou seja, casas de ciganos sedentários.[33]

Consta que estes ciganos exerciam as mais diversas profissões.  Moraes Filho cita um velho cigano, que seria descendente de ciganos banidos de Portugal em 1718, segundo o qual  “logo que desembarcaram [no Rio de Janeiro]...  alojaram-se em barracas no Campo dos Ciganos, enorme e inculta praça que se estendia da Rua do Cano até a Barreira do Senado. Empregavam-se eles ... no trabalho dos metais: eram caldeireiros, ferreiros, latoeiros e ourives; as mulheres rezavam de quebranto e liam a sina”.[34] Ou seja, mais uma vez temos notícia de ciganos que eram trabalhadores honestos.

Era principalmente nas suas transações comerciais que os ciganos eram acusados de serem ladrões e trapaceiros. O já citado Saint Hilaire, em 1819, teve contato com ciganos, aparentemente sedentários ou semi-sedentários, de São Paulo e informa:

 

“Havia em Urussanga, enquanto lá estive, um bando numeroso de ciganos. Estes homens moravam na aldeia vizinha a Mogy Guassú e circulavam pelas vizinhanças para fazerem, de acordo com o feitio de sua gente, barganhas de mulas e de cavalos. (...) Pareciam extremamente unidos e tiveram para comigo grandes gentilezas. Não lhes ouvi falar língua diversa do portugues. Estavam vestidos como os brasileiros, mas traziam cabelos e barbas compridas (contrariando o costume geral do país). Estavam todos assaz bem vestidos, possuíam escravos, cavalos e cargueiros, bastante numerosos. (...) Os ciganos de Urussanga passaram o dia todo tentando fazer barganha com os tropeiros das duas tropas que comigo compartilhavam o rancho. Em tom de caçoada falei a um deles da pouca probidade de que sua nação é acusada. - Logro tanto quanto posso, respondeu-me seriamente, mas todos aqueles que negociam comigo fazem a mesma coisa. A única diferença que entre nós existe é que esta gente solta grandes berros quando se vê lograda e eu quando me ludribriam nada digo a quem quer que seja”.[35] 

    

Enquanto Saint Hilaire tenta entender os ciganos e o seu modo de vida, o mesmo não acontece com o preconceituoso viajante francês Freycinet (1817-20):

 

“No número dos elementos de que se compõe a população do Rio de Janeiro, nenhuma sem dúvida alguma é mais digno de espicaçar curiosidade do que a presença dos indivíduos desta nação cosmopolita ..... aqui conhecida, como em Portugal, pelo nome de ciganos. (...) Dignos descendentes dos párias da Índia .... os ciganos do Rio de Janeiro ostentam como eles o hábito de todos os vícios e propendem para todos os crimes. Possuidores de grandes riquezas, em sua maioria ostentam considerável luxo em roupas e cavalos, sobretudo por ocasião de suas bodas que são muito suntuosas, comprazendo comumente na devassidão crapulosa. Há ociosidade absoluta. Falsos e mentirosos, furtam quanto podem ao comerciarem e também são sutis contrabandistas. Aqui, como por toda parte onde se encontra esta abominável raça, suas alianças só se fazem entre eles. Têm sotaque e até mesmo uma gíria própria. Por uma esquisitice absolutamente inconcebível, o governo tolera esta peste pública: duas ruas privativas até lhe são destinadas na vizinhança do Campo de Sant’Anna - a Rua e a Travessa dos Ciganos”.[36]

    

Com a mudança de família real portuguesa para o Brasil, em 1808, vieram também alguns milhares de portugueses e, segundo Moraes Filho, “Do interminável séquito da família real poucos prestavam para alguma coisa. Eram fidalgos e vadios. Aos fidalgos mandou-se dar pensões do tesouro... Os vadios foram empregados nas repartições que se criaram para esse fim”.[37] Tudo indica que entre estes funcionários públicos “vadios” encontravam-se também ciganos, e que muitos deles foram contemplados com o cargo então vitalício e hereditário de oficial de justiça.

Além disto, há referências a ciganos artistas que alegraram várias festas reais. Porém, a atividade econômica principal dos ciganos parece mesmo ter sido o comércio ambulante, de animais, escravos ou objetos, viajando pelos sertões do Brasil.      

Para a região Nordeste temos informações, embora de segunda mão, através do inglês (mas nascido em Portugal) Henry Koster, que viveu em Pernambuco de 1809 a 1815:

 

São muito falados para que se possa esquecer os ciganos. Ouvi assiduamente citar esse povo mas nunca me foi possível avistar um só desses homens. Bandos de ciganos tinham outrora o hábito de aparecer, uma vez por ano, na aldeia do Pasmado, e noutras paragens dessa zona, mas o último governador da província era inimigo deles e tendo feito alguma tentativa para prender alguns, as visitas desapareceram. Descreveram-nos como homens de pele amorenada, feições que lembram os brancos, bem feitos e robustos. Vão errando, de lugar em lugar, em grupos de homens, e mulheres e crianças, permutando, comprando e vendendo cavalos e ninharias de ouro e prata. As mulheres viajam a cavalo, sentadas entre os cestos dos animais carregados e os meninos são postos dentro dos cestos, de mistura com a bagagem. Os homens são cavaleiros eméritos .... Dizem que não praticam religião alguma, não ouvindo missa nem confessando seus pecados. E é sabido que jamais casam fora da sua nação”.[38] [grifos nossos].

    

Koster morou durante muitos anos no litoral pernambucano e fez duas longas viagens pelo interior nordestino, na época uma verdadeira aventura, e é admirável que mesmo assim nunca tenha encontrado pessoalmente ciganos, o que faz supor, primeiro, que não viviam mais ciganos no litoral nordestino/pernambucano, e segundo, que os ciganos eram bastante raros no interior, ou então até talvez inexistentes, por causa das contínuas perseguições.

 

A imigração de ciganos não-ibéricos.

 

Acredita-se que até o final do século XVIII existissem no Brasil somente ciganos originários da Península Ibérica, os chamados Calon, ou Kalé. Mas já na primeira metade do século XIX, chegaram alguns ciganos Rom acompanhados ou não de suas famílias.

De acordo com as informações que pudemos apurar, o Rom que mais cedo chegou ao território mineiro foi Jan Nepomuscky Kubitschek[39], que trabalhou como marceneiro no Serro e em Diamantina. Atendendo pela alcunha de João Alemão[40], era um "imigrante vindo da Boêmia, então parte do Império Austro-Húngaro, que deve ter entrado no Brasil por volta de 1830-1835, casando-se pouco depois com uma brasileira."[41] Em seu matrimônio com Teresa Maria de Jesus, teve pelo menos dois filhos. O primeiro foi João Nepomuceno Kubitschek, que viria a ser um destacado político.[42]  O segundo foi Augusto Elias Kubitschek, um comerciante com escassos recursos, que viveu toda sua existência em Diamantina.[43] Augusto Kubitschek foi designado como 1º suplente de subdelegado de polícia em 1889.[44] Também consta que teve pelo menos uma filha, Júlia Kubitschek, que viria a ser a mãe de Juscelino Kubitschek (1902-1976), que depois se tornou Presidente do Brasil (1956-60), também conhecido pelo apelido ‘JK’, o fundador da atual capital Brasília. Ou seja, um dos mais conhecidos e mais famosos presidentes do Brasil do Século XX foi um cigano, ou pelo menos um descendente de ciganos, fato que, obviamente, nenhum livro didático nem historiador algum menciona.

Não sabemos se o cigano Jan Nepomuscky Kubitschek chegou só ao Brasil, ou se estava acompanhado de outros familiares ou de outros ciganos. Seu casamento com uma brasileira pode ser indício de que veio só, separado de seu grupo familiar originário. A ascensão social de seus filhos parece indicar também que estes não foram criados como ciganos.

O que sobressai deste caso é que, muito antes da onda migratória dos Rom a partir de meados do Século XIX,  já na década de 1830 havia entrado em Minas Gerais ao menos uma família Rom, justamente aquela que anos depois gerou o futuro Presidente da República JK.

Quantas outras famílias Rom não-ibéricos chegaram durante a primeira metade do século XIX, ainda não se sabe, e certamente nunca saberemos.

Somente a partir da segunda metade do Século XIX os Rom vieram em número significativo para o Brasil, provenientes da Itália, da Alemanha, dos Balcãs e da Europa Central.[45]

Num livro publicado em 1886, James W. Wells, identifica como sendo romenos, portanto Rom, os ciganos de Contendas, os quais encontrou em 1873.[46] Da documentação que se conhece até agora, esta é a data mais remota indicando a presença de um grupo desses ciganos no Brasil. Em 8 de maio de 1899, chegou à cidade Palmyra "um bando de cerca de 40 ciganos, composto de indivíduos de nacionalidade italiana e grega", que eram também ciganos Rom.[47] Acredita-se que o maior número de ciganos Rom chegou ao Brasil no final do século XIX, juntamente com a primeira onda migratória de italianos, alemães, poloneses, russos e gregos, embora a partir da instalação da República, a polícia portuária tenha proibido o desembarque de ciganos em território brasileiro.[48] Esta proibição, na verdade, já era aplicada, um pouco antes, como num episódio ocorrido em 1887:

 

"O Sr. ministro da agricultura tem noticia de que em um dos vapores esperados no Rio vém sem passagens, para o Brasil, centenas de turcos ou bohemios sem profissão, telegraphou para os portos intermediários, afim de que não lhes fosse permitido o desembarque. No Rio foram dadas as mesmas ordens."[49]

 

Por isso, a entrada dos Rom no Brasil se deu totalmente na clandestinidade. A princípio, com esses ciganos apresentando-se como sendo de nacionalidade do país de onde vinham, o que não era completamente falso, mas que eram identidades secundárias para os ciganos. Além de virem como russos, poloneses, romenos, gregos, etc., a outra possibilidade era desembarcarem fugindo de qualquer contato com as autoridades portuárias e de imigração. Dornas Filho, falando de Minas Gerais, informa:

 

“Em março de 1909 aparecia em Juiz de Fora uma horda de ciganos, composta de 12 homens, 10 mulheres e 15 crianças que já delata nos meios de vida a influência da reação policial. Tornaram-se exclusivamente (exclusivamente?...) saltimbancos, apresentando animais amestrados (ursos, macacos, cães, etc.) O chefe do grupo, homem alto e corpulento, de cabelos crescidos até os ombros, interrogado pela polícia, não soube explicar-se em português e nem outra língua conhecida, permitindo as autoridades que ele exibisse os seus animais no pátio da cadeia” (grifos nossos).[50]

    

Ou seja, com certeza não eram ciganos de origem ibérica, mas de algum país balcânico. Mais adiante Dornas Filho faz referência a ciganos oriundos da Sérvia pertencentes às famílias Anovich, Ivanovich e Petrovich, alguns membros dos quais aparecem constantemente nas crônicas policiais da época. Dois irmãos Anovich massacraram, em 1917, por motivos desconhecidos, toda a família de um cigano grego, incluindo seis filhos menores. Também vários membros da família Petrovich foram, em épocas diferentes e por crimes diversos, presos pela polícia de Belo Horizonte[51], como também no Rio de Janeiro.[52]

Oliveira China dedica pouco mais de quarenta páginas aos ciganos no início do Século XX (isto é, até 1936, ano da publicação de seu livro), tratando Estado por Estado, baseando-se em notícias de jornais e em informações de alguns intelectuais com os quais falou pessoalmente ou manteve correspondência. As notícias de jornais invariavelmente parecem ser tiradas das páginas policiais, nas quais os ciganos são apresentados como criminosos, ladrões, velhacos etc., e as ciganas como “bruxas” e trambiqueiras que enganam o povo praticando a quiromancia, furtando, etc. Mas também os intelectuais entrevistados por Oliveira China não escapam dos preconceitos. Basta ler, por exemplo, a resposta de Mário Torres, quando perguntado sobre os usos e costumes dos ciganos baianos:

 

“Continuam a ser astutos, velhacos, errantes e miseráveis, procurando viver da pirataria, da troca nas feiras, enganando compradores e vendedores. São conhecidos por ladrões de cavalos. Às vezes se dedicam à confecção de objetos de cobre, que procuram vender nas feiras (caldeireiros). A princípio o bando trazia sempre um urso e macacos que dançavam ao som de pandeiros e meninos que faziam acrobacias. As mulheres liam, de preferência, a buena-dicha, do que faziam fonte de receita. O roubo entre eles sempre foi praticado como profissão. (...). As mulheres são raptadas e os filhos batizados, porque isto lhes dá margem a presentes. (...). Os ciganos são excessivamente mentirosos. As mulheres, quando viajam a cavalo, montam como os homens, enganchadas. Quando dão a luz, continuam seus trabalhos como se nada houvesse acontecido”.[53] (grifo nosso)

    

A quase totalidade destas informações absolutamente nada acrescenta à ciganologia brasileira, porque apenas repete velhos estereótipos e denúncias de indivíduos que tentaram enganar os ciganos mas foram por eles enganados, ou por pessoas que nunca tiveram contato pessoal com ciganos.

Apesar de Torres informar desconhecer qualquer caso de ciganos “estrangeiros” (o que no Brasil significa: “não-ibéricos”) recém chegados, a sua referência acima ao urso e às atividades de caldeireiros, faz supor que neste caso se tratava não de ciganos calon, de origem ibérica, mas de ciganos rom, de origem balcânica, e que então deveriam ter chegado ao país há pouco tempo, já que aqui dificilmente teriam encontrado um urso, animal que não faz parte da fauna brasileira.

Um recorte do Diário da Bahia, de janeiro de 1935, anexado logo a seguir, informa que “a cidade está infestada de ciganos”, e cita nominalmente a família Michlos, de origem não declarada, mas certamente não-ibérica, e a família Ducas, de nacionalidade russa. Ou seja: com certeza eram ciganos Rom.

Um longo artigo de jornal de 1936 trata dos ciganos no Rio de Janeiro e nele o autor anônimo faz referência a ciganos, “uma coletividade de excêntricos”, oriundos de países balcânicos, e talvez pela primeira vez alguém informa ao público que os ciganos não são todos iguais, mas têm costumes diferentes:

 

“Em nossa capital, em virtude do serviço de qualificação recentemente criado pela polícia, muitas colônias de ciganos se transferiram para o interior. Comtudo, ainda existem alguns núcleos de zíngaros da Grécia e da Iugoslávia (....) Os da Iugoslávia, cujo quartel general é [num botequim] na rua Senador Pompeu (....) são ciganos que não trabalham. Os homens passam o dia todo na maior ociosidade; quando não jogam cartas, dormem profundamente. As mulheres é que ‘trabalham’, iludindo a boa fé alheia e sustentando à custa da ‘buena-dicha’ os barbados da família. Os da Grécia, que vivem no Meyer, (...) são mais prestativos e obedecem a outros costumes. Os homens geralmente têm profissão e ganham a vida à custa das suas atividades como concertadores e estanhadores de caldeirões e panelas (....). As mulheres, entretanto, não deixam de se ocupar com a ‘leitura da sorte’ dos incautos (....). Si entre uns e outros difere o modo de vida, em compensação o ‘habitat’ é idêntico. Uma casa de ciganos é igual à de todos os outros. Não tem mobília. Não existe mesa, nem cadeira, nem cama. Mas há abundância de tapetes velhos e imundos, pendendo pelas paredes (...). Dormem no chão, ou (...) sobre um acolchoado. A roupa de uso se espalha em desordem por todos os recantos da casa. Assim é a moradia dos ciganos que residem em casa de pedra e tijolo. Os ciganos da Grécia, entretanto, preferem passar o tempo nas barracas armadas no fundo do quintal. Trocam a casa pela tenda (...)”. [54]

    

Em outro artigo de jornal informa-se ainda que as ciganas, para escapar das perseguições policiais, passaram a instalar-se em locais fixos, anunciando seus serviços nos jornais. Algumas ciganas até requereram ‘habeas corpus’ para poderem exercer a sua profissão. Algo que o autor considera um absurdo, pelo que solicita “uma repressão séria, urgente e enérgica da polícia” contra essas “embusteiras e mistificadoras do povo” que “zombam das nossas leis e das nossas autoridades”.[55]

    

Os ciganos nos documentos históricos.

 

Os dados históricos até hoje disponíveis sobre ciganos no Brasil são comprovadamente poucos, porque os historiadores brasileiros nunca deram a mímima importância à História Cigana. O pior, no entanto, é que, quando existem informações históricas, se trata de dados enviesados, distorcidos pela visão etnocêntrica dos informantes e dos próprios historiadores. Os ciganos costumam ser apresentados como ladrões (de galinhas a cavalos, e inclusive de criançinhas) e assassinos, mas não são apresentadas provas concretas destes supostos crimes.

Durante a maior parte da história brasileira, praticamente só se falou de ciganos quando sua presença inquietou as autoridades. Isto ocorria, por exemplo, quando eram acusados de roubarem cavalos. Nas poucas vezes que se escrevia sobre aspectos culturais dos ciganos, não havia qualquer interesse sobre como eles próprios viam sua cultura. Os contadores da ordem pública, com os chefes de polícia, os compreendiam como sendo "perturbadores da ordem", responsáveis pelos mais hediondos crimes. Outras fontes, como viajantes e memoralistas, recorriam aos estereótipos corriqueiros, como "sujos", "trapaceiros" e "ladrões". Isto funciona como um indicador: os ciganos eram raramente considerados por si mesmos, e, com freqüência, eram sinônimos de barbárie, imundície, desonestidade e imoralidade. Assim, a documentação se detém pouco sobre os ciganos singulares, que tornam-se desprovidos de existência. Quase sempre incidem sobre "o cigano", entidade coletiva e abstrata à qual se atribuem as características estereotipadas.

            Os ciganos no Brasil sempre estiveram em dissonância aos ideais de civilização e progresso. São identificados como elementos incivilizáveis, inúteis à sociedade, supersticiosos, corruptores dos costumes, vândalos, enfim, uma anomalia social e racial. Uma vez vistos desta maneira, as autoridades tentavam controlá-los, sem obterem, no entanto, grande eficácia. Em Minas Gerais, por exemplo, no final do século XIX e início do XX ocorreu o ápice dos confrontos entre a polícia e os ciganos. Foram as "Correrias de ciganos" que, como veremos mais adiante, eram movimentações destes em fuga, por estarem sendo perseguidos pela polícia. Nessas correrias ocorriam freqüentes tiroteios, que resultaram em mortos de ambos os lados.

Na realidade, os documentos contam mais sobre os preconceitos do que propriamente dito sobre a História dos Ciganos no Brasil, que continua praticamente incógnita. E esta ignorância gera inclusive medo, como prova Artur Lobo, ao descrever, em 1901, o encontro de alguns viajantes com um grupo de ciganos: “Os ciganos! Não foi sem um profundo receio que uma mesma exclamação nos escapou, porque bandos de ciganos que percorriam os sertões em medonhas correrias praticavam impunemente roubos e depredações, fugindo à ação da polícia”. Os ciganos se aproximam e  “se bem que a sua atitude nada tivesse de hostil, nem por isso nos sentimos menos tranquilos e receiosos de uma cilada”.  Os ciganos gentilmente convidam para ficar um pouco, ensinam o caminho e no final desejam uma boa viagem. “Partimos, sabe Deus com que satisfação e alívio, sem procurar saber por que motivo não nos tinham eles subtraído pelo menos qualquer pequeno objeto de uso; e de longe ainda vimos espalhada pelo campo afora aquela caravana que assim ia errante pelos sertões, numa vida de cruéis aventuras, sem um destino determinado nem paradeiro certo, deixando atrás de si uma sinistra nomeada de rapacidade e mesmo de assassínios....”.[56]  

 

 

 


Capítulo 2

OS CIGANOS EM MINAS GERAIS NO SÉCULO XIX.

 

 

 

Os ciganos nas cidades mineiras.

 

A partir da Lei de 1º de outubro de 1828[57], é dada nova forma às Câmaras Municipais, estabelecendo-se diretrizes muito mais rígidas para se organizar o cotidiano da população. As Posturas Municipais determinavam permissões e proibições para questões político-administrativas, econômico-financeiras e sociais, regulamentava-se: o alinhamento das construções, a saúde pública, a assistência social, a proteção ao trabalho e a propriedade, etc. A partir do modelo oferecido por essa lei, os municípios organizavam suas posturas de acordo com suas próprias necessidades. E embora houvesse uma ampla base comum entre as posturas, as sutis variações revelam especificidades locais extremamente expressivas.

Durante o transcurso de todo o século XIX, no Brasil, não havia distinção explícita entre o direito positivo e o direito costumeiro, pois, ainda que escritas, as leis aludiam aos costumes. Daí a importância dos códices de posturas municipais que nos permitem aproximar do cotidiano das populações a partir daquilo que é regulamentado como contravenção, pois revela o valorizado e zelado coletivamente, e diferencia o proibido e o rejeitado. Assim, as posturas referiam-se aos assuntos mais distintos, da construção de novas edificações à saúde pública, dos batuques à proibição de transações comerciais com ciganos.

Pode-se perceber como se deu tudo isto, abordando-se, por exemplo, as cidades mineiras neste período. Em Minas Gerais, apesar de haver posturas municipais elaboradas desde o início do século XVIII, como as de Ouro Preto, é a partir das reformulações nas câmaras municipais implementadas em 1828, que elas são organizadas sistematicamente. As de Mariana, Sabará e Queluz foram feitas em 1829. A de Sabará permaneceu por muito tempo somente manuscrita, e as duas outras foram publicadas de forma avulsa, o que também ocorreu em muitos outros casos. No entanto, a maioria delas foram editadas na Coleção das Leis Mineiras, que apesar de iniciada em 1835, apresentou seu primeiro código de posturas municipal apenas em 1846 (Diamantina). A publicação ocorria após a aprovação pela Assembléia Legislativa de Minas Gerais.

Nossa pesquisa contemplou todo esse conjunto de posturas, disponível no Arquivo Público Mineiro, acrescentando ainda o artigo do código de posturas de Parahybuna (1857), relacionado aos ciganos.[58] Porém, na Coleção das Leis Mineiras, além das posturas municipais completas, há centenas de pequenas adições e alterações de artigos de tais posturas, geralmente sobre tributação e/ou saúde pública. Desconsideramos esses textos, porque nenhum deles se refere aos ciganos.

O último código de postura de que tivemos conhecimento é o de Dores da Boa Esperança (atual Estrela do Sul) de 1895, quando se atualiza o código de 1872, que já apresentava menções aos ciganos. Assim, totalizaram-se 61 Posturas Municipais com artigos contra ciganos. Apesar de ser representativo o número disponível de tal documentação, não se sabe o que elas representavam no total existente, na época. Além do mais, parte delas não foi conservada.

O Código de Posturas de Mariana (de 17/09/1829 e aprovado pelo Conselho Geral da Província em 1830), embora apontado por muitos pesquisadores como o modelo dos códigos de posturas das demais cidades mineiras[59], não faz qualquer menção aos ciganos. Também as posturas de Ouro Preto, de 1720-1826 e de 1830-1837, não se referem a ciganos.[60] Da mesma forma, na lei de 1828, não havia qualquer recomendação contra os ciganos. Mas o aparecimento de artigos contra ciganos nas posturas de Sabará e Queluz, em 1829, está coerente com o papel que Câmaras Municipais assumiram a partir de então.

Apesar de oscilarem na delimitação de dois tipos principais de contravenções contra pessoas, causadas por ciganos (comércio de escravos, animais e objetos e a simples permanência na cidade), as posturas se distinguem quanto à definição de cigano, o tipo de transação que é proibido, tempo de estada permitida e as penas e multas. Nas posturas da primeira metade do século, há ênfase em colocar o cigano como indivíduo suspeito por barganhar escravos e animais adquiridos ilicitamente. No transcurso do século isso vai se alterando, e no último quartel do século XIX, preocupa-se mais com a simples presença dos ciganos na cidade, considerada ameaçadora para a saúde pública.[61]

A partir do início e avanço do século XIX, as autoridades da província punham em vigor medidas cada vez mais repressivas, com o fim de disciplinar a presença dos ciganos no espaço público. Essas providências buscavam retirá-los das ruas, evitando o comércio, a perambulação, a leitura da sorte; mas, preferencialmente, buscavam enviá-los para as cidades vizinhas. Também, à medida que o século progredia, acirrava-se a intolerância social em relação a tal presença, a ponto de todos os valores deles serem considerados imorais.

Umas das estratégias que as autoridades utilizaram para obter maior controle social, era a promoção da urbanização em Minas,  o que representou a criação de um grande número  de municípios e suas respectivas câmaras. Apesar de a população estar ainda concentrada nas regiões anteriormente vinculadas à mineração, faltava organizar e estruturar os habitantes sob um controle eficiente do Império. Procurou-se, então, estabelecer em cada núcleo urbano, por exemplo, distritos de paz com guarnições da brigada militar. A maior parte dos esforços de controle da população, implementados pelo Império, tiveram pouca eficácia.[62] Em Minas Gerais, a instabilidade na hierarquia social durante o século XIX, não era muito diferente daquela vivida no século anterior. Também, a movimentação de pessoas pelo vasto território, apesar de estar diminuindo, ainda era considerável.

Com a vida urbana mais intensa do interior brasileiro, as cidades mineiras caracterizavam-se por um movimento constante dos mais diversos tipos de pessoas, e por diferenças sociais profundas. E havia um significativo fluxo financeiro e de mercadorias. As cidades mineiras oitocentistas passaram, gradualmente, a ser administradas de forma a disciplinar a ocupação urbana. O objetivo era que se manifestasse na cidade a racionalidade e o progresso almejados. Contrariando essa lógica civilizatória, a presença do acampamento cigano na cidade significava a existência de um território onde se deparava com uma forte constância da informalidade nas relações sociais e econômicas e uma outra lógica familiar e moral.

Apesar de, em princípio, ser antagônico à civilização, na prática, o acampamento era comportado pela cidade, espaço do encontro e do desencontro, na política, no comércio, nas relações sociais e afetivas. A cidade possui uma dinâmica, em que mobilidade e pausa dialogam permanentemente, pois nela movimento e fixação ora se contradizem, ora se harmonizam.

Os ciganos, possivelmente, ocupavam os espaços mais insalubres das cidades. Não que eles se opusessem ao conforto e à higiene, mas sim ao que vinha atrelado a isso: o cerceamento à liberdade de movimentação e o controle de suas ações. Como diz Jurandir Freire Costa, a conduta dos ciganos, juntamente com a de outros desclassificados, era uma afronta à ordem médica (preocupada com a família), expressavam a antinorma - caso-limite da infração higiênica[63], por isso sendo entregues aos "cuidados" da Polícia. Além de tidos como ociosos, os ciganos traziam incômodo aos higienistas por serem percebidos como insalubres, colocando em perigo toda a população citadina. Se tivessem de acampar na cidade, deveriam fazê-lo o mais longe possível, para evitarem a transmissão de doenças físicas e moléstias morais. Os acampamentos deveriam estar fora dos limites urbanos.

Os ciganos eram colocados fora do perímetro urbano, porque na perspectiva da medicina social (o higienismo), era preciso distinguir espacialmente aquilo que podia significar o contágio, a doença. A cidade deveria expressar continuidade espacial, e não ter um quisto incômodo.

Os ciganos não deviam ter lugar na cidade, porque a sociedade os associava à irracionalidade, aos modos rudes, ao atraso cultural e ao analfabetismo.[64] Perambulando por ruelas e becos malcheirosos, ciganos pobres com suas crianças esfarrapadas, compõem a feiura da cena urbana. Aliás, o uso de farrapos e roupas remendadas por muitos ciganos, não apenas era uma manifestação da pobreza, mas também uma estratégia de diferenciação frente aos não-ciganos, de forma a amendrontá-los.

Contrariando toda essa perspectiva, o espaço público e o privado, entre os ciganos, eram distintos ao olhar da sociedade mineira. Eles usavam a rua não simplesmente como espaço de circulação, mas como uma pausa no movimento, um lugar. E, enquanto a cidade distinguia na arquitetura das edificações, a divisão entre o local de trabalho e a moradia, com a delimitação clara de suas funções, os ciganos desconheciam essas formas novas e "civilizadas" de se viver.

Outro aspecto dissonante do projeto civilizatório, era a movimentação contínua dos ciganos, a pé e a cavalo, pelo espaço público. Pois, "fixar é um dos primeiros objetivos da disciplina; é um processo de antinomadismo."[65]

Como indica o artigo 111 das posturas da Câmara de Sabará (1829), pelo menos desde a década de 1820, os ciganos também acampavam em fazendas próximas à cidade.[66] Outros exemplos disto, ocorreram em vários municípios da Zona da Mata, em 1898: "Acastellados alguns bandos em fazendas, onde é bem aviltante registrar que os possuidores de propriedades ruraes dão lhes guarida e protecção."[67]

Esse dado, confrontando-o com as informações de uma extensa bibliografia etnográfica, indica a constância com que os ciganos "optavam" pelas periferias urbanas. Se, por um lado, eram forçados a ocuparem as redondezas da cidade, por outro, nos terrenos onde acampavam, havia mais liberdade e espaço para a convivência familiar e comunitária que seria impossível na turbulência da área central da cidade.

A "civilização" dos costumes no transcurso do século XIX distinguiu as esferas, pública e privada, cuja disposição condicionava o equilíbrio geral da sociedade.[68] O comportamento nobre e cortês, a "etiqueta", estabeleceu categorias claras entre os homens e seus ambientes. Assim, uma vez diferenciadas socialmente as habitações, o vestuário, as expressões e os gestos, criou-se "a uma divisão progressiva entre as esferas privadas e públicas, entre os comportamentos mais secretos e os sociais."[69] O espaço privado dos ciganos se confundia com o espaço público. Seu modo de vida, muitas vezes, era ao ar livre, onde as barracas deixavam ver seu interior. Por isso, eram associados à imundice e à imoralidade.

Acrescente-se que, desde a colônia, a mulher cigana tinha um comportamento completamente oposto ao da mulher branca das camadas superiores. Enquanto a cigana ia e vinha pelas ruas da cidade, a mulher da elite era a "dona ausente", confinada à casa e saindo somente em raras ocasiões.

Às ruas centrais da cidade, iam os homens para barganhar e as mulheres para ler  a  sorte  e, ocasionalmente, mendigar. Essas mulheres disputavam, com mendigos e negras de tabuleiro, a atenção dos pedestres e o espaço nas ruas. Estas ruas eram muito importantes para os ciganos. Ali eles faziam seus contatos e negócios e se informavam de prováveis ações policiais, das quais deveriam ser avisados os que haviam permanecido no acampamento.



[1]. Coelho 1995, pp. 228-229; China 1936, pp.399-400

[2]. China 1936, p.  484

[3]. China 1936, p.403-404

[4].   Pereira da Costa 1983, p. 301

[5].  Donovan 1992, p. 43; cf. a nota correspondente, nº 50,  p. 52; baseando-se em Martins, F.A. Oliveira, Pina Manique, o político-amigo de Lisboa, Lisboa, 1984, p. 17.

[6].  Carta do Chanceller José Carvalho de Andrade para o Conde de Oeiras, na qual lhe dá informações sobre os ciganos residentes na Bahia, etc. (01//08/1761),  Annaes da Bibliotheca Nacional do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, vol. XXXI, 1909. [Apud China 1936,  p. 403].

[7].   Moraes Filho, A. F. Mello, Os ciganos no Brasil & Cancioneiro dos ciganos, Belo Horizonte, Itatiaia, 1981,  pp. 26-27.

[8].   Coroacy, V., Memórias da cidade do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro,  José Olympio, 1955,  p. 94.

[9].   Coroacy 1955, p. 99.

[10]. Moraes Filho 1982. p. 27.

[11]. Coroacy 1955, p. 102.

[12]. China, J. B. d’Oliveira, “Os ciganos do Brasil”, Revista do Museu Paulista, Tomo XXI,  1936,  pp. 418-419.

[13].   Coroacy 1955. p. 102.

[14].   Gerson, B., Histórias das ruas do Rio,  4ª ed. revista, ampliada e ilustrada,  Rio de Janeiro, Livraria Brasiliana Editora, 1965, pp. 277-78.

[15].   Coroacy 1955, p. 102

[16].   Fraga Filho, W., Mendigos, moleques e vadios na Bahia do século XIX, São Paulo, HUCITEC, 1996,  p. 24.

[17].   Moraes Filho 1981, p. 30.

[18].   Moraes Filho 1981, p. 32.

[19].   Silva, M. B. Nizza da., Vida privada e quotidiano no Brasil; a época de D. Maria I e D. João VI,  Lisboa, Referência/Editorial Estampa, 1996, p. 276, baseando-se em: Gazeta do Rio de Janeiro, nº 90, 1810.

[20].   Eschewege, W. L. von, Brasilien, die neue Welt, Vol. II, 1830; apud Saint-Hilaire, A. de, Viagem à província de São Paulo, Belo Horizonte, Itatiaia, 1976, pp. 102-103. Não se teve acesso ao original de Eschewege e a tradução publicada recentemente Brasil, novo mundo, Belo Horizonte, Centro de Estudos Históricos e Culturais / Fundação João Pinheiro, 1996, corresponde apenas à primeira parte da obra, enquanto a referência aos ciganos ocorre no 2º volume.

[21].  Donovan, B. M., “Changing perceptions of social deviance: gypsies in early modern Portugal and Brazil”, Journal of Social History, Vol. 26, 1992, p. 47.

[22].   Santos, L. G. dos (Padre Perereca), Memórias para servir à história do Reino do Brasil, 2º tomo, Rio de Janeiro, Editora Zélio Valverde, 1943,  p. 687;  para saber mais sobre a participação de ciganos em festividades reais deve-se consultar Moraes Filho 1981, pp. 29-32.

[23].   Donovan 1992, p. 47;  cfr. também Coroacy 1955,  pp. 126-143.

[24].   Gerson 1965, p. 278.

[25].   Graham, M., Diário de viagem ao Brasil e de uma estada nesse país durante parte dos anos de 1821, 1822 e 1823,  São Paulo, Cia. Editora Nacional, 1956, p. 286.

[26].   Schwarcz, L. Moritz,  “Questão racial no Brasil”, IN: Schwarcz, L. Moritz & Reis, L. V. de Souza (Orgs.), Negras imagens: ensaios sobre cultura e escravidão no Brasil, São Paulo, EDUSP, 1996, p. 153.

[27].   Sussekind, F., O Brasil não é longe daqui: o narrador, a viagem,  São Paulo, Cia. das Letras, 1990.

[28].   Donovan 1992,  p. 43.

[29].   Donovan 1992, p. 43.

[30].   Donovan 1992, p. 43. Na  p. 52,  nota 52, o autor faz  referência às obras de Maria Graham e Henry Koster, citando as edições originais em inglês, que correspondem às seguintes edições brasileiras: Graham, M, Diário de viagem ao Brasil e de uma estada neste país durante parte dos anos de 1821, 1822 e 1823, São Paulo, Cia. Editora Nacional, 1956,  p. 286; Koster, H., Viagens ao Nordeste do Brasil,  Recife, Secretaria de Educação e Cultura de Pernambuco, 1978,  p. 383. Quanto a um trecho atribuído pelo autor a Saint-Hilaire sobre "Grandes bandos de ciganos", que diz  referir-se a grupos de 100 indivíduos,  não encontramos a passagem na qual o viajante comenta seu encontro com ciganos (Viagem à província de São Paulo, Belo Horizonte, Itatiaia / São Paulo, EDUSP, 1976, pp. 102-103). Saint-Hilaire informa apenas de ter encontrado em Urussanga (SP), "um numeroso bando de ciganos", que se achavam instalados na cidade vizinha, Mogi-guaçu (1976, p. 102). Outra fonte de Donovan (Arquivo Público da Bahia, Cartas ao Governador, doc. 238, 6 de junho de 1819), menciona grupos de 20 pessoas, mas contadas apenas mulheres e crianças.

[31].   Wells, J. W., Explorando e viajando três mil milhas através do Brasil; do Rio de Janeiro ao Maranhão, vol. 1. Belo Horizonte, Fundação João Pinheiro,  Centro de Estudos Históricos e Culturais, 1995,  p. 295.

[32].   Wells 1995, p. 293.

[33].   Matos, R. J. da Cunha. Corografia histórica da província de Minas Gerais, Vol. II, Belo Horizonte, Imprensa Oficial, 1979. p. 88.

[34].   Mello Moraes Filho 1981,  p.27

[35].   Saint-Hilaire 1976, pp. 102-103

[36].   China 1936, pp.409-410

[37].   Mello Moraes Filho 1981, p.28

[38].   Koster 1978, p.383

[39].  Veja Pereira, C. “Gli Zingari in Brasile”. Lacio Drom, Roma, anno 26, nº 6, p. 3-5, novembre-decembre 1990, sobre a origem cigana dos Kubitschek; posteriormente passou-se a escrever Kubitscheck, acrescentando-se a letra c antes do k.

[40].   Monteiro, N. de Góis (Coord.), “KUBITSCHEK, João Nepomuceno”, In: Dicionário biográfico de Minas Gerais; período republicano, 1889-1991; vol. 1, Belo Horizonte, Assembléia Legislativa do Estado de Minas Gerais, 1994, p. 325.

[41].   Monteiro, N.de Góis (Coord.), “OLIVEIRA, Juscelino Kubitschek”, In: Dicionário biográfico de Minas Gerais; período republicano, 1889-1991, vol. 2, Belo Horizonte, Assembléia Legislativa do Estado de Minas Gerais, 1994, p. 477.

[42].  "Destacou-se como advogado provisionado e professor. Durante a Monarquia, ocupou o posto de Diretor da Instrução Pública na Província. Participou do movimento republicano ao lado de João Pinheiro. Na República, elegeu-se Senador Estadual e Vice-Presidente do Estado, compondo a chapa do Partido Republicano Mineiro, com Crispim Jacques Bias Fortes, para o mandato de 1896 a 1898" (Monteiro 1994, vol. 2. p. 477); cf. o verbete dedicado ao próprio João Nepomuceno (Monteiro 1994, vol. 1. pp. 324-325).

[43].  Monteiro 1994, vol. 2. p. 477.

[44]. APM, Secretaria de Polícia (doravante SP), Chefia de Polícia (doravante CP), Documentação Interna, Diversos, cx. 02, doc. 86, fol. 1.

[45].  Em fins do século XIX, e talvez até muito antes desta época, havia no nordeste ciganos "caldeireiros ambulantes, e onde quer que chegassem, levantavam as suas tendas, e saíam à procura de trabalho, que consistia, especialmente, no conserto de objetos de latão e cobre" (Costa 1983. p. 301). Entre os ciganos, o subgrupo Kalderash (em Romani, literalmente "caldeireiro") do grupo Rom, constituiu-se por se especializarem no manejo de metais (principalmente, bronze, cobre e latão) para a fabricação de tachos de cobre, alambiques e muitas outras peças. Mas é muito pouco provável que tenham penetrado na Zona da Mata nordestina, sobretudo nesta época. Para o Nordeste como um todo, migraram poucos ciganos Rom. Portanto, esses caldeireiros ambulantes eram, bem possivelmente, ciganos Calon, que tradicionalmente têm grande flexibilidade quanto às atividades exercidas, adaptando-se de acordo com as necessidades locais.

[46].   Wells 1995. p. 295.

[47].   Pereira, E. C. da Cunha. “Relatório do Chefe de Polícia do Estado”,  In: Secretaria do Interior. Relatório apresentado ao Dr. Presidente do Estado de Minas Gerais pelo Secretário de Estado dos Negócios do Interior (Dr. Wenceslaw Braz Pereira Gomes). Cidade de Minas Geraes: Imprensa Official do Estado de Minas Geraes, 1900. Annexo C. p. 252.

[48].   Dornas Filho 1948. p. 139.

[49].   O Pharol, Juiz de fora, 08 julho 1887. Apud Goodwin Junior, J. W. “Império do Brasil: nesta nação nem todo mundo é cidadão”, Caderno de Filosofia e Ciências Humanas, Belo Horizonte, ano v, nº 9, out. 1997. p. 32.

[50].  Dornas Filho 1948, p.28

[51].  Dornas Filho 1948, pp. 30 e segs.

[52].  China 1936, pp.649 e segs.

[53].  China 1936, pp.460-463

[54].  China 1936, pp. 640-41

[55].  China 1936, pp. 647-48

[56].  Dornas Filho 1948, p.19

[57].    Império do Brasil, Lei de 1º de outubro de 1828. IN: Taunay, A. d'Escragnolle, História administrativa do Brasil, vol. VII (Organização Política e Administrativa do Império Brasileiro), Brasília, DASP-Centro de Documentação e Informática, 1974,  pp. 297-311.

[58].    Posturas da Câmara Municipal da Cidade de Parahybuna da Provincia de Minas Geraes, Rio de Janeiro,  Typographia de Soares e Irmão, 1860. Apud Goodwin Junior,  1997. p. 29.

[59].   Entre os quais: Reis, L. M., Escravos e abolicionismo na imprensa mineira - 1850/1888, Belo Horizonte, FAFICH/UFMG (Dissertação, Mestrado em História), 1993, pp. 19-20.

[60].    A ausência de artigos contra ciganos em Mariana e Ouro Preto, sugere algumas questões: estas cidades não recebiam ciganos?; será que os ciganos as evitavam, sabendo que as delegacias policiais tinham mais homens e eram bem mais aparelhadas? Além disso, esta ausência desse tipo de artigo parece indicar que eles só eram acrescentados nas posturas dos municípios onde realmente havia a "necessidade" de controlar a presença e as atividades dos ciganos.

[61].   Apesar da presença marcante dos ciganos nas posturas, com exceção dos códices da Câmara de Paracatu (CMP), a documentação das câmaras municipais de Caeté (CMC), Curvelo (CV), Mariana (CMM), Ouro Preto (CMOP) e Sabará (CMS) não contribuem em nada para o presente estudo.

[62].     Paz, F. Moraes, Na poética da história: a realização da utopia nacional oitocentista, Curitiba, Ed. da UFPR, 1996, pp. 255-303.

[63].    Costa, J. Freire, Ordem médica e norma familiar, Rio de Janeiro, Edições Graal, 1989, p. 33.

[64].     Embora nem todos os ciganos fossem analfabetos, cfr. Dornas Filho 1948, p. 142.

[65].    Foucault, M., Vigiar e punir: nascimento da prisão, Petrópolis, Vozes, 1977, p. 191; os editorialistas que abrem o número de O Correio da Unesco dedicado aos nômades, lembram o seguinte: "Os nômades parecem atrair a incompreensão de todos. Do Estado, que tende fixá-los, integrá-los, controlá-los. Da sociedade sedentária, que desconfia deles porque não consegue compreendê-los. De uma concepção estreita da civilização moderna, que só reconhece o que é localizável, previsível e programável." [Einadi, B. & Rifaat, A. “Mês a mês (editorial)”, O Correio da UNESCO, Rio de Janeiro, ano 23, nº 1, 1995 (Nômades: uma liberdade vigiada),  p. 5.

[66].  “Posturas da Câmara Municipal de Sabará (1829)”, Revista do Archivo Público Mineiro, Belo Horizonte, anno XIII (1908), 1909, pp. 504-505. No manuscrito original (CMS, códice 247) o artigo encontra-se nas folhas 15V e 16.

[67].  Magalhães, A. Moreira, “Relatório do Chefe de Polícia do Estado”, IN: Secretaria do Interior, Relatório apresentado ao Dr. Presidente do Estado de Minas Gerais pelo Secretário do Estado de Negocios do Interior (Dr. Henrique Augusto de Oliveira Diniz), Bello Horizonte, Imprensa Official de Minas Geraes, 1898, Annexo B, p. 82.

[68].   Cfr. Mattos 1990, p. 210.

[69].   Schwarcz 1997, p. 10; tão importante quanto isto é perceber que "a ruptura entre a demonstração e a contenção de sentimentos foi sendo absorvida de modo crescente, até tornar-se um hábito compulsivo e internalizado".

Apesar das diversas atividades dos seus membros, a maioria dos bandos ciganos caracterizava-se pela pobreza. Assim, essas comunidades não possuíam escravos, por isto ganhavam seus rendimentos com o próprio trabalho. Os ciganos pobres e nômades, provavelmente, possuíam alguns baús e caixas de madeira ordinária, onde guardavam as roupas de uso pessoal, de cama, de mesa e de limpeza ou utensílios diversos. Talvez tivessem, também, esteiras e tapetes: "habitadores de pequenas casas cuja mobília não excede ao absolutamente indispensável e onde dormem promiscuamente as pessoas de todos os sexos."[1]

O pequeno mobiliário e as poucas e esfarrapadas roupas não apenas eram uma manifestação da pobreza, como também uma adaptação às constantes viagens. Além disso, a dificuldade em poupar e adquirir bens duráveis pelos ciganos justifica a preferência por moedas de ouro.

Apesar da miséria de muitos bandos ciganos, eles nunca eram considerados simplesmente pobres, mas, antes de tudo, um grupo etnicamente diferenciado, uma "raça" ¾ raça de ladrões, sujos e preguiçosos.

Cada vez mais rechaçados, os ciganos não tinham como escolher cidades mais favoráveis ou não, ao menos a priori. Mas nas pequenas localidades, povoados e arraiais, mesmo quando o bando tinha poucas dezenas de indivíduos, permaneciam por pouco tempo, pois precisavam de uma população razoável para que pudessem comerciar por muitas semanas. Vale lembrar que, nas péssimas condições das estradas, as viagens eram penosas e a instalação de um acampamento exigia muito empenho, por isso precisaria ser compensador.

Com o incômodo crescente com a presença deles na cidade, os ciganos se viam constrangidos a não permanecer por muito tempo nela, tendo que procurar, mais rapidamente, novas localidades, ou comerciar, acampar, enfim, viver em melhores condições.

É possível que a dificuldade em conseguir terrenos desocupados em áreas mais propícias para tirarem o sustento, tenha levado alguns bandos, até mesmo, a alugar determinadas áreas. Outra alternativa, diante do progressivo escasseamento de espaços na área central, era distanciar-se cada vez mais da mesma. Mesmo assim, os acampamentos constituíam-se num entrave às intenções burguesas, pois localizavam-se em áreas de expansão urbana, pois, apesar de as ocuparem temporariamente, temia-se que nelas se fixassem.

O artigo 295 do Código Criminal do Império (1830) referia-se aos vadios de forma geral[2], mas eram as Posturas Municipais que especificavam a preocupação com os ciganos. Um exemplo de como se procurava controlar a presença dos ciganos, na primeira metade do século XIX, é dado pela Câmara Municipal de Sabará, que inclui em suas posturas o seguinte artigo em 1829:

 

"Não se consinta, que pelas povoações, e fazendas dos particulares divaguem, ou se demorem por caza dos mesmos vagabundos, viciosos, e siganos, ainda mesmo pessoas desconhecidas, e suspeitas, sem que produzão huma nota, ou documento, que legalize a sua identidade (...) huma multa de dés mil reis he o minimo das penas impostas à contravenção, além das que especificam leis positivas para cazos identicos."[3]

 

Apesar dos dispositivos legais e institucionais, os ciganos nômades continuaram vagando de cidade em cidade, e mesmo nas ruas centrais das cidades, durante todo o século XIX. Além de desejarem manter sua identidade, assegurada em grande parte pela existência de territórios próprios (acampamentos), queriam também ter o direito de ir e vir em qualquer parte da cidade, em busca da subsistência diária.

A sociedade mineira rejeitava o cigano porque desejava que o espaço da cidade fosse liso, homogêneo, de acordo com a lógica da sociedade burguesa. "Um espaço liso é um espaço desterritorializado, aonde não há mais os mesmos tipos de circunscrições ou delimitações por emblemas étnicos ou religiosos, por exemplo."[4] Os ciganos tinham territórios delimitados por fronteiras subjetivas, existenciais, que a sociedade mineira procurava padronizar, seriar, enfim desterritorializar, "distendendo-os em espaços lisos."[5] O projeto civilizatório de esquadrinhamento do território mineiro, visava a seu alisamento, ou seja, a homogeneizar através de estratégias administrativas de censo, de controle sanitário e registro eleitoral.

No entanto, apesar da ampliação cada vez maior do projeto civilizatório, a chegada e o abarracamento dos ciganos era a reconstituição temporária de um território da subjetivação da cidade. Assim, a relação dos ciganos com a sociedade mineira poderia ser vista como um conflito entre tipos de percepções do espaço, a priori, contraditórias. A dos ciganos era constituída por elementos de seu cotidiano: relações de parentesco, festas e outros compromissos sociais, trabalho e ócio etc. Tornava-se, portanto, uma forma de reelaboração constante da identidade, respondendo às transformações e estímulos da sociedade mineira. Em geral, a forma mineira de apropriação do espaço seria guiada por uma racionalidade civilizatória e sedentária, enquanto a forma cigana seria direcionada por uma racionalidade comunitária e pelo nomadismo. A utilização de casas por ciganos, como no citado caso de Contendas, não traduzia numa sedentarização completa. Pois as casas funcionavam, sobretudo, como uma “base” para se guardar mercadorias, utensílios e móveis, e como refúgio para o período de chuvas. As casas estavam lado a lado com as barracas, que armadas reforçavam a imagem de nomadismo.

Para compreender melhor a concepção cigana de espaço, reportou-se às reflexões de Patrick Williams, que trabalha com o conceito de invisibilidade. "O nomadismo facilita as estratégias da invisibilidade, da fluidez, que permitem esgueirar-se entre as brechas (legislativas, econômicas, geográficas) que a sociedade deixa em aberto."[6] Trata-se de uma estratégia para a manutenção da identidade étnica e autonomia frente aos cerceamentos das sociedades envolventes, no que se refere à imposição de viverem num território delimitado formal e institucionalmente. Para além das fronteiras oficiais, as relações de parentesco e as atividades econômicas construíam seus próprios limites.

A territorialidade cigana se manifestava em diversas escalas: a tenda, o acampamento, a cidade, os itinerários e as regiões são espaços com os quais os ciganos estabelecem diferentes e complexas relações. A territorialidade do grupo, em macroescala, expressava-se como um "arquipélago" de pequenos territórios. Nos diversos locais onde costumeiramente acampavam, os ciganos chegavam e saiam sazonalmente, ainda que pudesse haver algumas famílias ciganas sedentárias. Assim, os espaços vividos eram mais referentes aos acampamentos, aos itinerários e aos pontos de pernoite do que aos elementos urbanos ou rurais marcantes para a sociedade mineira.

O nomadismo propiciava que as fronteiras dos territórios ciganos fossem portáteis. Ainda que houvesse muitos acampamentos em terrenos de outros proprietários (para os quais deveriam pagar aluguel), o fato de que não tinham a posse não interferia no sentido simbólico dos mesmos. As barracas e a solidariedade entre as famílias eram os elementos que tornavam portáteis os territórios, sinalizando que um determinado espaço era cigano.

"Pode ser que os acampamentos sejam para eles [os nômades] os lugares mais importantes, conhecidos mediante a experiência íntima."[7] O acampamento compreendia tanto o espaço onde estavam as tendas e o intervalo entre elas quanto o terreiro onde os ciganos trabalhavam no artesanato, e no comércio, cozinhavam e, às vezes, alimentavam-se. Nessa área era até tolerada a presença de um estranho, especialmente se fosse potencial cliente, mas este dificilmente entrava nas barracas.

Na tenda havia tênues fronteiras, por exemplo, entre o local de preparação dos alimentos e o dormitório. A barraca simbolizava a intimidade, onde cada família tinha domínio absoluto, penetrando ali somente as pessoas escolhidas. Além disso, este recinto remetia a idéia de um "lugar sagrado, onde o divino é convocado a manifestar-se."[8] Era um microcosmo, que fazia a mediação entre o céu e a terra. Símbolo de estabilidade, uma vez que estava fixado ao solo, de uma vida instável, a vida nômade.

Pode-se aplicar, seguramente, ao acampamento cigano a definição de "lugar" de Yi-Fu Tuan, ou seja, "uma pausa no movimento."[9] Os ciganos abarracavam-se a partir do momento em que interrompiam sua viagem, para trabalhar e repousar.

Para a escolha do local, levava-se em conta a topografia. Pois eram precisos terrenos bem planos, ainda que, eventualmente, pudessem ter utilizado rochedos e cavernas. Também a existência de água corrente e de pastagens próximas era importante, assim como a facilidade de comunicação e de transporte, quando o objetivo principal era o comércio. Às vezes, ao contrário, necessitavam de locais de difícil acesso, como alguns da Serra da Mantiqueira, para evitar que a polícia os encontrasse.

Richard Burton, escrevendo décadas depois de uma das mais célebres quadrilhas atuarem na Serra da Mantiqueira, escreve que esta era liderada pelo português, morador de Barbacena, Chefe Guimarães e seu amigo, o cigano Pedro Espanhol, que viriam a morrer na prisão.[10] Além disso,

 

"Outro ator da tragédia foi o Padre Joaquim Arruda, homem rico e bem relacionado naquela parte da província. O fidus Achate, que todo mundo considerava seu Fra Diavolo, era um certo Joaquim Alves Saião Beiju, mais conhecido por Cigano Beiju. O reverendo "Rue" teve, em 1831, um mau fim, depois de sete anos de bem sucedida vilania; ajudado pelo cigano, fugiu da prisão e escondeu-se em uma caverna, perto de São José da Paraíba, e foi morto a tiros pelo destacamento que o perseguia."[11]

 

Já o Cigano Beiju acusado de inúmeros assassinatos, "teve sua carreira encerrada, por enforcarmento em lugar dos assassinos que por longo tempo desgraçavam a Serra da Mantiqueira".[12] Por essa época, eram freqüentes as acusações contra ataques ciganos em estradas do Centro-Sul do Brasil.[13]

Raramente os bandos ciganos percorriam longas distâncias, de uma província a outra ou mesmo por diversas províncias brasileiras. Pois estas viagens duravam semanas e até meses, o que custava um enorme empenho econômico e físico. A maior parte dos deslocamentos ciganos envolvia distâncias entre cidades vizinhas, ou entre cidades da mesma comarca.

As movimentadas estradas e caminhos eram percorridos pelas mais diferentes gentes, tornando-os intinerários cheios de surpresas e até difícieis e perigosos. De uma região para outra, famílias se deslocavam, negociantes tratavam de suas atividades, juristas e clérigos tomavam suas ações  nas áreas que coordenavam, capitães do mato perseguiam escravos fugidos, naturalistas buscavam novas espécies minerais, vegetais ou animais, tropeiros conduziam suas tropas de mulas e os vaqueiros suas boiadas. Todos esses viajantes enfrentavam inúmeros problemas, como a má conservação das estradas e os imprevistos mais diversos. Nesse contexto, os ciganos eram tidos como um empecilho adicional às desagradáveis viagens.

Dificilmente os ciganos encontravam a mesma recepção que os viajantes eventuais em geral encontravam em ranchos para pernoitar, nas estradas mais percorridas. Também nos caminhos mais difíceis e isolados não podiam contar com a ocasional hospitalidade dos donos de sítios e fazendas. Por isto estavam acostumados a não dependerem da boa vontade de estranhos. Utilizando frequentemente suas barracas, e algumas vezes mesmo cavernas, os ciganos enfrentavam assim a questão do abrigo.

Uma das situações mais incômodas destas viagens era a travessia de algum rio, já que para isto as bagagens deveriam ser retiradas do dorso das mulas. A passagem dos animais pela corrente do rio era a nado. As pessoas utilizavam eventualmente algum tipo de balsa ou canoa, que era importante sobretudo para o transporte dos fardos. Na outra margem recarregavam as mulas e remontavam nos cavalos. A viagem prosseguia.

Independente de sua localização, cada acampamento existia mediante os limites, as fronteiras simbólicas, construídas pela oposição aos "de fora". A identidade se afirmava por uma continuidade no tempo e uma permanência num espaço, um espaço portátil, já que os acampamentos mudavam em suas localizações, mas permaneciam como território cigano.

 

“Correrias de ciganos” em Minas Gerais no Século XIX.

 

a) Diligências policiais: tiroteios, mortes e prisões.

 

Nos Relatórios dos Chefes de Polícia de Minas Gerais, durante o século XIX, é comum aparecerem os subtítulos "Invasão de ciganos" e "Correrias de ciganos", descrevendo diversos confrontos entre a força policial e os ciganos. Também nos jornais do período, a expressão "Correrias de ciganos" serve de título para diversas matérias. O dicionário de Antonio de Moraes Silva grava correria como sendo, simplesmente, uma "assaltada repentina de inimigos, que vão correr a Terra."[14] Assaltada, que é sinônimo de assalto, refere-se a uma ação súbita de alguém, ou seja, uma incursão, um ataque feito com alguma violência. Mas também serve para designar uma fuga, um correr desordenado, em todas e em nenhuma direção, provocando o incômodo dos que estão próximos a esta movimentação. As autoridades policiais encaravam os ciganos como "perturbadores da ordem", pois eram acusados de roubos diversos e de corromperem os costumes, colocando em perigo a ordem pública. Como se verá mais adiante, a repressão policial fundamentava-se, ao menos em parte, em pressupostos higienistas.

Apesar de serem na documentação policial uma presença quantitativamente maior, ainda assim as referências aos ciganos aparecem nela muito ocasionalmente. Embora quando se registram crimes e contravenções de ciganos, estes fatos mereçam destaque. O número de ciganos sempre foi muito pequeno em relação ao total da população mineira, portanto a presença ocasional dos ciganos na documentação, que foi se tornando mais freqüente na segunda metade do oitocentos, era proporcionalmente mais significativa do que sua importância no contexto demográfico. Por isso, pode-se dizer que apesar de serem relativamente poucos, os ciganos causavam grande incômodo às autoridades policiais e às próprias populações locais. Essa documentação proporciona poucos dados para o conhecimento da vida privada dos ciganos e de seu cotidiano, além dos confrontos com não-ciganos, que requeriam a presença policial. Pois os ciganos não procuravam as autoridades para resolver questões familiares ou dos próprios bandos.

Na última década do século XIX e nos primeiros anos do século XX, entre as principais diligências, a polícia mineira executou operações que combateram numerosos bandos de ciganos. Em seguidos anos, os relatórios dos comandantes da Brigada Policial, informam que o maior número de baixas em serviço são provocados pelos confrontos com ciganos.

Segundo a documentação policial e os jornais, as localidades envolvidas são umas seis dezenas, mas não incluem Ouro Preto. Embora esta cidade não tenha sido cenário dessas correrias, enquanto capital, a cidade tinha seu cotidiano afetado por estes episódios. Em Ouro Preto eram centralizadas as comunicações telegráficas, e eram coordenadas muitas das ações contra os ciganos. De lá, partiam e voltavam destacamentos da Brigada Policial. Iam determinados e retornavam comemorando o sucesso das diligências ou lamentando fracassos e baixas no efetivo. O Chefe de Polícia do Estado descreve, com indignação, a presença de:

 

"centenas de ciganos, em diversas zonas do Estado", que vinham "provocando desordens, munidos de fino armamento e de carabinas das mais modernas, promptos á tenaz resistencia aos destacamentos, que os perseguem, proclamando abertamente seu desrespeito aos poderes constituidos."[15]

 

A preocupação deste Chefe de Polícia com os ciganos era tamanha que o levou a fazer algumas considerações sobre estes "aventureiros", que visavam "exclusivamente o roubo", procurando explicar as "invasões de ciganos". Seu olhar estrangeiro é evidente, como transparece na observação de que os ciganos são "desligados de todas as aggremiações partidarias; baldos de sentimentos patrioticos; divorciados das mais rudimentares noções de dever cívico." Em contrapartida, os ciganos não se identificavam em nada com os valores vigentes, que lhes pareciam completamente estranhos. Por isso, os ciganos aqui não são vistos como tendo uma cultura própria; eles são notados pela ausência de valores, atitudes e condutas prezadas pela elite brasileira, que procurava alcançar plenamente a “governamentalidade”, a civilização e o progresso. Assim, os ciganos são tidos como apolíticos, "sem patria, sem religião, sem lei", sem civismo e incivilizados. Os valores ciganos eram tidos como algo tão absurdo que nem sequer eram percebidos como sendo traços de uma outra cultura. Além disso, como "forasteiros", os ciganos são vistos com extremo temor, pois se apresentam "de armas na mão, conduzindo munições de guerra", semeando "o terror por toda parte", "vivendo até aqui dos roubos e pelos roubos."[16]

Muitas vezes, na documentação policial, fala-se que os ciganos estavam bem armados e municiados, mas é difícil crer que pobres ciganos tivessem mais armas e munições que a força policial. Excetuando facas e punhais que tinham originalmente outras funções, na maioria das vezes, os ciganos dispunham apenas de eventuais pistolas e carabinas velhas, cuja munição era difícil de ser conseguida pelo interior de Minas. No entanto, se os ciganos são apresentados como bandidos valentes nos embates contra a força pública, não têm honra, são covardes, já que:

 

"uma vez atacados em seus acampamentos, já  não defendem o producto de suas depredações; abandonam valores, animaes, bagagens e até as mulheres e crianças, que os acompanham, para somente salvarem as suas pessoas e as suas armas, carabinas dos mais aperfeiçoados systemas!"[17]

 

Deixar mulheres e crianças para trás era talvez uma estratégia de sobrevivência dos bandos perseguidos, que facilitava a fuga dos homens, tornando-a mais rápida. Sabia-se também que mulheres e crianças, mesmo sendo ciganas, evocariam a piedade da polícia, pois eram consideradas frágeis. Portanto, não deveriam ser maltratadas.

Nos primeiros meses de 1897, a força armada estadual fez constantes e "fatigantes marchas e contramarchas", provocando a debandada dos ciganos. A polícia agia expulsando os ciganos de cidade em cidade, sem promover um extermínio generalizado e também sem tentar estabelecer qualquer acordo. A crueldade dos ciganos proporciona uma "porfiada e sanguinolenta lucta" com a louvada força armada do Estado, que apesar de ter de enfrentar "renhidos combates e tiroteios", tem "com valor e lealdade sustentado á bem da segurança pública e dos direitos" dos cidadãos.[18]

Ser cigano significava, no mínimo, estar sob suspeita. As ações policiais eram precipitadas na apuração de supostos crimes cometidos por ciganos. Muitas vezes, eram presos, torturados, tinham confiscados seus bens e enfrentavam tiroteios apenas por serem ciganos. Mas não era viável prender muitos ciganos; ao menos por longo tempo, pois houve, durante o século XIX, um constante problema de superlotação das cadeias, que era agravado "nos períodos de instabilidade política."[19]

Na localidade de Fonseca, "invadida e saqueada" por ciganos, morreram "o bravo alferes Symphoriano Alves dos Passos e uma praça", além de se ferirem também "4 praças, algumas gravemente".[20] O tiroteio em que foram vitimados os policiais não foi justificado no relatório pelo Comandante da Brigada Policial. Assim, como não foi feita referência a ciganos vitimados.

Comentando a morte do alferes Symphoriano dos Passos, o chefe de Polícia, em relatório de 1898, não economiza considerações em seu prejulgamento dos ciganos: "esses vandalos são chefiados por criminosos de homicidios e dentre estes pelo responsavel pelo barbaro assassinato do alferes Symphoriano dos Passos (...)".[21] Ocorre que não se trata de assassinato "a sangue frio", mas uma morte decorrente de um tiroteio. Não houve um assassinato propriamente dito, não foi homicídio doloso (premeditado), mas culposo, porque decorreu de uma situação na qual os ciganos respondiam a agressões policiais. Não houve intenção específica de se matar o alferes.

O confronto foi contra a "horda de ciganos, capitaneados por Deolindo de Souza, desertor da Brigada do Estado do Rio de Janeiro".[22] Esta informação apresenta-se estranha: como e por que um indivíduo desertor da força policial, por conseguinte originalmente não-cigano, podia chefiar um bando de ciganos? Considerando que se trata de um dado fidedigno, em primeiro lugar, há a possibilidade remota de Deolindo ser cigano de nascimento. Segundo, existe a possibilidade de ele ter se casado com uma cigana, após ter desertado. Então, teria conquistado a confiança dos ciganos do bando com seus prováveis conhecimentos adquiridos na brigada policial, onde deve ter feito diversas viagens em diligências. Logo, deveria conhecer bem a vida das viagens no sertão. Outro aspecto a ser considerado, é que deveria ser interessante para os ciganos, ter um líder que pudesse, de acordo com as circunstâncias, no contato com os não-ciganos, fazer prevalecer ora uma identidade cigana, ora sua descendência não-cigana.

Se considerarmos que o dado é equivocado, é possível que a polícia identificasse, erroneamente, bandos de criminosos não-ciganos como sendo ciganos. Por fim, talvez o termo cigano tenha se aproximado de se tornar sinônimo de criminoso.[23]

A preocupação com os ciganos era tanta que o dito major "operou em comum accôrdo de vistas com a força fluminense, também em acção contra os ciganos."[24] A Zona da mata recebeu "grandes contingentes" da força policial, desde que os ciganos "infestavam diversas localidades", onde cometiam "toda sorte de depredações." No mesmo ano, as localidades do município de Mariana sofriam com incidentes semelhantes.[25]

No ano seguinte, o mesmo chefe de polícia relata uma "nova invasão" de ciganos que ocorreu nos municípios da zona da Mata. Segundo essa autoridade, não era "preciso accentuar que muitas depredações e assassinatos commeteram estes selvagens, aventureiros perigosos."[26] Sempre indignado, mais adiante, opõe os "aventureiros perigosos" às "laboriosas populações" vitimadas.

Algumas vezes, as perseguições policiais surgiam gratuitamente. Acuavam-se bandos ciganos sem que houvesse qualquer acusação de delito. A polícia ia ao encalço deles só por serem ciganos, ou seja, por serem sempre supostamente criminosos. Foi o que aconteceu, por exemplo, no seguinte episódio:

 

"No dia 25 de maio de 1897, o delegado de policia de Cataguases, baseado em informações fidedignas, avisou ao major Jacintho Freire de Andrade, que se achava no Porto de Santo Antônio, de que a Aracaty havia chegado um bando de ciganos.

Nesse mesmo dia seguiu o major Jacintho Freire, em trem especial, com a força do seu commando, para Aracaty, onde teve noticia de que os ciganos achavam-se acampados em uma fazenda, dalli distante uma legua.

A força abeirou-se da referida fazenda e, preparada, aguardava o romper do dia para entrar em acção, mas os ciganos presentindo-a dispararam tiros que não a attingiram.

Immediatamente a força fez uma descarga sobre os bandidos, que em desordenada fuga deixaram mulheres, bagagens e animaes, sendo apenas attingidos pelas balas um homem, uma moça e um menino que morreram logo. Foram presos algumas mulheres e apprehendidos 23 animaes e bagagens."[27]

 

Outras vezes, além de não averiguar as acusações contra os ciganos, a Polícia ajudava cidadãos a fazerem justiça com as próprias mãos, como no episódio ocorrido em 1902:

 

"Procedentes de S. Sebastião do Herval, municipio de Viçosa, os cidadãos Pedro Antonio Ferreira, Virgilio José Ribeiro e Marciano Dias Eduardo, no encalço de tres ciganos que lhes haviam roubado dous animaes, chegaram a 4 de abril do anno transacto á povoação do Campestre, onde encontraram os ditos ciganos e os animaes roubados.

Como se oppuzessem os ladrões a fazer entrega dos animaes, travou-se um conflicto, de que resultou ficarem gravemente feridos Pedro e Marciano.

Chegando esses factos ao conhecimento do delegado de Ubá, este seguiu para o logar do conflicto, onde ainda poude apprehender os animaes, fugindo os ciganos em direcção à Serra da Onça.

Continuou a auctoridade a perseguil-os com a força que levava até ao districto de Cataguarino, cujo subdelegado começou por sua vez a auxilial-o na diligencia, até que, proximo á fazenda do Sr. Francisco Silveira, puzeram-se os ciganos a resistir á escolta, que por essa occasião teve necessidade de utilizar-se de suas armas, matando os de nome Totó e Osorio, pertencentes ao grupo do famoso Duque, conseguindo evadir-se o de nome Christiano."[28]

 

Não havia uma política bem coordenada contra os ciganos. Quando se realizavam diligências policiais, geralmente eram convocados paisanos. A intenção era a de expulsá-los para fora dos limites do município, fazendo uso constante de violência. Entre junho e outubro de 1899, por exemplo, um bando de ciganos é sucessivamente expulso de São João Nepomuceno, Ubá, Muzambinho e Ponte Nova.[29] Em alguns casos, como em 1897, quando a Zona da Mata teve diversos problemas com ciganos, enviava-se uma força policial adicional para combatê-los. Nestes casos, em que uma região era freqüentada por ciganos durante meses, a tentativa da Brigada Policial era enviá-los para fora de Minas, principalmente para o Rio de Janeiro.

 

b) O destino das apreensões: crianças, bagagens e animais.

 

A repressão policial vinha custando ao Estado "preciosas vidas e alta somma de dinheiro"[30], mas os cofres do tesouro recebiam o valor dos bens dos ciganos, que eram sempre confiscados e leiloados. A apreensão dos bens (objetos, mulas etc.) dos ciganos era feita sob a alegação de serem roubados. Na verdade, o simples fato de esses bens estarem com eles era motivo suficiente para serem considerados roubados. Aos ciganos, era quase negado o direito à posse de bens. As acusações de roubo existem sem que haja ocorrências formais.

A documentação sobre isto, apesar de reduzida, é esclarecedora. Vejamos alguns exemplos: Os animais e as bagagens, deixados após a fuga dos ciganos de seu abarracamento, foram arrecadados pela autoridade policial de Conceição do Turvo, depois de um sangrento confronto, em janeiro de 1892. O jornal O Estado de Minas ressalta que essa arrecadação era insignificante tendo em vista que "sempre soffreram seu prejuízo."[31]

A violência e a surpresa com que os ciganos eram muitas vezes surpreendidos pela polícia, faziam que, em suas escapadas, deixassem muitos animais e bagagens para trás. A arbitrariedade da autoridade policial que se seguiu à correria dos ciganos, fez um dos editores de O Estado de Minas lamentar perplexo tal acontecimento:

 

"Na Conceição do Turvo ficaram as bagagens dos ciganos e muitos animaes, segundo communicação recebida do subdelegado de policia daquella freguezia.

Nos bahús, de que se compunham essas bagagens, foram encontrados relogios de ouro, arreios de prata, roupas servidas, e duas machinas para fabricação de cartuchos.

O commandante da força, que é um capitão de policia, apoderou-se de todos os objectos apprehendidos e mandou atiral-os nas ruas, distribuindo uma parte delles por pessoas pobres, que appareceram na occasião, e mandando queimar outra parte.

Não sei se ha, neste paiz, lei que justifique tal procedimento, que poderá ser muito regular entre os povos da China ou do centro da Africa...

Aqui, no Brasil, penso eu que não se pode impunemente, realizar semelhante loucura.

Enfim, como a espada está na ponta... calemo-nos, della evitando a ponta."[32]

 

Sobre uma diligência contra ciganos em São João Nepomuceno, em junho de 1899, escreve-se que se não "apparecesse senhorio certo" para os animais apreendidos, eles deveriam "ser entregues ao juiz de direito para mandar vendel-os em hasta publica, recolhendo-se o producto aos cofres do Estado"[33]; idêntica situação acontece para a diligência em Ubá, quando depois de se desvalorizar os animais apreendidos, dizendo serem "quasi imprestáveis", relata-se que "caso não apparecessem seus legitimos donos" deveriam ser "vendidos em hasta pública (...) o producto da venda recolhido á collectoria local."[34]

Encontraram-se apenas dois documentos que não se referem aos animais e objetos de posse com os ciganos e considerados roubados; o primeiro deles trata-se de uma matéria publicada em 1892[35], descrevendo uma diligência em Carangola e Ubá que vinha "ao encalço dos ciganos"; informa que foram apreendidos "24 animais, canastras e outros objetos (...) os quais pertenciam aos mesmos"; embora os textos dos periódicos fossem muito próximo dos textos policiais, como se constatará mais à frente, muitas vezes, reproduzindo as correspondências policiais, é um pouco menos depreciativo em sua visão dos ciganos. O segundo registro é o relatório de 1899, que reconhece pertencerem aos ciganos as bagagens e animais apreendidos numa diligência em Itapecerica, entre o final de janeiro e o início de fevereiro de 1899.[36]

Embora diversos relatórios policiais afirmem que as crianças ciganas, deixadas nas fugas, seriam recolhidas pelas autoridades competentes, deduz-se que estas crianças ficavam pouco tempo "sob o cuidado" delas, que não se havia meios adequados para tal acolhida. De 1895 a 1901, funcionou a Colônia Correcional do Bom Destino, para o menor vagabundo. Mas em 1901, ainda não havia uma "solução" adequada para menores delinqüentes ¾ que os reabilitassem pela educação e pelo trabalho.[37]

 

c) Repercussões na imprensa.

 

Os jornais apresentaram, a partir de 1881 e até 1897, um conjunto de notícias intituladas "Correrias de ciganos", "Bando de ciganos" ou simplesmente "Ciganos", que tratavam desde acusações de seqüestro de uma ingênua moça e roubos de animais, até narrações dos tiroteios com a polícia e as conseqüentes fugas. Nessas matérias, o texto aproxima-se bastante dos textos policiais, sendo que ocasionalmente algum jornalista arriscava alguns comentários extras.[38] Muitas notícias transcreviam extensos trechos de relatórios, correspondências, telegramas e ofícios das autoridades policiais.

O melhor exemplo dos elogios à Polícia foi dado pela reprodução do ofício de felicitações do conselho distrital de Santo Antônio do Grama (município de Abre Campo) ao Dr. Aureliano de Magalhães, chefe de Polícia do Estado. Depois de descrever como as "maltas de ciganos" vinham impunemente praticando os mais bárbaros assassinatos e depredações, "ha mais de cinco anos", congratula-se com o rechaço dos ciganos, que "eram uma ameaça constante aos pequenos povoados". Cada adjetivo agregado à palavra ciganos era uma forma de exaltar a Polícia. A intenção era contrastar a "crueldade" dos ciganos com a "coragem" da Força Policial. Ao festejarem a debandada geral dos ciganos imposta pelas autoridades, acreditam que isto tem o "sentido de sanear moralmente o Estado."[39]

A imprensa se incumbiu de manter os leitores informados, da melhor maneira possível, sobre os problemas causados pelos ciganos, como já vimos. Além disso, os jornais não se cansaram de elogiar as atuações das forças policiais contra os ciganos. E o papel dos jornais se completava, neste sentido, divulgando avisos e editais da Secretaria de Polícia sobre apreensões de animais que estavam em posse dos ciganos. Em 1886, por exemplo, o Liberal Mineiro acusa "uma troça de ciganos, que tem percorrido diversos pontos da provincia", de estarem com animais suspeitos de serem roubados:

 

"Uma besta ruça queimada, alta, de primeira muda feita; uma dita vermelha, muito alta, segunda muda; seis queimadas; duas pello de rato, bem feitas; um burro da mesma côr; um cavalo baio-camurça; um ruço, marchador e muitos outros."[40]

 

Após esta descrição minuciosa dos animais, o jornal informa que os interessados devem procurar alguns senhores em Cataguazes.

Com a intenção de tornar menos arbitrário o destino dado às apreensões dos bens ciganos, o Minas Geraes publicou 33 vezes, entre 19/20 de abril e 10 junho de 1897, o seguinte aviso da Secretaria de Polícia:

 

"O dr. Chefe de Policia faz publico que se acham depositados, nesta Capital, 48 animaes apprehendidos dos ciganos, que ultimamente, vindo dos Estados do Rio de Janeiro e Espírito Santo, percorreram diversos municipios do território mineiro e fazendo violencia á propriedade e vida dos cidadaos.

Quem se julgar, pois, com direito a qualquer dos animaes acima mencionados, deverá, no prazo maximo de 60 dias, apresentar, nesta secretaria, justificações legaes, para consequente restituição, visto como, findo este praso, serão os alludidos animaes levados á hasta publica, tendo o seu producto applicação previstas em lei.

Secretaria de Policia, 14 de abril 1897.

Pelo Chefe de Policia, Antonio de Almeida."[41]

 

Para divulgar o local, a data e o horário em que seriam colocados à venda os animais que não foram reclamados pelos seus proprietários, publicou-se 7 vezes, entre 2 e 14 de junho de 1897, o seguinte edital:

 

"De ordem do exm. sr. dr. Chefe de Policia, faço publico que a contar da data de 17 do corrente mez e nos dias subsequentes, terá logar, em frente á Secretaria da Policia, das 11 horas da manhã ás 3 da tarde, a praça de todos os animaes apprehendidos dos ciganos e não reclamados dentro do praso marcado em aviso desta Repartição, datado de 14 de abril último e publicado no Minas Geraes; estando todos os animaes devidamente assignalados, por ordem da Policia, para garantia dos futuros possuidores".[42]

 

A presença dos ciganos na pauta da imprensa no final do século, expressava o incômodo que eles representavam para as elites locais. Excetuando-se as diferenças político-filosóficas, a imprensa defendia a civilização, o progresso e os avanços da ciência; o que se pode ler nas entrelinhas como sendo um projeto de educação e controle da população. Embora o público leitor concentre-se na "boa sociedade", as discussões feitas na imprensa repercutiam diretamente no cotidiano da população, em quem a imprensa fomentava as determinações políticas das elites locais.

 

 

d) Prováveis causas das correrrias.

 

Quando se pergunta por que surgiram as Correrias de ciganos, principalmente na última década do oitocentos em Minas Gerais, a resposta parece ser a simultaneidade de vários fatores. Sintetizando o que se tratou anteriormente, as transformações que ocorreram na economia e na sociedade, com o gradativo desmantelamento do escravismo, tiveram um profundo impacto na vida dos bandos ciganos.

Com a abolição da escravatura em 1888, alguns bandos de ciganos perderam sua principal atividade econômica (o comércio de escravos). O Campo de Sant'Ana e as ruas dos Ciganos e Valongo, no Rio de Janeiro, viveram o apogeu da comunidade cigana nas primeiras décadas do século XIX. E à medida que transcorria o século, essa comunidade foi entrando em decadência, junto com o comércio de escravos, tanto pelo fim do tráfico negreiro (1850) quanto pela crescente introdução de mão-de-obra assalariada e pela divulgação das idéias abolicionistas. A abolição da escravatura foi o golpe final no comércio negreiro dos ciganos.

Nossa hipótese é a de que alguns bandos deixaram o Rio de Janeiro rumo a Minas Gerais, com isto aumentando significativamente o número deles no território mineiro. O que explicaria porque a Zona da Mata, principalmente a Serra da Mantiqueira, tornou-se uma região de intensa movimentação de ciganos. O aumento da população escrava na Zona da Mata e a hipervalorização dos cativos, de meados do século às vésperas da abolição, muito provavelmente atraiu traficantes ciganos.

Também no final do século XIX, com a crise acentuada da lavoura canavieira no nordeste, junto com o êxodo de homens pobres livres do Nordeste, sobretudo da Bahia[43] para o Centro-Sul, em busca de melhores salários e condições de sobrevivência[44], vieram para Minas Gerais também ciganos caldeireiros, que até então trabalhavam no conserto de peças e objetos de latão e de cobre, nos engenhos da zona da mata nordestina.[45]

O afluxo de imigrantes europeus (alemães, italianos, russos e outros) ao Brasil ocorreu desde os anos 1870, e aumentou consideravelmente a partir de 1888. Ou seja, após a abolição definitiva da escravidão negra no Brasil, quando os escravos africanos passaram a ser substituídos por miseráveis e famintos imigrantes europeus. Entre estes certamente havia também centenas, ou talvez até milhares de ciganos Rom não-ibéricos, que quase nada tinham e nem hoje têm em comum com os ciganos Calon ibéricos e brasileiros, a não ser talvez a errônea denominação genérica de “ciganos”. Os números exatos destes novos imigrantes ciganos Rom nunca serão conhecidos, por absoluta falta de documentos históricos.

Acontece que estes novos ciganos Rom adicionaram também novos problemas à relação com a sociedade mineira[46], pois eram culturalmente diferentes daqueles ciganos de origem ibérica, os Calon, que há séculos percorriam o território mineiro.

Descartadas as noções de simples imitação ou a idéia fora do contexto[47], o ideal de cientificidade afirmou-se no país, mais por uma certa ética de compromisso assumida pelos intelectuais que pelo incentivo a pesquisas originais. Os eruditos deveriam abraçar o desafio de mudar (ou de definir) a configuração racial do Brasil, através de uma avaliação segura da "realidade" e pela definição de estratégias de ação. Em alguns casos eram propostas soluções da eugenia e do extermínio de populações indesejáveis, principalmente, indígenas. Possivelmente isso inspirou as ações da polícia mineira nas Correrias de ciganos. Outras vezes, propunha-se um esforço educativo para integrar certas parcelas da população, tentando-se ordenar o espetáculo das raças. Tais ações seriam importantes na medida em que formar a raça brasileira significava construir a nacionalidade.



[1].   Matos, R. J. da Cunha, Corografia histórica da província de Minas Gerais, vol. II, Belo Horizonte, Imprensa Oficial, 1979, p. 88.

[2].  Fraga Filho 1996, p.92.

[3].  “Posturas da Câmara Municipal de Sabará (1829)”, Revista do Archivo Público Mineiro, Belo Horizonte, anno  XIII (1908), 1909, pp. 504-505.

[4].  Guattari, F., “Espaço e poder: a criação de territórios na cidade”, Espaço & Debates: Revista de Estudos Regionais e Urbanos, São Paulo, ano V, nº 16, 1985, p. 112.

[5].   Guattari  1985, p. 110.

[6].   Williams, P., “Os eternos viajantes”, O Correio da UNESCO, Rio de Janeiro, ano 23, nº 1, janeiro 1995, p. 21.

[7].   Tuan, Yi-Fu, Espaço e lugar: a perspectiva da experiência, São Paulo, Difel, 1982, p. 200.

[8].   Chevalier, J. et alii, “Tenda”,  IN: Dicionário de símbolos,  Rio de Janeiro, José Olympio, 1993, pp. 877-878.

[9].   Tuan 1983, p. 153.

[10].   Burton, R. F., Viagem do Rio de Janeiro a Morro Velho, Belo Horizonte, Itatiaia, 1976,. p. 67.

[11].   Burton 1976,  p. 68.

[12].   Burton, R.F., The jew, the gypsy and El Islam, London, Hutchinson & Co., 1898, p. 283.

[13].   Donovan 1992, p. 47,  baseado em: ANRJ,  Memória sobre a segurança das estradas infestadas de salteadores e ciganos..., 1822, códice 807, vol. 7, fls. 124-130.

[14].   Silva, A. Moraes, “Correria”, IN: Diccionário de lingua portuguesa, tomo primeiro, Rio de Janeiro, Officinas da S.A. Litho-Typographia Fluminense, 1922,  p. 478 (fac-símile da 2ª edição de 1813, p. 478).

[15].  Magalhães, A. Moreira, “Relatório do Chefe de Polícia do Estado”, IN: Secretaria do Interior, Relatório apresentado ao Dr. Presidente do Estado de Minas Gerais pelo Secretário de Estado dos Negócios do Interior (D. Henrique Augusto de Oliveira Diniz, Ouro Preto, Imprensa Official de Minas Geraes, 1897, Annexo B. p. 158.

[16].   Magalhães 1897, p. 158.

[17].   Magalhães 1897, p. 158.

[18].   Magalhães 1897, p. 158.

[19].  Fraga Filho, W., Mendigos, moleques e vadios na Bahia dio século XIX, São Paulo, Hucitec / Salvador, EDUFBA,  1996,  p. 95.

[20].  Mello, Cel. F. J. Corrêa de, “Relatório do Commandante da Brigada Policial”, IN: Secretaria do Interior, Relatório apresentado ao Dr. Presidente do Estado de Minas Gerais pelo Secretário do Estado dos Negócios do Interior (Dr. Henrique Augusto de Oliveira Diniz), Ouro Preto, Imprensa Official de Minas Geraes, 1897, vol. II, Annexo E,  p. 252.

[21].  Magalhães 1898, p. 82.

[22].  Magalhães 1897, p. 158. Deolindo era chamado de capitão, sob esta designação também era conhecido o líder dos ciganos encontrados por Arthur Lobo (Serões e lazeres, Bello Horizonte, Imprensa Official, 1923, pp. 75-76), em 1901, no Vale do São Francisco. No primeiro caso, a patente foi concedida oficialmente pela Brigada Militar do Rio de Janeiro, e, no segundo, dada informalmente pelos próprios ciganos. Há ainda a menção a um líder de um bando, conhecido por Duque (Ribeiro, O. A., “Relatório do Chefe de Polícia do Estado”, IN: Secretaria do Interior, Relatorio apresentado ao Dr. Presidente do Estado de Minas Gerais pelo Secretário de Estado dos Negócios do Interior (Dr. Delfim Moreira da Costa Ribeiro), Bello Horizonte, Imprensa Official do Estado de Minas, 1903, V. 11, Annexo D. p. 156). Em Minas Gerais, não existe mais qualquer outra referência a patentes militares ou títulos de nobreza (reis, príncipes, barões etc.), como era comum entre os ciganos na Europa.

[23].   Nesse episódio de Fonseca, já se destacaram as ações do major Jacintho de Andrade, que comandou grande parte das diligências contra ciganos. Já como Coronel, Jacinto Freire de Andrade comandou a polícia mineira, durante algumas semanas, entre outubro de 1892 e janeiro de 1893. (Silveira, G. T., Crônica da Polícia Militar de Minas, Belo Horizonte, Imprensa Oficial de Minas, 1965, p. 17).

[24].   Magalhães 1897, p. 158.

[25].   Mello 1897, p. 252.

[26].   Magalhães 1898, p. 82.

[27].   Magalhães 1898, p. 82.

[28].   Ribeiro 1903, p. 156.

[29].  Pereira, E. C. da Cunha, “Relatório do Chefe de Polícia do Estado”, IN: Secretaria do Interior, Relatório apresentado ao Dr. Presidente do Estado de Minas Gerais pelo Secretário do Estado dos Negócios do Interior (Dr. Wenceslaw Braz Pereira Gomes), Cidade de Minas, Imprensa Official do Estado de Minas Geraes, 1900, Annexo C, pp. 250-251.

[30].   Magalhães 1897, p. 158.

[31].  O Estado de Minas, Ouro Preto, anno III, nº 276, 23 jan. 1892, p. 2.

[32].  O Estado de Minas, Ouro Preto, anno III, nº 277, 27 jan. 1892, p. 2.

[33].   Pereira 1900, p. 251.

[34].   Pereira 1900, p. 251; cfr. diligências em Muzambinho, em 2 de agosto de 1899, e em Ponte Nova, em 15 de outubro de 1899.

[35].   O Estado de Minas, Ouro Preto, anno III, nº 279, 03 fev. 1892, “Correrias de Ciganos”, p. 2; reproduzida da Gazeta de Ubá.

[36].   Magalhães 1899, p. 248.

[37].  Pereira, E. C. da Cunha, “Relatório do Chefe de Policia do Estado”, IN: Secretaria do Interior, Relatório apresentado ao Dr. Presidente do Estado de Minas Gerais pelo Secretário de Estado dos Negócios do Interior (Dr. Wenceslaw Braz Pereira Gomes), Bello Horizonte, Imprensa Official de Minas Geraes, 1901, V. II, Annexo E, p. 302.

[38].   O melhor exemplo disto é dado por O Estado de Minas (Ouro Preto, anno III, nº 277, 27 jan. 1892, p. 2), no qual se critica a arbitrariedade das ações policiais em relação aos ciganos.

[39].   Minas Geraes, Ouro preto, anno VI, nº 128, 16 maio 1897, p. 6.

[40].   Liberal Mineiro, Ouro Preto, anno IX, nº 11, 6 fev. 1886, p. 2.

[41].   Minas Geraes, Ouro preto, anno VI, entre os nºs 104 e 153, geralmente na p. 8.

[42].   Minas Geraes, Ouro Preto, anno VI, entre os n°s 148 e 157, geralmente na p. 6.

[43].  A Bahia servia de base para alguns bandos ciganos que percorriam o norte e nordeste de Minas, e quando acuados, voltavam para lá (APM, Secretaria do Interior, Polícia, cod. 118, doc. 28, 1892).

[44].   Fraga Filho 1996, p. 173.

[45].  Costa, F. A. Pereira da, Anais Pernambucanos, Vol. V, Recife, Arquivo Público Estadual, 1983, p. 301;  Freyre, G., Nordeste,  Rio de Janeiro, Jose Olympio Editora, 1937, p. 117.

[46].   Pereira 1990, p. 252.

[47].   Schwarcz, L. M., O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil: 1870-1930, São Paulo, Cia. Das Letras, 1993, pp. 42 e 242-243.

Ambos os conceitos eram fracos, pois os intelectuais brasileiros e europeus estavam de acordo frente à noção de que o Brasil representava um caso único e singular da chamada mistura de raças. Enquanto os estrangeiros afirmavam a impossibilidade de se construir a raça a partir da miscigenação, os brasileiros queriam contornar a visão pessimista. No final do século XIX, os ciganos estavam fora do espetáculo brasileiro das raças. Ao contrário da Europa, onde eram vistos como mestiços degenerados, no Brasil eram tidos como raça maldita, inferior e, que para o mal da nação, não se misturava. Em fins do século XIX, a perseguição aos ciganos repercutia as transformações ligadas à construção da identidade nacional, cada vez mais "racializada". Os pensadores do eugenismo na Europa (Gobineau, Le Bon e Haeckel, entre outros) julgavam, a princípio, que as raças eram quase espécies, sem ligação entre si. Esta visão tornou-se difícil de se sustentar em termos biológicos, pois era óbvia a interfecundidade entre as populações humanas. Então, os teóricos do racismo biológico se ajeitaram para rebater tal teoria da seguinte forma: de fato, existe interfecundidade, mas o fruto desta mistura são seres caóticos, híbridos. Um mestiço não seria nem de uma raça nem de outra. Formou-se então uma obsessão de contato e de mistura entre raças, porque imaginariamente deteriorava os costumes e promovia a sujeira. No Brasil, ao contrário, o discurso predominante não via na miscigenação algo negativo, ou seja, que degenerava a população. As teorias racialistas/eugenistas foram re-acomodadas às problemáticas nacionais.

Os pensadores brasileiros adotaram modelos cujas decorrências teóricas eram originalmente outras. Incorporou-se, de um lado, o darwinismo social com seu postulado da diferença entre as raças e sua natural hierarquia e a comprovação da inferioridade de largos setores da população (entre os quais os ciganos). No entanto, sem que se problematizasse a implicação negativa da miscigenação. Por outro lado, a partir do evolucionismo sublimou-se a noção de que as raças humanas não permaneciam estacionadas, mas sim em constante evolução e "aperfeiçoamento", obliterando-se a idéia de que a humanidade era una. A realidade nacional passa a ser definida por uma história pautada em princípios raciais e o Brasil aparece como um grande laboratório racial.

Nas últimas décadas do oitocentos, com o crescente papel da medicina social, o projeto higienista associou os ciganos à mais baixa escória, caracterizando-os como "horda, malta, manada de facínoras e/ou desordeiros". Individualmente, o cigano era tido como preguiçoso, vagabundo e sujo, assemelhando-se à imagem do homem livre pobre. Mas o cigano era visto, antes de tudo, como um ladrão em potencial. O higienismo via nos ciganos, sem a antiga ocupação, um incômodo enorme às normas sanitárias que estavam sendo implantadas, principalmente no Rio de Janeiro, que deveria ser o modelo da nova cidade racionalmente organizada; isso trouxe aos ciganos maiores problemas com a polícia, provocando suas freqüentes fugas em direção às cidades vizinhas ou ao interior.

A maior parte dos ciganos sempre dependeu do mercado consumidor não-cigano, tanto para seus serviços, como a quiromancia, quanto para seus produtos comercializados. Assim, os ciganos tiveram sua história atrelada à história das cidades.

Na medida que o processo de urbanização foi se acentuando no Brasil durante o século XIX, acampanhado pelo discurso da civilização e do progresso, os ciganos foram sendo cada vez mais segregados do espaço urbano. As autoridades desejavam tê-los o mais longe possível, na periferia ou fora do perímetro urbano. As sucessivas escaramuças sofridas pelos ciganos, de uma cidade a outra, foi a principal causa das ‘correrrias de ciganos’. Tal acontecimento se constitui em uma das maiores perseguições contra ciganos na história brasileira.

 

 

 


Capítulo 3.

A INSERÇÃO DOS CIGANOS NA ECONOMIA DO SÉCULO XIX.

 

 

 

Desde que chegaram ao Brasil, o comércio foi, de fato, a mais importante atividade dos ciganos. Comercializavam as mais diversas mercadorias, com destaque para cavalos e mulas. Entre o final do século XVIII e o início do XIX, muitos ciganos interessaram-se pelo comércio de escravos. Embora não tenham deixado de negociar suas mercadorias tradicionais, o comércio de cativos transformou, sensivelmente, o papel dos ciganos na sociedade e na economia, sobretudo nas primeiras décadas do oitocentos.

Dois exemplos de atividades ligadas aos ciganos e que exigiam grande dedicação, eram o comércio de animais e o trabalho de saltimbanco e circense. As transações envolvendo cavalos e bestas de carga exigia perícia para avaliação da mercadoria a ser comprada, vendida ou trocada. Além de se utilizar das famosas habilidades retóricas para convencimento da outra pessoa. Já as atividades artísticas de acrobatas, ilusionistas e músicos, requeriam, sem dúvida, alto desenvolvimento de destreza corporal, além de muita capacidade de concentração mental.

A versatilidade dos ciganos para o exercício das atividades econômicas mais favoráveis diante das circunstâncias, foi um dos principais fatores para sua sobrevivência ao longo do tempo. Ao encontrarem nichos econômicos desocupados, onde pudessem exercer alguma de suas inúmeras atividades, eles encontravam formas de se inserir em sociedades hostis que, eventualmente, os tolerariam.

 

Comerciantes de tecidos, roupas, jóias e quinquilharias.

 

Apesar da má fama, muitos ciganos comerciantes conseguiram, por meio de uma conduta inatacável nos negócios, a confiança de inúmeros clientes que os aguardavam periodicamente para fazerem barganhas. O comércio das mais diversas mercadorias oferecia aos ciganos a oportunidade de algum tipo de sociabilidade com as populações locais.

Nas barganhas os ciganos geralmente buscavam o lucro, mas além dele, a relação de troca envolvia também uma relação de prazer no ato da transação. O prolongamento da transação, a pechincha, enriquecia as relações humanas, o que eles prezavam muito. Talvez isto fosse a única forma legítima e possível de diálogo entre ciganos e não-ciganos. Ao pechinchar, o comprador demonstrava seu respeito ao cigano, e vice-versa.

O comércio cigano concorria com o dos mascates portugueses, judeus e, a partir da Independência, com os novos mascates vindos, por exemplo, da Itália, do Líbano e da Síria. A imprevisibilidade da vida cigana não permitia que vendessem à prestação como os mascates judeus. Além disso, os ciganos perdiam a disputa pela atenção e o dinheiro das populações visitadas, porque os mascates procuravam atender pedidos e, ao mesmo tempo, criar demanda. E portavam uma variedade maior de produtos a oferecer, enquanto os ciganos negociavam artigos conseguidos em sucessivas barganhas. A facilidade com que aceitavam fazer trocas, era o que mais favorecia o comércio cigano.

Entre os diversos objetos comercializados pelos ciganos, além de "relógios de ouro" e "arreios de prata"[1], havia tecidos e roupas. Na segunda metade do século XIX, com o conjunto de regras rígidas adotadas quanto à vestimenta, sobretudo nas camadas mais altas, graças aos esforços higienistas, propiciou-se um "aumento do comércio de roupas".[2]  Isto fez com que os ciganos prestassem mais atenção ao comércio de tecidos, e, secundariamente, ao de roupas.

 

Comerciantes de cavalos e bestas de carga.

 

Durante todo o século XIX, a atividade de barganhista de cavalos e bestas de carga foi descrita por diversos viajantes estrangeiros e memorialistas que se encontraram com ciganos pelo interior do país, muitas vezes encetando negócios com eles. Além de serem acusados de negociar animais roubados, pesava sobre os ciganos a acusação de embusteiros, ao transformarem pangarés em vistosos cavalos de raça e convencerem os compradores de que o eram. Alguns desses ciganos conjugaram esta ocupação com a negociação de escravos, comprados ou permutados, principalmente, nos mercados da Corte.

Algumas trapaças devem ter realmente ocorrido no mencionado comércio. Provavelmente, não porque os negociantes fossem ciganos, mas porque tal atividade proporcionava muitas possibilidades para enganos. Há de se considerar também que eventuais trapaças ocorressem com o intuito de se reafirmar a identidade cigana frente aos não-ciganos. Enganar o não-cigano era, ocasionalmente, algo valorizado entre os ciganos.

No entanto, não havia tantos embustes quanto se apregoava, pois apesar da péssima imagem associada aos comerciantes de cavalos e bestas de carga, durante todo o período analisado foram freqüentes as negociações. Certamente os ciganos consolidaram uma tradição nessa atividade, com méritos.

Os ciganos que Saint-Hilaire encontrou em 1819, em Urussanga, que estavam instalados em Mogi-Guaçu[3] (cidade relativamente próxima ao limite com Minas), talvez estivessem indo ou vindo de Sorocaba. Nesta cidade, durante quase todo o século XIX, funcionou o maior centro de comércio de muares trazidos dos pampas. Era um dos principais pontos onde os tropeiros de Minas renovavam suas tropas com muares vindos da Província do Rio Grande de São Pedro do Sul, principalmente da cidade de Viamão.[4]

Uma vez que a maioria dos animais vendidos em Sorocaba eram chucros[5], é bem provável que os ciganos tenham se destacado como amansadores, já que tinham também uma longa tradição neste trabalho.[6] Quando os animais estavam acertados para receber a carga ou a sela, seu valor aumentava significativamente.

Em Barbacena, em 1821, o diplomata e naturalista britânico Alexandre Caldcleugh entabulou negociações para a compra de um cavalo. No entanto, desistiu do negócio quando foi avisado de que o negociante era cigano. Demonstrando que o boato das supostas trapaças cometidas por ciganos se perpetuava sem muito esforço, o viajante deixa transparecer no diário de viagem seu desprezo pelos mesmos:

 

"Assim é esta raça de vagabundos faiscadores do ouro na Hungria e Transilvânia, latoeiros na Inglaterra, vendedores de cavalos no Brasil! (...) Seja onde for revela sempre os mesmos característicos da duplicidade e velhacaria que tanto a destaca do resto dos humanos!"[7]

 

A barganha com animais aceitava troca por qualquer objeto (espingarda, tacho de cobre, tecido, etc.), ou mesmo por outros animais. Fundamental para o barganhista cigano era a "volta", ou seja, a importância em dinheiro ou não que "equiparava" o valor dos bens negociados. Era nisto que consistia, via de regra, o seu lucro.

A ocupação de barganhista era desprezada, embora fosse importante nas regiões onde havia escassez de meio circulante. Identificados como desonestes, os barganhistas eram vistos pela população em geral, com desconfiança, principalmente se fossem ciganos.[8]

Os ciganos se utilizavam basicamente dos mesmos cavalos que dispunham os mineiros, não havia uma raça eqüina usada apenas ou preferencialmente por eles. Porém, como a cultura cigana se apoiava em variáveis sutis, havia o estilo cigano de tratar e de montar o animal. Debret, por exemplo, ao comentar uma de suas pranchas, na qual aparece uma cigana montada num cavalo com as duas pernas voltadas para o mesmo lado, enquanto o marido ia sentado a frente com os arreios na mão, diz: "Esta é a única nação que usa desta maneira de montar cavalo em público."[9]

Os ciganos necessitavam de muitos cavalos para fazerem as constantes e prolongadas viagens, algumas delas em fuga, quando tinham de percorrer as distâncias no menor tempo possível.[10] Cavalos extras deveriam acompanhar os bandos ciganos, sobretudo quando em situações econômicas favoráveis. Mas antes de montaria, o cavalo era uma mercadoria, que não deveria deixar de ser negociada diante de uma boa proposta. Aliás, o comércio de cavalos e mulas pelo interior do Centro-Sul brasileiro era bastante movimentado. Os ciganos cumpriam o importante papel de trocar as montarias para que os viajantes prosseguissem em suas viagens.

As carroças puxadas por mulas, em geral, serviam para percorrer distâncias curtas, dentro ou nas redondezas da cidade. Já os cavalos e as mulas constituíam o meio de transporte mais adequado para viagens distantes da cidade. Sendo que a manutenção das montarias simples era mais fácil do que a das carroças. Além disto, os cavalos e mulas percorriam melhor as estradas mal conservadas.[11]

 

Saltimbancos e circenses.

 

Indutora do lúdico, mas vista com desconfiança sob a alegação de estar associada à transgressão das normas sociais, a ocupação de saltimbanco esteve relacionada aos ciganos antes mesmo que eles chegassem à Europa.[12] De forma ambígua, embora estivessem individualmente estigmatizados negativamente enquanto artistas, os ciganos eram muitíssimo apreciados. O mais curioso é que os mesmos que os aplaudiam enquanto artistas, rechaçavam-nos enquanto indivíduos.[13]

Pela documentação que se conhece, os ciganos foram os primeiros artistas que atuaram em Minas Gerais. Em 28 de junho de 1727, o bispo do Rio de Janeiro, Dom Frei Antônio de Guadalupe, denunciou ao Santo Ofício que havia comediantes ciganos atuando em Vila Rica e em outras partes da capitania mineira, apresentando "com grande aparato, comédias e óperas imorais, em afronta aos sagrados preceitos da Santa Igreja".[14] No século XIX, provavelmente, continuaram a existir trupes de ciganos, que explicitavam ou não sua identidade. Possivelmente, utilizavam-se de cavalos para fazerem alguns números.[15]

Gilberto Freyre refere-se aos ciganos como introdutores de animais exóticos "nos engenhos e nas feiras do Nordeste" e que se faziam acompanhar por meninos que "faziam acrobacias sobre cavalos", por "ursos verdadeiros, ou então fingidos - só a pele por cima de um homem - que dançavam ao som de pandeiros, e por macacos ou macacas grandes, vestidas de sinhás, cheias de laços de fitas que também dançavam e faziam graças."[16]

Em fins do século XIX, ciganos vindos da Europa Central e dos Balcãs trouxeram para o Brasil também ursos, animais exôticos capazes de atrairem multidões de curiosos, porque inexistentes na fauna brasileira. Certamente estes ciganos pertenciam ao subgrupo dos Ursari, assim denominados porque se especializaram no adestramento de ursos. Seja como for, no interior mineiro tornaram-se "famosos os 'ursos de cigano', que dançavam canhestramente ao som do pandeiro e do canto monótono do boêmio, que o segurava por uma corrente presa à argola do focinho."[17]

Apesar de freqüentes movimentações, as famílias ciganas mantinham uma ativa rede de comunicação oral. Isso era fundamental para a busca de novos trabalhos e para o acerto de casamento dos mais jovens.

Consta ainda que várias famílias ciganas foram proprietárias de circos, ou então trabalbavam em circos que circulavam não somente no Brasil, como também em outros países sul-americanos.[18] Entre as famílias circenses européias que chegaram a partir de meados do século XIX, eram ciganas (Rom ou Sinti) as famílias Wassilnovitch, Stancowich, Stevanowich (comprovadamente Kalderash de origem húngara) e Robatini (esta "família veio em parte da Itália e em parte da Romênia"), além de certamente de outras tantas famílias mais.[19]

Bueno, falando da atualidade, informa que : “Os maiores circos pertencentes a famílias ciganas no Brasil são: Circo Orlando Orfei (sinti  - subgrupo manouches italianos); Circo Norte Americano (família Stevanovitch); Circo Nova York (João Augusto Micalovitch), Circo México (Ronaldo Evans – kalderash americano)”. [20]

Durante o oitocentos, e até o início do século XX, vários ciganos se casaram com circenses não-ciganos. Era comum famílias ciganas proprietárias de circos contratarem não-ciganos e vice-versa. Outro fato curioso é que a iniciação das crianças no circo era bastante precoce, entre 5 e 6 anos, ou mesmo antes.[21]

A numerosa família Wassilnovitch chegou ao Brasil através do porto de Salvador, acompanhada da família François. Ao que parece, isto ocorreu na década de 1880, "pois sempre descreviam um Brasil com escravos e falavam de seus contatos com eles durante as viagens; além de mencionarem muito a figura de D. Pedro II." Como era comum entre os imigrantes, os Wassilnovitch logo trocaram seu exótico sobrenome por um tipicamente português: Silva. Os primeiros anos foram difíceis para eles: "Apesar de já trabalharem em circos na Europa, quando a família chega, e durante muito tempo, suas apresentações são feitas em praças públicas, como saltimbancos."[22]

O conhecido Capitão Zurka Sbano, Kalderash nascido em 1923, há muito tempo residindo em São Paulo, conta que sua família tornou-se circense em fins do século XIX. Seu avô lhe relataria, muito tempo depois, que ia do Rio a São Paulo, "mascateando, vendendo e parando nas fazendas e trabalhando, fazendo os tachos e alambiques, e ia embora. (...) depois nós entramos no circo (...) Continuamos o serviço em chapas (...) e viramos artistas."[23]

Mas os ciganos não atuam somente em circos. Vários ciganos brasileiros se tornaram famosos como artistas. Alguns deles assumem publicamente a sua identidade ou descendência cigana (como o músico Wagner Tiso, o comediante Dedé Santana e a atriz Maria Rosa, em documentário na TV). Outros artistas brasileiros ciganos ou de origem cigana – como uma famosa dupla de irmãos cantores de música sertaneja – ambos rom-kalderash e que inclusive falam ainda sua língua cigana - infelizmente preferem ocultar a sua identidade ou descendência cigana, conhecida apenas por parentes e amigos mais íntimos.

 

Quiromantes.

 

A prática cigana da quiromancia (leitura das mãos), no Brasil é documentada pelo menos desde os fins do século XVII e início do XVIII, quando esteve no Brasil Nuno Marques Pereira. Falando sobre as superstições entre os gentios, diz: "A chiramancia, é a que hoje professam os Ciganos, de mentir e enganar pelas raias das mãos: e com ser manifesto engano, há nos homens appetencia de saber o futuro."[24] A quiromancia era o termo erudito para aquilo conhecido popularmente por buena-dicha. Esta expressão espanhola consagrou-se não se sabe se pela obra das próprias ciganas ou, pela literatura. Documentos, como o periódico A Cigana, confirmam o uso do termo no Brasil.[25] Mas, também chamava-se a leitura da sorte pelas mãos de "leitura da sina."

A buena-dicha não era para os ciganos um ritual sagrado, e nem poderia ser considerada pela sociedade mineira como algo demoníaco. Para as ciganas, era uma atividade lúdica e sua principal e mais rendosa atividade. Para as consulentes, quase sempre, a buena-dicha significava boas novas, ou seja, a esperança de mais sorte na vida. Algumas vezes, além de praticarem a quiromancia, as ciganas também ocupavam-se "com a cura ou ao exorcismo de doenças."[26]

Talvez trouxesse mais incômodo à sociedade, o fato de que as ciganas fossem, em geral, as responsáveis pela obtenção do dinheiro miúdo para os gastos diários, através da buena-dicha.[27] Enquanto os ciganos ficavam, às vezes, dias no ócio, aguardando a oportunidade de realizarem os "grandes" negócios. Essas transações (com cavalos, por exemplo) envolviam lucros maiores, mas eram mais irregulares.[28]

 

Comerciantes de escravos.

 

A atividade econômica cigana que mereceu maior atenção dos cronistas e viajantes foi, sem dúvida alguma, o comércio de escravos. No Rio de Janeiro, foi grande o número de ciganos que dedicaram-se ao comércio de negros boçais[29], às vezes, até comprando e vendendo por atacado. Mas era operando no mercado de escravos de segunda mão que eles estiveram reconhecidamente mais presentes. Nesse negócio "a necessidade de capital era bem menor do que no comércio de venda por atacado."[30]

Os ciganos atuavam como agentes intermediários, commissários, que comerciavam com os agentes da costa, ciganos ou não, de vários portos, mas principalmente do Rio de Janeiro. Pessoas de diferentes ocupações atuavam nesse comércio, de capitães de navios a negros forros.[31] Mas os ciganos sofriam mais com a concorrência de ex-arrieiros de São Paulo e Minas Gerais e mascates portugueses, que trocavam temporária ou definitivamente suas profissões para ingressarem no lucrativo comércio de escravos:

 

"Em vez de comprar mulas ou tecidos e gêneros secos para vender nas áreas de plantations, eles iam até o Valongo ou às casas de leilão, compravam escravos por crédito, e organizavam uma pequena caravana de escravos. Tal como os que mascateavam de porta em porta no Rio, eles levavam seus lotes de escravos para o interior, e os levavam de plantation em plantation. Conforme a pressa deles, entregavam todos os seus estoques, retornavam ao Rio para pagarem seus débitos, obtinham novo crédito, e repetiam o processo." .(grifo para termos não traduzidos).[32]

 

Desse modo geral, os intermediários "transportavam seus escravos para os futuros proprietários por canoa ou pequenas embarcações ou através de rotas terrestres."[33] Obviamente, muitos comissários levavam também outras mercadorias, tais como animais e artigos de primeira necessidade, com o intuito de complementar a renda.

No início do século XIX, diversos viajantes estrangeiros testemunharam a importância que os ciganos tinham no comércio interprovincial de escravos, sobretudo na região centro-sul do país.[34]

O francês Gendrin, que morou no Rio de Janeiro de 1816 a 1821, se refere a ciganas “vendedoras ambulantes de escravos africanos, as quais percorriam as ruas da cidade, tendo para vender quarenta e cinquenta negros, negras e crianças de oito a quinze anos”. Seu companheiro Gabert (1818) acrescenta que ricos traficantes vendiam “carregações inteiras de negros a ciganos revendedores que negociam os cativos com particulares”.[35]

O naturalista francês Auguste de Saint-Hilaire (1779-1853) relata: "À época de minha viagem [1819] eram, principalmente os ciganos que, no Rio de Janeiro, vendiam em segunda mão os escravos, havendo entre eles alguns bastante ricos."[36] Saint-Hilaire conheceu também um grupo de ciganos na Província de São Paulo, em 1819: "Havia em Urussanga, quando ali estive, um numeroso bando de ciganos. Esses homens se achavam instalados num arraial vizinho, o de Moji-guaçu, mas se espalhavam pela região toda (...)  Todos pareciam em boa situação; possuíam escravos e um grande número de cavalos e de bestas de carga."[37]

A comercialização de escravos trouxe extraordinários ganhos aos ciganos; no Rio, alguns tornaram-se ricos. A causa disto é que o sistema escravista era um dos pilares da economia, já que as áreas mineradoras ainda absorviam grande mão-de-obra, e as plantações cada vez mais necessitavam desse trabalho. Além disso, nas cidades, o trabalho dos escravos diversificava-se cada vez mais.

Do ponto de vista social, os ciganos também beneficiaram-se. "Apesar de todos os seus aspectos repulsivos, o comércio de escravos era afinal uma ocupação utilitária para as classes baixas."[38] Durante o período colonial e na primeira metade do século XIX, não se associava a negociação com escravos com a degradação da condição humana. Conseqüentemente, os que se ocupavam desta atividade não eram tidos como protótipos do mal. A utilidade social que passaram a ter, relacionava-se ao fato de que a posse de escravos era um atributo importante para o status social. Então, os comerciantes de escravos eram elementos que propiciavam indiretamente a elevação do status do comprador.

Tendo a Igreja se omitido quanto à escravidão negra, enquanto os próprios clérigos possuíam escravos, via-se no fornecimento desta mercadoria e mão-de-obra, por parte dos ciganos, não apenas algo cotidiano, mas também útil. Utilidade esta, enfatizada por lidarem com escravos de segunda mão mais acessíveis aos forros e brancos pobres que almejavam adquirir melhor status. Outro aspecto a se considerar é que:

 

"A identificação dos ciganos com esta atividade lhes conferiu um quê de utilidade social inexistente em Portugal. Do ponto de vista da maioria branca, o comércio de escravos formava um contexto prático para a interação. Sua dominação da escravidão como uma instituição significava que a maioria branca de não-ciganos controlava o espectro inteiro da interação étnica. Se sua utilidade não mais os tornava párias, os ciganos continuavam a ser uma minoria estigmatizada cujo acesso aos status sociais normais poderia permanecer restrito à reserva da maioria. Mesmo no seu papel de commissionários, por exemplo, os ciganos permaneceram popularmente estigmatizados como ladrões." (grifo no original).[39]

 

Ao mesmo tempo em que iam vendo matizada, e mesmo fragmentada, sua imagem, "o comércio de escravos permitia aos ciganos publicizar sua identidade étnica, e assim fortalecer os limites culturais, distinguindo-os da maioria branca."[40]   Seja  por obterem  um motivo legítimo para transitarem pelo interior do país, visto que o mercado escravista apresentava demandas em áreas bastante distantes do litoral, seja por se fortalecerem demográfica e espacialmente no Rio de Janeiro e em Salvador. Nestas cidades, eles formavam comunidades de centenas de indivíduos, ocupavam bairros quase inteiros e movimentavam grandes grupos de escravos para a venda. Assim, a visibilidade dos ciganos tornou-se expressiva.

Também a falta de controle sobre a população, a fluidez e fragmentação da sociedade, possibilitava aos ciganos manifestarem sua identidade à medida que necessitassem fazê-lo. Maria Graham, em 1823, relata que, no Rio de Janeiro, os ciganos demonstravam nítida e declaradamente seus traços culturais:

 

"há um lugarejo habitado por ciganos, que encontraram o caminho para aqui, e preservam muito da peculiaridade do aspecto e do caráter em seu novo lar transatlântico. Conformam-se com a religião do país em todas as coisas exteriores e pertencem à paróquia de que o cura de Nossa Senhora do Monte é pastor. Mas esta conformidade não parece ter influenciado seus costumes morais. Usam seus escravos como pescadores. Uma parte de sua família reside habitualmente nos seus domicílios, mas os homens vagueiam pelo país e são grandes mercadores de cavalo, nesta parte do Brasil. Alguns deles dedicam-se ao comércio e muitos outros são extremamente ricos (...). Conservam o seu dialeto particular."[41]

 

Em consonância com essa opinião, Jean Baptiste Debret (1768-1848), com três gravuras e algumas páginas de comentários, concedeu-nos o mais extenso e expressivo testemunho sobre os ciganos, no Brasil, na primeira metade do século XIX. O artista francês concentrou sua atenção sobre os ciganos enriquecidos pelo comércio escravista e suas respectivas famílias. Debret os compreendeu como estando integrados à economia local e expressando suas diferenças culturais pelas particularidades de organização da casa, dos padrões de casamento, de ritos funerários, língua e vestimentas.[42]

Esses depoimentos descrevem uma nova situação para os ciganos no Brasil, na qual eles estão sedentarizados, mantendo uma atividade econômica relativamente estável e inseridos no cotidiano local, embora mantendo sua identidade. Mas enquanto temos esta transformação basicamente ocorrendo na Corte, no interior, sobretudo nas áreas rurais, temos uma continuidade em relação ao setecentos. Apesar de terem incorporado o comércio de escravos em fins do século XVIII e início do XIX, eles ainda conseguiam manter-se em "boa situação", preferencialmente "dedicando-se conforme o costume de sua raça, à troca de burros e cavalos" por todo extenso território brasileiro.[43]

Para entender, mais profundamente, esta nova situação vivida pelos ciganos no Centro-Sul brasileiro, será preciso compreender o funcionamento do mercado escravista carioca, observando o espaço socialmente construído em torno dele.

O abastecimento de mão-de-obra africana no Rio de Janeiro, concentrou-se por muito tempo na Rua Direita, centro da cidade. Mas a partir da década de 1790 passou para a Rua do Valongo. O mercado do Valongo, no subúrbio da cidade, foi criado durante o vice-reinado do marquês de Lavradio sob a alegação de evitar que os escravos, recém-chegados da África, andassem pela capital nus e com moléstias - o que ocorria até então. A intenção, portanto, era livrar a corte desses incômodos e tentar promover a recuperação dos escravos doentes.[44] Ali, os negros eram vendidos por grandes firmas, por casas leiloeiras e por traficantes independentes.[45]

A impressão que os viajantes estrangeiros tinham do mercado do Valongo, variava de acordo com o aumento ou diminuição da importação de escravos.[46] Durante a década de 1820, o mercado do Valongo viveu seu período de maior movimentação comercial, estando plenamente integrado à cidade.[47] Assim que chegavam em navios negreiros ao Rio de Janeiro, os cativos eram abrigados em depósitos, onde eram maquiadas as feridas ganhas na longa jornada da África para a América: 



[1].   O Estado de Minas, Ouro Preto, anno III, nº 277, 27 jan. 1892, p. 2; já no início do século XIX, Henry Koster recebeu a informação de que os ciganos "negociavam ninharias de ouro e prata" em Pernambuco (Viagens ao Nordeste do Brasil, Recife, Secretaria de Educação e Cultura de Pernambuco, 1978, p. 383).

[2].   Costa, J. Freire, Ordem médica e norma familiar, Rio de Janeiro, Edições Graal, 1989, p. 129.

[3].   Saint-Hilaire, A. de, Viagem à província de São Paulo, Belo Horizonte, Itatiaia, 1976, p.102 [original: 1851]

[4].    Dornas Filho, J., Aspectos da economia colonial, Belo Horizonte, Itaitiaia, 1959, p. 28.

[5].    Dornas Filho 1959, p. 29.

[6].    Vaux de Foletier, F., Le monde des tsiganes, Paris, Berger-Levrault, 1983, pp. 31-41.

[7].    Caldcleugh, A., Travels in south America, 1821. Apud Taunay, A. de E., Viagens na capitania de Minas Gerais: 1811-1821, São Paulo, Imprensa Oficial do Estado, 1945, p. 276.

[8].    Dornas Filho, J., “Os ciganos em Minas Gerais”, Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais. Belo Horizonte, anno III, vol. III, 1948, p. 180; descreve as supostas técnicas que os ciganos usavam para enganar compradores de animais, vendendo os lerdos e pesados, cegos e "assos" (albinos).

[9].    Debret, J. B., Viagem pitoresca e histórica ao Brasil, Belo Horizonte, Itatiaia, 1989 (conforme a edição de R. de Castro Maya, de 1954, contendo aquarelas e desenhos que não foram reproduzidos na edição de Firmin Ditot de 1834). Prancha 15 (Ciganos passeando no campo).

[10].   Os ciganos utilizaram-se de cães, possivelmente farejadores, para se guiarem e se protegerem; cfr. os dois cães que aparecem na gravura "Ciganos das ilhas do (Rio) Paraná”  feito por E. Riou, extraído do periódico Le Tour du Monde, Nouveau Journal des voyages (Paris, 1874), por Vaux de Foletier 1983,  p. 22.

[11].   Silva, M. B. Mizza da, Vida privada e quotidiano no Brasil:  a época de D. Maria I e D. João VI,  Lisboa, Referência/Editorial Estampa, 1996, p. 244.

[12].  Vaux de Foletier 1983, pp. 144-164.

[13].   Leblon, B., “Le regard ambigu de la littérature espagnole”, Études Tsiganes, vol. 9, 1997, pp. 96-106.

[14].  Arquivo Histórico das Colônias, Lisboa, maço 1382, Carta de Dom Frei Antônio de Guadalupe ao Santo Ofício, fl. 23, 28/07/1727. Apud Ávila, A. “O teatro em Minas Gerais: séculos XVIII e XIX”, Barroco, Belo Horizonte, vol. 9, 1977, p. 96.

[15].  Duarte, R. Horta, Noites circenses: espetáculos de circo e teatro em Minas Gerais no século XIX, Campinas, UNICAMP, 1995, p. 81.

[16].  Freyre, G., Nordeste: aspectos da influência da canna sobre a vida e paisagem do Nordeste do Brasil, Rio de Janeiro, José Olympio Editora, 1937, p. 116.

[17].  Dornas Filho 1948, p. 156.

[18].  Oliveira, J. Amaral de, “Uma história do circo”, IN: Ferreira, C. M. (org.), Circo-tradição e arte, Rio de Janeiro, Museu do Folclore Edison Carneiro/ FUNARTE/Instituto Nacional do Folclore, 1987, p. 14.

[19].  Silva, E., O circo, sua arte e seus saberes: o circo no Brasil do final do século XIX a meados do XX, Campinas, UNICAMP, ms., (Dissertação de Mestrado em História), 1996, p. 18.

[20].  Bueno, V. dos Santos, Espacialidade e territorialidade dos grupos ciganos na cidade de São Paulo, ms., 1990, p. 51

[21].   Silva 1996, pp. 15-18.

[22].   Silva 1996, p. 15.

[23].   Zurka Sbano. Entrevista concedida em 11/01/87 a Ermínia Silva 1996, p. 152; os circos, em geral, eram simples e pequenos, feitos de pau-a-pique. Chamava-se "circo de empanadas" quando eram revestidos de chapas de zinco e alumínio, as empanadas (Silva 1996, p. 102).

[24].   Pereira, N. Marques, Compêndio narrativo do peregrino da América; vol. I. 6ª ed. Rio de Janeiro, Publicações da Academia Brasileira, 1939, p. 129 (conforme a 5a. edição de 1765).

[25].   A Cigana, Recife, anno 1, nº 1, 8 set. 1874, p. 1.

[26].  Pohl, J. B. E., Viagem no interior do Brasil, empreendida nos anos de 1817 a 1821, Rio de janeiro, MEC / Instituto Nacional do Livro,  1951, p. 274 [original: 1832]

[27].   Para complementar a renda, ocasionalmente, praticavam a mendicância. Mas não gozavam de legitimidade religiosa para mendigar, porque tinham aparentemente condições para o trabalho: "A mendicância era reconhecida como cristãmente legítima, desde que o indivíduo não tivesse forças para trabalhar e manter a própria subsistência" (Fraga Filho W., Mendigos, moleques e vadios na Bahia do século XIX. São Paulo, Hucitec, Salvador, EDUFBA, 1996, p. 39).

[28].   Pohl 1951. p. 274.

[29].  "Na época, boçal queria dizer 'aquele que não conhece' e era o termo oposto a ladino, que se referia aos cativos já ambientados ou nascidos no país" (Schwarcz, L. Moritz, “Ser peça, ser coisa: definições e especificidades da escravidão no Brasil”,  In: Schwarcz, L. Moritz & Reis, L. V. de Souza (Orgs.), Negras imagens; ensaios sobre cultura e escravidão no Brasil,  São Paulo, EDUSP/Estação Ciência, 1996a. p. 12.

[30].   Donovan, B., “Changing perceptions of social deviance: gypsies in early modern Portugal and Brazil”, Journal of social History, vol. 26, 1992. p. 41.

[31].   Cf. Karasch, M. C.,  Slave life in Rio de Janeiro:1808-1850. Princeton, University Press, 1987, p. 51.

[32].   Karasch 1987. p. 54.

[33].   Karasch 1987,  p. 51.

[34].  Debret, J. B. , Viagem pitoresca e histórica ao Brasil,,  São Paulo,  Martins /  Brasília,  INL, 1975,  Vol. I, tomo I,  p. 188-190; Graham, M., Diário de uma viagem ao Brasil e de uma estada nesse país durante parte dos anos 1821, 1822 e 1823, São Paulo, Ci.a Editora Nacional, 1956,  p. 286.

[35].    China, J. B. d’Oliveira, “Os ciganos no Brasil”,  Revista do Mueu Paulista,  Tomo XXI,  1936,  pp.410, 485

[36].    Saint-Hilaire, A. de, Viagem à província de São Paulo, Belo Horizonte, Itatiaia, / São Paulo, Edusp, 1976. p. 102

[37].  Saint-Hilaire 1976,  p. 102.

[38].  Donovan 1992. p. 42.

[39].  Donovan 1992. p. 42.

[40].  Donovan 1992, p. 42.

[41].  Graham  1956,  p. 286.

[42].  Debret 1975. p. 188-194.

[43].   Saint-Hilaire 1976. p. 102.

[44].  Rodrigues, J., “Festa da chegada: o tráfico e o mercado de escravos no Rio de Janeiro”,  IN: Schwarcz & Reis 1996. p. 96- 97).

[45].   Karasch 1987. p. 36-44.

[46].  Karasch 1987, p. 38.

[47].  Rodrigues 1996. p. 101.

[48].  Schwarcz 1996,  p. 14.

[49].  Mattos, I. Rohloff,  O tempo Saquarema:  a formação do estado imperial, São Paulo, HUCITEC, 1990, p. 78; o autor não descreve a percepção da população sobre esses comerciantes, mas afirma que a opinião antiescravista era maior em relação ao tráfico intercontinental do que ao comércio interno (1990, p. 230-231).

[50].   Moraes Filho, A.F. Mello, Os ciganos no Brasil & Cancioneiro dos ciganos, Belo Horizonte, Itatiaia, 1981,  pp.35-37

[51].   Chamberlain, H., Vistas e costumes da cidade e arredores do Rio de Janeiro em 1819-1820,  Rio de Janeiro/São Paulo,  Kosmos, 1943, p. 163-164.

[52].   Debret 1975. p. 191.

[53].   Debret 1975, p. 188.

[54].   Debret 1975, pp. 188-189; em fins do séculos XIX, Mello Moraes Filho demonstra que se inspirou, fundamentalmente, em Debret para escrever sobre o comércio de escravos feito por ciganos.

[55].   Algranti 1988. p. 73.

[56].  Karasch 1987. p. 54.

[57].  Algranti 1988. p. 35.

[58].  Arquivo Nacional do Rio de Janeiro (ANRJ), códice 330 (Registro das Ordens e Ofícios expedidos pela polícia aos juízes de crime dos bairros de São José, Santa Rita, Da Sé, Candelária, 1819-1823), vol. 3, s/fl., 20/02/1819. Apud Algranti  1988. p. 73.

[59].   ANRJ, códice 323 [Registro da correspondência da polícia (ofícios da polícia aos Ministros de Estado, juízes de crime, vara, câmaras), 1809-1822], vol. 3. fls. 134-135, s.d, Apud Algranti 1988. p. 73.

[60].   ANRJ, códice 330, vol. 4, s/fl., 05/10/1819. Apud Algranti 1988. p. 74.

[61].   “.(....)  aproveitando-se da fama dos ciganos, soldados, homens públicos e até outros escravos envolviam-se no furto de negros. Às vezes, o escravo roubado era negociado na própria cidade não havendo nem a preocupação de levá-lo para longe de seu antigo senhor  (....)" (Algranti  1988,  p. 74).

[62].   ANJR, códice 330, vol. 2, s/fl., 10/08/1820. Apud Algranti 1988,  p. 74.

[63].  Karasch 1987, p. 50, baseando-se em O Diário do Rio de Janeiro 1 (8 Agosto 1821),  p. 54.

[64].  Karasch 1987, p.54, baseando-se em: ANRJ, IJ6, 163, Secretaria de Polícia da Corte, Ofícios com  anexos, 1822-1824.

[65].  Arquivo Público Mineiro (APM), CMP, códice 11 (Registro da Câmara ao Governo Geral e Provincial e a Diversas Autoridades; 08/07/1824 a 10/06/1826), fls. 11, 11v, 73, 73v, 77v e 78.

[66].  APM, CMP, códice 11 (Registro da Câmara ao Governo Geral e Provincial e a Diversas Autoridades; 08/07/1824 a 10/06/1826), fls. 73.

[67].  O uso de mais de um nome por esse e outros suspeitos, embora assemelhe-se à estratégia de utilizar nomes falsos dos criminosos, tratava-se de uma maneira já tradicional dos ciganos se apresentarem aos não-ciganos; sobretudo os homens. Além do nome pelo qual eram chamados entre os próprios ciganos tinham um outro frente aos não-ciganos, a fim de fazerem seus negócios sem serem estigmatizados. (cf. Moraes Filho 1981, p. 68).

[68].  APM, CMP, códice 11 (Registro da Câmara ao Governo Geral e Provincial e a Diversas Autoridades; 08/07/1824 a 10/06/1826), fls. 77v e 78.

[69].   APM, CMP, Códice 11. p. 73.

[70].   APM, CMP, Códice 11. p. 78.

[71].   APM, CMP, Códice 11. p. 78.

[72].   APM, CMP, Códice 11. p. 73.

[73].  APM, CMP, Códice 11. p. 73v.

[74].  Karasch 1987, p. 54; baseando-se em: ANRJ, Códice 331, Polícia, Correspondência com Juízes de Paz, 8 set. 1832, fl. 10.

[75].  Karasch 1987, p. 54; baseando-se em: ANRJ, IJ6 173, Secretaria de Polícia da Corte, Ofícios com anexos, 1836.

[76].   Cf. outros documentos citados por Karasch 1987, p. 54: ANRJ, IJ6 165, Secretaria de Polícia da Corte, Ofícios com anexos, 1831-1832; ANRJ, IJ6 169, Secretaria de Polícia da Corte, Ofícios com anexos, 1834; ANRJ, IJ6 177, Secretaria de Polícia da Corte, Ofícios com anexos, 1837.

[77].   Karasch 1987,  p. 311.

[78].  Karasch 1987, p. 311; baseando-se em: ANRJ, IJ6 166, Secretaria de Polícia da Corte, Ofícios com anexos, 1833.

[79].   ANRJ, códice 403 (Relação de presos feita pela polícia, 1810-1821), vol. 2, fl. 312, 28/02/1820. Apud Algranti 1988. p. 178.

[80].   ANRJ, códice 330, vol. 2, s/fl., 04/09/1821. Apud Algranti 1988. p. 74.

[81].   Schwarcz 1996, p. 15.

[82].  O País, Rio de Janeiro, 19 de julho de 1885. Apud Moraes Filho 1981, pp. 114-115.

Com a abolição da escravatura, os ciganos que ainda insistiam no comércio de escravos perderam uma importante fonte de subsistência, e em alguns casos, a única. Junto a isso, ficaram sem qualquer oportunidade de ter uma inserção social. Em fins do século XIX, a opção dos ciganos nômades, do Centro-Sul brasileiro, era "permanecer entre uma população rural cada vez mais hostil ou de se unir à massa de trabalhadores urbanos."[1] Havia ainda, uma última "opção" para sobreviverem: praticarem pequenos delitos contra a propriedade alheia.

Capítulo 4.

A IMAGEM DOS CIGANOS NO BRASIL. 

A aparência física e o "olhar cigano". 

No Brasil do século XIX, a descrição da aparência física dos ciganos repetiu-se continuamente em estereótipos que remetiam a alguns traços do ideal grego de beleza. Em geral, a aparência física dos ciganos foi admirada e até exaltada. Os cabelos seriam pretos e brilhantes, a pele morena ou cor de cobre, olhos "vivos" e corpos esbeltos e ágeis. Johann Baptist Emanuel Pohl os descreve como tendo "cor amarelo-escura" na face e "cabelos lisos pendentes", sendo que por "toda a aparência desse povo extraordinário, de longe podiam ser reconhecidos."[2] Já Henry Koster ouviu falar dos ciganos em Pernambuco "como homens de pele amorenada, feições que lembram os brancos, bem feitos e robustos."[3] As mulheres jovens eram consideradas belas e atraentes, mas era uma beleza fadada a desaparecer rapidamente. Neste ponto aparece uma das poucas caracterizações negativas desse item: algumas velhas são descritas como decrépitas. Um exemplo dessa visão é dada pela narrativa de James Wells: "A parte feminina da tribo vinha agora visitar-me ¾ moças bonitas e megeras emurchecidas."[4]

A boa forma física é ressaltada, sobretudo nos homens, sendo relacionada ao nomadismo. A vida em contato com a natureza e as constantes viagens dariam aos ciganos força e agilidade extraordinárias. Isso proporcionaria uma longevidade excepcional, que seria comprovada pela idade elevada dos líderes anciãos.

Porém, Debret oferece-nos um contraponto a essa idealização. O cigano que representa na prancha "Mercado da Rua do Valongo" (1823) é um comerciante de escravos gordo, cuja barriga decorria de uma doença. Sua figura contrasta-se nitidamente com a dos negros magros, famintos e também doentes. Os dois casos são extremos, pois o ideal de beleza, na gravura, é representado no elegante, esbelto e saudável senhor vindo de Minas Gerais, digno representante da elite.[5]

No desenho feito por E. Riou, "Ciganos das ilhas do (Rio) Paraná" de 1874, aparece uma família com um homem de meia idade (barbado, com chapéu e cajado), uma mulher jovem, um rapaz e três crianças. Todos estão descalços num acampamento improvisado às margens do rio. Nesse desenho os ciganos estão diante de uma forte presença da natureza, uma exuberante mata fluvial que compõe o cenário.[6]

Uma documentação iconográfica notável é o jornal A Cigana, cujo primeiro número (talvez o único) foi editado no Recife, em 8 de setembro de 1874. A princípio, o periódico seria um semanário cujas caricaturas contribuiriam com um forte toque de humor. Aparentemente, a publicação era republicana, apesar de Tycho-Franco, que assina o primeiro artigo, dizer ironicamente de si próprio: "Sou republicano, liberal histórico, conservador dissidente, governista."[7] Nessa época a monarquia geralmente era representada pela figura masculina, enquanto a república era associada à figura de uma mulher.[8] Assim, a escolha da "cigana" para simbolizar as idéias de um grupo de pessoas indica, claramente, a defesa dos ideais republicanos. Mais importante do que isso, é que a "cigana" evoca a liberdade que o jornal deseja propagar.

A primeira cigana desenhada, no frontispício, é uma jovem, quase adulta, com cabelos longos e volumosos,  formas  do  corpo  suavemente arredondadas e cintura bem torneada. Sua sensualidade é ressaltada pelo imenso decote em seu vestido, que dá mostra de seus fartos seios e seus pés descalços que pisam a terra de uma paisagem bucólica. Na parte superior da gravura se anunciam os "segredos da buena-dicha".[9] Isso parece indicar que o objetivo do periódico era revelar o destino político, servindo-se para tal da imagem da cigana.

No artigo O Romantismo, desse jornal, o articulista Caron descreve o tipo de mulher considerada bela, o das ciganas idealizadas pelos românticos europeus: "typo andaluz, faces rosadas, tez morena, talhe esbelto, e cabellos pretos", ao qual qualquer homem diria: "oh! mulher seductora e vaporosa, tu és a imagem do romantismo cuspida e escarrada”.[10] Como se vê, este trecho revela outra possível inspiração para se estampar no frontispício, a cigana.

Uma outra cigana ainda aparece nesse documento. Trata-se de uma jovem, talvez uma menina, colocada numa caricatura. Descalça, mas vestida com muito pudor, ela é desprovida de sensualidade explícita. Essa cigana é o próprio periódico, e é levada pelas mãos do Interesse Público até o Leitor, ambos representados por homens. O Interesse Público diz o seguinte: "Apresento-vos, leitor, a mimosa cigana: vem ler-vos a buena dicha." Isto confirma que a intenção do periódico era desvendar o destino político, que significava em outras palavras, dirigir as discussões e ações políticas.[11]

As ilustrações de Flumen Junius, que acompanham o texto de Mello Moraes Filho, de 1895, sobre "Um casamento de ciganos em 1830" no Rio, mostra ciganos ora como figuras bizarras, ora como festivos dançarinos. Acrescente-se que nem o desenhista nem o autor testemunharam tal cerimônia, eles apenas ouviram o relato.[12] O viajante britânico, James W. Wells teve mérito de ser o único a representar um cigano em Minas Gerais, durante o oitocentos. Seu desenho é de "Um cigano brasileiro", tendo-se inspirado no encontro que teve com ciganos no norte de Minas em 1873. À frente de uma pequena e pobre barraca, armada num campo rupestre, o cigano aparece só. Os cabelos cacheados e longos, o cavanhaque e o olhar longínquo e desconfiado compõem a estranha imagem do cigano.[13]

Quanto ao olhar dos ciganos, era tido mais do que um elemento de sua aparência física; era como tendo uma dimensão transcendental. Numa sociedade que transmitia seus saberes, tradicionalmente, por forma oral, o olhar é o ponto de partida para a compreensão entre as pessoas. Além disso, era através dele que se confirmava um compromisso (negócios ou casamentos, por ex.) depois da palavra dada, olhando-se nos olhos do cliente ou do outro cigano.

O encontro e a revelação do outro se inicia com o olhar. A presença do olhar cigano instaurava uma crise na identidade do não-cigano, acompanhada de perplexidade e medo. Assim, o olhar cigano incomodava porque, ao mirarem, constrangiam os não-ciganos para não o devolverem. Ao ser olhado pelo cigano, o indivíduo sentia-se "coisificado". Em contrapartida, o cigano ao incidir seu olhar sobre o outro, rompia momentaneamente com a fronteira e a distância original, seu mundo também ficava à deriva.

Os ciganos foram, não se sabe a partir de quando, considerados como portadores de um olhar mágico e poderoso, capaz de lançar pragas e maldições. Este olhar se caracterizaria não só pelo exotismo dos olhos com grandes pupilas, mas também por uma certa magia na forma de fixá-los. No século XIX, tal imagem ganhou mais relevância graças ao movimento romântico.

 

Moral, costumes, língua e religião.

 

Os ciganos "poderiam ser fisicamente atraentes, com características remanescentes da estética grega; mas de acordo com a visão da época, eles não tinham a harmonia apropriada entre a alma e a aparência física."[14] Numa primeira exemplificação, os ciganos eram apontados como medrosos e covardes, por fugirem de confrontos com a polícia ou por cometerem pequenos furtos à noite.

Um dos adjetivos mais aplicados aos ciganos foi o de "sujos". Talvez, porque "uma das maneiras mais fáceis pela qual os indivíduos numa certa cultura podem se diferenciar dos indivíduos de uma outra qualquer está em chamá-los de sujos."[15] A associação dos ciganos à sujeira é uma das mais sedimentadas imagens que diversas sociedades tiveram deles.



[1].  Donovan 1992, p. 47.

 

[2].    Pohl, J. B. E., Viagem no interior do Brasil;  Rio de Janeiro, Ministério da Educação e Saúde/INL, 1951, p. 274. [original: 1832]

[3].    Koster, H., Viagens ao Nordeste do Brasil,  Recife, Secretaria de Educação e Cultura de Pernambuco, 1978, p. 383. [original: 1816]

[4].    Wells, J. W., Explorando e viajando três mil milhas através do Brasil: do Rio de Janeiro ao Maranhão, vol. 1. Belo Horizonte,  Fundação João Pinheiro; Centro de Estudos Históricos e Culturais, 1995, p. 295. [original: 1886]

[5].    Debret, J. B., O Brasil de Debret, Belo Horizonte, Editora Villa Rica [depois Itatiaia], 1993, Prancha 45 – Mercado da Rua do Valongo. {original: 1834].

[6].     Desenho de E. Riou, extraído do periódico Le Tour du Monde, nouveau journal des voyages (Paris, 1874), IN: Vaux de Foletier, F., Le monde des tsiganes, Paris, Berger-Lebrault, 1983, p. 22.

[7].     A Cigana, Recife, anno 1, nº 1, 8 set. 1874, p. 2.

[8].    Carvalho, J. M. de, A formação das almas: o imaginário da República no Brasil, São Paulo, Companhia das Letras, 1990, p. 75.

[9].    A Cigana, p. 1.

[10].    A Cigana, p. 6. A expressão “cuspida e escarrada” é provavelmente corruptela de “esculpida em mármore carrara”, ou de “esculpida e encarnada”.

[11].  A Cigana, p. 1.

[12].  Moraes Filho, A. F. Mello, Festas e tradições populares do Brasil, Belo Horizonte, Itatiaia, 1979, p. 192-200. [original: 1895]

[13].  Wells 1995,  p. 293.

[14].  Willems, W. & Lucassen, L., “The church of knowledge: representation of gypsies in Dutch encyclopedias and their sources (1724-1984)”, IN: Salo, Matt T. (Ed.), 100 years of gypsy studies, Cheverly, MD, The Gypsy Lore Society, 1990, p. 33.

[15].  Burke, P.,“Os sacrifícios da impureza”, Folha de São Paulo, São Paulo, 10 nov. 1996, Caderno 5, p. 3.

O higienismo provocou uma transformação quanto à vestimenta, sobretudo nas camadas mais altas, introduzindo um conjunto de regras rígidas.[1] Isso distanciou, bruscamente, as famílias de elite das famílias brancas pobres, mas principalmente dos ciganos. Apesar da existência de alguns ciganos ricos, principalmente no Rio de Janeiro, a maioria dos ciganos era pobre. Por isso as mulheres, sobretudo, utilizavam trajes tidos como exôticos. Já os homens, tal como se verifica nas pranchas de Debret de 1823, utilizavam roupas como quaisquer outros homens de suas classes sociais; pois para negociar não era interessante que fossem identificados como sendo ciganos. Era, portanto, uma estratégia de ocultação da identidade.

Em contrapartida, James Wells desenha um cigano do norte da província mineira, na década de 1870, com uma dose de exotismo, provável produto de sua imaginação. Seu cigano tem um chapéu sobre os cabelos cacheados. Uma espada no coldre com grande fivela, uma bota com esporas de cavaleiro e um colete completam a imagem do desenho intitulado "um cigano brasileiro".[2]

Além do mais, a família "burguesa" não expunha certas partes do corpo e não manifestava certos contatos físicos tais como os ciganos faziam: as crianças andavam nuas, homens expunham barrigas e peitos cabeludos, enquanto as mulheres não se constrangiam em amamentar publicamente seus filhos; a nudez cigana era "indecente", embora, possivelmente, os ciganos tivessem rituais de purificação extremamente vinculados a normas rigorosas quanto à forma de se vestir e a higiene. A bibliografia antropológica registra como sendo um dos costumes mais difundidos entre as diversas comunidades ciganas, os tabus relacionados ao medo de contaminação, com seus respectivos rituais de purificação. As convicções dos ciganos sobre a impureza é um elemento fundamental para manifestar e reafirmar os limites étnicos sobretudo entre eles e os não-ciganos. Entre os Rom, por exemplo, "os tabus referem-se a pessoas, objetos, partes do corpo, comidas e temas de conversa (...); mas a sua grande preocupação refere-se à impureza da mulher, à potencial ameaça à pureza ritual." [3]

Os padrões de alimentação quase não são descritos. Entretanto o regime marcadamente animal da alimentação dos ciganos incrementava, mais ainda, as idéias correntes sobre eles. Relacionava-se o consumo de alimentos de origem animal com uma prodigiosa força física, porém concedia-lhe um valor moral negativo. Aqueles que consumiam predominantemente esse tipo de alimentação, como os gaúchos, estavam associados pelos higienistas à maldade, à perversidade, ao gosto pela pilhagem e por assassinatos e à pouca inteligência. No entanto, talvez a base da dieta dos ciganos em viagem não diferisse muito da dos tropeiros: carne seca ou charque, feijão, angu ou farinha de milho ou mandioca, arroz, eventualmente cachaça, ou melaço como sobremesa. O crescente avanço da pecuária em Minas Gerais, no transcurso do século XIX, pode ter possibilitado o consumo de leite e queijos, quando negociavam com fazendeiros e sitiantes.

Ao se alimentarem, os ciganos não se assemelhavam em quase nada aos modos de etiqueta das famílias abastadas, que se distinguiam comendo "civilizadamente". Essas famílias sabiam as normas sobre tudo que era proibido fazer quando se comia com “civilidade”. Já os gestos dos ciganos eram demasiadamante "naturais", enquanto os Manuais de Boa Conduta sugeriam a contenção destes, propondo uma artificialidade impensável entre os ciganos.[4]

Nos padrões de civilidade característicos da elite urbana, as mesas eram fundamentais. Entre os ciganos nômades tanto a mesa era inexistente quanto faltavam, às vezes até pratos e talheres. Eles improvisavam gamelas e outros utensílios e frequentemente comiam com as mãos. As facas eram mais comuns, sendo usadas tanto para cortar quanto para introduzir o alimento na boca. Para cozinharem seus alimentos no acampamento, os ciganos fincavam três paus, de forma a uní-los pelas pontas para formarem uma tripeça, na qual se colocava o caldeirão. O preparo dos alimentos, como era de se esperar numa estrutura familiar patriarcal, ficava a cargo das mulheres.[5]

Ao contrário do momento da refeição da elite, que era um conjunto de formalidades, a alimentação entre os ciganos funcionava estreitando as relações afetivas, no cuidado da educação das crianças e na elaboração de estratégias de sobrevivência (sobretudo econômicas) do grupo.

Quanto à língua dos ciganos, várias vezes é designada como sendo um dialeto ou geringonça (gíria), o que a subordinaria à língua oficial, colocando-a como uma variante corrompida. Saint-Hilaire conta que, ao dirigir a palavra a alguns ciganos no Mato grosso em 1819, eles lhe responderam "num sotaque arrastado e nasalado". Além de usarem "uma polidez servil, o que não é comum entre os portugueses."[6] Já George Gardner vai mais adiante, considerando que os ciganos no Brasil, "embora falem português como os demais habitantes do país, entre si usam sempre sua própria língua."[7] Próximo a este testemunho está o de Maria Graham sobre os ciganos no Rio de Janeiro, na década de 1820. Acreditando que falavam ainda um mesmo "dialeto" que usavam na Europa, Graham se exime de avaliar até que ponto tal dialeto poderia ter mudado em relação ao original: "Conservam seu dialeto particular, mas não consegui ficar pessoalmente bastante conhecida deles para formar qualquer juízo sobre o grau em que a mudança de país e clima afetou os hábitos originais."[8]

Décadas depois, Richard Burton, ao falar sobre os ciganos que encontrou em 1866 no caminho de Rio Claro para Piracicaba, Província de São Paulo, escreve: "Visitei um bando destes 'verminosos' (...)  Fiquei uma noite nas suas tendas. (...) Não consegui induzí-los para usarem sua própria língua, mas evidentemente eles me entenderam”.[9]

Portanto, é certo que os ciganos falavam além do português, uma outra língua entre si. A "língua cigana" tinha dupla função: alienar os não-ciganos dos assuntos internos dos bandos e reforçar a identidade. Mas não há qualquer documentação que permita reconstituir a origem, as prováveis similaridades com a língua portuguesa e o vocabulário. Mello Morais Filho elaborou no final do século XIX, no Cancioneiro Cigano, um pequeno glossário de palavras, supostamente usadas por ciganos cariocas.[10] No entanto, difícil é saber o que o autor coletou na própria comunidade e o que retirou de suas restritas fontes bibliográficas.

Possivelmente a religião foi o item que os moralistas atacavam com maior vigor. Ao mesmo tempo os ciganos eram considerados hereges, pagãos, idólatras e ateus. Atributos estes que se sabe serem inconciliáveis. Esse acúmulo de estereótipos absurdos expressa bem a condição de “bode expiatório” em que então viviam (e ainda hoje vivem) os ciganos.

Por não cumprirem as solenidades do sacramento matrimonial, na visão da Igreja, os ciganos viviam em pecado como se praticassem concubinato. Além de tradicionalmente efetuarem suas próprias cerimônias, talvez os ciganos não se casassem na Igreja devido aos altos custos dos trâmites burocráticos e do pagamento ao pároco que realizava o casamento. A burocracia da Igreja dificultava isso, já que os supostos pretendentes ao matrimônio deveriam levantar documentos, como o de batismo, e apresentar testemunhas, a fim de que se garantisse o local de residência, de não serem já casados, atestando-se a idoneidade dos requerentes. Como se pode deduzir, todos esses requisitos eram bastante difíceis de serem cumpridos pelos ciganos.

Por serem quase sempre arredios à Igreja, os ciganos costumavam realizar seus próprios rituais matrimoniais e funerários, mas isto não impediu que eventualmente algum casal cigano se unisse de forma lícita pelas bênçãos eclesiásticas. Um exemplo disto ocorreu no Século XVIII.[11] É provavel que estes casais, antes ou depois, realizassem outra cerimônia, conforme as tradições ciganas, fora da Igreja. Embora distantes de muitas das convenções da Igreja, acrescenta-se que os testemunhos mais afirmam do que contestam a fidelidade das mulheres ciganas.

A emancipação dos filhos ainda muito jovens para constituírem novas famílias, junto à falta eventual de parceiras para os rapazes, pode ter ocasionado a busca de mulheres fora da comunidade cigana. Em 1892, ciganos foram acusados de cometerem "sequestro" de uma moça não-cigana em São José do Tocantins (atual Tocantins).[12] Duas hipóteses poderiam perfeitamente esclarecer e justificar o fato. A primeira seria uma eventual carência de mulheres no bando desses ciganos, pelo que um deles foi obrigado a “roubar” simbolicamente a sua noiva gadjé, mas com prévio consentimento da moça, e provavelmente até de ambas as famílias. Na literatura antropológica este ritual é conhecido como “o rapto da noiva”, que sempre existiu e ainda existe em dezenas de sociedades, no mundo todo, e inclusive entre os ciganos. A segunda hipótese seria a possibilidade de a jovem ter-se enamorado, ou até mesmo ter sido engravidada por este cigano, “fugindo” depois com seu amante, conforme uma velha tradição gadjé brasileira. Acrescente-se que o casamento de uma cigana com um não-cigano deve ter sido muito raro, porque ser filho de um cigano era um dos valores importantes na identidade cigana.

 

Ociosidade, mendicância e vadiagem.

 

O cotidiano cigano era cheio de contatos informais para os negócios, visitas a familiares ou a doentes, e eventualmente festas. Ao contrário da população laboriosa (os trabalhadores autônomos ou assalariados de então, e ainda hoje), os ciganos não tinham suas tarefas mensuradas e realizadas de forma cíclica e rotineira; não estavam sobre a égide do relógio, não consideravam precisamente a duração dos dias e das noites, desconheciam ou faziam questão de ignorarar o tempo abstrato e linear, uniformente dividido. Durante o período imperial, através de uma ação conjunta da sociedade e do Estado, o tempo/ócio foi acuado e disciplinado, tornando-se "gradativa e repressivamente transformado em tempo/trabalho livre."[13]

A elite incomodava-se com o modo como os ciganos dispunham de seu tempo, que lhes parecia ser na ociosidade. Além de defenderem que o trabalho era a única forma de os pobres terem alguma dignidade, os ricos viam o ócio como patrimônio e privilégio unicamente deles. E os ciganos, ao desfrutarem também do ócio, serviam de mau exemplo aos homens laboriosos, e constituiam uma dissonância ao trinômio trabalho / ordem / progresso. Nesta perspectiva, o cigano seria um miserável devido a sua preguiça ou um indivíduo enriquecido graças as suas atividades ilícitas. Willems e Lucassen, ao tratarem deste tema, informam: 

 

"Para o pesquisador cujo objetivo é desmistificar os estereótipos a respeito dos Ciganos, a representação de suas formas profissionais é uma das questões mais controversas. Em muitos estudos sobre Ciganos e também nas enciclopédias, duas visões contraditórias podem ser encontradas: (1) devido as suas profissões, especializadas, os Ciganos têm sempre desempenhado um papel único no mercado de trabalho, como por exemplo, de funileiro ou peneireiros; (2) os Ciganos são extremamente avessos ao trabalho, eles quase nunca trabalham. A maioria dos autores não parece ter consciência desta contradição. Apesar disso, logicamente uma das visões tem que ser atenuada. Afinal de contas, é impossível dominar uma profissão manual repleta de detalhes sem um trabalho árduo, no nível de treinamento e instrução".[14]

 

Viu-se anteriormente, que os ciganos constituíam-se em um dos segmentos sociais identificados como vadios, embora de forma sui generis, por se diferenciarem etnicamente dos demais. Portanto, entender como se viam os vadios, ajuda a perceber como se viam os ciganos.

Embora no vocábulo português "vagabundo" tenha um sentido equivalente a vagabond (grafia idêntica no inglês e no francês), a palavra alemã vagabund e a espanhola vagabundo, "é ao vadio e à vadiagem, que mais dizem respeito as leis portuguesas.". Isto se refere a ênfase dada "para o combate à ausência de trabalho (vadiagem)", ficando num segundo plano o "caráter andejo e desocupado (vagabundagem)" que representava o perigo, a ameaça à ordem pública.[15]

O vadio era, além daquele indivíduo sem domicílio, aquele que se recusava a seguir o ritmo e as regras do trabalho. Decorria daí a imagem de desonestidade e de falta de vínculos sociais. Portanto, a concepção de vadiagem compreendia tanto a itinerância quanto a ociosidade, "comportamentos considerados ameaçadores à estabilidade social". No entanto, não havia consenso definitivo quanto à percepção "do que era vadio ou ocioso".[16]  Às vezes, vadiagem referia-se especialmente aos "ociosos" delinqüentes com atividades "ilícitas", como jogos e roubos. Noutras ocasiões, o sentido se restringia à "conduta transgressiva do jornaleiro que interrompia seus afazeres em proveito das 'vadiações' e divertimentos de rua". Por fim, numa acepção ampliada, a expressão vadio "remetia às camadas livres pobres tradicionalmente vistas como inclinadas para ociosidade e vadiagem."[17]

Mais que um inconveniente, a manutenção da ordem pública e a vadiagem eram "vistas como um ônus, um 'peso' que recaía sobre a sociedade".[18] No imaginário das elites urbanas, a vadiagem significava o substrato comum de onde surgiam todos os outros crimes. Principalmente nas décadas de 1820 e 1830, temia-se que os vadios não apenas engrossassem os protestos das camadas pobres das cidades, contra a carestia e a opressão, mas também se levantassem contra os ricos, pondo em perigo as propriedades.[19]

À medida que crescia essa população "desordeira" e "perigosa", maior era a preocupação com as algazarras e os delitos (roubos, principalmente). O número de pobres vagando nas ruas aumentava com as crises econômicas conjunturais, quando escasseavam os empregos e havia carestia de alimentos.[20]  O Código Criminal do Império de 1830, no artigo 295, determinava que a vadiagem e a mendicância fossem consideradas crimes policiais. Devendo o criminoso cumprir pena de oito a vinte e quatro dias de prisão para pessoas que não se ocupassem de forma honesta e útil para sua subsistência. "A lei de 26 de outubro de 1830 reformaria esse artigo, elevando a pena para um ano e seis meses de prisão, podendo ser duplicada em caso de reincidência."[21]

O Código indicava que os vadios deveriam tornar-se "úteis" e inserir-se no sistema produtivo e na ordem estabelecida. Para os ciganos, tal legislação significava que sofreriam ações repressivas ainda mais violentas, já que eram considerados "incorrigíveis", sem qualquer esperança de “regeneração” a curto prazo. Por isso, a solução imediata era expulsá-los da cidade e até mesmo da Província. Além disso, até as autoridades militares achavam que os ciganos não eram "desmarginalizáveis" pelo recrutamento militar.[22] Por causa da enorme desconfiança com relação aos ciganos, eles foram simplesmente considerados “irrecuperáveis”. Conforme algumas teorias pseudo-científicas da época, acreditava-se que os ciganos eram uma "raça" na qual o caráter (negativo) de seus membros já estaria determinado desde o nascimento.

Tradicionalmente, as sociedades sedentárias vêm no nomadismo um comportamento suspeito e associado à criminalidade. A maioria dos dicionários e enciclopédias do século XIX, tanto em língua portuguesa, quanto em francesa, rejeitavam e tratavam pejorativamente o nomadismo, pois este seria um modo de vida contrário ao "crescente progresso". Afinal, o ideal civilizatório requisitava a presença da cidade, por conseguinte, exigia o sedentarismo: "Vistos a partir do signo da falta e do seu não-ser, os nômades são os que não têm habitação fixa, não deixam traços duradouros de sua existência, não são civilizados".[23]

Infantilizados e apontados como vagabundos e bárbaros, os nômades enquanto forasteiros, eram potencialmente depredadores e desestabilizadores da ordem pública. Como estrangeiros, possuíam algo de fascinante; identificados como hostis, sua presença trazia uma alternativa ao modo de vida sedentário, por isto colocavam em questão os papéis sociais[24]; como endemoniados, recordavam o mal, dimensão que deveria ser extirpada da sociedade sedentária e cristã. Mobilizando uma série de valores que afrontam o status quo e criando novas perspectivas culturais, os nômades causavam repulsa e fascínio.

Havia na imagem do nômade a conciliação de contrários, aliava a animalidade à divindade; virtude e perigo. Caracterizava-se pela insensatez, desobediência e rebeldia, desprezo pelas normas, desafio às autoridades, violações sistemáticas e transgressões, audácia e astúcia, poderes mágicos e dons de cura. Esta ambivalência e ambigüidade manifestava-se em atração e repulsa pelo nômade. Por isto, na maioria das vezes é reprimido, mas não suprimido (exterminado), pois engendra o movimento e o desequilíbrio, continuamente provocando rearranjos, reequilíbrios; ou seja, contém um dinamismo muito mais criativo do que aquele do status quo. Transgredindo, os nômades faziam suas marcas na História.

Portanto, o vagabundo se caracterizava pela ausência de domicílio, que é associada à imoralidade (incluindo a promiscuidade), à pouca higiene, à falta de vínculos com a sociedade sedentária e civilizada; o vagabundo, como estrangeiro, é mal afamado, ladrão em potencial, preguiçoso, delinqüente em potencial e propagador de epidemias.

Em Minas Gerais, desde o período colonial, além de mal visto pelo ócio ou irregularidade com que trabalhava, o indivíduo "sem eira nem beira', "pé ligeiro", era associado à vadiagem, e por conseguinte, à imoralidade, pois seus valores eram contrários aos da família. Numa sociedade fundamentada nas relações pessoais (laços de sangue e boa vizinhança), a "itinerância" era uma afronta à ordem pública. A falta de laços de dependência com qualquer senhor ou patrão era uma inconveniência às relações sociais e ao poder como se apresentavam. Como "outro", desconhecido e à margem das classes, era também intolerável, indesejável.[25] No entanto, "a itinerância dava ao indivíduo sentimento de autonomia e liberdade dificilmente experimentado por outras camadas livres pobres."[26]

A população branca de Minas Gerais, na segunda metade do século XVIII, não atingia a 25%,[27] com a predominância de "aventureiros e fugitivos".[28] Esta população se caracterizava pela exclusão e marginalidade, formando, junto com os mestiços livres e pobres, um conjunto de desclassificados sociais, cujo quotidiano era marcado pela miséria e a violência. Entre mendigos, desertores, padres infratores, negras quitandeiras, prostitutas, feiticeiras, ladrões, assassinos, falsários, bandidos e garimpeiros, os ciganos eram apenas mais um grupo social, porém diferenciado etnicamente, a tornar as ruas barulhentas e a promover a desordem pública.[29] Numa sociedade caracterizada por uma enorme desigualdade social e econômica, a ordem social apresentava-se sempre frágil.

Todos esses tipos marginalizados percorriam o território mineiro, numa intensa e confusa movimentação, resultando em uma ocupação fluida e desordenada, e trazendo inúmeras preocupações às autoridades provinciais. Na sociedade das Minas oitocentistas, "os aventureiros dirigem seus esforços às recompensas imediatas, desprezando a estabilidade e a segurança pessoal, numa existência de audácia, de imprevidência e sem fixação."[30]

Na busca de se estabelecer uma civilização, onde o imenso território fosse adequadamente ocupado por outra população ordeira, procurava-se construir uma idéia forte de Nação e conhecer e controlar aqueles que promoviam as desordens. Numa sociedade desigual e intolerante, frente aos vadios e nômades, a repressão jurídica e policial a estes segmentos acentuou-se. Além disso, enfatizava-se também a imagem "de uma unidade nacional e de uma administração pública apolítica e racional devidamente assessorada por uma gama de saberes científicos e imparciais. Por outro lado, a descentralização e a politização da sociedade passaram a ser apontadas como caminhos da corrupção e da ineficiência, num repúdio ao conflito e à heterogeneidade, em nome do elogio da homogeneidade e do consenso."[31]

 

Ladrões e o mito do roubo de crianças.

 

Ladrões de galinha, de cavalos e de crianças, eis algumas variações da mesma forte imagem do cigano ladrão. Entre os delitos dos quais são acusados, nenhum foi mais freqüente e significativo do que o roubo. Por esta razão é também o mais temido traço do "caráter cigano". Como um ato imperdoável, principalmente num momento em que a noção de propriedade ia ganhando cada vez mais força, a associação ao roubo impregnava com um estigma marcante os tão "suspeitos" ciganos.

Há uma longa trajetória de incompreensão dos não-ciganos quanto aos furtos ciganos.[32] Alguns ciganólogos consideram que os primeiros ciganos que chegaram ao continente europeu traziam consigo o hábito da pilhagem, comum em certas regiões da Ásia (continente de origem provável de pelo menos alguns grupos ciganos). Ao contrário do que entendiam os direitos consuetudinários dos países europeus, nestas regiões asiáticas, a pilhagem não era considerada um delito, principalmente quando feita por viajantes. "Desde sua chegada à Europa, os ascendentes dos Rom continuaram a exercer seu 'direito à pilhagem', moldando-se assim em tudo inocente uma primeira reputação de 'ladrões'."[33]

Tendo em vista esta longínqua origem da principal má fama dos ciganos, em Minas Gerais, durante o oitocentos  esta reputação engendrava a seguinte dinâmica: à medida que apareciam boatos de que um bando de ciganos estava chegando a uma determinada região, muitos ladrões não-ciganos passavam a aumentar suas atividades, na certeza de que estariam impunes e a culpa seria atribuída por toda população aos ciganos. Diante da freqüência com que isto ocorria, atribuindo-se toda desconfiança aos ciganos, estes não tinham mais razão de ficarem constrangidos ¾ saliente-se que a má fama dificultava as transações comerciais ¾, o que reforçava a imagem que originalmente lhes foi imposta. Por outro lado, o fato de um cigano roubar e ser pego, era mal visto pelo bando ao qual pertencia, já que a culpa do cigano José ou do cigano Pedro, seria atribuída a todo o grupo. Se José é um homem pobre livre que rouba, por exemplo, ele é um mau sujeito. Se ele é cigano, rouba porque é cigano. Com o desenrolar destas relações hostis, os ciganos reverteram essa imagem moral, em princípio negativa, transformando-a em algo para se orgulhar em determinadas circunstâncias, pois os diferenciava frente aos não-ciganos.

Para o cigano, o uso de artimanhas, para ludibriar o não-cigano, era uma forma de afirmação frente ao grupo, demonstrando ser mais esperto que o negociante mineiro. A variante do ladrão de animais, sobretudo cavalos e bestas de carga, é a mais forte desta imagem. As acusações de roubo de animais eram freqüentes, embora fossem difíceis de provar tais queixas. Em Vila Rica, num documento de 1800, registra-se "A devassa pelo achado dos furtos de bestas em poder dos ciganos João Manoel e outros no sítio dos crioulos."[34]

Além das já citadas suspeitas de roubos de escravos, constavam também acusações relativas a roubo de crianças. Neste sentido, é importante considerarmos, ligeiramente, o percurso da imagem do cigano ladrão de criança na Europa.

Quando Cervantes, no início do século XVII, criou o tema do roubo de crianças pelos ciganos, estava inaugurando um dos maiores filões da literatura ficcional sobre os ciganos.[35] No século XIX, numerosos autores utilizaram o tema da criança roubada como objetivo "educativo". Acreditavam que o contraste entre o "mundo civilizado" dos jovens leitores e a "vida perniciosa" dos ciganos, por suposição, incitaria as crianças a apreciar mais sua própria cultura e a obedecer a seus pais. Essas “estórias” fantasmas contribuiram bastante para criar uma imagem extremamente negativa dos ciganos. Assim os autores manipulavam a imagem dos ciganos para valorizar as virtudes cívicas e civilizadas dos não-ciganos. Essa literatura sobre os ciganos foi uma estratégia de educação moral, portanto de dominação.[36]

Uma vez considerada a origem literária do mito de roubo de crianças, não devemos descartar a possibilidade de ciganos acolherem crianças que ficavam fascinadas, com seu modo de vida. Eventualmente, famílias ciganas podem ter adotado crianças não-ciganas abandonadas por mães (geralmente solteiras) não-ciganas. Vale lembrar que nas vilas de Minas entre 1700 e 1715, "de cada 100 nascimentos, 90 eram de filhos ilegítimos."[37] Com a decadência da mineração e a sedentarização crescente da população mineira, o número de filhos ilegítimos diminuiu, mas durante o oitocentos ainda era grande o número de enjeitados.

Provavelmente, algumas famílias ciganas adotaram muitas dessas crianças. Além de ser uma estratégia de fortalecimento do grupo pelo aumento numérico, a adoção restituía parcialmente o status aos casais ciganos que por alguma razão não podiam conceber naturalmente seus filhos ¾ já que a maternidade e, se possível uma prole numerosa, era bastante valorizada pelos ciganos. Dessas adoções, obviamente sem qualquer formalização jurídica, surgiram muitas reclamações de pais legítimos arrependidos.[38]

Ilustrando tais suspeitas, houve em Pará de Minas, em 1881, o caso do menino Benjamim Oliveira que fugiu junto com a Companhia Sotero, circo do qual posteriormente escaparia: "Partiu com ciganos (...) Descobre, entretanto, que os ciganos desejavam trocá-lo por um cavalo. Escapou novamente (...)."[39] Há, ainda, acusações mais graves. A primeira de que ciganos teriam seqüestrado uma criança em Vassouras (Província do Rio de Janeiro) para comê-la, em 1888.[40] Já, em 1892, encontrou-se em Bom Sucesso (Minas Gerais) "o esqueleto de uma criança desaparecida há seis meses".[41] Como na mesma época do desaparecimento, havia chegado um bando de "turcos" (uma das designações dos ciganos dadas pelos mineiros), esta mera coincidência, associada às imagens tradicionais, revoltou a população, colocando os ciganos mais uma vez como bode expiatório.

Nenhuma das acusações de roubo, acompanhada ou não por assassinato ou canibalismo, foi comprovada. No entanto, estas simples suspeitas somadas a eventuais casos reais de trapaças e roubos, por exemplo no comércio de cavalos, solidificava a idéia de ciganos como sinônimo de ladrões.

 

Conclusão.

 

Estar diante do cigano era estar diante da diferença extrema, fragmentadora. Agindo como elemento de decomposição da suposta unidade que constituía a sociedade mineira, os ciganos catalisavam conflitos e davam vazão a incertezas. Disso resultou, muitas vezes, uma coisificação dos ciganos, e consequentemente as mais variadas formas de violência contra eles.

Qualquer cigano era reduzido ao estatuto da imagem cigana ¾ construída como se fosse natural, imutável e indestrutível. Nascer cigano era ter seu destino parcialmente já traçado. Isso significava estar do lado oposto à "boa sociedade". Assim cada cigano era a síntese de tudo que se pensava sobre os ciganos. Por isso, freqüentemente, eram prejulgados. Em seguida , equivocadamente, executavam-se punições relativas a contravenções e crimes, supostamente cometidos por ciganos, equivocadamente.

Vinculados a um conjunto de estereótipos, predominantemente negativos, os ciganos foram identificados como tendo uma natureza "perigosa", uma encarnação da ameaça, pois seriam sujos e imorais. Assim, o cotidiano cigano sempre esteve intimamente associado à imagem que se construiu deles. Imagem esta que manifestava as ressonâncias dos pesadelos e, eventualmente, até dos sonhos, da sociedade que os "abrigava".

O discurso civilizatório oitocentista, era um projeto político-cultural que idealizava uma sociedade em que não houvesse conflito, consequentemente em que não houvesse diversidade cultural, nem transformação social que não fosse em direção ao progresso. Homogeneizar a população, criando o "ser brasileiro", era a estratégia para o controle da população de uma forma geral. A solução mais utilizada pelas autoridades policiais quanto aos ciganos,  "incorrigíveis" e "incivilizáveis",  era a expulsão dos bandos para onde tinham vindo, ou para a cidade vizinha, ou melhor ainda para a província (depois, estado) fronteiriço. Preventivamente, realizava-se  isto pela via mais "branda", ou seja, dentro do quadro da lei. As municipalidades, por exemplo, utilizavam-se das Posturas. Uma vez burlada a legislação, iniciava-se a segunda via, explicitamente violenta. Procedia-se a perseguições "instrumentais", visando provocar um pânico entre os ciganos. Assim, num momento de grande movimentação de ciganos e de forte repressão policial, surgiram as "correrias" que, freqüentemente, resultaram em sangrentos tiroteios.

Como "ladrões e assassinos" ou como saltimbancos admirados, os ciganos estiveram, durante todo o período analisado, distantes dos "homens bons". Como comerciantes de escravos e animais ou exercendo a "buena-dicha", aos ciganos sempre couberam aquelas atividades desinteressantes para os grandes empreendedores e socialmente desvalorizadas ("ilícitas", "impuras" e "repugnantes"). Como nômades ou sedentarizados, perambulavam por caminhos inóspitos, acampavam em áreas pouco propícias e se estabeleciam em espaços insalubres nas cidades.

No entanto, os ciganos souberam subverter quase todas as situações que o contexto desfavorável lhes oferecia. Adaptaram-se, penetrando nas lacunas que a dinâmica econômica e social criavam. A adaptação para a sobrevivência foi o grande trunfo da condição cigana. Mesmo tendo uma identidade aparentemente frágil, eles a recriaram frente às mais díspares circunstâncias. A sobrevivência foi a realização mais duradoura, o grande evento, da história cigana. Por isso Angus Fraser, autor do melhor trabalho historiográfico sobre ciganos, escreve na primeira página de seu livro:

 

"Quando se consideram as vicissitudes que eles encontraram ¾ porque a história a ser relatada agora será antes de tudo uma história daquilo que foi feito por outros para destruir a sua diversidade ¾ deve-se concluir que a sua principal façanha foi a de ter sobrevivido."[42]

 

Escrever uma história dos ciganos é escrever a história dos que a rejeitaram. Lidando com esta escrita, perpassamos por muitas duplicidades: sedentarismo e nomadismo, tradição e renovação, fascínio e repulsa, unidade e fragmentação. Mas o universo cigano mais que de duplicidades, é repleto de multiplicidades, entre as quais estão as relações com os não-ciganos, as identidades dos grupos e as imagens que se formaram dos ciganos.

 

 


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[1].  Jurandir Freire da Costa refere-se como sendo uma "terapêutica e profilaxia do vestuário", que causou preocupação da família com o traje não só para sair às ruas, o que já se fazia anteriormente, mas também com o de se usarem em casa, na busca de adequação da roupa ao clima, às idades, aos sexos proporcionou uma significativa ampliação do consumo dos artigos de vestuário (Ordem médica e norma familiar, Rio de Janeiro, Edições Graal, 1989, p. 130).  O movimento higienista propunha além de mudanças nas infra-estruturas sanitárias, uma conduta individual e social mais condizente com as normas de higiene.

[2].   Wells 1995, p. 293

[3].   Fraser, A., The gypsies, Oxford, Blackwell Publishers, 1992, p. 246.

[4].  "A civilização leva sempre à restrição dos costumes, e não ao objetivo oposto, e a dificuldade está em evitar o gesto natural, conter as manifestações mais imediatas. Reprimir o espirro (ou fazer o menor ruído possível); não coçar a cabeça e muito menos meter os dedos no nariz, não levar a mão à boca ou roer as unhas com os dentes, nunca escarrar na casa, no fogo ou janela abaixo. Jamais arrotar ou dar mostras de ter ventosidade no estômago: eis aí descritas atitudes e gestos que passam a ser matéria de rigor" (Schwarcz, L. M., “Introdução”, IN: Roquette, J.I., Código do bom-tom, ou regras da civilidade e de bem viver no século XIX,  São Paulo, Cia. das Letras, 1997, pp. 27-28. [original: 1845]

[5].  Cf.  novamente a gravura de E. Riou (Apud Vaux de Foletier 1983, p. 22).

[6].  Saint-Hilaire, A. de, Viagem à província de Goiás, Belo Horizonte, Itatiaia, 1975, p. 97 [original: 1847]

[7].  Gardner, G., Viagem ao interior do Brasil: principalmente nas províncias do Norte e nos distritos do ouro e do diamante durante os anos de 1836-1841, Belo Horizonte, Itatiaia, 1975, p. 97 [original: 1846]

[8].  Graham, M., Diário de viagem ao Brasil e de uma estada nesse país durante partes dos anos de 1821, 1822 e 1823, São Paulo, Cia. Editora Nacional, 1956, p. 286. [original: 1824]

[9].  Burton, R. F., The jew, the gypsy and El Islam, London, Hutchincon & Co., 1898,  pp. 284-285.

[10].   Moraes Filho, A. F. Mello, Os ciganos no Brasil & Cancioneiro dos ciganos, Belo Horizonte, Itatiaia,  1981, pp. 103-106.

[11].  Um documento prova que em Minas Gerais do século XVIII houve ao menos um matrimônio de ciganos "na forma do Ritual Romano". Consta no acerto de casamento de 05 de maio de 1765, da Paróquia de Sabará, que "se receberão solenemente em Matrimônio (...) Simão da Costa Soares de pessoa Sigano (...) batizado na freguezia de São João del Rey, e Sebastiana da Silva Roboredo também Sigana" (Centro de Documentação e Informação da Cúria de Belo Horizonte – CEDIC, Paróquia de Sabará, Casamentos de 1758 a 1801. fl. 158).

[12].  APM, SI, Polícia, Correspondência, cód. 118, 12 e 19 jan. 1892. O Estado de Minas, Ouro Preto, anno III, nº 276, 23 jan. 1892, p. 2.

[13].   Marson, I. Andrade, “Trabalho livre e progresso”, Revista Brasileira de História, São Paulo, vol. 4, nº 7, pp. 81-93, 1984, p. 92.

[14].   Willems e Lucassen 1990, pp. 39-40

[15].  Mello e Souza, L. de, Desclassificados do ouro: a pobreza mineira no século XVIII, Rio de Janeiro, Edições Graal, 1990, p. 56.

[16].  Fraga Filho 1996,  p. 75.

[17].  Fraga Filho 1996,  p. 76.

[18].  Fraga Filho 1996,  p. 90.

[19].  Fraga Filho 1996,  p. 91.

[20].  "Logo após a Independência, a repressão à vadiagem e à ociosidade emergeria como uma das principais metas das elites brasileiras. A formação do Estado brasileiro implicou a tentativa de disciplinar o cotidiano das camadas pobres e enquadrá-las na ordem pela via do trabalho 'honesto e lícito'. Coagir 'ociosos' a tomarem ocupação regular passou a ser questão de ordem política. A instabilidade política e econômica reforçou a idéia de que a revolta dos pobres estava intimamente ligada à vadiagem. Assim era lógico concluir que, além do crime, a rebeldia era mais um rebento da vadiagem, certamente o mais perigoso." (Fraga Filho 1996, pp. 91-92).

[21].  Fraga Filho 1996, p. 92; baseando-se no Código Criminal do Império, 1830, pp. 115-116.

[22].  Sobre a utilidade dos vadios na Colônia cf. Mello e Souza 1990, pp. 71-90, para o Império cf. Fraga Filho 1996, pp. 90-97 e 169-178.

[23].  Duarte 1995, p. 37.

[24].  Duarte 1995, pp. 37-38.

[25].  Cfr. Mello e Souza 1990,  p. 89; Fraga Filho 1996, p. 79.

[26].  Fraga Filho 1996, p. 86.

[27].  Mello e Souza 1990, p. 141.

[28].  Duarte 1995, p. 41.

[29].  Cfr. Mello e Souza 1990, p. 141-213; Duarte 1995, p. 41.

[30].  Duarte 1995. p. 41.

[31].  Duarte 1995, p. 43.

[32].  Embora no cotidiano não houvesse distinção clara entre roubo e furto, as acusações contra os ciganos, juridicamente, deveriam ser abordadas como furtos e não roubos. Já no Código de Processo Criminal do Império havia distinção entre um e outro delito. E no Código Penal de 1890, furto é definido como sendo "subtrair, para si, ou para outrem, coisa alheia móvel, contra a vontade de seu dono" (art. 330). Enquanto o roubo também consiste numa subtração, mas "fazendo violência à pessoa ou empregando força contra a coisa" (art. 356) (Fausto, B., Crime e cotidiano: a criminalidade em São Paulo (1808-1924), São Paulo, Brasiliense, 1984, p. 126). Quando os ciganos realmente haviam subtraído algo, ou seja, não se tratava de boato infundado, geralmente tratava-se de furto pois os ciganos não se utilizavam de violência.

[33].   Courtiade, M., “Préface”,  IN: Auzias, C., Les tsiganes: ou le destin sauvage des Roms de l'Est, Paris, Michalon, 1995, p. 17.

[34].   APM, Câmara Municipal de Ouro Preto (CMOP), códice 47 (Termos de distribuição de devassas - querelas - com procedência de listas das devassas anteriores - 1741-1809), fl. 128.

[35].  Vaux de Foletier 1983, p. 185; cfr. Cervantes, M. de, Novelas ejemplares I, Madrid, Dist. Mateos y M.E. Editores, 1994, La Gitanilla (1613), pp. 31-96.

[36].   Vaux de Foletier 1983, pp. 185-188.

[37].  “Exposto”, IN: Reis, L.M. & Botelho, A.V., Dicionário Histórico Brasil: Colônia e Império, Belo Horizonte, Dimensão, 1998, p. 55.

[38].  No século XIX, acusações de roubo de crianças eram simultaneamente feitas também a índios (Paz, F. Moraes, Na poética da história: a realização da utopia nacional oitocentista,.Curitiba, Ed. da UFPR, 1996, p. 328) e a artistas, saltimbancos e circenses (Duarte 1995, p. 83).

[39].   Duarte 1995, p. 85.

[40].   O Pharol, Juiz de Fora, 17 março 1888. Apud Goodwin Junior, J. W., “Império do Brasil: nesta nação nem todo mundo é cidadão!”, Caderno de Filosofia e Ciências Humanas, Belo Horizonte, ano V, nº 9, out. 1997, p. 32.

[41].   Dornas Filho 1948, p. 158.

[42].  Fraser 1992, p. 1.

 

 
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