RODRIGO
CORRÊA TEIXEIRA
HISTÓRIA
DOS CIGANOS NO BRASIL
Núcleo
de Estudos Ciganos
E-Texto
no. 2
Recife,
2000
INTRODUÇÃO
Os ciganos
Este
livro tenta narrar, na medida do possível, parte da história de um
povo, ou melhor, de um conjunto de comunidades dispersas pelas mais
diversas regiões do Brasil, os assim chamados
“ciganos”. Suas origens são incertas, seus costumes e línguas
variam entre os muitos grupos em que se dividem. As relações entre
estes assim chamados ciganos e os membros das sociedades envolventes,
por terem se diferenciado bastante, no tempo e no espaço, nunca forma
tranqüilas.
À
parte a complexa definição da identidade cigana, a documentação
conhecida indica que sua história no Brasil iniciou em 1574, quando o
cigano João Torres, sua mulher e filhos foram degregados para o Brasil.
Em Minas Gerais, a presença cigana é nitidamente notada a partir de
1718, quando chegam ciganos vindos da Bahia, para onde haviam sido
deportados de Portugal.
Em
Minas Gerais, durante o século XIX, praticamente só se falava de
ciganos quando sua presença inquietava as autoridades. Isto ocorria,
por exemplo, quando eram acusados de roubarem cavalos. Nas poucas vezes
que se escrevia sobre aspectos culturais dos ciganos, não havia
qualquer interesse sobre como eles próprios viam sua cultura. Os
contadores da ordem pública, com os chefes de polícia, os compreendiam
como sendo "perturbadores da ordem", responsáveis pelos mais
hediondos crimes.
Outras
fontes, como viajantes e memoralistas, recorriam aos estereótipos
corriqueiros, como "sujos", "trapaceiros" e
"ladrões". Isto funciona como um indicador: os ciganos eram
raramente considerados por si mesmos, e com freqüência, eram sinônimos
de barbárie, imundice, desonestidade e imoralidade. Assim, a documentação
se detém pouco sobre os ciganos singulares, que tornam-se desprovidos
de existência. Quase sempre incidem sobre "o cigano",
entidade coletiva e abstrata à qual se atribuem as características
estereotipadas.
A
documentação sobre ciganos é escassa e dispersa. Sendo ágrafos, os
ciganos não deixaram registros escritos. Assim, raramente aparecendo
nos documentos, aproximamo-nos deles indiretamente, através de
mediadores, chefes de polícia, clérigos
e viajantes, por exemplo. Nestes testemunhos, a informação
sobre os ciganos é dada por intermédio de um olhar hostil,
constrangedor e estrangeiro.
Os
ciganos nas cidades mineiras estavam em dissonância aos ideais de
civilização e progresso, tão marcantes deste período. São
identificados como elementos incivilizáveis, inúteis à sociedade,
supersticiosos, corruptores dos costumes, vândalos, enfim, uma anomalia
social e racial. Uma vez vistos desta maneira, as autoridades tentavam
controlá-los, no entanto, sem obterem grande eficácia. No final do século
XIX e início do XX, ocorreu o ápice dos confrontos entre a polícia e
os ciganos. Foram as "Correrias de ciganos" que, como veremos
mais adiante, eram movimentações destes em fuga, por estarem sendo
perseguidos pela polícia. Nestas correrias haviam freqüentes
tiroteios, que resultaram em mortos de ambos os lados.
A
fim de adiantarmos algo sobre a percepção das nuances no discurso
sobre os ciganos, iremos dar uma rápida prova disto, analisando duas
definições de ciganos em dicionários. Pierre Bourdieu, acertadamente,
afirma que "o dicionário está cheio de uma certa mitologia política".
No entanto, quando se fala da opinião formada em torno dos ciganos,
deve-se considerar que algumas vezes, eles mesmos contribuíram para a
construção de uma "mitologia". Assim, "em algumas ocasiões,
as autoridades locais e os próprios ciganos produziram por diferentes
razões ideológicas, mitos coincidentes sobre o verdadeiro
cigano."
Primeiramente,
vejamos como o Padre Raphael Bluteau, autor do primeiro dicionário de
Portugal, repercute as preocupações que a Igreja tinha com o
comportamento considerado herege dos Ciganos, no início do século
XVIII:
"Ciganos
– Nome que o vulgo dá a uns homens vagabundos e embusteiros, que se
fingem naturais do Egito e obrigados a peregrinar pelo mundo, sem
assento nem domicílio permanente, como descendentes dos que não
quiseram agasalhar o Divino Infante quando a Virgem Santíssima e S. José
peregrinavam com ele pelo Egito."
O
fato de não empregarem os sacramentos católicos (casamento ou batismo
de crianças, por exemplo), em favor de seus costumes, desafiava a moral
religiosa, que pretendia controlar todas as parcelas da sociedade.
Tomada como afronta a Igreja, as cerimônias que os ciganos faziam a sua
maneira, gerou uma duradoura antipatia do clero. Embora a "feitiçaria"
cigana poucas vezes ia além da prática da buena dicha, ela era
rigorosamente atacada pelos religiosos. O agravante disto, era que uma
vez atingida a Igreja, a coroa Portuguesa também se sentia afetada.
No
século XIX, os ciganos continuaram a serem vistos como um grupo desprezível,
por não se guiarem por preceitos católicos. No entanto, esta visão
foi suavizada, porque a compreensão dos ciganos enquanto raça e grupo
socialmente desclassificado obteve maior importância.
Um
século depois, o dicionário do Padre Blateau passou a ser reeditado
sob a direção do brasileiro Antonio de Moraes Silva, que define os
ciganos da seguinte forma:
"Raça
de gente vagabunda, que diz vem do Egito, e pretende conhecer de futuros
pelas rayas, ou linhas da mão; deste embuste vive, e de trocas, e
baldrocas; ou de dançar, e cantar: vivem em bairro juntos, tem alguns
costumes particulares, e uma espécie de Germania com que se entendem.
(...) Cigano, adj. que engana com arte, subtileza, e bons modos."
As
idéias de trambiqueiros, de divulgarem terem vindo do Egito, e a de
vagabundo, que contém em si também a de nômade, permanecem. Mas as
menções religiosas foram retiradas, e não apenas porque o novo editor
não era um clérigo, mas porque realmente a imagem se transformou.
Continuavam como um grupo criminalizado, mas dá-se ênfase aos seus
aspectos culturais.
Na
consulta de outras fontes, muitos outros adjetivos negativos foram
listados; imorais, sem honra, gananciosos, esbanjadores, sujos etc. Cada
uma destas imagens teve períodos de maior e menor destaque. Além
disto, combinaram-se entre si das mais diversas maneiras, produzindo um
painel extremamente amplo de imagens dos ciganos.
A
história e os ciganos.
Da
simples intenção de se estudar os ciganos em Minas Gerais durante o século
XIX à construção da hipótese principal, foi preciso que o árduo
trabalho de arquivo, em conexão com uma bibliografia sobre o período e
sobre os ciganos, fosse realizado num ir e vir incessante.
Comparando
os restritos testemunhos literários, com os relativamente abundantes
trechos de memórias e relatos de viagens, a série de posturas
municipais, as notícias de jornais, a documentação policial e outras
fontes menos expressivas, conseguiu-se perceber tanto as semelhanças e
diferenças do todo dessa documentação quanto estabelecer referências
mais precisas para as balizas cronológicas.
Primeiramente,
abriram-se duas possibilidades de estudo: a transformação do papel sócio-econômico
dos ciganos e as mudanças na imagem que a sociedade formara deles. E
descartar a perspectiva de um estudo exaustivo do cotidiano cigano, já
que as fontes não propiciavam fazê-lo.
As
datas limites deste estudo são 1808 e 1903. Este período de quase cem
anos justifica-se pela primazia dada às relações entre os ciganos e a
sociedade que os abriga. Isso requisitou uma perspectiva que permitisse
perceber um movimento, relativamente lento, de transformação das
imagens e dos papéis dos ciganos na sociedade. Também a escassez da
documentação exigiu que se estendesse tanto os marcos temporais. Pois
apenas assim foi possível compreender determinados sentidos da
documentação que, se considerada parcialmente e em períodos menores,
não permitiria tal contemplação. A instalação da Corte Portuguesa
no Rio de Janeiro em 1808, junto com as suas conseqüências imediatas
(como a abertura dos portos às nações amigas ¾
leia-se Inglaterra) e as muitas mudanças profundas na política,
economia e sociedade (principalmente, a interiorização da metrópole),
proporcionou a ascensão sócio-econômica dos ciganos, principalmente
dos comerciantes de escravos, no Rio. Os ciganos, em Minas Gerais,
viveram um momento de expansão desse tipo de comércio, embora não
tivessem gozado do mesmo prestígio e riqueza que seus congêneres
cariocas.
Em
1798, a população escrava representa 48,7% do total populacional.
Isto dá uma idéia da importância do mercado escravista no Brasil.
Aproveitando-se do aquecimento econômico, atrelado ao estrondoso
crescimento populacional vivido pela cidade do Rio de Janeiro,
os ciganos, estabelecidos de forma concentrada no Campo de Santana,
aproveitaram-se do espaço desocupado no mercado de escravos de segunda
mão, que atendia a proprietários de plantéis menores.
Além
dos mercados na rua do Valongo, os ciganos comerciaram escravos por várias
partes do interior do país; em Minas Gerais, podemos confirmar que
tiveram um papel importante nesse comércio. Isto proporcionou uma maior
aceitação e mesmo valorização social dos ciganos, já que exerciam
uma atividade reconhecida como útil por grande parte da população.
Alguns ciganos tornaram-se ilustres, patrocinando até festividades na
Corte. Esse momento sui generis da história cigana no Brasil coincidiu com a ascensão
do movimento romântico na Europa que repercutia no Brasil, com a visão
de que o cigano era a encarnação dos ideais da vida livre e integrada
a natureza. Além disso, houve uma idealização da mulher cigana, agora
não mais uma miserável e desonesta quiromante, mas uma mulher forte,
sensual e, ainda que vingadora e passional, fascinante.
Em
fins da década de 1820, viram esse breve momento de prestígio começar
a ruir, com os movimentos políticos pela Independência. Somaram-se a
isso, a partir de meados do oitocentos, os golpes fatais sobre o
escravismo (1850, 1871 e que culminaram com 1888).
O
impulso que a política de construção de uma identidade nacional teve,
a partir da Independência, gerou um cerceamento cada vez maior tanto
dos deslocamentos quanto da própria identidade dos ciganos. Tal fato se
deu pelo crescimento de importância da idéia de modernização e
civilização dos costumes junto às elites brasileiras, que
"pretenderam estabelecer um reordenamento físico das cidades,
higienizar as vias públicas e excluir dos centros urbanos todos os
indivíduos que não se adequaram à nova ordem."
Embora "civilização" e "progresso" fossem
expressões fundamentais na cultura européia desde os fins dos
setecentos, no Brasil, foi no transcurso do século XIX que se almejaram
tais metas, cada vez mais. Desse momento em diante, intensificou-se a
repressão às populações marginalizadas, entre elas os ciganos. Eles
tanto não se enquadravam na nova ordem como, também, segundo a
sociedade acreditava, a ameaçavam. Assim, a segregação ou expulsão
dos ciganos da cidade passa a integrar o projeto "civilizador"
das autoridades imperiais.
A
condenação pública do escravismo cada vez mais acentuada e as
respectivas leis restritivas debilitaram o comércio escravista e os
ciganos passaram a se concentrar nas transações de cavalos e mulas. Em
1872, a população escrava era apenas de 15,2%, muito distante dos
quase 50% de sete décadas antes.
O comércio de escravos foi sendo visto, no transcurso da segunda metade
do século XIX, cada vez mais como um ofício degradante e vil. Após a
abolição da escravatura, em 1888, os poucos ciganos que ainda
insistiam neste comércio, perderam sua principal fonte de renda e se
tornaram miseráveis (como tantos outros ciganos na época) o que os
levou a tentar se adaptar à nova conjuntura sócio-econômica.
Dos
fins do período Imperial até os primeiros anos depois de instalada a
República, ocorreram inúmeras diligências policiais no encalço de
bandos ciganos em Minas Gerais, que resultaram em sangrentos confrontos.
Os anos de maior destaque dessas fugas e perseguições relatadas na
imprensa e nos relatórios policiais, foram 1892 e 1897. Depois de 1903,
no entanto, foi interrompida a enorme preocupação policial com os
ciganos, desaparecendo as referências documentais sobre correrias
ciganas. Passados alguns anos, eventualmente, houve problemas entre
ciganos e polícia (1909, 1912, 1916 e 1917).
Mas não houve qualquer continuidade das "Correrias de
Ciganos" ocorridas até 1903, o que justifica o marco cronológico
final.
Não
se conseguiu identificar, na lacuna que se seguiu (pela ausência de
acontecimentos) o fim das correrias. Nem o contexto histórico forneceu
indícios que pudessem sustentar qualquer hipótese viável para o término
desses eventos. No entanto, hipoteticamente, pode-se considerar que o
grande afluxo de imigrantes tenha polarizado, cada vez mais, as preocupações
das autoridades, que tentavam estabelecer planos de assimilação para
eles. Com isto, tendo um problema demograficamente mais importante para
resolver, o controle sobre os ciganos pode ter se tornado frágil. Também,
como hipótese, outro fator pode ter atuado: os ciganos teriam,
gradativamente, se reacomodado econômica e socialmente, estabilizando
seus negócios e necessitando de realizar menos movimentações, que
tanto preocupavam as autoridades policiais.
Denominações
e diversidade
Desde
o século XV a palavra “cigano” é utilizada como um insulto.
O termo aparece registrado pela primeira vez em português em A
farsa das ciganas de Gil Vicente, provavelmente em 1521. Nesta obra
os ciganos são considerados como originários da Grécia.
No século XIX, no Brasil, não se fala nem que são originários da Grécia
nem da Índia. Apesar de ganhar cada vez mais força, na Europa, a
explicação de que os ciganos teriam vindo do subcontinente indiano. No
entanto, há menções sobre ciganos, no Brasil, em que eles se diziam
descendentes de antigos egípcios:
"No
Brasil os ciganos afirmam também que procedem do Egito; e contam a
velha lenda de que, por terem recusado hospedagem à Virgem Maria quando
ela fugia, peregrinam sobre a terra dispersos, sem pátria, por todos os
tempos."
Algumas
vezes são chamados de turcos. Notícias de O
Pharol, de Juiz de Fora, referem-se a esses "turcos"
pedindo esmolas e impingindo bugigangas às pessoas.
Há ainda uma "reclamação vinda de Porto das Flores sobre a
presença de 'turcos' naquela localidade."
Em
geral, nas posturas municipais que tratam de ciganos, em primeiro lugar,
eles são associados às "pessoas desconhecidas e suspeitas."
Em seguida, são definidos como sendo "os que são por taes
havidos", ou seja, reconhecidos socialmente como ciganos.
Reconhecimento dado porque eles "costumão a fazer freqüentes
trocas e compras de animaes, e vendas de escravos, e não são moradores
no Termo, ou não há pessoa capaz, que os conheça, e abone."
Assim, eram relacionados, a
priori, ao comércio de mercadorias roubadas (escravos, animais e
objetos variados), a não ser que houvesse alguém que afiançasse sua
honestidade. A idéia que orientava este prejulgamento, era a de que
apenas seria confiável o indivíduo com residência fixa. Pois o nômade
não tinha morador que o
conhecesse e o abonasse.
O
historiador traz na mente um cigano típico (um protótipo), mas que
necessita ser desmontado pelas evidências de grupos ciganos na
diversidade de situações em que se encontram. Se for sensível,
compreenderá que, antes de tudo, deve desconstruir o modelo sobre os
genericamente chamados ciganos. Uma história de ciganos deve ser feita
de muitas exceções, impossibilidades, contradições, incongruências,
contra-sensos. Essa perspectiva tem um cigano que extrapola a coerência
que a escrita tradicional do historiador exige; as condições espaciais
e temporais individualizam muito os ciganos; a história dos ciganos é
a história de um mosaico étnico. Este cigano - total abstração - é
como a repetição infinita de um modelo ou motivo que se realiza através
de variantes ilimitadas.
Nas
últimas décadas, pesquisadores, ciganos ou não, consagraram a distinção
dos ciganos, no Ocidente, em três grandes grupos. O grupo Rom,
demograficamente majoritário, é o que está distribuído por um número
maior de países. É dividido em vários subgrupos (natsia,
literalmente, nação ou povo), com denominações próprias, como os
Kalderash, Matchuara, Lovara e Tchurara. Teve sua história
profundamente vinculada à Europa Central e aos Balcãs, de onde
migraram a partir do século XIX para o leste da Europa e para a América.
Muitas organizações ciganas e vários ciganólogos têm tentado
substituir, no léxico, Ciganos por Rom. A este processo tem-se
denominado romanização, e tem a intenção de conferir legitimidade a
estes grupos como sendo o dos "verdadeiros ciganos." Há
ainda, pelo menos, duas derivações dessa política. A primeira, a do
subgrupo Kalderash, autoproclamada a mais "autêntica" e
"nobre" entre as comunidades ciganas. A segunda é a do grupo
lingüístico vlax romani, considerado, por muitos pesquisadores, como
portador da "verdadeira língua cigana".
Os
Sinti, também chamados Manouch, falam a língua sintó e são
numericamente expressivos na Alemanha, Itália e França. No Brasil,
nunca foi feita uma pesquisa apurada sobre sua presença. Provavelmente,
os primeiros Sinti chegaram ao país também durante o século XIX,
vindos dos mesmos países europeus já mencionados.
Os
Calon, cuja língua é o caló, são ciganos que se diferenciaram
culturalmente após um prolongado contato com os povos ibéricos. Da Península
Ibérica, onde ainda são numerosos, migraram para outros países
europeus e da América. Foi de Portugal que vieram para o Brasil, onde são
o grupo mais numeroso. Embora os Calon tenham sido pouco estudados,
acredita-se que não haja entre eles algo que se assemelhe à complexa
subdivisão dos Rom.
Historicizar
os ciganos nos remete a compreendê-los na sua pluralidade e no seu
excepcionalismo. Há uma generalidade reducionista ao se chamar de
ciganos indivíduos e/ou comunidades com diferenças significativas
entre si. Precisa-se, assim, tomar cuidado ao denominar
"cigana" a identidade de grupos que chegaram ao Brasil
deportados de Portugal, desde o século XVI e, ao mesmo tempo, a
identidade de famílias oriundas dos Balcãs e da Europa Central, que
chegaram ao país no final do século XIX. Trata-se de uma enganosa
generalização, sem dúvida, pois que o espaço e o tempo modificam
sensivelmente a constituição desses "sujeitos".
Assim,
um cigano Calon e um cigano
Rom só possuem predicado idêntico no domínio da linguagem, quando
emitimos proposições como: "Este Calon é cigano" ou
"Aquele Rom é cigano". Mas a percepção atenta das
singularidades nega, taxativamente, a suposta identidade dos nomes e dos
predicados.
Em
contraposição a isso tudo, os ciganos pensam em si próprios de forma
fragmentária. Cada cigano tem uma forte identificação com seu grupo
familiar ou com as famílias que têm o mesmo ofício. Mas não existe
uma identidade única entre todos os ciganos.
Entretanto,
apesar de não corresponder aos atributos percebidos ao nível da
singularidade dos indivíduos, o tempo cigano é capaz de nos levar a um
reconhecimento ou a uma diferenciação mínima. Por exemplo, não se
confundia um cigano com um índio ou um mascate libanês.
Quando
alguém usa o predicado "cigano" para qualquer "sigano"
ou "pessoa assiganada" (como aparece em documentos coloniais),
está querendo propor que este predicado representa uma relação de
semelhança entre identidades. Isso é aceitável. Mas não concordamos
com a concepção ingênua de que esse predicado estivesse contendo uma
correspondência perfeita com os seus referentes.
No
domínio dos ciganos, não existem senão múltiplas identidades. Daí
que o termo cigano não designa as comunidades por nomes que elas próprias
dão para si. Ele designa, isto sim, uma abstrata imbricação de
comunidades ciganas. A diferença é muito grande, pois na realidade não
existem ciganos, mas sim diversas comunidades (historicamente
diferenciadas) chamadas de ciganas, mantendo relações de semelhança
e/ou dissemelhança umas com as outras.
O
termo cigano traz consigo uma série de inquietudes semânticas, ideológicas,
antropológicas etc. Uma vez diagnosticada a complexidade e as ambigüidades
inerentes à referida expressão, ao dissertarmos, torna-se impossível
termos pretensões de elaborar sínteses conclusivas. Pois o complexo de
certezas sobre o qual se apoia essa noção é bastante instável.
A
dispersão e o nomadismo, que tiveram início há mais de dez séculos,
propiciou tantos contatos interétnicos e adaptações às condições
espaço-temporais, que aplicar qualquer termo para o conjunto das
comunidades ditas ciganas é um tanto arriscado.
O
que nos parece claro é que os ciganos não são um grupo religioso ou
uma nacionalidade. Além do mais, preferiu-se não chamar os ciganos de
povo, pois também esta expressão tem significados pouco precisos e
muito ambíguos.
Na
falta de um vocábulo que designe com propriedade o conjunto completo de
todas as comunidades ciganas, adotar-se-á a expressão
"ciganos", cujo sentido é aceito na sua generalidade, para
referir-se a todos os indivíduos assim chamados. Embora se reconheça
que tal uso nunca tenha tido plena legitimidade no seio das várias
comunidades analisadas.
A
categoria "cigano" opera inúmeras descontinuidades, enquanto
a narrativa do historiador necessita de conceitos que expressem um mínimo
de continuidade. Ao contrário, estar-se-ia a cada momento escrevendo a
história de um novo objeto de estudo.
Os
segmentos do mosaico existem, sobretudo, no domínio das descrições ou
das teorias ciganológicas, influenciada pela insistência de classificação
neopositivista. Ora, o que temos são grupos e suas variantes,
decorrentes de combinações diversas, condicionadas por tempos e espaços
particulares. Assim, os ciganos são múltiplos e unos.
Nenhum
cigano conhece todos os detalhes da identidade em que está inserido.
Tal como não conhece todo o espaço cultural que o comporta, não
sabendo, pois, ler todo o seu "mapa cultural". Toda cultura,
afinal, oferece uma margem de manobra para os seus membros. Há aspectos
da identidade cigana compartilhados por todos os ciganos, outros que são
particulares de cada subgrupo e ainda outros selecionados pelo indivíduo
num leque de opções. Cada cigano é portador de um conjunto singular
de elementos dessa identidade, embora, não haja uma noção de
individualidade tal como no mundo ocidental.
Toda
história dos ciganos é, na verdade, uma viagem nas línguas, nas estéticas,
nas políticas antivagabundos e antiartistas, nas religiões, nas concepções
de mundo, com os quais vários grupos ciganos, sucessiva e
contraditoriamente, tiveram contato. Nisso a universalidade dos ciganos
se manifesta.
Nesta
história dos ciganos a diferença não pode se dissipar. Para ser
honesta, ela deve mostrar muitas precauções para não condensar num
padrão as particularidades de grupos variados (em momentos e espaços
distintos), porque assim o discurso perderia informação, e a história,
o sentido. Não se pode também confundir os ciganos com os discursos
que os descrevem, ainda que se reconheça a existência de uma conexão
entre eles.
Dito
isto, ressalta-se que as diferenças
e a diversidade entre os ciganos não impedia que houvesse
solidariedade. Os ciganos faziam da própria fluidez, da flexibilidade,
de sua identidade um fator de fortalecimento desta solidariedade. Pois
rearranjavam sua identidade de acordo com suas necessidades, por meio de
alianças matrimoniais ou pelas festas que envolviam comunidades
distintas. Além disto, colocadas em oposição aos não-ciganos, as várias
comunidades se sentiam irmanadas.
As
narrativas históricas sobre os ciganos, muitas vezes, perdem-se pela
generalização exagerada (fala-se dos "ciganos" como tendo
apenas uma única cultura); apenas umas poucas linhas sustentam o caráter
diferencial de cada comunidade cigana estudada. E quando os autores se
cansam das individualidades, esboçam a unidade (frágil e talvez
inexistente) de múltiplos ciganos. Tanto o historiador quanto o ciganólogo
escrevem como se todos os ciganos fossem apenas um só (o "cigano típico"
ou o "cigano genérico").
Portanto,
resta desconstruir essa unidade discursiva sobre os ciganos, pelo estudo
das particularidades do caso em questão, tentando perceber as visões
positivas e negativas que orientaram as ações da sociedade mineira
frente aos ciganos. E também, como os ciganos flexibilizaram sua
identidade diante das transformações conjunturais pelas quais
passaram.
População cigana no Brasil.
Quase
nada sabemos sobre os ciganos brasileiros na atualidade. As pesquisas até
agora realizadas no Brasil provam a existência de ciganos de pelo menos
dois grupos diferentes: os Calon
que migraram para o país, voluntária- ou compulsoriamente, já a
partir do Século XVI, e os Rom
que, ao que tudo indica, migraram para o Brasil somente a partir de
meados do Século XIX. Nenhuma publicação trata de ciganos Sinti,
mas que com certeza também devem ter migrado para o Brasil, junto com
os colonos alemães e italianos, a partir do final do Século XIX.
Segundo dados oficiais, de 1819 a 1959 migraram para o Brasil 5,3 milhões
de europeus, dos quais 1,7 milhão portugueses, 1,6 milhão italianos,
694 mil espanhois, 257 mil alemães e 125 mil russos.
No desembarque registrava-se apenas a nacionalidade do imigrante, e não
a sua identidade étnica. É mais do que provável que no meio dos quase
dois milhões de imigrantes italianos e alemães também tenham vindo
ciganos Sinti, principalmente durante e após a II Guerra Mundial.
Segundo
Vilas Boas da Mota, os Rom brasileiros pertencem aos seguintes
sub-grupos: “Kalderash, que
se consideram nobres e, por conseguinte, os verdadeiros guardiães da
identidade cultural cigana; os Macwaia,
muito propensos à sedentarização ... e, por isto mesmo, inclinados à
perda da identidade étnica... ; os Rudari,
provenientes sobretudo da Romênia, localizam-se em São Paulo e no Rio
de Janeiro e com bom nível econômico-financeiro; os Horahané,
oriundos da Turquia e da Grécia, são renomados vendedores ambulantes;
os Lovara, em franco recesso
cultural, fazem-se passar por emigrantes italianos”.
Nenhum autor brasileiro faz referência a sub-grupos Calon com denominações
específicas.
Também
não existem dados sobre o número de ciganos no Brasil atual, nem sobre
a sua distribuição geográfica. Os censos demográficos
brasileiros nada informam sobre ciganos ou indivíduos que são
identificados ou se auto-identificam como tais, e até hoje ninguém se
interessou ou foi capaz de saber, nem sequer aproximadamente, quantos
ciganos vivem num determinado Estado, e menos ainda no Brasil todo.
Dispomos de dados demográficos detalhados, bastante confiáveis e
constantemente atualizados sobre quase todos os povos indígenas
no Brasil, mas nada sabemos sobre a demografia das minorias ciganas.
Apesar
disto, Costa Pereira escreveu em 1985: “Pode-se afirmar que hoje há
cerca de 150.000 ciganos espalhados por todo o Brasil, nômades ou
semi-sedentários. Isto sem nos referirmos aos que negam a sua
ciganidade, o que triplicaria este número”. A autora não informa
como ela conseguiu contar estes 150.000 ciganos, e menos ainda como
contou os cerca de 300.000 ciganos brasileiros que não mais se
identificam como ciganos, ou seja, ciganos invisíveis, ou melhor ainda,
do ponto de vista antropológico, ex-ciganos. Na realidade, estes números
nem sequer são estimativas, mas mera fantasia, uma miragem. Em 1990, a
mesma Costa Pereira, informando basear-se em dados da Romani
Union de Madrid (mas sem citar a fonte bibliográfica), afirmou
que a população cigana brasileira era de cerca de 800.000 pessoas,
mas dois anos depois, com supostos dados da Unesco, sem maiores explicações
(e mais uma vez sem citar qualquer fonte bibliográfica), diminuiu
este número para 500.000.
O mais grave é que estes dados foram publicados numa revista italiana,
pelo que os estrangeiros podem pensar que os brasileiros, em apenas dois
anos, eliminaram uns 300.000 ciganos. Um verdadeiro genocício, um novo
holocausto brasileiro, e que obviamente não ocorreu!
Todos
estes números, no entanto, são mera fantasia, são apenas delírios
psicodélicos, porque nenhum ciganólogo, e nenhuma organização cigana
ou pró-cigana de qualquer parte do Mundo, e menos ainda a Unesco, tem
autoridade alguma para divulgar estimativas populacionais ciganas
seja de que país for, a não ser que estas estimativas sejam baseadas
em dados confiáveis fornecidos por cientistas ou instituições
de pesquisa daquele país. E no Brasil, até hoje, nem o Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), responsável pelos censos
demográficos oficiais, nem qualquer outra instituição de pesquisa
demográfica, nem qualquer Organização Não-Governamen-tal (ONG), nem
cientista algum tem feito um levantamento sistemático e confiável
da população cigana.
Em
resumo: nada, mas absolutamente nada, sabemos sobre o número de ciganos
nômades, semi-nômades e sedentários atualmente existentes no Brasil,
nem sobre sua distribuição geográfica.
Capítulo
1.
HISTÓRIA
GERAL DOS CIGANOS NO BRASIL.
Ciganos
no Brasil: Séculos XVII e XVIII.
Com
as fontes históricas conhecidas até agora, é praticamente impossível
procurar exatidão em quaisquer dados histórico-demográ-ficos sobre os
ciganos no Brasil. As informações sobre os ciganos nos Séculos XVI e
XVII são muito limitadas, embora sejam conhecidos documentos relativos
às políticas anti-ciganas portuguesas.
Essa
documentação referente ao Brasil torna-se menos escassa somente a
partir do Século XVIII. Isto porque a partir do reinado de Dom João V,
que durou de 1706 a 1750, a perseguição aos ciganos portugueses se
acentuou e dezenas deles foram degredadas para as colônias
ultramarinas, inclusive para o Brasil. No entanto, é bastante difícil,
praticamente impossível, determinar quantos ciganos vieram para o
Brasil até 1822. Segundo Donovan: "Enquanto a Gazeta de Lisboa menciona grandes grupos de deportados, nenhuma
lista oficial de criminosos exilados tem sido trazida à luz. Assim o número
de indivíduos e famílias embarcadas nos cargueiros anualmente, o
volume daqueles transportados, permanece desconhecido."
Inclusive o número de ciganos deportados, que certamente constavam
nestas listas de criminosos exilados, e eventualmente os motivos dessas
deportações.
Mas
não há dúvida alguma que os primeiros ciganos que desembarcaram no
Brasil foram oriundos de Portugal, e que estes não vieram
voluntariamente, mas expulsos daquele país. Foi o que parece ter
acontecido, por exemplo, já em 1574, com um certo João de Torres e sua
mulher Angelina que foram presos apenas pelo fato de serem ciganos.
Inicialmente João foi condenado às galés e Angelina deveria deixar o
país dentro de dez dias, levando seus filhos. Alegando, no entanto, que
“era fraco e quebrado, e não era para servir em coisa de mar e muito
pobre, que não tinha nada de seu”, João pediu para poder sair do
Reino, ou então que pudesse ir para o Brasil para sempre.
O
“pobre” cigano João de Torres deve ter pago um bom suborno porque
logo, em poucos dias, seu pedido foi deferido e a pena foi mudada para
“cinco anos para o Brasil, onde levará sua mulher e filhos”.
O número de filhos não é mencionado, mas devem ter sido alguns
poucos, talvez dois ou três, porque certamente não iriam deportar
gratuitamente para o Brasil um (auto-declarado) miserável e inútil
cigano João, sua mulher e uns dez ou quinze filhos.
Por
causa deste documento João de Torres sempre é citado como o primeiro
cigano a entrar no Brasil. Não se sabe, porém, se ele realmente
embarcou (ele pode ter pago outros subornos para se livrar disto), se
“fraco e quebrado” aguentou a longa viagem marítima, na qual
certamente não teve tratamento de primeira classe, ou se chegou ao seu
destino, nem aonde desembarcou, nem quanto tempo ficou no Brasil, nem se
depois dos cinco anos voltou a Portugal, algo pouco provável. Ou seja,
nada, mas absolutamente nada se sabe sobre o destino dele e de sua família.
É possível que nunca tenha chegado ao Brasil. De qualquer forma, se
ele realmente embarcou, veio acompanhado apenas pela mulher e alguns
poucos filhos e não “liderando um bando de ciganos” ou “chefiando
numerosas famílias que o acompanhavam”, como erroneamente informam
alguns autores, que preferiram usar a fantasia em vez de ler o documento
original.
A
deportação de ciganos portugueses para o Brasil, ao que tudo indica, só
começou mesmo a partir de 1686. Dois documentos portugueses daquele ano
informam que os ciganos deviam ser degredados também para o Maranhão.
Antes eram degredados somente para as colônias africanas.
A
escolha da Coroa pela capitania do Maranhão visava pelo menos a dois
objetivos. Primeiro, colocar os ciganos "bastante afastados das áreas
brasileiras de mineração e de agricultura assim como longes dos
principais portos da colônia, do Rio de Janeiro a Salvador."
Segundo, esperava-se que os ciganos ajudassem a ocupar extensas áreas
dos sertões nordestinos, então ainda ocupadas por índios. Ainda que
perigosos, preferia-se os ciganos aos índios. Não foram ainda
descobertos documentos com dados sobre o número de ciganos deportados
para o Brasil nesta época, para quais capitanias e por quais motivos.
Mas
sabemos que também outras capitanias receberam ciganos, principalmente
a partir de 1718, outro marco na política portuguesa de deportação de
ciganos. Segundo Donovan:
"Como
uma forma de expor publicamente sua determinação João V ordenou a
deportação imediata de uma pequena comunidade cigana consistindo de
cinquenta homens, quarenta e uma mulheres e quarenta e três crianças,
então detidos na prisão municipal de Limoeiro. Seu banimento foi um
procedimento cuidadosamente planejado, servindo como um ato de Estado. A
justiça do início do período moderno era praticada de uma forma
deliberadamente cerimonial. Oficiais publicizavam o evento antes através
de anunciamentos boca a boca ou públicos. Nesse caso o embarque do
navio brasileiro, que sempre atraía grandes multidões, forneceu o
palco. A visão dos ciganos partindo acorrentados demonstrava para os
espectadores o esforço da coroa pelo controle social. Isso é a publicação
dos banimentos subsequentes assinalavam, sem dúvida, que a assimilação
não era mais uma opção dos ciganos para escapar de seu status
criminoso."
Em
15 de abril daquele ano, foi expedida comunicação de Lisboa para o
governador de Pernambuco, apoiando-se no decreto já mencionado de Sua
Majestade. Informa-se o embarque de ciganos para aquela capitania, mas
parte dos quais deveria ser remetida depois para o Ceará/Brasil, e
outra parte para Angola/África. Também devia-se tomar cuidado para que
nenhum cigano ficasse em Pernambuco, e aos governadores do Ceará e de
Angola recomendou-se que não deixassem os ciganos retornar a Portugal,
nem permitissem o uso de sua língua, chamada também de geringonça.
Apesar
disto, muitos ciganos permaneceram em Pernambuco, entre eles alguns que
solicitaram licença de permanência, ou então permissão de mudar-se
para outras províncias.
Pereira da Costa informa que:
“(.....)
ficaram na capitania [de Pernambuco] vários ciganos, aos quais concedeu
o vice-rei, por ordem de 14 de dezembro de 1720, que eles fossem
estabelecer a sua moradia em Sergipe del-Rei. Permanecendo em Pernambuco
avultado número de ciganos, apesar das ordens em contrário, representa
contra eles a câmara de Olinda em 16 de dezembro de 1723, dizendo na
carta que dirigiu ao soberano, que viviam eles espalhados pela
capitania, cometendo toda a sorte de crimes, principalmente de furtos e
assassinatos, e em tal escala, que não se podia mais tolerá-los,
concluindo que S. Majestade houvesse de os mandar para o Ceará, onde
poderiam prestar algum serviço na conquista do gentio bravio, e ficar
assim o povo com algum sossêgo”.
Também
em 1718, foram enviadas de Portugal para a Bahia "diversas famílias
de ciganos."
Por isto, Dom João V ordenou ao vice-rei, de forma semelhante ao que já
havia feito ao governador de Pernambuco, o seguinte:
"Eu,
Dom João, pela Graça de Deus, etc., faço saber a V. Mercê que me
aprouve banir para essa cidade vários ciganos - homens, mulheres e
crianças - devido ao seu
escandaloso procedimento neste reino. Tiveram ordem de seguir em
diversos navios destinados a esse porto, e, tendo eu proibido, por lei
recente, o uso de sua língua habitual, ordeno a V. Mercê que cumpra
essa lei sob ameaça de penalidades, não permitindo que ensinem dita língua
a seus filhos, de maneira que daqui por diante o seu uso desapareça."
Os
documentos históricos comprovam que a então comunidade cigana em
Salvador apresentou um grande crescimento demográfico e econômico.
A primeira capital colonial brasileira tornou-se também a mais
importante cidade para os ciganos do Brasil. Consta que em Salvador os
ciganos inicialmente foram alojados no bairro da Mouraria, e
posteriormente também no bairro de Santo Antonio d’além do Carmo”.
De Salvador saíram muitos ciganos rumo a região das minas (hoje Minas
Gerais), causando grande incômodo às autoridades.
Sem
indicarem as fontes nas quais se basearam, historiadores como Augusto de
Lima Júnior e João Dornas Filho apontam a presença de ciganos nas
Minas de Ouro (hoje Minas Gerais) já nos fins do século XVII. Lima Júnior
acredita que os ciganos chegaram a Minas logo após o descobrimento do
ouro: "os judeus e cristãos-novos, bandos imensos de ciganos,
atiraram-se para as terras ultramarinas, buscando a fortuna e a redenção
na largueza dos sertões infindos, onde dificilmente chegariam as
importunações do Santo Ofício."
Na
verdade, sabe-se que a Inquisição se preocupou pouco com os ciganos. O
autor ainda informa sobre a preocupação das autoridades com eles.
Descrevendo a alarmante escassez de víveres de 1700 em Ouro Preto e
arredores, comenta que, naquele ambiente de desespero e desolação,
"os negros escravos e os bandos de ciganos bem armados salteavam os
vivos e saqueavam os mortos."
Mais adiante, quando o autor menciona "a confusão e a desordem
reinantes nessas Minas Gerais recém-nascidas", acrescenta que
"bandos de ciganos ágeis e aguerridos percorriam as estradas
entregues à mais solta rapina."
Para esses supostos crimes ciganos, Lima Júnior também não
apresenta nenhuma fonte.
João
Dornas Filho, sem apresentar qualquer documento, afirma que os ciganos
chegaram a Minas Gerais possivelmente penetrando "pelo Rio São
Francisco com as primeiras entradas baianas."
Mesmo tendo-se dúvida quanto à presença de ciganos em Minas Gerais no
Século XVII, ou mesmo antes, quando das primeiras entradas baianas,
parece bem provável que a penetração tenha se dado pelo vale do São
Francisco. Pela extensão e características físicas do território,
ainda que Minas dispusesse de inúmeras estradas e caminhos, eram os
vales fluviais que cumpriam a função de ser a principal forma de
adentrar o sertão.
As
afirmações dos historiadores acima são duvidosas, porque não citam
fontes documentais. Certamente alguns ciganos chegaram até as Minas de
Ouro em seus primeiros tempos.
Mas foi somente a partir de 1718 que diversas famílias ciganas vieram
juntas para o território mineiro.
A presença comprovada de ciganos em Minas Gerais é registrada desde o
início do Século XVIII, ao
que tudo indica contrariando as intenções originais da Coroa
portuguesa.
Dom
Lourenço de Almeida, num bando de 15 de julho de 1723, fazendo uma
variação do decreto de 1718, recorda que El Rey havia remetido ciganos
ao Brasil, apenas para que seguissem em direção a Angola, e não para
que ficassem no continente americano. Acrescentando, reclama: "por
ser hua gente muito prejudicial aos seos povos porque não vivem se não
dos roubos q. fasem, cometendo exacrandos insultos, e porque pelo
descuido que houve el algua das praças da Marinha vieram para estas
Minas vartas familias de ciganos, onde podem fazer mayores roubos q. em
outra nenhua parte (...)."
Um
documento de 1723, de Vila Rica (hoje Ouro Preto) informa que “pelo
descuido que houve em alguma das praças da Marinha vieram para estas
Minas várias famílias de ciganos”, e manda prender todos eles e
remeter para o Rio de Janeiro, de onde então seriam deportados para
Angola. Não somente manda prender os ciganos, que o documento chama de
“ladrões salteadores”, mas também seriam presos e degredados para
Angola todos aqueles que se encontrarem em sua companhia ou lhes
hospedarem em suas casas ou fazendas. Além disto, qualquer cidadão
podia prender ciganos e entregá-los na cadéia mais próxima, podendo a
pessoa tomar-lhes todos os bens, ouro, roupas ou cavalos.
Porém,
em 1737 o governador de Minas Gerais adverte: “Pelo que toca a ciganos
as queixas que há são só por serem ciganos, sem que se aponte culpa
individual (.....) tenho
recomendado que prendam e me remetam os que fizerem furtos”, ou seja,
não qualquer cigano apenas pelo fato de ser cigano.
E
como tudo que é ruim só podia ser de origem cigana, houve quem
suspeitasse que a epidemia de varíola que naquele ano grassava em Minas
Gerais tinha sido trazido pelos ciganos!
Dornas
Filho acrescenta longas narrações sobre a ação de salteadores,
principalmente na Serra da Mantiqueira, até o final do Século XVIII,
citando inclusive cartas de Tiradentes que, segundo ele, “comandou por
mais de uma vez a tropa de assalto ao reduto desses malfeitores,
prendendo e matando ciganos às dúzias”.
Ou seja, o heroi mineiro e nacional Tiradentes assassinou
covardamente também algumas dezenas de ciganos, quase todos eles
certamente desarmados e trabalhadores honestos, mas um genocídio que na
época era motivo até de recompensas financeiras e honrarias especiais.
O
leitor fica com a impressão que em todos estes casos citados por Dornas
Filho se trata de ciganos, porém a maioria dos documentos não faz
absolutamente nenhuma referência a ciganos, mas apenas a bandidos em
geral ou, quando muito, fala de “ciganos e outros malfeitores”.
Alguns podem até ter sido ciganos, mas com certeza a quase totalidade
destes bandidos, assaltantes e assassinos da época eram portugueses,
mineiros ou brasileiros, não-ciganos. No entanto, sempre quando algo de
ruim acontecia e um cigano por acaso estivesse na redondeza, já se
sabia a quem atribuir a culpa.
Em
1726 há notícia de ciganos em São Paulo, quando foram solicitadas
medidas contra ciganos que apareceram na cidade e que eram
“prejudiciais a este povo porque andavam com jogos e outras mais
perturbações”, pelo que tiveram que abandonar a cidade dentro de 24
horas, sob pena de serem presos. E em 1760 os vereadores de São Paulo
resolveram “que por ser notório que nesta cidade se acha um bando de
ciganos composto de homens, mulheres e filhos sendo público terem sido
expulsos de Minas Gerais por serem perniciosos naquelas povoações e
assim se vieram acolher a esta cidade aonde já vão havendo algumas
queixas (....)”.
Também
estes receberam um prazo de 24 horas para sair da cidade.
Ou seja, trata-se da velha política de “mantenho-os em movimento”:
Minas Gerais expulsa seus ciganos para São Paulo, que os expulsa para o
Rio de Janeiro, que os expulsa para Espírito Santo, que os expulsa para
a Bahia, de onde são expulsos para Minas Gerais, etc. Ou seja, o melhor
lugar para os ciganos sempre é no bairro, no município ou no Estado
vizinho; ou então no país vizinho ou num país bem distante. Um alvará
de 1760 informa:
“Eu
El Rei faço saber aos que este Alvará de Lei virem que sendo me
presente que os ciganos que deste Reino tem sido degredados para o
Estado do Brasil vivem tanto à disposição de sua vontade que usando
dos seus prejudiciais costumes com total infração das minhas Leis,
causam intolerável incômodo aos moradores, cometendo continuados
furtos de cavalos, e escravos, e fazendo-se formidáveis por andarem
sempre encorporados, e carregados de armas de fogo pelas estradas, onde
com declarada violência praticam mais a seu salvo os seus
perniciosissimos procedimentos; considerando que assim, para sossego público,
como para correção de gente tão inútil e mal educada se faz preciso
obrigá-los pelos termos mais fortes e eficazes a tomar vida civil, sou
servido ordenar que os rapazes de pequena idade filhos dos ditos ciganos
se entreguem judicialmente a Mestres, que lhes ensinem os ofícios e
artes mecânicas, aos adultos se lhes assente praça de soldados, e por
algum tempo se repartam pelos presídios de sorte que nunca estejam
muitos juntos, em um mesmo presídio, ou se façam trabalhar nas obras públicas
pagando-lhes o seu justo salário, proibindo-se a todos poderem
comerciar em bestas e escravos e andarem em ranchos; que vivam em
bairros separados, nem todos juntos, e lhes não seja permitido trazerem
armas, não só as que pelas minhas leis são proibidas, que de nenhuma
maneira se lhes consentirão, nem ainda nas viagens, mas também aquelas
que lhes poderão servir de adorno. E que as mulheres vivam recolhidas e
se ocupem naqueles mesmos exercícios de que usam as do país. E hei por
bem que pela mais leve transgressão do que neste alvará ordeno, o que
for compreendido, nela seja degredado por toda a vida para a ilha de São
Thomé, ou do Príncipe, sem mais ordem e figura de juizo..... ”.
Ao
que Oliveira China acrescenta: “A parte curiosa desse documento é a
que nos revela que em nossas plagas a ‘atividade’ desses nômades não
se limitou ao furto de animais, na prática do qual, como é sabido, são
useiros e vezeiros; ela foi além, pois estendeu-se também ao furto ou
roubo de escravos! Fato sem dúvida, original, e que ainda mais ressalta
a ‘habilidade’, por assim dizer inata, que eles têm para a rapina,
encarada sob todos os seus aspectos e particularidades..”.
Por onde se vê que também Oliveira China não escapava dos
preconceitos anti-ciganos: se os ciganos vendiam escravos, estes só
podiam ser roubados, da mesma forma que qualquer cavalo de um cigano só
pode ser um cavalo roubado! Nunca
alguém pensa que estes cavalos ou escravos podem ter sido adquiridos
honestamente. Vários outros documentos confirmam que, no Brasil, os
ciganos também se dedicavam ao comércio de escravos, mas nenhum prova
que roubavam escravos.
Numa
carta de 1761, do governador interino José Carvalho de Andrade ao Conde
de Oeiras, consta que os ciganos baianos, então já em número de
“alguns mil”, tiveram antecipadamente conhecimento do alvará acima
citado, pelo que “(....) foram insensivelmente desertando, o que lhes
foi fácil por morar em bairros apartados, e por ser gente que costumava
muitas vezes deixar as casas para irem fazer trocas e vendas pelos sertões.
Ficaram poucos na cidade”. Continua a carta:
“Logo
mandamos ordens a todos os ouvidores, capitães mores, juizes de fora e
ordinários, que prendessem todos, os que não fossem dessas terras
moradores, e ainda a esses os obrigassem à regularidade da dita lei.
Escrevemos logo ao governador do Rio de Janeiro e ao de Pernambuco, para
que os não deixassem viver nos matos. Alguns que nos vieram falar, e são
velhos e casados os mais deles, nos requerem que lhes deixemos arrendar
fazendas e viver da lavoura, o que lhe facultamos, com tanto que os
filhos adultos os entreguem para soldados e os pequenos para se porem
aos ofícios. As filhas será mais difícil acomodá-las, porque na
Bahia não se querem servir com brancas e menos com filhas de ciganos,
temendo que alguma noite se ajustem com os pais para roubar as casas e
sobretudo quererem só servir-se com mulatas e pretas. (...) (Os
ciganos) se se juntarem serão alguns mil em toda a capitania, além dos
escravos que possuem, tais como eles, e de alguns índios que poderão
coadunar. Por isso lhe temos proposto aos que nos falam, que deles se não
procuro outra coisa mais, do que viver como portugueses, vassalos de S.
M., que eles mesmos escolham mestres e ofícios para os filhos de menor
idade e aos adultos que os tragam para se lhe assentar praça, donde
eles elegerem que os velhos e casados e as mulheres se firmem em lojas
de vendas nesta cidade donde lhe parecer, para que se lhe darão
despachos e guias para as justiças das terras. Com isto alguns tem
vindo e entregue os filhos para os ofícios e outros se lhe destina sítio
perto desta cidade para lavouras, depois de trazerem arrendamentos dos
senhorios....”.
Dois
meses depois, numa segunda carta, o mesmo autor informa:
“Os
ciganos vem vindo bastantes a querer tomar vida regrada, porque por
todas as partes os prendiam ..... Os casados entregam os filhos
solteiros aos oficiais mecânicos se são de idade competente e os
adultos alguns assentaram praça, mas muito raros, por não apparecerem
ou porque esta gente casa logo nestas terras de mui pouca idade. Os mais
vão arrendando terras, ocupando-se com suas mulheres em lavouras e em
abrir terras de novo, deixando totalmente o ilícito comercio e o modo
libertino que tinham de vida....”.
O
mesmo deve ter acontecido também em outras capitanias. Resta saber se
os ciganos arrendavam propriedades rurais para se dedicarem realmente às
atividades agrícolas, completamente estranhas à sua cultura por ser
incompatível com a vida nômade, ou se era apenas mais uma estratégia
para, longe dos olhos dos portugueses, terem pontos de apoio para
continuarem, unidos e em bandos, a sua antiga vida de comerciantes de
animais, de escravos e de produtos artesanais.
Pereira
da Costa, falando dos ciganos em Pernambuco, também se refere a ciganos
que ganhavam seu sustento honestamente:
“Os
ciganos andavam em bandos mais ou menos numerosos, e aqueles que não se
entregavam à pilhagem, e a certos negócios, como a compra e venda de
cavalos, nos quais os indivíduos pouco experientes sempre saíam
logrados, eram geralmente caldeireiros ambulantes, e onde quer que
chegassem, levantavam as suas tendas, e saíam à procura de trabalho
que consistia, especialmente, no conserto de objetos de latão e cobre.
As mulheres, porém, importunas, astutas e nímiamente loquazes, saíam
a esmolar, e liam a buena dicha pelas linhas das mãos, predizendo a boa
ou má-sorte do indivíduo, mediante uma remuneração qualquer”.
A
deportação de ciganos portugueses continuou pelo menos até o final do
Século XVIII. De 1780 a 1786, o secretário de Estado da Marinha e Domínios
Ultramarinos, Martinho de Melo Castro, enviou grupos de 400 ciganos
anualmente para o Brasil. Julgando pelo teor de uma carta de 1793, vê-se
que os ciganos deportados "não eram úteis à coroa nem ao
Brasil." Mesmo assim, as deportações continuaram pelo menos até
o fim do século.
De
acordo com uma correspondência de 1761, entre uma autoridade da
Capitania da Bahia e o Conselho Ultramarino, "se se juntarem [os
ciganos] serão alguns mil em toda a capitania, além dos escravos que
possuem, taes como elles e de alguns índios, que poderão
coadunar".
Os
ciganos na Corte do Rio de Janeiro.
A
presença de ciganos no Rio de Janeiro é certa, desde pelo menos o início
do século XVIII.
Primeiramente ocuparam uns brejos, que pela dificuldade de edificar e
pela insalubridade, eram terrenos desvalorizados. Esta área viria a ser
o Campo de Sant'Ana, conhecido também por Campo dos Ciganos.
Posteriormente, a partir de 1821, viria a ser o Largo do Rossio (atual
Praça Tiradentes). Este terreno era remanescente de duas chácaras que
ficavam em lados opostos:
"uma
área que parece ninguém pretendera por inaproveitável. Constituída
de brejos e alagadiços que as menores chuvas inundavam, tinha fama de
pestilenta pelos miasmas que dela se exalavam. Os pauis que a formavam
tornavam-na imprópria tanto para a lavoura como para que nela se
erigissem construções permanentes. Nesse pantanal abandonado e
desprezado, onde ninguém os viria incomodar, ergueram os seus míseros
e toscos casebres de moradia dos ciganos."
Quando
Luís de Vasconcellos e Sousa. vice-rei entre 1779 e 1790, iniciou o
saneamento desses brejos, os ciganos foram obrigados a se mudar:
"Não
foram para longe. Com o consentimento tácito ou formal da Ordem do
Carmo, instalaram–se na chácara que fôra de Paula Carvalho, junto às
divisas das terras de Coelho da Silva. Aí levantaram as suas casas,
formando uma nova rua, em ângulo reto com a de São Jorge e que deles
tomou o nome, conservando-o até à época da Independência. Desde então
até hoje a antiga rua dos Ciganos manteve a designação de rua da
Constituição, ligando o Largo do Rossio à atual Praça da República."
Foi
nessa área que concentrou-se, majoritariamente, a população cigana no
Rio durante todo o século XIX, quando viveram momentos radicalmente
extremos em sua economia e em seu status
social.
Nos
anos que precederam a Independência, durante a permanência da Corte
portuguesa no Brasil, parece ter sido o momento de maior aceitação e
de valorização romântica da comunidade cigana, ao menos no Rio de
Janeiro, durante o oitocentos. Essa comunidade vivia em pleno
florescimento econômico e artístico. Apesar de a comunidade do campo
de Sant'Ana ter se formado a partir de miseráveis famílias deportadas
no início do século XVIII,
diversos ciganos tornaram-se realmente ricos. Entre estes os que tiveram
maior sucesso econômico foram os comerciantes de escravos, como veremos
mais adiante em detalhes. Mas eram muitas as suas profissões.
Além
da atividade artística, "o ofício de meirinho tinha para eles
especial atração. Talvez por ser a porta modesta que arrombavam para
derrogar a velha proibição do exercício de cargos públicos. O fato
é que houve época em que quase todos os oficiais de justiça do fôro
do Rio de Janeiro eram ciganos."
Apesar
da diminuição da comunidade cigana em fins do século XIX, mesmo
assim, ainda havia ciganos nesse trabalho. Recordando essa época, o
lingüista Raul Pederneiras dá o seguinte depoimento a Oliveira China:
"Tivemos
aqui um quarteirão habitado por ciganos, quando eu era estudante do
Pedro II. A rua principal era a da Constituição (que o povo denominava
'Rua dos Ciganos'). Mais tarde, quando estudante de Direito, encontrei
nessa mesma rua, muitos ciganos em atividade. Era notável o número
delles na funcção de 'officiaes de justiça', ou meirinhos e, nessa
mesma rua estavam situados os principaes juizados e cartorios forenses.
(...) Anos depois, alguns elementos típicos, ainda meirinhos (a profissão
passava de pais a filhos), ainda resistiam esparsos
pelos cartórios e juizados, sendo notável o característico
racial da tez morena bronzeada e os olhos garços”.
Entre
os comerciantes de escravos, quem mais destacou-se foi José Rabelo,
"que acumulou grande fortuna, sendo, na época da Independência,
um dos homens mais ricos da cidade."
Entre os ciganos que moravam na Rua dos Ciganos, nenhum foi mais rico
que José Rabelo, "grande traficante de escravos no Valongo no começo
do Oitocentismo."
Segundo Coroacy, este José Rabelo
"morava
em casa própria no Campo de Sant'Ana (praça da República) e diz a
lenda, pois deve ser lenda, que guardava grande parte da fortuna em
barras de ouro depositadas no fôrro da casa. Tamanho seria o peso desse
ouro acumulado que Rabello se viu forçado a escorar com colunas de
ferro o teto para que não lhe caísse sobre a cabeça. Invencionices de
má língua do povo, provavelmente. Rabello, que obtivera uma patente
militar, dedicava-se a operações bancárias e financeiras. O que
significa que era prestanista. A juros algos naturalmente. E a lenda das
barras de ouro escondidas no fôrro teria sido inventada por algum dos
que a ele recorreram."
Possivelmente,
os ciganos mais ricos tentassem se passar por brancos de origem européia
(não-ciganos), ocultando sua identidade, pela posse de bens (escravos e
jóias, por exemplo), desde que "a posse de bens tinha a curiosa
faculdade de 'branquear' até mesmo pessoas de tez mais escura."
Pelo menos no Rio de Janeiro, onde estavam os ciganos mais ricos do
Brasil, eles deviam se interessar em se passar por brancos "autênticos",
para conseguir negociar sem que os clientes desconfiassem de possíveis
trapaças.
Não
apenas a riqueza fez com que ciganos se destacassem, também o
comportamento de alguns os tornou notáveis. "O rico e humanitário
cigano Joaquim Antônio Rabelo" (trata-se do mesmo José Rabelo)
patrocinaria as danças e homenagens ciganas, por ocasião dos desposórios
de D. Pedro I com a Princesa Leopoldina, em 1813.
Ele recebeu a patente de "sargento-mor do 3º regimento de milícias
da corte", que "lhe foi concedida a mercê de melhoramento de
reforma no posto de tenente-coronel." Além disto, na mesma ocasião,
foram nomeados alferes diversos ciganos "agregados das Ordenanças
da Corte."
Para
os portugueses e outros europeus que chegavam em grande quantidade ao
Rio, após a transferência da família real, ávidos por encontrar os
mais exóticos tipos humanos nos trópicos, os ciganos correspondiam bem
a esta expectativa. Atos inconcebíveis em Portugal ocorriam no Rio,
como a participação de dançarinos ciganos em festividades reais.
Os
ciganos participaram das festividades de casamento da princesa da Beira,
filha mais velha de D. João VI, com um infante de Espanha, em 1810, dançando
no desfile o fandango espanhol, "em que os homens entravam na praça
a cavalo com as mulheres à garupa."
Segundo o testemunho ocular do Barão de Eschewege,
"os
moços dessa nação entraram no circo montando belos cavalos ricamente
ajaezados e levando na garupa as suas noivas. Os casais saltaram ao chão
com incrível agilidade e executaram, em conjunto, as mais lindas danças
que já vi até hoje. Todos os olhos se achavam voltados para os jovens
ciganos, e se tinha a impressão de que as outras danças tinham por único
objetivo fazer ressaltar a beleza das suas."
Logo
depois, um outro evento demonstraria, mais nitidamente ainda, a nova
imagem que os portugueses e seus descendentes formavam dos ciganos.
Quando se comemorou a elevação do Brasil a Reino Unido em 1815, no
segundo dos três dias de celebrações, "Dom João VI levou a
corte inteira e a delegação estrangeira do Campo
dos Ciganos para uma tarde e noite de danças e
entretenimento."
Posteriormente,
quando dos desposórios do Príncipe Real Dom Pedro, em 1818, os ciganos
foram novamente convidados para apresentarem suas danças e músicas:
"e
logo entrou na praça a célebre dança dos ciganos, que se compunha de
seis homens, e outras tantas mulheres vestidos todos com muita riqueza;
depois tudo quanto apresentaram de ornato era veludo; e ouro:
precedia-os uma banda de música instrumental; e sobre um estrato
fronteiro às reais pessoas executaram com muito garbo, e perfeição, várias
danças espanholas, que mereceram universal aceitação."
Segundo
alguns rumores, Dom João VI cultivava um fascínio especial por uma
cigana. O que visto em perspectiva não deixa de ser irônico, pois o
pouco apreço de seu avô (Dom João V) pelos ciganos foi o responsável
pela vinda de dezenas de famílias acorrentadas para o Brasil. Em meados
e fins da década de 1810, o Campo
dos Ciganos "havia se tornado o bairro boêmio do Rio, uma área
conhecida por uma vida noturna alegre e pelos artistas brasileiros e
estrangeiros que ali viviam."
Também foi cenário para algumas das divertidas noitadas de Dom Pedro
que, como seu pai, lançava olhares às jovens e belas ciganas:
"Mais
para o Rocio vivia um casal de artistas famosos (ciganos), João
Evangelista da Costa e a Ludovina, de encantos fabulosos. Destabocado
como era, D. Pedro I saiu certa noite a persegui-la depois do teatro,
entrando-lhe pela porta a dentro, talvez por não vê-la fechar-se à
sua cara. Mas era que lá em cima, no sobrado, se festejava um aniversário,
estando a mesa posta para a ceia e a sala repleta de comediantes e
cantores da deles e de outras companhias. E todos, numa reverência, o
saudaram ruidosamente, confessando-se honrados em sentar-se pela
primeira vez ao seu lado numa festa..."
Ressalta-se
que os contatos entre a família real e alguns ciganos cariocas não
significavam boas relações entre os demais ciganos e a sociedade como
um todo. Mesmo durante a estada da corte portuguesa no Rio, período em
que o status dos ciganos esteve mais elevado, os ciganos não deixaram
de estar associados à criminalidade. Há inúmeros testemunhos de
viajantes que falam do temor popular, no interior do país, quanto a
supostos furtos cometidos por ciganos. Em 1823, dois anos depois da
volta da família real, Maria Graham escreve em seu diário de viagem:
"Alguns deles dedicam-se ao comércio e muitos são extremamente
ricos, mas são ainda considerados ladrões e trapaceiros, e chamar um
homem zíngaro (cigano)
equivale a chamá-lo de velhaco."
Assim,
em fins da década de 1820, os ciganos já não eram mais requisitados
para se apresentarem nas festividades na Corte do império recém-fundado.
Não havia qualquer possibilidade de eles servirem ao perfil que se
queria para o "ser brasileiro".
Já
nos inícios do século XIX, a questão da raça era um tema fundamental
na definição da identidade nacional, mesmo que através de uma afirmação
romântica do exotismo.
No momento imediatamente posterior a Independência, buscou-se descrever
a nação de forma “ahistórica”, via paisagem natural.
Afluíam naturalistas ao Brasil, a princípio, procurando pesquisar a
flora e a fauna, mas que passaram a se interessar pela população,
principalmente das cidades, distinguindo os tipos humanos e analisando
os efeitos da miscigenação. A gradual incorporação do discurso científico
ao conceito de "ser nacional" teve seu marco bem assentado no
ano de 1838, quando foi criado o Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro. Isso ia ao encontro da prática historiográfica que vinha
se desenvolvendo na Europa. Em meados do século XIX, o Império elegeu
o indígena como seu símbolo fundamental e fez-se o discurso de que a
miscigenação entre o branco, o negro e o índio promoveria o
patriotismo e consolidaria a nação.
Diante
disso, a presença dos ciganos na composição da população seria
omitida, pois era uma minoria difícil de ser apreendida por esse
discurso nacionalista. Negando-se aos ciganos o direito à história,
tentava-se colocá-los à margem da "boa sociedade." Como se
verá mais adiante, paulatinamente, uma série de medidas repressivas
fecharam o cerco sobre os ciganos.
Ciganos
no Brasil: Século XIX.
Elaborar
estimativas da população cigana no Brasil na época de Dom João VI
(1808-1821) é bastante arriscado. Infelizmente, para as autoridades da
época e os historiadores atuais, a mobilidade geográfica e a
marginalidade social da maioria dos ciganos tornaram os ciganos
praticamente ausentes nos recenseamentos e registros paroquiais.
Conforme
Donovan: "Nenhuma evidência foi trazida à luz, ainda, sobre, por
exemplo, a taxa de reprodução natural: eram as famílias ciganas no
Brasil maiores, menores, ou do mesmo tamanho que outras famílias,
brancas ou de forros?".
Tanto os depoimentos de cronistas, viajantes e memorialistas, quanto a
documentação jurídica e policial, na maioria das vezes não
quantificam o número de indivíduos dos bandos ciganos encontrados.
Apesar da imprecisão das informações sobre diversos bandos ciganos,
fazendo-se um esforço considerável, chega-se a algumas estimativas. Ao
que tudo indica, numericamente, os principais grupos de ciganos sedentários
estavam na Bahia e no Rio de Janeiro, ou seja, nos dois mais importantes
portos marítimos da época.
Sobre
os ciganos residentes no Rio de Janeiro, no início do século XIX,
sabemos que "quatrocentos ciganos formavam uma comunidade na
periferia sul da cidade e outro grupo vivia dentro da cidade em torno da
Rua dos Ciganos, Campo de Sant-'Anna e o mercado de escravos da
cidade".
Para
outras províncias, como a Bahia, são mencionados bandos menores
compostos de pelo menos duas dezenas de ciganos. Porém a documentação
de modo algum é exaustiva. Donovan acredita que "excluindo
escravos e outros itinerantes morando com eles, numa estimativa
conservadora de no mínimo quatro até sete mil ciganos viviam no Brasil
nas décadas precedendo a independência", conquistada em 1822.
Alguns
testemunhos dão uma idéia do número de indivíduos em bandos ciganos.
Em viagem ao norte de Minas (em Contendas, atual Brasília de Minas),
James Wells encontrou um grupo de ciganos que "compunha-se de cerca
de cinqüenta homens e mulheres e diversas crianças."
Um fato interessante é que tal comunidade já então era sedentária.
No terreno, existiam "umas poucas casas e certa quantidade de
barracas brancas."
As “barracas brancas” certamente eram barracas ou tendas de lona.
Em
todo século XIX predominam noticias sobre ciganos nômades transitando
pelo território mineiro, o que dificulta ainda mais as estimativas
sobre a população cigana. Mas Raimundo José da Cunha Matos, já em
1837 descrevia as "pequenas casas" dos ciganos em Minas, ou
seja, casas de ciganos sedentários.
Consta
que estes ciganos exerciam as mais diversas profissões. Moraes Filho cita um velho cigano, que seria descendente de
ciganos banidos de Portugal em 1718, segundo o qual “logo que desembarcaram [no Rio de Janeiro]...
alojaram-se em barracas no Campo dos Ciganos, enorme e inculta
praça que se estendia da Rua do Cano até a Barreira do Senado.
Empregavam-se eles ... no trabalho dos metais: eram caldeireiros,
ferreiros, latoeiros e ourives; as mulheres rezavam de quebranto e liam
a sina”.
Ou seja, mais uma vez temos notícia de ciganos que eram trabalhadores
honestos.
Era
principalmente nas suas transações comerciais que os ciganos eram
acusados de serem ladrões e trapaceiros. O já citado Saint Hilaire, em
1819, teve contato com ciganos, aparentemente sedentários ou
semi-sedentários, de São Paulo e informa:
“Havia
em Urussanga, enquanto lá estive, um bando numeroso de ciganos. Estes
homens moravam na aldeia vizinha a Mogy Guassú e circulavam pelas
vizinhanças para fazerem, de acordo com o feitio de sua gente,
barganhas de mulas e de cavalos. (...) Pareciam extremamente unidos e
tiveram para comigo grandes gentilezas. Não lhes ouvi falar língua
diversa do portugues. Estavam vestidos como os brasileiros, mas traziam
cabelos e barbas compridas (contrariando o costume geral do país).
Estavam todos assaz bem vestidos, possuíam escravos, cavalos e
cargueiros, bastante numerosos. (...) Os ciganos de Urussanga passaram o
dia todo tentando fazer barganha com os tropeiros das duas tropas que
comigo compartilhavam o rancho. Em tom de caçoada falei a um deles da
pouca probidade de que sua nação é acusada. - Logro tanto quanto
posso, respondeu-me seriamente, mas todos aqueles que negociam comigo
fazem a mesma coisa. A única diferença que entre nós existe é que
esta gente solta grandes berros quando se vê lograda e eu quando me
ludribriam nada digo a quem quer que seja”.
Enquanto
Saint Hilaire tenta entender os ciganos e o seu modo de vida, o mesmo não
acontece com o preconceituoso viajante francês Freycinet (1817-20):
“No
número dos elementos de que se compõe a população do Rio de Janeiro,
nenhuma sem dúvida alguma é mais digno de espicaçar curiosidade do
que a presença dos indivíduos desta nação cosmopolita ..... aqui
conhecida, como em Portugal, pelo nome de ciganos. (...) Dignos
descendentes dos párias da Índia .... os ciganos do Rio de Janeiro
ostentam como eles o hábito de todos os vícios e propendem para todos
os crimes. Possuidores de grandes riquezas, em sua maioria ostentam
considerável luxo em roupas e cavalos, sobretudo por ocasião de suas
bodas que são muito suntuosas, comprazendo comumente na devassidão
crapulosa. Há ociosidade absoluta. Falsos e mentirosos, furtam quanto
podem ao comerciarem e também são sutis contrabandistas. Aqui, como
por toda parte onde se encontra esta abominável raça, suas alianças só
se fazem entre eles. Têm sotaque e até mesmo uma gíria própria. Por
uma esquisitice absolutamente inconcebível, o governo tolera esta peste
pública: duas ruas privativas até lhe são destinadas na vizinhança
do Campo de Sant’Anna - a Rua e a Travessa dos Ciganos”.
Com
a mudança de família real portuguesa para o Brasil, em 1808, vieram
também alguns milhares de portugueses e, segundo Moraes Filho, “Do
interminável séquito da família real poucos prestavam para alguma
coisa. Eram fidalgos e vadios. Aos fidalgos mandou-se dar pensões do
tesouro... Os vadios foram empregados nas repartições que se criaram
para esse fim”.
Tudo indica que entre estes funcionários públicos “vadios”
encontravam-se também ciganos, e que muitos deles foram contemplados
com o cargo então vitalício e hereditário de oficial de justiça.
Além
disto, há referências a ciganos artistas que alegraram várias festas
reais. Porém, a atividade econômica principal dos ciganos parece mesmo
ter sido o comércio ambulante, de animais, escravos ou objetos,
viajando pelos sertões do Brasil.
Para
a região Nordeste temos informações, embora de segunda mão, através
do inglês (mas nascido em Portugal) Henry Koster, que viveu em
Pernambuco de 1809 a 1815:
“São
muito falados para que se possa esquecer os ciganos. Ouvi
assiduamente citar esse povo mas nunca me foi possível avistar um só desses homens. Bandos de
ciganos tinham outrora o hábito de aparecer, uma vez por ano, na aldeia
do Pasmado, e noutras paragens dessa zona, mas o último governador da
província era inimigo deles e tendo feito alguma tentativa para prender
alguns, as visitas desapareceram. Descreveram-nos
como homens de pele amorenada, feições que lembram os brancos, bem
feitos e robustos. Vão errando, de lugar em lugar, em grupos de homens,
e mulheres e crianças, permutando, comprando e vendendo cavalos e
ninharias de ouro e prata. As mulheres viajam a cavalo, sentadas entre
os cestos dos animais carregados e os meninos são postos dentro dos
cestos, de mistura com a bagagem. Os homens são cavaleiros eméritos
.... Dizem que não praticam
religião alguma, não ouvindo missa nem confessando seus pecados. E é
sabido que jamais casam fora da sua nação”.
[grifos nossos].
Koster
morou durante muitos anos no litoral pernambucano e fez duas longas
viagens pelo interior nordestino, na época uma verdadeira aventura, e
é admirável que mesmo assim nunca tenha encontrado pessoalmente
ciganos, o que faz supor, primeiro, que não viviam mais ciganos no
litoral nordestino/pernambucano, e segundo, que os ciganos eram bastante
raros no interior, ou então até talvez inexistentes, por causa das
contínuas perseguições.
A
imigração de ciganos não-ibéricos.
Acredita-se
que até o final do século XVIII existissem no Brasil somente ciganos
originários da Península Ibérica, os chamados Calon, ou Kalé. Mas já
na primeira metade do século XIX, chegaram alguns ciganos Rom acompanhados ou não de suas famílias.
De
acordo com as informações que pudemos apurar, o Rom
que mais cedo chegou ao território mineiro foi Jan Nepomuscky
Kubitschek,
que trabalhou como marceneiro no Serro e em Diamantina. Atendendo pela
alcunha de João Alemão,
era um "imigrante vindo da Boêmia, então parte do Império
Austro-Húngaro, que deve ter entrado no Brasil por volta de 1830-1835,
casando-se pouco depois com uma brasileira."
Em seu matrimônio com Teresa Maria de Jesus, teve pelo menos dois
filhos. O primeiro foi João Nepomuceno Kubitschek, que viria a ser um
destacado político.
O segundo foi Augusto Elias Kubitschek, um comerciante com
escassos recursos, que viveu toda sua existência em Diamantina.
Augusto Kubitschek foi designado como 1º suplente de subdelegado de polícia
em 1889.
Também consta que teve pelo menos uma filha, Júlia Kubitschek, que
viria a ser a mãe de Juscelino Kubitschek (1902-1976), que depois se
tornou Presidente do Brasil (1956-60), também conhecido pelo apelido
‘JK’, o fundador da atual capital Brasília. Ou seja, um dos mais
conhecidos e mais famosos presidentes do Brasil do Século XX foi um
cigano, ou pelo menos um descendente de ciganos, fato que, obviamente,
nenhum livro didático nem historiador algum menciona.
Não
sabemos se o cigano Jan Nepomuscky Kubitschek chegou só ao Brasil, ou
se estava acompanhado de outros familiares ou de outros ciganos. Seu
casamento com uma brasileira pode ser indício de que veio só, separado
de seu grupo familiar originário. A ascensão social de seus filhos
parece indicar também que estes não foram criados como ciganos.
O
que sobressai deste caso é que, muito antes da onda migratória dos Rom
a partir de meados do Século XIX,
já na década de 1830 havia entrado em Minas Gerais ao menos uma
família Rom, justamente
aquela que anos depois gerou o futuro Presidente da República JK.
Quantas
outras famílias Rom não-ibéricos chegaram durante a primeira metade
do século XIX, ainda não se sabe, e certamente nunca saberemos.
Somente
a partir da segunda metade do Século XIX os Rom
vieram em número significativo para o Brasil, provenientes da Itália,
da Alemanha, dos Balcãs e da Europa Central.
Num
livro publicado em 1886, James W. Wells, identifica como sendo romenos,
portanto Rom, os ciganos de
Contendas, os quais encontrou em 1873.
Da documentação que se conhece até agora, esta é a data mais remota
indicando a presença de um grupo desses ciganos no Brasil. Em 8 de maio
de 1899, chegou à cidade Palmyra "um bando de cerca de 40 ciganos,
composto de indivíduos de nacionalidade italiana e grega", que
eram também ciganos Rom.
Acredita-se que o maior número de ciganos Rom
chegou ao Brasil no final do século XIX, juntamente com a primeira onda
migratória de italianos, alemães, poloneses, russos e gregos, embora a
partir da instalação da República, a polícia portuária tenha
proibido o desembarque de ciganos em território brasileiro.
Esta proibição, na verdade, já era aplicada, um pouco antes, como num
episódio ocorrido em 1887:
"O
Sr. ministro da agricultura tem noticia de que em um dos vapores
esperados no Rio vém sem passagens, para o Brasil, centenas de turcos
ou bohemios sem profissão, telegraphou para os portos intermediários,
afim de que não lhes fosse permitido o desembarque. No Rio foram dadas
as mesmas ordens."
Por
isso, a entrada dos Rom no
Brasil se deu totalmente na clandestinidade. A princípio, com esses
ciganos apresentando-se como sendo de nacionalidade do país de onde
vinham, o que não era completamente falso, mas que eram identidades
secundárias para os ciganos. Além de virem como russos, poloneses,
romenos, gregos, etc., a outra possibilidade era desembarcarem fugindo
de qualquer contato com as autoridades portuárias e de imigração.
Dornas Filho, falando de Minas Gerais, informa:
“Em
março de 1909 aparecia em Juiz de Fora uma horda de ciganos, composta
de 12 homens, 10 mulheres e 15 crianças que já delata nos meios de
vida a influência da reação policial. Tornaram-se exclusivamente
(exclusivamente?...) saltimbancos, apresentando animais amestrados (ursos,
macacos, cães, etc.) O chefe do grupo, homem alto e corpulento, de
cabelos crescidos até os ombros, interrogado pela polícia, não soube explicar-se em português e nem outra língua conhecida,
permitindo as autoridades que ele exibisse os seus animais no pátio da
cadeia” (grifos nossos).
Ou
seja, com certeza não eram ciganos de origem ibérica, mas de algum país
balcânico. Mais adiante Dornas Filho faz referência a ciganos oriundos
da Sérvia pertencentes às famílias Anovich, Ivanovich e Petrovich,
alguns membros dos quais aparecem constantemente nas crônicas policiais
da época. Dois irmãos Anovich massacraram, em 1917, por motivos
desconhecidos, toda a família de um cigano grego, incluindo seis filhos
menores. Também vários membros da família Petrovich foram, em épocas
diferentes e por crimes diversos, presos pela polícia de Belo Horizonte,
como também no Rio de Janeiro.
Oliveira
China dedica pouco mais de quarenta páginas aos ciganos no início do Século
XX (isto é, até 1936, ano da publicação de seu livro), tratando
Estado por Estado, baseando-se em notícias de jornais e em informações
de alguns intelectuais com os quais falou pessoalmente ou manteve
correspondência. As notícias de jornais invariavelmente parecem ser
tiradas das páginas policiais, nas quais os ciganos são apresentados
como criminosos, ladrões, velhacos etc., e as ciganas como “bruxas”
e trambiqueiras que enganam o povo praticando a quiromancia, furtando,
etc. Mas também os intelectuais entrevistados por Oliveira China não
escapam dos preconceitos. Basta ler, por exemplo, a resposta de Mário
Torres, quando perguntado sobre os usos e costumes dos ciganos baianos:
“Continuam
a ser astutos, velhacos, errantes e miseráveis, procurando viver da
pirataria, da troca nas feiras, enganando compradores e vendedores. São
conhecidos por ladrões de cavalos. Às vezes se dedicam à confecção
de objetos de cobre, que procuram vender nas feiras (caldeireiros). A
princípio o bando trazia sempre um urso e macacos que dançavam ao
som de pandeiros e meninos que faziam acrobacias. As mulheres liam, de
preferência, a buena-dicha, do que faziam fonte de receita. O roubo
entre eles sempre foi praticado como profissão. (...). As mulheres são
raptadas e os filhos batizados, porque isto lhes dá margem a presentes.
(...). Os ciganos são excessivamente mentirosos. As mulheres, quando
viajam a cavalo, montam como os homens, enganchadas. Quando dão a luz,
continuam seus trabalhos como se nada houvesse acontecido”.
(grifo nosso)
A
quase totalidade destas informações absolutamente nada acrescenta à
ciganologia brasileira, porque apenas repete velhos estereótipos e denúncias
de indivíduos que tentaram enganar os ciganos mas foram por eles
enganados, ou por pessoas que nunca tiveram contato pessoal com ciganos.
Apesar
de Torres informar desconhecer qualquer caso de ciganos
“estrangeiros” (o que no Brasil significa: “não-ibéricos”) recém
chegados, a sua referência acima ao urso e às atividades de
caldeireiros, faz supor que neste caso se tratava não de ciganos calon,
de origem ibérica, mas de ciganos rom, de origem balcânica, e que então
deveriam ter chegado ao país há pouco tempo, já que aqui dificilmente
teriam encontrado um urso, animal que não faz parte da fauna
brasileira.
Um
recorte do Diário da Bahia, de janeiro de 1935, anexado logo a seguir,
informa que “a cidade está infestada de ciganos”, e cita
nominalmente a família Michlos, de origem não declarada, mas
certamente não-ibérica, e a família Ducas, de nacionalidade russa. Ou
seja: com certeza eram ciganos Rom.
Um
longo artigo de jornal de 1936 trata dos ciganos no Rio de Janeiro e
nele o autor anônimo faz referência a ciganos, “uma coletividade de
excêntricos”, oriundos de países balcânicos, e talvez pela primeira
vez alguém informa ao público que os ciganos não são todos iguais,
mas têm costumes diferentes:
“Em
nossa capital, em virtude do serviço de qualificação recentemente
criado pela polícia, muitas colônias de ciganos se transferiram para o
interior. Comtudo, ainda existem alguns núcleos de zíngaros da Grécia
e da Iugoslávia (....) Os da Iugoslávia, cujo quartel general é [num
botequim] na rua Senador Pompeu (....) são ciganos que não trabalham.
Os homens passam o dia todo na maior ociosidade; quando não jogam
cartas, dormem profundamente. As mulheres é que ‘trabalham’,
iludindo a boa fé alheia e sustentando à custa da ‘buena-dicha’ os
barbados da família. Os da Grécia, que vivem no Meyer, (...) são mais
prestativos e obedecem a outros costumes. Os homens geralmente têm
profissão e ganham a vida à custa das suas atividades como
concertadores e estanhadores de caldeirões e panelas (....). As
mulheres, entretanto, não deixam de se ocupar com a ‘leitura da
sorte’ dos incautos (....). Si entre uns e outros difere o modo de
vida, em compensação o ‘habitat’ é idêntico. Uma casa de ciganos
é igual à de todos os outros. Não tem mobília. Não existe mesa, nem
cadeira, nem cama. Mas há abundância de tapetes velhos e imundos,
pendendo pelas paredes (...). Dormem no chão, ou (...) sobre um
acolchoado. A roupa de uso se espalha em desordem por todos os recantos
da casa. Assim é a moradia dos ciganos que residem em casa de pedra e
tijolo. Os ciganos da Grécia, entretanto, preferem passar o tempo nas
barracas armadas no fundo do quintal. Trocam a casa pela tenda (...)”.
Em
outro artigo de jornal informa-se ainda que as ciganas, para escapar das
perseguições policiais, passaram a instalar-se em locais fixos,
anunciando seus serviços nos jornais. Algumas ciganas até requereram
‘habeas corpus’ para poderem exercer a sua profissão. Algo que o
autor considera um absurdo, pelo que solicita “uma repressão séria,
urgente e enérgica da polícia” contra essas “embusteiras e
mistificadoras do povo” que “zombam das nossas leis e das nossas
autoridades”.
Os
ciganos nos documentos históricos.
Os
dados históricos até hoje disponíveis sobre ciganos no Brasil são
comprovadamente poucos, porque os historiadores brasileiros nunca deram
a mímima importância à História Cigana. O pior, no entanto, é que,
quando existem informações históricas, se trata de dados enviesados,
distorcidos pela visão etnocêntrica dos informantes e dos próprios
historiadores. Os ciganos costumam ser apresentados como ladrões (de
galinhas a cavalos, e inclusive de criançinhas) e assassinos, mas não
são apresentadas provas concretas destes supostos crimes.
Durante
a maior parte da história brasileira, praticamente só se falou de
ciganos quando sua presença inquietou as autoridades. Isto ocorria, por
exemplo, quando eram acusados de roubarem cavalos. Nas poucas vezes que
se escrevia sobre aspectos culturais dos ciganos, não havia qualquer
interesse sobre como eles próprios viam sua cultura. Os contadores da
ordem pública, com os chefes de polícia, os compreendiam como sendo
"perturbadores da ordem", responsáveis pelos mais hediondos
crimes. Outras fontes, como viajantes e memoralistas, recorriam aos
estereótipos corriqueiros, como "sujos",
"trapaceiros" e "ladrões". Isto funciona como um
indicador: os ciganos eram raramente considerados por si mesmos, e, com
freqüência, eram sinônimos de barbárie, imundície, desonestidade e
imoralidade. Assim, a documentação se detém pouco sobre os ciganos
singulares, que tornam-se desprovidos de existência. Quase sempre
incidem sobre "o cigano", entidade coletiva e abstrata à qual
se atribuem as características estereotipadas.
Os ciganos no Brasil sempre estiveram em dissonância aos ideais
de civilização e progresso. São identificados como elementos
incivilizáveis, inúteis à sociedade, supersticiosos, corruptores dos
costumes, vândalos, enfim, uma anomalia social e racial. Uma vez vistos
desta maneira, as autoridades tentavam controlá-los, sem obterem, no
entanto, grande eficácia. Em Minas Gerais, por exemplo, no final do século
XIX e início do XX ocorreu o ápice dos confrontos entre a polícia e
os ciganos. Foram as "Correrias de ciganos" que, como veremos
mais adiante, eram movimentações destes em fuga, por estarem sendo
perseguidos pela polícia. Nessas correrias ocorriam freqüentes
tiroteios, que resultaram em mortos de ambos os lados.
Na
realidade, os documentos contam mais sobre os preconceitos do que
propriamente dito sobre a História dos Ciganos no Brasil, que continua
praticamente incógnita. E esta ignorância gera inclusive medo, como
prova Artur Lobo, ao descrever, em 1901, o encontro de alguns viajantes
com um grupo de ciganos: “Os ciganos! Não foi sem um profundo receio
que uma mesma exclamação nos escapou, porque bandos de ciganos que
percorriam os sertões em medonhas correrias praticavam impunemente
roubos e depredações, fugindo à ação da polícia”. Os ciganos se
aproximam e “se bem que a
sua atitude nada tivesse de hostil, nem por isso nos sentimos menos
tranquilos e receiosos de uma cilada”. Os ciganos gentilmente convidam para ficar um pouco, ensinam
o caminho e no final desejam uma boa viagem. “Partimos, sabe Deus com
que satisfação e alívio, sem procurar saber por que motivo não nos
tinham eles subtraído pelo menos qualquer pequeno objeto de uso; e de
longe ainda vimos espalhada pelo campo afora aquela caravana que assim
ia errante pelos sertões, numa vida de cruéis aventuras, sem um
destino determinado nem paradeiro certo, deixando atrás de si uma
sinistra nomeada de rapacidade e mesmo de assassínios....”.
Capítulo
2
OS
CIGANOS EM MINAS GERAIS NO SÉCULO XIX.
A
partir da Lei de 1º de outubro de 1828,
é dada nova forma às Câmaras Municipais, estabelecendo-se diretrizes
muito mais rígidas para se organizar o cotidiano da população. As
Posturas Municipais determinavam permissões e proibições para questões
político-administrativas, econômico-financeiras e sociais,
regulamentava-se: o alinhamento das construções, a saúde pública, a
assistência social, a proteção ao trabalho e a propriedade, etc. A
partir do modelo oferecido por essa lei, os municípios organizavam suas
posturas de acordo com suas próprias necessidades. E embora houvesse
uma ampla base comum entre as posturas, as sutis variações revelam
especificidades locais extremamente expressivas.
Durante
o transcurso de todo o século XIX, no Brasil, não havia distinção
explícita entre o direito positivo e o direito costumeiro, pois, ainda
que escritas, as leis aludiam aos costumes. Daí a importância dos códices
de posturas municipais que nos permitem aproximar do cotidiano das
populações a partir daquilo que é regulamentado como contravenção,
pois revela o valorizado e zelado coletivamente, e diferencia o proibido
e o rejeitado. Assim, as posturas referiam-se aos assuntos mais
distintos, da construção de novas edificações à saúde pública,
dos batuques à proibição de transações comerciais com ciganos.
Pode-se
perceber como se deu tudo isto, abordando-se, por exemplo, as cidades
mineiras neste período. Em Minas Gerais, apesar de haver posturas
municipais elaboradas desde o início do século XVIII, como as de Ouro
Preto, é a partir das reformulações nas câmaras municipais
implementadas em 1828, que elas são organizadas sistematicamente. As de
Mariana, Sabará e Queluz foram feitas em 1829. A de Sabará permaneceu
por muito tempo somente manuscrita, e as duas outras foram publicadas de
forma avulsa, o que também ocorreu em muitos outros casos. No entanto,
a maioria delas foram editadas na Coleção das Leis Mineiras, que
apesar de iniciada em 1835, apresentou seu primeiro código de posturas
municipal apenas em 1846 (Diamantina). A publicação ocorria após a
aprovação pela Assembléia Legislativa de Minas Gerais.
Nossa
pesquisa contemplou todo esse conjunto de posturas, disponível no
Arquivo Público Mineiro, acrescentando ainda o artigo do código de
posturas de Parahybuna (1857), relacionado aos ciganos.
Porém, na Coleção das Leis Mineiras, além das posturas municipais
completas, há centenas de pequenas adições e alterações de artigos
de tais posturas, geralmente sobre tributação e/ou saúde pública.
Desconsideramos esses textos, porque nenhum deles se refere aos ciganos.
O
último código de postura de que tivemos conhecimento é o de Dores da
Boa Esperança (atual Estrela do Sul) de 1895, quando se atualiza o código
de 1872, que já apresentava menções aos ciganos. Assim,
totalizaram-se 61 Posturas Municipais com artigos contra ciganos. Apesar
de ser representativo o número disponível de tal documentação, não
se sabe o que elas representavam no total existente, na época. Além do
mais, parte delas não foi conservada.
O
Código de Posturas de Mariana (de 17/09/1829 e aprovado pelo Conselho
Geral da Província em 1830), embora apontado por muitos pesquisadores
como o modelo dos códigos de posturas das demais cidades mineiras,
não faz qualquer menção aos ciganos. Também as posturas de Ouro
Preto, de 1720-1826 e de 1830-1837, não se referem a ciganos.
Da mesma forma, na lei de 1828, não havia qualquer recomendação
contra os ciganos. Mas o aparecimento de artigos contra ciganos nas
posturas de Sabará e Queluz, em 1829, está coerente com o papel que Câmaras
Municipais assumiram a partir de então.
Apesar
de oscilarem na delimitação de dois tipos principais de contravenções
contra pessoas, causadas por ciganos (comércio de escravos, animais e
objetos e a simples permanência na cidade), as posturas se distinguem
quanto à definição de cigano, o tipo de transação que é proibido,
tempo de estada permitida e as penas e multas. Nas posturas da primeira
metade do século, há ênfase em colocar o cigano como indivíduo
suspeito por barganhar escravos e animais adquiridos ilicitamente. No
transcurso do século isso vai se alterando, e no último quartel do século
XIX, preocupa-se mais com a simples presença dos ciganos na cidade,
considerada ameaçadora para a saúde pública.
A
partir do início e avanço do século XIX, as autoridades da província
punham em vigor medidas cada vez mais repressivas, com o fim de
disciplinar a presença dos ciganos no espaço público. Essas providências
buscavam retirá-los das ruas, evitando o comércio, a perambulação, a
leitura da sorte; mas, preferencialmente, buscavam enviá-los para as
cidades vizinhas. Também, à medida que o século progredia,
acirrava-se a intolerância social em relação a tal presença, a ponto
de todos os valores deles serem considerados imorais.
Umas
das estratégias que as autoridades utilizaram para obter maior controle
social, era a promoção da urbanização em Minas,
o que representou a criação de um grande número
de municípios e suas respectivas câmaras. Apesar de a população
estar ainda concentrada nas regiões anteriormente vinculadas à mineração,
faltava organizar e estruturar os habitantes sob um controle eficiente
do Império. Procurou-se, então, estabelecer em cada núcleo urbano,
por exemplo, distritos de paz com guarnições da brigada militar. A
maior parte dos esforços de controle da população, implementados pelo
Império, tiveram pouca eficácia.
Em Minas Gerais, a instabilidade na hierarquia social durante o século
XIX, não era muito diferente daquela vivida no século anterior. Também,
a movimentação de pessoas pelo vasto território, apesar de estar
diminuindo, ainda era considerável.
Com
a vida urbana mais intensa do interior brasileiro, as cidades mineiras
caracterizavam-se por um movimento constante dos mais diversos tipos de
pessoas, e por diferenças sociais profundas. E havia um significativo
fluxo financeiro e de mercadorias. As cidades mineiras oitocentistas
passaram, gradualmente, a ser administradas de forma a disciplinar a
ocupação urbana. O objetivo era que se manifestasse na cidade a
racionalidade e o progresso almejados. Contrariando essa lógica
civilizatória, a presença do acampamento cigano na cidade significava
a existência de um território onde se deparava com uma forte constância
da informalidade nas relações sociais e econômicas e uma outra lógica
familiar e moral.
Apesar
de, em princípio, ser antagônico à civilização, na prática, o
acampamento era comportado pela cidade, espaço do encontro e do
desencontro, na política, no comércio, nas relações sociais e
afetivas. A cidade possui uma dinâmica, em que mobilidade e pausa
dialogam permanentemente, pois nela movimento e fixação ora se
contradizem, ora se harmonizam.
Os
ciganos, possivelmente, ocupavam os espaços mais insalubres das
cidades. Não que eles se opusessem ao conforto e à higiene, mas sim ao
que vinha atrelado a isso: o cerceamento à liberdade de movimentação
e o controle de suas ações. Como diz Jurandir Freire Costa, a conduta
dos ciganos, juntamente com a de outros desclassificados, era uma
afronta à ordem médica (preocupada com a família), expressavam a
antinorma - caso-limite da infração higiênica,
por isso sendo entregues aos "cuidados" da Polícia. Além de
tidos como ociosos, os ciganos traziam incômodo aos higienistas por
serem percebidos como insalubres, colocando em perigo toda a população
citadina. Se tivessem de acampar na cidade, deveriam fazê-lo o mais
longe possível, para evitarem a transmissão de doenças físicas e moléstias
morais. Os acampamentos deveriam estar fora dos limites urbanos.
Os
ciganos eram colocados fora do perímetro urbano, porque na perspectiva
da medicina social (o higienismo), era preciso distinguir espacialmente
aquilo que podia significar o contágio, a doença. A cidade deveria
expressar continuidade espacial, e não ter um quisto incômodo.
Os
ciganos não deviam ter lugar na cidade, porque a sociedade os associava
à irracionalidade, aos modos rudes, ao atraso cultural e ao
analfabetismo.
Perambulando por ruelas e becos malcheirosos, ciganos pobres com suas
crianças esfarrapadas, compõem a feiura da cena urbana. Aliás, o uso
de farrapos e roupas remendadas por muitos ciganos, não apenas era uma
manifestação da pobreza, mas também uma estratégia de diferenciação
frente aos não-ciganos, de forma a amendrontá-los.
Contrariando
toda essa perspectiva, o espaço público e o privado, entre os ciganos,
eram distintos ao olhar da sociedade mineira. Eles usavam a rua não
simplesmente como espaço de circulação, mas como uma pausa no
movimento, um lugar. E, enquanto a cidade distinguia na arquitetura das
edificações, a divisão entre o local de trabalho e a moradia, com a
delimitação clara de suas funções, os ciganos desconheciam essas
formas novas e "civilizadas" de se viver.
Outro
aspecto dissonante do projeto civilizatório, era a movimentação contínua
dos ciganos, a pé e a cavalo, pelo espaço público. Pois, "fixar
é um dos primeiros objetivos da disciplina; é um processo de
antinomadismo."
Como
indica o artigo 111 das posturas da Câmara de Sabará (1829), pelo
menos desde a década de 1820, os ciganos também acampavam em fazendas
próximas à cidade.
Outros exemplos disto, ocorreram em vários municípios da Zona da Mata,
em 1898: "Acastellados alguns bandos em fazendas, onde é bem
aviltante registrar que os possuidores de propriedades ruraes dão lhes
guarida e protecção."
Esse
dado, confrontando-o com as informações de uma extensa bibliografia
etnográfica, indica a constância com que os ciganos
"optavam" pelas periferias urbanas. Se, por um lado, eram forçados
a ocuparem as redondezas da cidade, por outro, nos terrenos onde
acampavam, havia mais liberdade e espaço para a convivência familiar e
comunitária que seria impossível na turbulência da área central da
cidade.
A
"civilização" dos costumes no transcurso do século XIX
distinguiu as esferas, pública e privada, cuja disposição
condicionava o equilíbrio geral da sociedade.
O comportamento nobre e cortês, a "etiqueta", estabeleceu
categorias claras entre os homens e seus ambientes. Assim, uma vez
diferenciadas socialmente as habitações, o vestuário, as expressões
e os gestos, criou-se "a uma divisão progressiva entre as esferas
privadas e públicas, entre os comportamentos mais secretos e os
sociais."
O espaço privado dos ciganos se confundia com o espaço público. Seu
modo de vida, muitas vezes, era ao ar livre, onde as barracas deixavam
ver seu interior. Por isso, eram associados à imundice e à
imoralidade.
Acrescente-se
que, desde a colônia, a mulher cigana tinha um comportamento
completamente oposto ao da mulher branca das camadas superiores.
Enquanto a cigana ia e vinha pelas ruas da cidade, a mulher da elite era
a "dona ausente", confinada à casa e saindo somente em raras
ocasiões.
Às
ruas centrais da cidade, iam os homens para barganhar e as mulheres para
ler a
sorte e,
ocasionalmente, mendigar. Essas mulheres disputavam, com mendigos e
negras de tabuleiro, a atenção dos pedestres e o espaço nas ruas.
Estas ruas eram muito importantes para os ciganos. Ali eles faziam seus
contatos e negócios e se informavam de prováveis ações policiais,
das quais deveriam ser avisados os que haviam permanecido no
acampamento.
Apesar
das diversas atividades dos seus membros, a maioria dos bandos ciganos
caracterizava-se pela pobreza. Assim, essas comunidades não possuíam
escravos, por isto ganhavam seus rendimentos com o próprio trabalho. Os
ciganos pobres e nômades, provavelmente, possuíam alguns baús e
caixas de madeira ordinária, onde guardavam as roupas de uso pessoal,
de cama, de mesa e de limpeza ou utensílios diversos. Talvez tivessem,
também, esteiras e tapetes: "habitadores de pequenas casas cuja
mobília não excede ao absolutamente indispensável e onde dormem
promiscuamente as pessoas de todos os sexos."
O
pequeno mobiliário e as poucas e esfarrapadas roupas não apenas eram
uma manifestação da pobreza, como também uma adaptação às
constantes viagens. Além disso, a dificuldade em poupar e adquirir bens
duráveis pelos ciganos justifica a preferência por moedas de ouro.
Apesar
da miséria de muitos bandos ciganos, eles nunca eram considerados
simplesmente pobres, mas, antes de tudo, um grupo etnicamente
diferenciado, uma "raça" ¾
raça de ladrões, sujos e preguiçosos.
Cada
vez mais rechaçados, os ciganos não tinham como escolher cidades mais
favoráveis ou não, ao menos a
priori. Mas nas pequenas localidades, povoados e arraiais, mesmo
quando o bando tinha poucas dezenas de indivíduos, permaneciam por
pouco tempo, pois precisavam de uma população razoável para que
pudessem comerciar por muitas semanas. Vale lembrar que, nas péssimas
condições das estradas, as viagens eram penosas e a instalação de um
acampamento exigia muito empenho, por isso precisaria ser compensador.
Com
o incômodo crescente com a presença deles na cidade, os ciganos se
viam constrangidos a não permanecer por muito tempo nela, tendo que
procurar, mais rapidamente, novas localidades, ou comerciar, acampar,
enfim, viver em melhores condições.
É
possível que a dificuldade em conseguir terrenos desocupados em áreas
mais propícias para tirarem o sustento, tenha levado alguns bandos, até
mesmo, a alugar determinadas áreas. Outra alternativa, diante do
progressivo escasseamento de espaços na área central, era
distanciar-se cada vez mais da mesma. Mesmo assim, os acampamentos
constituíam-se num entrave às intenções burguesas, pois
localizavam-se em áreas de expansão urbana, pois, apesar de as
ocuparem temporariamente, temia-se que nelas se fixassem.
O
artigo 295 do Código Criminal do Império (1830) referia-se aos vadios
de forma geral,
mas eram as Posturas Municipais que especificavam a preocupação com os
ciganos. Um exemplo de como se procurava controlar a presença dos
ciganos, na primeira metade do século XIX, é dado pela Câmara
Municipal de Sabará, que inclui em suas posturas o seguinte artigo em
1829:
"Não
se consinta, que pelas povoações, e fazendas dos particulares
divaguem, ou se demorem por caza dos mesmos vagabundos, viciosos, e
siganos, ainda mesmo pessoas desconhecidas, e suspeitas, sem que produzão
huma nota, ou documento, que legalize a sua identidade (...) huma multa
de dés mil reis he o minimo das penas impostas à contravenção, além
das que especificam leis positivas para cazos identicos."
Apesar
dos dispositivos legais e institucionais, os ciganos nômades
continuaram vagando de cidade em cidade, e mesmo nas ruas centrais das
cidades, durante todo o século XIX. Além de desejarem manter sua
identidade, assegurada em grande parte pela existência de territórios
próprios (acampamentos), queriam também ter o direito de ir e vir em
qualquer parte da cidade, em busca da subsistência diária.
A
sociedade mineira rejeitava o cigano porque desejava que o espaço da
cidade fosse liso, homogêneo, de acordo com a lógica da sociedade
burguesa. "Um espaço liso é um espaço desterritorializado, aonde
não há mais os mesmos tipos de circunscrições ou delimitações por
emblemas étnicos ou religiosos, por exemplo."
Os ciganos tinham territórios delimitados por fronteiras subjetivas,
existenciais, que a sociedade mineira procurava padronizar, seriar,
enfim desterritorializar, "distendendo-os em espaços lisos."
O projeto civilizatório de esquadrinhamento do território mineiro,
visava a seu alisamento, ou seja, a homogeneizar através de estratégias
administrativas de censo, de controle sanitário e registro eleitoral.
No
entanto, apesar da ampliação cada vez maior do projeto civilizatório,
a chegada e o abarracamento dos ciganos era a reconstituição temporária
de um território da subjetivação da cidade. Assim, a relação dos
ciganos com a sociedade mineira poderia ser vista como um conflito entre
tipos de percepções do espaço, a
priori, contraditórias. A dos ciganos era constituída por
elementos de seu cotidiano: relações de parentesco, festas e outros
compromissos sociais, trabalho e ócio etc. Tornava-se, portanto, uma
forma de reelaboração constante da identidade, respondendo às
transformações e estímulos da sociedade mineira. Em geral, a forma
mineira de apropriação do espaço seria guiada por uma racionalidade
civilizatória e sedentária, enquanto a forma cigana seria direcionada
por uma racionalidade comunitária e pelo nomadismo. A utilização de
casas por ciganos, como no citado caso de Contendas, não traduzia numa
sedentarização completa. Pois as casas funcionavam, sobretudo, como
uma “base” para se guardar mercadorias, utensílios e móveis, e
como refúgio para o período de chuvas. As casas estavam lado a lado
com as barracas, que armadas reforçavam a imagem de nomadismo.
Para
compreender melhor a concepção cigana de espaço, reportou-se às
reflexões de Patrick Williams, que trabalha com o conceito de
invisibilidade. "O nomadismo facilita as estratégias da
invisibilidade, da fluidez, que permitem esgueirar-se entre as brechas
(legislativas, econômicas, geográficas) que a sociedade deixa em
aberto."
Trata-se de uma estratégia para a manutenção da identidade étnica e
autonomia frente aos cerceamentos das sociedades envolventes, no que se
refere à imposição de viverem num território delimitado formal e
institucionalmente. Para além das fronteiras oficiais, as relações de
parentesco e as atividades econômicas construíam seus próprios
limites.
A
territorialidade cigana se manifestava em diversas escalas: a tenda, o
acampamento, a cidade, os itinerários e as regiões são espaços com
os quais os ciganos estabelecem diferentes e complexas relações. A
territorialidade do grupo, em macroescala, expressava-se como um
"arquipélago" de pequenos territórios. Nos diversos locais
onde costumeiramente acampavam, os ciganos chegavam e saiam
sazonalmente, ainda que pudesse haver algumas famílias ciganas sedentárias.
Assim, os espaços vividos eram mais referentes aos acampamentos, aos
itinerários e aos pontos de pernoite do que aos elementos urbanos ou
rurais marcantes para a sociedade mineira.
O
nomadismo propiciava que as fronteiras dos territórios ciganos fossem
portáteis. Ainda que houvesse muitos acampamentos em terrenos de outros
proprietários (para os quais deveriam pagar aluguel), o fato de que não
tinham a posse não interferia no sentido simbólico dos mesmos. As
barracas e a solidariedade entre as famílias eram os elementos que
tornavam portáteis os territórios, sinalizando que um determinado espaço
era cigano.
"Pode
ser que os acampamentos sejam para eles [os nômades] os lugares mais
importantes, conhecidos mediante a experiência íntima."
O acampamento compreendia tanto o espaço onde estavam as tendas e o
intervalo entre elas quanto o terreiro onde os ciganos trabalhavam no
artesanato, e no comércio, cozinhavam e, às vezes, alimentavam-se.
Nessa área era até tolerada a presença de um estranho, especialmente
se fosse potencial cliente, mas este dificilmente entrava nas barracas.
Na
tenda havia tênues fronteiras, por exemplo, entre o local de preparação
dos alimentos e o dormitório. A barraca simbolizava a intimidade, onde
cada família tinha domínio absoluto, penetrando ali somente as pessoas
escolhidas. Além disso, este recinto remetia a idéia de um "lugar
sagrado, onde o divino é convocado a manifestar-se."
Era um microcosmo, que fazia a mediação entre o céu e a terra. Símbolo
de estabilidade, uma vez que estava fixado ao solo, de uma vida instável,
a vida nômade.
Pode-se
aplicar, seguramente, ao acampamento cigano a definição de
"lugar" de Yi-Fu Tuan, ou seja, "uma pausa no
movimento."
Os ciganos abarracavam-se a partir do momento em que interrompiam sua
viagem, para trabalhar e repousar.
Para
a escolha do local, levava-se em conta a topografia. Pois eram precisos
terrenos bem planos, ainda que, eventualmente, pudessem ter utilizado
rochedos e cavernas. Também a existência de água corrente e de
pastagens próximas era importante, assim como a facilidade de comunicação
e de transporte, quando o objetivo principal era o comércio. Às vezes,
ao contrário, necessitavam de locais de difícil acesso, como alguns da
Serra da Mantiqueira, para evitar que a polícia os encontrasse.
Richard
Burton, escrevendo décadas depois de uma das mais célebres quadrilhas
atuarem na Serra da Mantiqueira, escreve que esta era liderada pelo
português, morador de Barbacena, Chefe Guimarães e seu amigo, o cigano
Pedro Espanhol, que viriam a morrer na prisão.
Além disso,
"Outro
ator da tragédia foi o Padre Joaquim Arruda, homem rico e bem
relacionado naquela parte da província. O fidus Achate, que todo mundo
considerava seu Fra Diavolo, era um certo Joaquim Alves Saião Beiju,
mais conhecido por Cigano Beiju. O reverendo "Rue" teve, em
1831, um mau fim, depois de sete anos de bem sucedida vilania; ajudado
pelo cigano, fugiu da prisão e escondeu-se em uma caverna, perto de São
José da Paraíba, e foi morto a tiros pelo destacamento que o
perseguia."
Já
o Cigano Beiju acusado de inúmeros assassinatos, "teve sua
carreira encerrada, por enforcarmento em lugar dos assassinos que por
longo tempo desgraçavam a Serra da Mantiqueira".
Por essa época, eram freqüentes as acusações contra ataques ciganos
em estradas do Centro-Sul do Brasil.
Raramente
os bandos ciganos percorriam longas distâncias, de uma província a
outra ou mesmo por diversas províncias brasileiras. Pois estas viagens
duravam semanas e até meses, o que custava um enorme empenho econômico
e físico. A maior parte dos deslocamentos ciganos envolvia distâncias
entre cidades vizinhas, ou entre cidades da mesma comarca.
As
movimentadas estradas e caminhos eram percorridos pelas mais diferentes
gentes, tornando-os intinerários cheios de surpresas e até difícieis
e perigosos. De uma região para outra, famílias se deslocavam,
negociantes tratavam de suas atividades, juristas e clérigos tomavam
suas ações nas áreas que coordenavam, capitães do mato perseguiam
escravos fugidos, naturalistas buscavam novas espécies minerais,
vegetais ou animais, tropeiros conduziam suas tropas de mulas e os
vaqueiros suas boiadas. Todos esses viajantes enfrentavam inúmeros
problemas, como a má conservação das estradas e os imprevistos mais
diversos. Nesse contexto, os ciganos eram tidos como um empecilho
adicional às desagradáveis viagens.
Dificilmente
os ciganos encontravam a mesma recepção que os viajantes eventuais em
geral encontravam em ranchos para pernoitar, nas estradas mais
percorridas. Também nos caminhos mais difíceis e isolados não podiam
contar com a ocasional hospitalidade dos donos de sítios e fazendas.
Por isto estavam acostumados a não dependerem da boa vontade de
estranhos. Utilizando frequentemente suas barracas, e algumas vezes
mesmo cavernas, os ciganos enfrentavam assim a questão do abrigo.
Uma
das situações mais incômodas destas viagens era a travessia de algum
rio, já que para isto as bagagens deveriam ser retiradas do dorso das
mulas. A passagem dos animais pela corrente do rio era a nado. As
pessoas utilizavam eventualmente algum tipo de balsa ou canoa, que era
importante sobretudo para o transporte dos fardos. Na outra margem
recarregavam as mulas e remontavam nos cavalos. A viagem prosseguia.
Independente
de sua localização, cada acampamento existia mediante os limites, as
fronteiras simbólicas, construídas pela oposição aos "de
fora". A identidade se afirmava por uma continuidade no tempo e uma
permanência num espaço, um espaço portátil, já que os acampamentos
mudavam em suas localizações, mas permaneciam como território cigano.
a)
Diligências policiais: tiroteios, mortes e prisões.
Nos
Relatórios dos Chefes de Polícia de Minas Gerais, durante o século
XIX, é comum aparecerem os subtítulos "Invasão de ciganos"
e "Correrias de ciganos", descrevendo diversos confrontos
entre a força policial e os ciganos. Também nos jornais do período, a
expressão "Correrias de ciganos" serve de título para
diversas matérias. O dicionário de Antonio de Moraes Silva grava
correria como sendo, simplesmente, uma "assaltada repentina de
inimigos, que vão correr a Terra."
Assaltada, que é sinônimo de assalto, refere-se a uma ação súbita
de alguém, ou seja, uma incursão, um ataque feito com alguma violência.
Mas também serve para designar uma fuga, um correr desordenado, em
todas e em nenhuma direção, provocando o incômodo dos que estão próximos
a esta movimentação. As autoridades policiais encaravam os ciganos
como "perturbadores da ordem", pois eram acusados de roubos
diversos e de corromperem os costumes, colocando em perigo a ordem pública.
Como se verá mais adiante, a repressão policial fundamentava-se, ao
menos em parte, em pressupostos higienistas.
Apesar
de serem na documentação policial uma presença quantitativamente
maior, ainda assim as referências aos ciganos aparecem nela muito
ocasionalmente. Embora quando se registram crimes e contravenções de
ciganos, estes fatos mereçam destaque. O número de ciganos sempre foi
muito pequeno em relação ao total da população mineira, portanto a
presença ocasional dos ciganos na documentação, que foi se tornando
mais freqüente na segunda metade do oitocentos, era proporcionalmente
mais significativa do que sua importância no contexto demográfico. Por
isso, pode-se dizer que apesar de serem relativamente poucos, os ciganos
causavam grande incômodo às autoridades policiais e às próprias
populações locais. Essa documentação proporciona poucos dados para o
conhecimento da vida privada dos ciganos e de seu cotidiano, além dos
confrontos com não-ciganos, que requeriam a presença policial. Pois os
ciganos não procuravam as autoridades para resolver questões
familiares ou dos próprios bandos.
Na
última década do século XIX e nos primeiros anos do século XX, entre
as principais diligências, a polícia mineira executou operações que
combateram numerosos bandos de ciganos. Em seguidos anos, os relatórios
dos comandantes da Brigada Policial, informam que o maior número de
baixas em serviço são provocados pelos confrontos com ciganos.
Segundo
a documentação policial e os jornais, as localidades envolvidas são
umas seis dezenas, mas não incluem Ouro Preto. Embora esta cidade não
tenha sido cenário dessas correrias, enquanto capital, a cidade tinha
seu cotidiano afetado por estes episódios. Em Ouro Preto eram
centralizadas as comunicações telegráficas, e eram coordenadas muitas
das ações contra os ciganos. De lá, partiam e voltavam destacamentos
da Brigada Policial. Iam determinados e retornavam comemorando o sucesso
das diligências ou lamentando fracassos e baixas no efetivo. O Chefe de
Polícia do Estado descreve, com indignação, a presença de:
"centenas
de ciganos, em diversas zonas do Estado", que vinham
"provocando desordens, munidos de fino armamento e de carabinas das
mais modernas, promptos á tenaz resistencia aos destacamentos, que os
perseguem, proclamando abertamente seu desrespeito aos poderes
constituidos."
A
preocupação deste Chefe de Polícia com os ciganos era tamanha que o
levou a fazer algumas considerações sobre estes
"aventureiros", que visavam "exclusivamente o
roubo", procurando explicar as "invasões de ciganos".
Seu olhar estrangeiro é evidente, como transparece na observação de
que os ciganos são "desligados de todas as aggremiações
partidarias; baldos de sentimentos patrioticos; divorciados das mais
rudimentares noções de dever cívico." Em contrapartida, os
ciganos não se identificavam em nada com os valores vigentes, que lhes
pareciam completamente estranhos. Por isso, os ciganos aqui não são
vistos como tendo uma cultura própria; eles são notados pela ausência
de valores, atitudes e condutas prezadas pela elite brasileira, que
procurava alcançar plenamente a “governamentalidade”, a civilização
e o progresso. Assim, os ciganos são tidos como apolíticos, "sem
patria, sem religião, sem lei", sem civismo e incivilizados. Os
valores ciganos eram tidos como algo tão absurdo que nem sequer eram
percebidos como sendo traços de uma outra cultura.Além disso, como "forasteiros", os ciganos são vistos
com extremo temor, pois se apresentam "de armas na mão, conduzindo
munições de guerra", semeando "o terror por toda
parte", "vivendo até aqui dos roubos e pelos roubos."
Muitas
vezes, na documentação policial, fala-se que os ciganos estavam bem
armados e municiados, mas é difícil crer que pobres ciganos tivessem
mais armas e munições que a força policial. Excetuando facas e
punhais que tinham originalmente outras funções, na maioria das vezes,
os ciganos dispunham apenas de eventuais pistolas e carabinas velhas,
cuja munição era difícil de ser conseguida pelo interior de Minas. No
entanto, se os ciganos são apresentados como bandidos valentes nos
embates contra a força pública, não têm honra, são covardes, já
que:
"uma
vez atacados em seus acampamentos, já
não defendem o producto de suas depredações; abandonam
valores, animaes, bagagens e até as mulheres e crianças, que os
acompanham, para somente salvarem as suas pessoas e as suas armas,
carabinas dos mais aperfeiçoados systemas!"
Deixar
mulheres e crianças para trás era talvez uma estratégia de sobrevivência
dos bandos perseguidos, que facilitava a fuga dos homens, tornando-a
mais rápida. Sabia-se também que mulheres e crianças, mesmo sendo
ciganas, evocariam a piedade da polícia, pois eram consideradas frágeis.
Portanto, não deveriam ser maltratadas.
Nos
primeiros meses de 1897, a força armada estadual fez constantes e
"fatigantes marchas e contramarchas", provocando a debandada
dos ciganos. A polícia agia expulsando os ciganos de cidade em cidade,
sem promover um extermínio generalizado e também sem tentar
estabelecer qualquer acordo. A crueldade dos ciganos proporciona uma
"porfiada e sanguinolenta lucta" com a louvada força armada
do Estado, que apesar de ter de enfrentar "renhidos combates e
tiroteios", tem "com valor e lealdade sustentado á bem da
segurança pública e dos direitos" dos cidadãos.
Ser
cigano significava, no mínimo, estar sob suspeita. As ações policiais
eram precipitadas na apuração de supostos crimes cometidos por
ciganos. Muitas vezes, eram presos, torturados, tinham confiscados seus
bens e enfrentavam tiroteios apenas por serem ciganos. Mas não era viável
prender muitos ciganos; ao menos por longo tempo, pois houve, durante o
século XIX, um constante problema de superlotação das cadeias, que
era agravado "nos períodos de instabilidade política."
Na
localidade de Fonseca, "invadida e saqueada" por ciganos,
morreram "o bravo alferes Symphoriano Alves dos Passos e uma praça",
além de se ferirem também "4 praças, algumas gravemente".
O tiroteio em que foram vitimados os policiais não foi justificado no
relatório pelo Comandante da Brigada Policial. Assim, como não foi
feita referência a ciganos vitimados.
Comentando
a morte do alferes Symphoriano dos Passos, o chefe de Polícia, em relatório
de 1898, não economiza considerações em seu prejulgamento dos
ciganos: "esses vandalos são chefiados por criminosos de
homicidios e dentre estes pelo responsavel pelo barbaro assassinato do
alferes Symphoriano dos Passos (...)".
Ocorre que não se trata de assassinato "a sangue frio", mas
uma morte decorrente de um tiroteio. Não houve um assassinato
propriamente dito, não foi homicídio doloso (premeditado), mas
culposo, porque decorreu de uma situação na qual os ciganos respondiam
a agressões policiais. Não houve intenção específica de se matar o
alferes.
O
confronto foi contra a "horda de ciganos, capitaneados por Deolindo
de Souza, desertor da Brigada do Estado do Rio de Janeiro".
Esta informação apresenta-se estranha: como e por que um indivíduo
desertor da força policial, por conseguinte originalmente não-cigano,
podia chefiar um bando de ciganos? Considerando que se trata de um dado
fidedigno, em primeiro lugar, há a possibilidade remota de Deolindo ser
cigano de nascimento. Segundo, existe a possibilidade de ele ter se
casado com uma cigana, após ter desertado. Então, teria conquistado a
confiança dos ciganos do bando com seus prováveis conhecimentos
adquiridos na brigada policial, onde deve ter feito diversas viagens em
diligências. Logo, deveria conhecer bem a vida das viagens no sertão.
Outro aspecto a ser considerado, é que deveria ser interessante para os
ciganos, ter um líder que pudesse, de acordo com as circunstâncias, no
contato com os não-ciganos, fazer prevalecer ora uma identidade cigana,
ora sua descendência não-cigana.
Se
considerarmos que o dado é equivocado, é possível que a polícia
identificasse, erroneamente, bandos de criminosos não-ciganos como
sendo ciganos. Por fim, talvez o termo cigano tenha se aproximado de se
tornar sinônimo de criminoso.
A
preocupação com os ciganos era tanta que o dito major "operou em
comum accôrdo de vistas com a força fluminense, também em acção
contra os ciganos."
A Zona da mata recebeu "grandes contingentes" da força
policial, desde que os ciganos "infestavam diversas
localidades", onde cometiam "toda sorte de depredações."
No mesmo ano, as localidades do município de Mariana sofriam com
incidentes semelhantes.
No
ano seguinte, o mesmo chefe de polícia relata uma "nova invasão"
de ciganos que ocorreu nos municípios da zona da Mata. Segundo essa
autoridade, não era "preciso accentuar que muitas depredações e
assassinatos commeteram estes selvagens, aventureiros perigosos."
Sempre indignado, mais adiante, opõe os "aventureiros
perigosos" às "laboriosas populações" vitimadas.
Algumas
vezes, as perseguições policiais surgiam gratuitamente. Acuavam-se
bandos ciganos sem que houvesse qualquer acusação de delito. A polícia
ia ao encalço deles só por serem ciganos, ou seja, por serem sempre
supostamente criminosos. Foi o que aconteceu, por exemplo, no seguinte
episódio:
"No
dia 25 de maio de 1897, o delegado de policia de Cataguases, baseado em
informações fidedignas, avisou ao major Jacintho Freire de Andrade,
que se achava no Porto de Santo Antônio, de que a Aracaty havia chegado
um bando de ciganos.
Nesse
mesmo dia seguiu o major Jacintho Freire, em trem especial, com a força
do seu commando, para Aracaty, onde teve noticia de que os ciganos
achavam-se acampados em uma fazenda, dalli distante uma legua.
A
força abeirou-se da referida fazenda e, preparada, aguardava o romper
do dia para entrar em acção, mas os ciganos presentindo-a dispararam
tiros que não a attingiram.
Immediatamente
a força fez uma descarga sobre os bandidos, que em desordenada fuga
deixaram mulheres, bagagens e animaes, sendo apenas attingidos pelas
balas um homem, uma moça e um menino que morreram logo. Foram presos
algumas mulheres e apprehendidos 23 animaes e bagagens."
Outras
vezes, além de não averiguar as acusações contra os ciganos, a Polícia
ajudava cidadãos a fazerem justiça com as próprias mãos, como no
episódio ocorrido em 1902:
"Procedentes
de S. Sebastião do Herval, municipio de Viçosa, os cidadãos Pedro
Antonio Ferreira, Virgilio José Ribeiro e Marciano Dias Eduardo, no
encalço de tres ciganos que lhes haviam roubado dous animaes, chegaram
a 4 de abril do anno transacto á povoação do Campestre, onde
encontraram os ditos ciganos e os animaes roubados.
Como
se oppuzessem os ladrões a fazer entrega dos animaes, travou-se um
conflicto, de que resultou ficarem gravemente feridos Pedro e Marciano.
Chegando
esses factos ao conhecimento do delegado de Ubá, este seguiu para o
logar do conflicto, onde ainda poude apprehender os animaes, fugindo os
ciganos em direcção à Serra da Onça.
Continuou
a auctoridade a perseguil-os com a força que levava até ao districto
de Cataguarino, cujo subdelegado começou por sua vez a auxilial-o na
diligencia, até que, proximo á fazenda do Sr. Francisco Silveira,
puzeram-se os ciganos a resistir á escolta, que por essa occasião teve
necessidade de utilizar-se de suas armas, matando os de nome Totó e
Osorio, pertencentes ao grupo do famoso Duque, conseguindo evadir-se o
de nome Christiano."
Não
havia uma política bem coordenada contra os ciganos. Quando se
realizavam diligências policiais, geralmente eram convocados paisanos.
A intenção era a de expulsá-los para fora dos limites do município,
fazendo uso constante de violência. Entre junho e outubro de 1899, por
exemplo, um bando de ciganos é sucessivamente expulso de São João
Nepomuceno, Ubá, Muzambinho e Ponte Nova.
Em alguns casos, como em 1897, quando a Zona da Mata teve diversos
problemas com ciganos, enviava-se uma força policial adicional para
combatê-los. Nestes casos, em que uma região era freqüentada por
ciganos durante meses, a tentativa da Brigada Policial era enviá-los
para fora de Minas, principalmente para o Rio de Janeiro.
b) O
destino das apreensões: crianças, bagagens e animais.
A
repressão policial vinha custando ao Estado "preciosas vidas e
alta somma de dinheiro",
mas os cofres do tesouro recebiam o valor dos bens dos ciganos, que eram
sempre confiscados e leiloados. A apreensão dos bens (objetos, mulas
etc.) dos ciganos era feita sob a alegação de serem roubados. Na
verdade, o simples fato de esses bens estarem com eles era motivo
suficiente para serem considerados roubados. Aos ciganos, era quase
negado o direito à posse de bens. As acusações de roubo existem sem
que haja ocorrências formais.
A
documentação sobre isto, apesar de reduzida, é esclarecedora. Vejamos
alguns exemplos: Os animais e as bagagens, deixados após a fuga dos
ciganos de seu abarracamento, foram arrecadados pela autoridade policial
de Conceição do Turvo, depois de um sangrento confronto, em janeiro de
1892. O jornal O Estado de Minas ressalta que essa arrecadação era
insignificante tendo em vista que "sempre soffreram seu prejuízo."
A
violência e a surpresa com que os ciganos eram muitas vezes
surpreendidos pela polícia, faziam que, em suas escapadas, deixassem
muitos animais e bagagens para trás. A arbitrariedade da autoridade
policial que se seguiu à correria dos ciganos, fez um dos editores de O
Estado de Minas lamentar perplexo tal acontecimento:
"Na
Conceição do Turvo ficaram as bagagens dos ciganos e muitos animaes,
segundo communicação recebida do subdelegado de policia daquella
freguezia.
Nos
bahús, de que se compunham essas bagagens, foram encontrados relogios
de ouro, arreios de prata, roupas servidas, e duas machinas para fabricação
de cartuchos.
O
commandante da força, que é um capitão de policia, apoderou-se de
todos os objectos apprehendidos e mandou atiral-os nas ruas,
distribuindo uma parte delles por pessoas pobres, que appareceram na
occasião, e mandando queimar outra parte.
Não
sei se ha, neste paiz, lei que justifique tal procedimento, que poderá
ser muito regular entre os povos da China ou do centro da Africa...
Aqui,
no Brasil, penso eu que não se pode impunemente, realizar semelhante
loucura.
Enfim,
como a espada está na ponta... calemo-nos, della evitando a
ponta."
Sobre
uma diligência contra ciganos em São João Nepomuceno, em junho de
1899, escreve-se que se não "apparecesse senhorio certo" para
os animais apreendidos, eles deveriam "ser entregues ao juiz de
direito para mandar vendel-os em hasta publica, recolhendo-se o producto
aos cofres do Estado";
idêntica situação acontece para a diligência em Ubá, quando depois
de se desvalorizar os animais apreendidos, dizendo serem "quasi
imprestáveis", relata-se que "caso não apparecessem seus
legitimos donos" deveriam ser "vendidos em hasta pública
(...) o producto da venda recolhido á collectoria local."
Encontraram-se
apenas dois documentos que não se referem aos animais e objetos de
posse com os ciganos e considerados roubados; o primeiro deles trata-se
de uma matéria publicada em 1892,
descrevendo uma diligência em Carangola e Ubá que vinha "ao encalço
dos ciganos"; informa que foram apreendidos "24 animais,
canastras e outros objetos (...) os quais pertenciam aos mesmos";
embora os textos dos periódicos fossem muito próximo dos textos
policiais, como se constatará mais à frente, muitas vezes,
reproduzindo as correspondências policiais, é um pouco menos
depreciativo em sua visão dos ciganos. O segundo registro é o relatório
de 1899, que reconhece pertencerem aos ciganos as bagagens e animais
apreendidos numa diligência em Itapecerica, entre o final de janeiro e
o início de fevereiro de 1899.
Embora
diversos relatórios policiais afirmem que as crianças ciganas,
deixadas nas fugas, seriam recolhidas pelas autoridades competentes,
deduz-se que estas crianças ficavam pouco tempo "sob o
cuidado" delas, que não se havia meios adequados para tal
acolhida. De 1895 a 1901, funcionou a Colônia Correcional do Bom
Destino, para o menor vagabundo. Mas em 1901, ainda não havia uma
"solução" adequada para menores delinqüentes ¾
que os reabilitassem pela educação e pelo trabalho.
c)
Repercussões na imprensa.
Os
jornais apresentaram, a partir de 1881 e até 1897, um conjunto de notícias
intituladas "Correrias de ciganos", "Bando de
ciganos" ou simplesmente "Ciganos", que tratavam desde
acusações de seqüestro de uma ingênua moça e roubos de animais, até
narrações dos tiroteios com a polícia e as conseqüentes fugas.
Nessas matérias, o texto aproxima-se bastante dos textos policiais,
sendo que ocasionalmente algum jornalista arriscava alguns comentários
extras.
Muitas notícias transcreviam extensos trechos de relatórios,
correspondências, telegramas e ofícios das autoridades policiais.
O
melhor exemplo dos elogios à Polícia foi dado pela reprodução do ofício
de felicitações do conselho distrital de Santo Antônio do Grama
(município de Abre Campo) ao Dr. Aureliano de Magalhães, chefe de Polícia
do Estado. Depois de descrever como as "maltas de ciganos"
vinham impunemente praticando os mais bárbaros assassinatos e depredações,
"ha mais de cinco anos", congratula-se com o rechaço dos
ciganos, que "eram uma ameaça constante aos pequenos
povoados". Cada adjetivo agregado à palavra ciganos era uma forma
de exaltar a Polícia. A intenção era contrastar a
"crueldade" dos ciganos com a "coragem" da Força
Policial. Ao festejarem a debandada geral dos ciganos imposta pelas
autoridades, acreditam que isto tem o "sentido de sanear moralmente
o Estado."
A
imprensa se incumbiu de manter os leitores informados, da melhor maneira
possível, sobre os problemas causados pelos ciganos, como já vimos. Além
disso, os jornais não se cansaram de elogiar as atuações das forças
policiais contra os ciganos. E o papel dos jornais se completava, neste
sentido, divulgando avisos e editais da Secretaria de Polícia sobre
apreensões de animais que estavam em posse dos ciganos. Em 1886, por
exemplo, o Liberal Mineiro acusa "uma troça de ciganos, que tem
percorrido diversos pontos da provincia", de estarem com animais
suspeitos de serem roubados:
"Uma
besta ruça queimada, alta, de primeira muda feita; uma dita vermelha,
muito alta, segunda muda; seis queimadas; duas pello de rato, bem
feitas; um burro da mesma côr; um cavalo baio-camurça; um ruço,
marchador e muitos outros."
Após
esta descrição minuciosa dos animais, o jornal informa que os
interessados devem procurar alguns senhores em Cataguazes.
Com
a intenção de tornar menos arbitrário o destino dado às apreensões
dos bens ciganos, o Minas Geraes publicou 33 vezes, entre 19/20 de abril
e 10 junho de 1897, o seguinte aviso da Secretaria de Polícia:
"O
dr. Chefe de Policia faz publico que se acham depositados, nesta
Capital, 48 animaes apprehendidos dos ciganos, que ultimamente, vindo
dos Estados do Rio de Janeiro e Espírito Santo, percorreram diversos
municipios do território mineiro e fazendo violencia á propriedade e
vida dos cidadaos.
Quem
se julgar, pois, com direito a qualquer dos animaes acima mencionados,
deverá, no prazo maximo de 60 dias, apresentar, nesta secretaria,
justificações legaes, para consequente restituição, visto como,
findo este praso, serão os alludidos animaes levados á hasta publica,
tendo o seu producto applicação previstas em lei.
Secretaria
de Policia, 14 de abril 1897.
Pelo
Chefe de Policia, Antonio de Almeida."
Para
divulgar o local, a data e o horário em que seriam colocados à venda
os animais que não foram reclamados pelos seus proprietários,
publicou-se 7 vezes, entre 2 e 14 de junho de 1897, o seguinte edital:
"De
ordem do exm. sr. dr. Chefe de Policia, faço publico que a contar da
data de 17 do corrente mez e nos dias subsequentes, terá logar, em
frente á Secretaria da Policia, das 11 horas da manhã ás 3 da tarde,
a praça de todos os animaes apprehendidos dos ciganos e não reclamados
dentro do praso marcado em aviso desta Repartição, datado de 14 de
abril último e publicado no Minas Geraes; estando todos os animaes
devidamente assignalados, por ordem da Policia, para garantia dos
futuros possuidores".
A
presença dos ciganos na pauta da imprensa no final do século,
expressava o incômodo que eles representavam para as elites locais.
Excetuando-se as diferenças político-filosóficas, a imprensa defendia
a civilização, o progresso e os avanços da ciência; o que se pode
ler nas entrelinhas como sendo um projeto de educação e controle da
população. Embora o público leitor concentre-se na "boa
sociedade", as discussões feitas na imprensa repercutiam
diretamente no cotidiano da população, em quem a imprensa fomentava as
determinações políticas das elites locais.
d) Prováveis
causas das correrrias.
Quando
se pergunta por que surgiram as Correrias de ciganos, principalmente na
última década do oitocentos em Minas Gerais, a resposta parece ser a
simultaneidade de vários fatores. Sintetizando o que se tratou
anteriormente, as transformações que ocorreram na economia e na
sociedade, com o gradativo desmantelamento do escravismo, tiveram um
profundo impacto na vida dos bandos ciganos.
Com
a abolição da escravatura em 1888, alguns bandos de ciganos perderam
sua principal atividade econômica (o comércio de escravos). O Campo de
Sant'Ana e as ruas dos Ciganos e Valongo, no Rio de Janeiro, viveram o
apogeu da comunidade cigana nas primeiras décadas do século XIX. E à
medida que transcorria o século, essa comunidade foi entrando em decadência,
junto com o comércio de escravos, tanto pelo fim do tráfico negreiro
(1850) quanto pela crescente introdução de mão-de-obra assalariada e
pela divulgação das idéias abolicionistas. A abolição da
escravatura foi o golpe final no comércio negreiro dos ciganos.
Nossa
hipótese é a de que alguns bandos deixaram o Rio de Janeiro rumo a
Minas Gerais, com isto aumentando significativamente o número deles no
território mineiro. O que explicaria porque a Zona da Mata,
principalmente a Serra da Mantiqueira, tornou-se uma região de intensa
movimentação de ciganos. O aumento da população escrava na Zona da
Mata e a hipervalorização dos cativos, de meados do século às vésperas
da abolição, muito provavelmente atraiu traficantes ciganos.
Também
no final do século XIX, com a crise acentuada da lavoura canavieira no
nordeste, junto com o êxodo de homens pobres livres do Nordeste,
sobretudo da Bahia
para o Centro-Sul, em busca de melhores salários e condições de
sobrevivência,
vieram para Minas Gerais também ciganos caldeireiros, que até então
trabalhavam no conserto de peças e objetos de latão e de cobre, nos
engenhos da zona da mata nordestina.
O
afluxo de imigrantes europeus (alemães, italianos, russos e outros) ao
Brasil ocorreu desde os anos 1870, e aumentou consideravelmente a partir
de 1888. Ou seja, após a abolição definitiva da escravidão negra no
Brasil, quando os escravos africanos passaram a ser substituídos por
miseráveis e famintos imigrantes europeus. Entre estes certamente havia
também centenas, ou talvez até milhares de ciganos Rom não-ibéricos,
que quase nada tinham e nem hoje têm em comum com os ciganos Calon ibéricos
e brasileiros, a não ser talvez a errônea denominação genérica de
“ciganos”. Os números exatos destes novos imigrantes ciganos Rom
nunca serão conhecidos, por absoluta falta de documentos históricos.
Acontece
que estes novos ciganos Rom adicionaram também novos problemas à relação
com a sociedade mineira,
pois eram culturalmente diferentes daqueles ciganos de origem ibérica,
os Calon, que há séculos percorriam o território mineiro.
Descartadas
as noções de simples imitação ou a idéia fora do contexto,
o ideal de cientificidade afirmou-se no país, mais por uma certa ética
de compromisso assumida pelos intelectuais que pelo incentivo a
pesquisas originais. Os eruditos deveriam abraçar o desafio de mudar
(ou de definir) a configuração racial do Brasil, através de uma
avaliação segura da "realidade" e pela definição de estratégias
de ação. Em alguns casos eram propostas soluções da eugenia e do
extermínio de populações indesejáveis, principalmente, indígenas.
Possivelmente isso inspirou as ações da polícia mineira nas Correrias
de ciganos. Outras vezes, propunha-se um esforço educativo para
integrar certas parcelas da população, tentando-se ordenar o espetáculo
das raças. Tais ações seriam importantes na medida em que formar a raça
brasileira significava construir a nacionalidade.
Ambos
os conceitos eram fracos, pois os intelectuais brasileiros e europeus
estavam de acordo frente à noção de que o Brasil representava um caso
único e singular da chamada mistura de raças. Enquanto os estrangeiros
afirmavam a impossibilidade de se construir a raça a partir da
miscigenação, os brasileiros queriam contornar a visão pessimista. No
final do século XIX, os ciganos estavam fora do espetáculo brasileiro
das raças. Ao contrário da Europa, onde eram vistos como mestiços
degenerados, no Brasil eram tidos como raça maldita, inferior e, que
para o mal da nação, não se misturava. Em fins do século XIX, a
perseguição aos ciganos repercutia as transformações ligadas à
construção da identidade nacional, cada vez mais "racializada".
Os pensadores do eugenismo na Europa (Gobineau, Le Bon e Haeckel, entre
outros) julgavam, a princípio, que as raças eram quase espécies, sem
ligação entre si. Esta visão tornou-se difícil de se sustentar em
termos biológicos, pois era óbvia a interfecundidade entre as populações
humanas. Então, os teóricos do racismo biológico se ajeitaram para
rebater tal teoria da seguinte forma: de fato, existe interfecundidade,
mas o fruto desta mistura são seres caóticos, híbridos. Um mestiço não
seria nem de uma raça nem de outra. Formou-se então uma obsessão de
contato e de mistura entre raças, porque imaginariamente deteriorava os
costumes e promovia a sujeira. No Brasil, ao contrário, o discurso
predominante não via na miscigenação algo negativo, ou seja, que
degenerava a população. As teorias racialistas/eugenistas foram
re-acomodadas às problemáticas nacionais.
Os
pensadores brasileiros adotaram modelos cujas decorrências teóricas
eram originalmente outras. Incorporou-se, de um lado, o darwinismo
social com seu postulado da diferença entre as raças e sua natural
hierarquia e a comprovação da inferioridade de largos setores da
população (entre os quais os ciganos). No entanto, sem que se
problematizasse a implicação negativa da miscigenação. Por outro
lado, a partir do evolucionismo sublimou-se a noção de que as raças
humanas não permaneciam estacionadas, mas sim em constante evolução e
"aperfeiçoamento", obliterando-se a idéia de que a
humanidade era una. A realidade nacional passa a ser definida por uma
história pautada em princípios raciais e o Brasil aparece como um
grande laboratório racial.
Nas
últimas décadas do oitocentos, com o crescente papel da medicina
social, o projeto higienista associou os ciganos à mais baixa escória,
caracterizando-os como "horda, malta, manada de facínoras e/ou
desordeiros". Individualmente, o cigano era tido como preguiçoso,
vagabundo e sujo, assemelhando-se à imagem do homem livre pobre. Mas o
cigano era visto, antes de tudo, como um ladrão em potencial. O
higienismo via nos ciganos, sem a antiga ocupação, um incômodo enorme
às normas sanitárias que estavam sendo implantadas, principalmente no
Rio de Janeiro, que deveria ser o modelo da nova cidade racionalmente
organizada; isso trouxe aos ciganos maiores problemas com a polícia,
provocando suas freqüentes fugas em direção às cidades vizinhas ou
ao interior.
A maior
parte dos ciganos sempre dependeu do mercado consumidor não-cigano,
tanto para seus serviços, como a quiromancia, quanto para seus produtos
comercializados. Assim, os ciganos tiveram sua história atrelada à
história das cidades.
Na
medida que o processo de urbanização foi se acentuando no Brasil
durante o século XIX, acampanhado pelo discurso da civilização e do
progresso, os ciganos foram sendo cada vez mais segregados do espaço
urbano. As autoridades desejavam tê-los o mais longe possível, na
periferia ou fora do perímetro urbano. As sucessivas escaramuças
sofridas pelos ciganos, de uma cidade a outra, foi a principal causa das
‘correrrias de ciganos’. Tal acontecimento se constitui em uma das
maiores perseguições contra ciganos na história brasileira.
Capítulo
3.
A
INSERÇÃO DOS CIGANOS NA ECONOMIA DO SÉCULO XIX.
Desde
que chegaram ao Brasil, o comércio foi, de fato, a mais importante
atividade dos ciganos. Comercializavam as mais diversas mercadorias, com
destaque para cavalos e mulas. Entre o final do século XVIII e o início
do XIX, muitos ciganos interessaram-se pelo comércio de escravos.
Embora não tenham deixado de negociar suas mercadorias tradicionais, o
comércio de cativos transformou, sensivelmente, o papel dos ciganos na
sociedade e na economia, sobretudo nas primeiras décadas do oitocentos.
A
versatilidade dos ciganos para o exercício das atividades econômicas
mais favoráveis diante das circunstâncias, foi um dos principais
fatores para sua sobrevivência ao longo do tempo. Ao encontrarem nichos
econômicos desocupados, onde pudessem exercer alguma de suas inúmeras
atividades, eles encontravam formas de se inserir em sociedades hostis
que, eventualmente, os tolerariam.
Comerciantes
de tecidos, roupas, jóias e quinquilharias.
Apesar
da má fama, muitos ciganos comerciantes conseguiram, por meio de uma
conduta inatacável nos negócios, a confiança de inúmeros clientes
que os aguardavam periodicamente para fazerem barganhas. O comércio das
mais diversas mercadorias oferecia aos ciganos a oportunidade de algum
tipo de sociabilidade com as populações locais.
Nas
barganhas os ciganos geralmente buscavam o lucro, mas além dele, a relação
de troca envolvia também uma relação de prazer no ato da transação.
O prolongamento da transação, a pechincha, enriquecia as relações
humanas, o que eles prezavam muito. Talvez isto fosse a única forma legítima
e possível de diálogo entre ciganos e não-ciganos. Ao pechinchar, o
comprador demonstrava seu respeito ao cigano, e vice-versa.
O
comércio cigano concorria com o dos mascates portugueses, judeus e, a
partir da Independência, com os novos mascates vindos, por exemplo, da
Itália, do Líbano e da Síria. A imprevisibilidade da vida cigana não
permitia que vendessem à prestação como os mascates judeus. Além
disso, os ciganos perdiam a disputa pela atenção e o dinheiro das
populações visitadas, porque os mascates procuravam atender pedidos e,
ao mesmo tempo, criar demanda. E portavam uma variedade maior de
produtos a oferecer, enquanto os ciganos negociavam artigos conseguidos
em sucessivas barganhas. A facilidade com que aceitavam fazer trocas,
era o que mais favorecia o comércio cigano.
Entre
os diversos objetos comercializados pelos ciganos, além de "relógios
de ouro" e "arreios de prata",
havia tecidos e roupas. Na segunda metade do século XIX, com o conjunto
de regras rígidas adotadas quanto à vestimenta, sobretudo nas camadas
mais altas, graças aos esforços higienistas, propiciou-se um
"aumento do comércio de roupas".
Isto fez com que os ciganos prestassem mais atenção ao comércio
de tecidos, e, secundariamente, ao de roupas.
Comerciantes
de cavalos e bestas de carga.
Durante
todo o século XIX, a atividade de barganhista de cavalos e bestas de
carga foi descrita por diversos viajantes estrangeiros e memorialistas
que se encontraram com ciganos pelo interior do país, muitas vezes
encetando negócios com eles. Além de serem acusados de negociar
animais roubados, pesava sobre os ciganos a acusação de embusteiros,
ao transformarem pangarés em vistosos cavalos de raça e convencerem os
compradores de que o eram. Alguns desses ciganos conjugaram esta ocupação
com a negociação de escravos, comprados ou permutados, principalmente,
nos mercados da Corte.
Algumas
trapaças devem ter realmente ocorrido no mencionado comércio.
Provavelmente, não porque os negociantes fossem ciganos, mas porque tal
atividade proporcionava muitas possibilidades para enganos. Há de se
considerar também que eventuais trapaças ocorressem com o intuito de
se reafirmar a identidade cigana frente aos não-ciganos. Enganar o não-cigano
era, ocasionalmente, algo valorizado entre os ciganos.
No
entanto, não havia tantos embustes quanto se apregoava, pois apesar da
péssima imagem associada aos comerciantes de cavalos e bestas de carga,
durante todo o período analisado foram freqüentes as negociações.
Certamente os ciganos consolidaram uma tradição nessa atividade, com méritos.
Os
ciganos que Saint-Hilaire encontrou em 1819, em Urussanga, que estavam
instalados em Mogi-Guaçu
(cidade relativamente próxima ao limite com Minas), talvez estivessem
indo ou vindo de Sorocaba. Nesta cidade, durante quase todo o século
XIX, funcionou o maior centro de comércio de muares trazidos dos
pampas. Era um dos principais pontos onde os tropeiros de Minas
renovavam suas tropas com muares vindos da Província do Rio Grande de São
Pedro do Sul, principalmente da cidade de Viamão.
Uma
vez que a maioria dos animais vendidos em Sorocaba eram chucros,
é bem provável que os ciganos tenham se destacado como amansadores, já
que tinham também uma longa tradição neste trabalho.
Quando os animais estavam acertados para receber a carga ou a sela, seu
valor aumentava significativamente.
Em
Barbacena, em 1821, o diplomata e naturalista britânico Alexandre
Caldcleugh entabulou negociações para a compra de um cavalo. No
entanto, desistiu do negócio quando foi avisado de que o negociante era
cigano. Demonstrando que o boato das supostas trapaças cometidas por
ciganos se perpetuava sem muito esforço, o viajante deixa transparecer
no diário de viagem seu desprezo pelos mesmos:
"Assim
é esta raça de vagabundos faiscadores do ouro na Hungria e Transilvânia,
latoeiros na Inglaterra, vendedores de cavalos no Brasil! (...) Seja
onde for revela sempre os mesmos característicos da duplicidade e
velhacaria que tanto a destaca do resto dos humanos!"
A
barganha com animais aceitava troca por qualquer objeto (espingarda,
tacho de cobre, tecido, etc.), ou mesmo por outros animais. Fundamental
para o barganhista cigano era a "volta", ou seja, a importância
em dinheiro ou não que "equiparava" o valor dos bens
negociados. Era nisto que consistia, via de regra, o seu lucro.
A
ocupação de barganhista era desprezada, embora fosse importante nas
regiões onde havia escassez de meio circulante. Identificados como
desonestes, os barganhistas eram vistos pela população em geral, com
desconfiança, principalmente se fossem ciganos.
Os
ciganos se utilizavam basicamente dos mesmos cavalos que dispunham os
mineiros, não havia uma raça eqüina usada apenas ou preferencialmente
por eles. Porém, como a cultura cigana se apoiava em variáveis sutis,
havia o estilo cigano de tratar e de montar o animal. Debret, por
exemplo, ao comentar uma de suas pranchas, na qual aparece uma cigana
montada num cavalo com as duas pernas voltadas para o mesmo lado,
enquanto o marido ia sentado a frente com os arreios na mão, diz:
"Esta é a única nação que usa desta maneira de montar cavalo em
público."
Os
ciganos necessitavam de muitos cavalos para fazerem as constantes e
prolongadas viagens, algumas delas em fuga, quando tinham de percorrer
as distâncias no menor tempo possível.
Cavalos extras deveriam acompanhar os bandos ciganos, sobretudo quando
em situações econômicas favoráveis. Mas antes de montaria, o cavalo
era uma mercadoria, que não deveria deixar de ser negociada diante de
uma boa proposta. Aliás, o comércio de cavalos e mulas pelo interior
do Centro-Sul brasileiro era bastante movimentado. Os ciganos cumpriam o
importante papel de trocar as montarias para que os viajantes
prosseguissem em suas viagens.
Saltimbancos
e circenses.
Indutora
do lúdico, mas vista com desconfiança sob a alegação de estar
associada à transgressão das normas sociais, a ocupação de
saltimbanco esteve relacionada aos ciganos antes mesmo que eles
chegassem à Europa.
De forma ambígua, embora estivessem individualmente estigmatizados
negativamente enquanto artistas, os ciganos eram muitíssimo apreciados.
O mais curioso é que os mesmos que os aplaudiam enquanto artistas,
rechaçavam-nos enquanto indivíduos.
Pela
documentação que se conhece, os ciganos foram os primeiros artistas
que atuaram em Minas Gerais. Em 28 de junho de 1727, o bispo do Rio de
Janeiro, Dom Frei Antônio de Guadalupe, denunciou ao Santo Ofício que
havia comediantes ciganos atuando em Vila Rica e em outras partes da
capitania mineira, apresentando "com grande aparato, comédias e óperas
imorais, em afronta aos sagrados preceitos da Santa Igreja".
No século XIX, provavelmente, continuaram a existir trupes de ciganos,
que explicitavam ou não sua identidade. Possivelmente, utilizavam-se de
cavalos para fazerem alguns números.
Gilberto
Freyre refere-se aos ciganos como introdutores de animais exóticos
"nos engenhos e nas feiras do Nordeste" e que se faziam
acompanhar por meninos que "faziam acrobacias sobre cavalos",
por "ursos verdadeiros, ou então fingidos - só a pele por cima de
um homem - que dançavam ao som de pandeiros, e por macacos ou macacas
grandes, vestidas de sinhás, cheias de laços de fitas que também dançavam
e faziam graças."
Em
fins do século XIX, ciganos vindos da Europa Central e dos Balcãs
trouxeram para o Brasil também ursos, animais exôticos capazes de
atrairem multidões de curiosos, porque inexistentes na fauna
brasileira. Certamente estes ciganos pertenciam ao subgrupo dos Ursari,
assim denominados porque se especializaram no adestramento de ursos.
Seja como for, no interior mineiro tornaram-se "famosos os 'ursos
de cigano', que dançavam canhestramente ao som do pandeiro e do canto
monótono do boêmio, que o segurava por uma corrente presa à argola do
focinho."
Apesar
de freqüentes movimentações, as famílias ciganas mantinham uma ativa
rede de comunicação oral. Isso era fundamental para a busca de novos
trabalhos e para o acerto de casamento dos mais jovens.
Consta
ainda que várias famílias ciganas foram proprietárias de circos, ou
então trabalbavam em circos que circulavam não somente no Brasil, como
também em outros países sul-americanos.
Entre as famílias circenses européias que chegaram a partir de meados
do século XIX, eram ciganas (Rom ou Sinti) as famílias Wassilnovitch,
Stancowich, Stevanowich (comprovadamente Kalderash de origem húngara) e
Robatini (esta "família veio em parte da Itália e em parte da Romênia"),
além de certamente de outras tantas famílias mais.
Bueno,
falando da atualidade, informa que : “Os maiores circos pertencentes a
famílias ciganas no Brasil são: Circo Orlando Orfei (sinti - subgrupo manouches italianos); Circo Norte Americano (família
Stevanovitch); Circo Nova York (João Augusto Micalovitch), Circo México
(Ronaldo Evans – kalderash americano)”.
Durante
o oitocentos, e até o início do século XX, vários ciganos se casaram
com circenses não-ciganos. Era comum famílias ciganas proprietárias
de circos contratarem não-ciganos e vice-versa. Outro fato curioso é
que a iniciação das crianças no circo era bastante precoce, entre 5 e
6 anos, ou mesmo antes.
A
numerosa família Wassilnovitch chegou ao Brasil através do porto de
Salvador, acompanhada da família François. Ao que parece, isto ocorreu
na década de 1880, "pois sempre descreviam um Brasil com escravos
e falavam de seus contatos com eles durante as viagens; além de
mencionarem muito a figura de D. Pedro II." Como era comum entre os
imigrantes, os Wassilnovitch logo trocaram seu exótico sobrenome por um
tipicamente português: Silva. Os primeiros anos foram difíceis para
eles: "Apesar de já trabalharem em circos na Europa, quando a família
chega, e durante muito tempo, suas apresentações são feitas em praças
públicas, como saltimbancos."
O
conhecido Capitão Zurka Sbano, Kalderash nascido em 1923, há muito
tempo residindo em São Paulo, conta que sua família tornou-se circense
em fins do século XIX. Seu avô lhe relataria, muito tempo depois, que
ia do Rio a São Paulo, "mascateando, vendendo e parando nas
fazendas e trabalhando, fazendo os tachos e alambiques, e ia embora.
(...) depois nós entramos no circo (...) Continuamos o serviço em
chapas (...) e viramos artistas."
Mas
os ciganos não atuam somente em circos. Vários ciganos brasileiros se
tornaram famosos como artistas. Alguns deles assumem publicamente a sua
identidade ou descendência cigana (como o músico Wagner Tiso, o
comediante Dedé Santana e a atriz Maria Rosa, em documentário na TV).
Outros artistas brasileiros ciganos ou de origem cigana – como uma
famosa dupla de irmãos cantores de música sertaneja – ambos
rom-kalderash e que inclusive falam ainda sua língua cigana -
infelizmente preferem ocultar a sua identidade ou descendência cigana,
conhecida apenas por parentes e amigos mais íntimos.
Quiromantes.
A
prática cigana da quiromancia (leitura das mãos), no Brasil é
documentada pelo menos desde os fins do século XVII e início do XVIII,
quando esteve no Brasil Nuno Marques Pereira. Falando sobre as superstições
entre os gentios, diz: "A chiramancia, é a que hoje professam os
Ciganos, de mentir e enganar pelas raias das mãos: e com ser manifesto
engano, há nos homens appetencia de saber o futuro."
A quiromancia era o termo erudito para aquilo conhecido popularmente por
buena-dicha. Esta expressão espanhola consagrou-se não se sabe se pela obra
das próprias ciganas ou, pela literatura. Documentos, como o periódico
A Cigana, confirmam o uso do
termo no Brasil.
Mas, também chamava-se a leitura da sorte pelas mãos de "leitura
da sina."
A
buena-dicha não era para os
ciganos um ritual sagrado, e nem poderia ser considerada pela sociedade
mineira como algo demoníaco. Para as ciganas, era uma atividade lúdica
e sua principal e mais rendosa atividade. Para as consulentes, quase
sempre, a buena-dicha significava boas novas, ou seja, a esperança de mais
sorte na vida. Algumas vezes, além de praticarem a quiromancia, as
ciganas também ocupavam-se "com a cura ou ao exorcismo de doenças."
Talvez
trouxesse mais incômodo à sociedade, o fato de que as ciganas fossem,
em geral, as responsáveis pela obtenção do dinheiro miúdo para os
gastos diários, através da buena-dicha.
Enquanto os ciganos ficavam, às vezes, dias no ócio, aguardando a
oportunidade de realizarem os "grandes" negócios. Essas
transações (com cavalos, por exemplo) envolviam lucros maiores, mas
eram mais irregulares.
A
atividade econômica cigana que mereceu maior atenção dos cronistas e
viajantes foi, sem dúvida alguma, o comércio de escravos. No Rio de
Janeiro, foi grande o número de ciganos que dedicaram-se ao comércio
de negros boçais,
às vezes, até comprando e vendendo por atacado. Mas era operando no
mercado de escravos de segunda mão que eles estiveram reconhecidamente
mais presentes. Nesse negócio "a necessidade de capital era bem
menor do que no comércio de venda por atacado."
Os
ciganos atuavam como agentes intermediários, commissários,
que comerciavam com os agentes da costa, ciganos ou não, de vários
portos, mas principalmente do Rio de Janeiro. Pessoas de diferentes
ocupações atuavam nesse comércio, de capitães de navios a negros
forros.
Mas os ciganos sofriam mais com a concorrência de ex-arrieiros de São
Paulo e Minas Gerais e mascates portugueses, que trocavam temporária ou
definitivamente suas profissões para ingressarem no lucrativo comércio
de escravos:
"Em
vez de comprar mulas ou tecidos e gêneros secos para vender nas áreas
de plantations, eles iam até
o Valongo ou às casas de leilão, compravam escravos por crédito, e
organizavam uma pequena caravana de escravos. Tal como os que
mascateavam de porta em porta no Rio, eles levavam seus lotes de
escravos para o interior, e os levavam de plantation
em plantation. Conforme a
pressa deles, entregavam todos os seus estoques, retornavam ao Rio para
pagarem seus débitos, obtinham novo crédito, e repetiam o
processo." .(grifo para termos não traduzidos).
Desse
modo geral, os intermediários "transportavam seus escravos para os
futuros proprietários por canoa ou pequenas embarcações ou através
de rotas terrestres."
Obviamente, muitos comissários
levavam também outras mercadorias, tais como animais e artigos de
primeira necessidade, com o intuito de complementar a renda.
No
início do século XIX, diversos viajantes estrangeiros testemunharam a
importância que os ciganos tinham no comércio interprovincial de
escravos, sobretudo na região centro-sul do país.
O
francês Gendrin, que morou no Rio de Janeiro de 1816 a 1821, se refere
a ciganas “vendedoras ambulantes de escravos africanos, as quais
percorriam as ruas da cidade, tendo para vender quarenta e cinquenta
negros, negras e crianças de oito a quinze anos”. Seu companheiro
Gabert (1818) acrescenta que ricos traficantes vendiam “carregações
inteiras de negros a ciganos revendedores que negociam os cativos com
particulares”.
O
naturalista francês Auguste de Saint-Hilaire (1779-1853) relata: "À
época de minha viagem [1819] eram, principalmente os ciganos que, no
Rio de Janeiro, vendiam em segunda mão os escravos, havendo entre eles
alguns bastante ricos."
Saint-Hilaire conheceu também um grupo de ciganos na Província de São
Paulo, em 1819: "Havia em Urussanga, quando ali estive, um numeroso
bando de ciganos. Esses homens se achavam instalados num arraial
vizinho, o de Moji-guaçu, mas se espalhavam pela região toda (...) Todos pareciam em boa situação; possuíam escravos e um
grande número de cavalos e de bestas de carga."
A
comercialização de escravos trouxe extraordinários ganhos aos
ciganos; no Rio, alguns tornaram-se ricos. A causa disto é que o
sistema escravista era um dos pilares da economia, já que as áreas
mineradoras ainda absorviam grande mão-de-obra, e as plantações cada
vez mais necessitavam desse trabalho. Além disso, nas cidades, o
trabalho dos escravos diversificava-se cada vez mais.
Do
ponto de vista social, os ciganos também beneficiaram-se. "Apesar
de todos os seus aspectos repulsivos, o comércio de escravos era afinal
uma ocupação utilitária para as classes baixas."
Durante o período colonial e na primeira metade do século XIX, não se
associava a negociação com escravos com a degradação da condição
humana. Conseqüentemente, os que se ocupavam desta atividade não eram
tidos como protótipos do mal. A utilidade social que passaram a ter,
relacionava-se ao fato de que a posse de escravos era um atributo
importante para o status
social. Então, os comerciantes de escravos eram elementos que
propiciavam indiretamente a elevação do status
do comprador.
Tendo
a Igreja se omitido quanto à escravidão negra, enquanto os próprios
clérigos possuíam escravos, via-se no fornecimento desta mercadoria e
mão-de-obra, por parte dos ciganos, não apenas algo cotidiano, mas
também útil. Utilidade esta, enfatizada por lidarem com escravos de
segunda mão mais acessíveis aos forros e brancos pobres que almejavam
adquirir melhor status. Outro aspecto a se considerar é que:
"A
identificação dos ciganos com esta atividade lhes conferiu um quê de
utilidade social inexistente em Portugal. Do ponto de vista da maioria
branca, o comércio de escravos formava um contexto prático para a
interação. Sua dominação da escravidão como uma instituição
significava que a maioria branca de não-ciganos controlava o espectro
inteiro da interação étnica. Se sua utilidade não mais os tornava párias,
os ciganos continuavam a ser uma minoria estigmatizada cujo acesso aos
status sociais normais poderia permanecer restrito à reserva da
maioria. Mesmo no seu papel de commissionários,
por exemplo, os ciganos permaneceram popularmente estigmatizados como
ladrões." (grifo no original).
Ao
mesmo tempo em que iam vendo matizada, e mesmo fragmentada, sua imagem,
"o comércio de escravos permitia aos ciganos publicizar sua
identidade étnica, e assim fortalecer os limites culturais,
distinguindo-os da maioria branca."
Seja por obterem
um motivo legítimo para transitarem pelo interior do país,
visto que o mercado escravista apresentava demandas em áreas bastante
distantes do litoral, seja por se fortalecerem demográfica e
espacialmente no Rio de Janeiro e em Salvador. Nestas cidades, eles
formavam comunidades de centenas de indivíduos, ocupavam bairros quase
inteiros e movimentavam grandes grupos de escravos para a venda. Assim,
a visibilidade dos ciganos tornou-se expressiva.
Também
a falta de controle sobre a população, a fluidez e fragmentação da
sociedade, possibilitava aos ciganos manifestarem sua identidade à
medida que necessitassem fazê-lo. Maria Graham, em 1823, relata que, no
Rio de Janeiro, os ciganos demonstravam nítida e declaradamente seus
traços culturais:
"há
um lugarejo habitado por ciganos, que encontraram o caminho para aqui, e
preservam muito da peculiaridade do aspecto e do caráter em seu novo
lar transatlântico. Conformam-se com a religião do país em todas as
coisas exteriores e pertencem à paróquia de que o cura de Nossa
Senhora do Monte é pastor. Mas esta conformidade não parece ter
influenciado seus costumes morais. Usam seus escravos como pescadores.
Uma parte de sua família reside habitualmente nos seus domicílios, mas
os homens vagueiam pelo país e são grandes mercadores de cavalo, nesta
parte do Brasil. Alguns deles dedicam-se ao comércio e muitos outros são
extremamente ricos (...). Conservam o seu dialeto particular."
Em
consonância com essa opinião, Jean Baptiste Debret (1768-1848), com três
gravuras e algumas páginas de comentários, concedeu-nos o mais extenso
e expressivo testemunho sobre os ciganos, no Brasil, na primeira metade
do século XIX. O artista francês concentrou sua atenção sobre os
ciganos enriquecidos pelo comércio escravista e suas respectivas famílias.
Debret os compreendeu como estando integrados à economia local e
expressando suas diferenças culturais pelas particularidades de
organização da casa, dos padrões de casamento, de ritos funerários,
língua e vestimentas.
Esses
depoimentos descrevem uma nova situação para os ciganos no Brasil, na
qual eles estão sedentarizados, mantendo uma atividade econômica
relativamente estável e inseridos no cotidiano local, embora mantendo
sua identidade. Mas enquanto temos esta transformação basicamente
ocorrendo na Corte, no interior, sobretudo nas áreas rurais, temos uma
continuidade em relação ao setecentos. Apesar de terem incorporado o
comércio de escravos em fins do século XVIII e início do XIX, eles
ainda conseguiam manter-se em "boa situação",
preferencialmente "dedicando-se conforme o costume de sua raça, à
troca de burros e cavalos" por todo extenso território brasileiro.
Para
entender, mais profundamente, esta nova situação vivida pelos ciganos
no Centro-Sul brasileiro, será preciso compreender o funcionamento do
mercado escravista carioca, observando o espaço socialmente construído
em torno dele.
O
abastecimento de mão-de-obra africana no Rio de Janeiro, concentrou-se
por muito tempo na Rua Direita, centro da cidade. Mas a partir da década
de 1790 passou para a Rua do Valongo. O mercado do Valongo, no subúrbio
da cidade, foi criado durante o vice-reinado do marquês de Lavradio sob
a alegação de evitar que os escravos, recém-chegados da África,
andassem pela capital nus e com moléstias - o que ocorria até então.
A intenção, portanto, era livrar a corte desses incômodos e tentar
promover a recuperação dos escravos doentes.
Ali, os negros eram vendidos por grandes firmas, por casas leiloeiras e
por traficantes independentes.
A
impressão que os viajantes estrangeiros tinham do mercado do Valongo,
variava de acordo com o aumento ou diminuição da importação de
escravos.
Durante a década de 1820, o mercado do Valongo viveu seu período de
maior movimentação comercial, estando plenamente integrado à cidade.
Assim que chegavam em navios negreiros ao Rio de Janeiro, os cativos
eram abrigados em depósitos, onde eram maquiadas as feridas ganhas na
longa jornada da África para a América:
Com
a abolição da escravatura, os ciganos que ainda insistiam no comércio
de escravos perderam uma importante fonte de subsistência, e em alguns
casos, a única. Junto a isso, ficaram sem qualquer oportunidade de ter
uma inserção social. Em fins do século XIX, a opção dos ciganos nômades,
do Centro-Sul brasileiro, era "permanecer entre uma população
rural cada vez mais hostil ou de se unir à massa de trabalhadores
urbanos."
Havia ainda, uma última "opção" para sobreviverem:
praticarem pequenos delitos contra a propriedade alheia.
No
Brasil do século XIX, a descrição da aparência física dos ciganos
repetiu-se continuamente em estereótipos que remetiam a alguns traços
do ideal grego de beleza. Em geral, a aparência física dos ciganos foi
admirada e até exaltada. Os cabelos seriam pretos e brilhantes, a pele
morena ou cor de cobre, olhos "vivos" e corpos esbeltos e ágeis.
Johann Baptist Emanuel Pohl os descreve como tendo "cor
amarelo-escura" na face e "cabelos lisos pendentes",
sendo que por "toda a aparência desse povo extraordinário, de
longe podiam ser reconhecidos."
Já Henry Koster ouviu falar dos ciganos em Pernambuco "como homens
de pele amorenada, feições que lembram os brancos, bem feitos e
robustos."
As mulheres jovens eram consideradas belas e atraentes, mas era uma
beleza fadada a desaparecer rapidamente. Neste ponto aparece uma das
poucas caracterizações negativas desse item: algumas velhas são
descritas como decrépitas. Um exemplo dessa visão é dada pela
narrativa de James Wells: "A parte feminina da tribo vinha agora
visitar-me ¾
moças bonitas e megeras emurchecidas."
A
boa forma física é ressaltada, sobretudo nos homens, sendo relacionada
ao nomadismo. A vida em contato com a natureza e as constantes viagens
dariam aos ciganos força e agilidade extraordinárias. Isso
proporcionaria uma longevidade excepcional, que seria comprovada pela
idade elevada dos líderes anciãos.
Porém,
Debret oferece-nos um contraponto a essa idealização. O cigano que
representa na prancha "Mercado da Rua do Valongo" (1823) é um
comerciante de escravos gordo, cuja barriga decorria de uma doença. Sua
figura contrasta-se nitidamente com a dos negros magros, famintos e também
doentes. Os dois casos são extremos, pois o ideal de beleza, na
gravura, é representado no elegante, esbelto e saudável senhor vindo
de Minas Gerais, digno representante da elite.
No
desenho feito por E. Riou, "Ciganos das ilhas do (Rio) Paraná"
de 1874, aparece uma família com um homem de meia idade (barbado, com
chapéu e cajado), uma mulher jovem, um rapaz e três crianças. Todos
estão descalços num acampamento improvisado às margens do rio. Nesse
desenho os ciganos estão diante de uma forte presença da natureza, uma
exuberante mata fluvial que compõe o cenário.
Uma
documentação iconográfica notável é o jornal A Cigana, cujo primeiro número (talvez o único) foi editado no
Recife, em 8 de setembro de 1874. A princípio, o periódico seria um
semanário cujas caricaturas contribuiriam com um forte toque de humor.
Aparentemente, a publicação era republicana, apesar de Tycho-Franco,
que assina o primeiro artigo, dizer ironicamente de si próprio:
"Sou republicano, liberal histórico, conservador dissidente,
governista."
Nessa época a monarquia geralmente era representada pela figura
masculina, enquanto a república era associada à figura de uma mulher.
Assim, a escolha da "cigana" para simbolizar as idéias de um
grupo de pessoas indica, claramente, a defesa dos ideais republicanos.
Mais importante do que isso, é que a "cigana" evoca a
liberdade que o jornal deseja propagar.
A
primeira cigana desenhada, no frontispício, é uma jovem, quase adulta,
com cabelos longos e volumosos, formas
do corpo
suavemente arredondadas e cintura bem torneada. Sua sensualidade
é ressaltada pelo imenso decote em seu vestido, que dá mostra de seus
fartos seios e seus pés descalços que pisam a terra de uma paisagem
bucólica. Na parte superior da gravura se anunciam os "segredos da
buena-dicha".
Isso parece indicar que o objetivo do periódico era revelar o destino
político, servindo-se para tal da imagem da cigana.
No
artigo O Romantismo, desse
jornal, o articulista Caron descreve o tipo de mulher considerada bela,
o das ciganas idealizadas pelos românticos europeus: "typo
andaluz, faces rosadas, tez morena, talhe esbelto, e cabellos
pretos", ao qual qualquer homem diria: "oh! mulher seductora e
vaporosa, tu és a imagem do romantismo cuspida e escarrada”.
Como se vê, este trecho revela outra possível inspiração para se
estampar no frontispício, a cigana.
Uma
outra cigana ainda aparece nesse documento. Trata-se de uma jovem,
talvez uma menina, colocada numa caricatura. Descalça, mas vestida com
muito pudor, ela é desprovida de sensualidade explícita. Essa cigana
é o próprio periódico, e é levada pelas mãos do Interesse Público
até o Leitor, ambos representados por homens. O Interesse Público diz
o seguinte: "Apresento-vos, leitor, a mimosa cigana: vem ler-vos a
buena dicha." Isto confirma que a intenção do periódico era
desvendar o destino político, que significava em outras palavras,
dirigir as discussões e ações políticas.
As
ilustrações de Flumen Junius, que acompanham o texto de Mello Moraes
Filho, de 1895, sobre "Um casamento de ciganos em 1830" no
Rio, mostra ciganos ora como figuras bizarras, ora como festivos dançarinos.
Acrescente-se que nem o desenhista nem o autor testemunharam tal cerimônia,
eles apenas ouviram o relato.
O viajante britânico, James W. Wells teve mérito de ser o único a
representar um cigano em Minas Gerais, durante o oitocentos. Seu desenho
é de "Um cigano brasileiro", tendo-se inspirado no encontro
que teve com ciganos no norte de Minas em 1873. À frente de uma pequena
e pobre barraca, armada num campo rupestre, o cigano aparece só. Os
cabelos cacheados e longos, o cavanhaque e o olhar longínquo e
desconfiado compõem a estranha imagem do cigano.
Quanto
ao olhar dos ciganos, era tido mais do que um elemento de sua aparência
física; era como tendo uma dimensão transcendental. Numa sociedade que
transmitia seus saberes, tradicionalmente, por forma oral, o olhar é o
ponto de partida para a compreensão entre as pessoas. Além disso, era
através dele que se confirmava um compromisso (negócios ou casamentos,
por ex.) depois da palavra dada, olhando-se nos olhos do cliente ou do
outro cigano.
O
encontro e a revelação do outro se inicia com o olhar. A presença do
olhar cigano instaurava uma crise na identidade do não-cigano,
acompanhada de perplexidade e medo. Assim, o olhar cigano incomodava
porque, ao mirarem, constrangiam os não-ciganos para não o devolverem.
Ao ser olhado pelo cigano, o indivíduo sentia-se
"coisificado". Em contrapartida, o cigano ao incidir seu olhar
sobre o outro, rompia momentaneamente com a fronteira e a distância
original, seu mundo também ficava à deriva.
Os
ciganos foram, não se sabe a partir de quando, considerados como
portadores de um olhar mágico e poderoso, capaz de lançar pragas e
maldições. Este olhar se caracterizaria não só pelo exotismo dos
olhos com grandes pupilas, mas também por uma certa magia na forma de
fixá-los. No século XIX, tal imagem ganhou mais relevância graças ao
movimento romântico.
Moral,
costumes, língua e religião.
Os
ciganos "poderiam ser fisicamente atraentes, com características
remanescentes da estética grega; mas de acordo com a visão da época,
eles não tinham a harmonia apropriada entre a alma e a aparência física."
Numa primeira exemplificação, os ciganos eram apontados como medrosos
e covardes, por fugirem de confrontos com a polícia ou por cometerem
pequenos furtos à noite.
Um
dos adjetivos mais aplicados aos ciganos foi o de "sujos".
Talvez, porque "uma das maneiras mais fáceis pela qual os indivíduos
numa certa cultura podem se diferenciar dos indivíduos de uma outra
qualquer está em chamá-los de sujos."
A associação dos ciganos à sujeira é uma das mais sedimentadas
imagens que diversas sociedades tiveram deles.
O
higienismo provocou uma transformação quanto à vestimenta, sobretudo
nas camadas mais altas, introduzindo um conjunto de regras rígidas.
Isso distanciou, bruscamente, as famílias de elite das famílias
brancas pobres, mas principalmente dos ciganos. Apesar da existência de
alguns ciganos ricos, principalmente no Rio de Janeiro, a maioria dos
ciganos era pobre. Por isso as mulheres, sobretudo, utilizavam trajes
tidos como exôticos. Já os homens, tal como se verifica nas pranchas
de Debret de 1823, utilizavam roupas como quaisquer outros homens de
suas classes sociais; pois para negociar não era interessante que
fossem identificados como sendo ciganos. Era, portanto, uma estratégia
de ocultação da identidade.
Em
contrapartida, James Wells desenha um cigano do norte da província
mineira, na década de 1870, com uma dose de exotismo, provável produto
de sua imaginação. Seu cigano tem um chapéu sobre os cabelos
cacheados. Uma espada no coldre com grande fivela, uma bota com esporas
de cavaleiro e um colete completam a imagem do desenho intitulado
"um cigano brasileiro".
Além
do mais, a família "burguesa" não expunha certas partes do
corpo e não manifestava certos contatos físicos tais como os ciganos
faziam: as crianças andavam nuas, homens expunham barrigas e peitos
cabeludos, enquanto as mulheres não se constrangiam em amamentar
publicamente seus filhos; a nudez cigana era "indecente",
embora, possivelmente, os ciganos tivessem rituais de purificação
extremamente vinculados a normas rigorosas quanto à forma de se vestir
e a higiene. A bibliografia antropológica registra como sendo um dos
costumes mais difundidos entre as diversas comunidades ciganas, os tabus
relacionados ao medo de contaminação, com seus respectivos rituais de
purificação. As convicções dos ciganos sobre a impureza é um
elemento fundamental para manifestar e reafirmar os limites étnicos
sobretudo entre eles e os não-ciganos. Entre os Rom, por exemplo,
"os tabus referem-se a pessoas, objetos, partes do corpo, comidas e
temas de conversa (...); mas a sua grande preocupação refere-se à
impureza da mulher, à potencial ameaça à pureza ritual."
Os
padrões de alimentação quase não são descritos. Entretanto o regime
marcadamente animal da alimentação dos ciganos incrementava, mais
ainda, as idéias correntes sobre eles. Relacionava-se o consumo de
alimentos de origem animal com uma prodigiosa força física, porém
concedia-lhe um valor moral negativo. Aqueles que consumiam
predominantemente esse tipo de alimentação, como os gaúchos, estavam
associados pelos higienistas à maldade, à perversidade, ao gosto pela
pilhagem e por assassinatos e à pouca inteligência. No entanto, talvez
a base da dieta dos ciganos em viagem não diferisse muito da dos
tropeiros: carne seca ou charque, feijão, angu ou farinha de milho ou
mandioca, arroz, eventualmente cachaça, ou melaço como sobremesa. O
crescente avanço da pecuária em Minas Gerais, no transcurso do século
XIX, pode ter possibilitado o consumo de leite e queijos, quando
negociavam com fazendeiros e sitiantes.
Ao
se alimentarem, os ciganos não se assemelhavam em quase nada aos modos
de etiqueta das famílias abastadas, que se distinguiam comendo
"civilizadamente". Essas famílias sabiam as normas sobre tudo
que era proibido fazer quando se comia com “civilidade”. Já os
gestos dos ciganos eram demasiadamante "naturais", enquanto os
Manuais de Boa Conduta
sugeriam a contenção destes, propondo uma artificialidade impensável
entre os ciganos.
Nos
padrões de civilidade característicos da elite urbana, as mesas eram
fundamentais. Entre os ciganos nômades tanto a mesa era inexistente
quanto faltavam, às vezes até pratos e talheres. Eles improvisavam
gamelas e outros utensílios e frequentemente comiam com as mãos. As
facas eram mais comuns, sendo usadas tanto para cortar quanto para
introduzir o alimento na boca. Para cozinharem seus alimentos no
acampamento, os ciganos fincavam três paus, de forma a uní-los pelas
pontas para formarem uma tripeça, na qual se colocava o caldeirão. O
preparo dos alimentos, como era de se esperar numa estrutura familiar
patriarcal, ficava a cargo das mulheres.
Ao
contrário do momento da refeição da elite, que era um conjunto de
formalidades, a alimentação entre os ciganos funcionava estreitando as
relações afetivas, no cuidado da educação das crianças e na elaboração
de estratégias de sobrevivência (sobretudo econômicas) do grupo.
Quanto
à língua dos ciganos, várias vezes é designada como sendo um dialeto
ou geringonça (gíria), o que a subordinaria à língua oficial,
colocando-a como uma variante corrompida. Saint-Hilaire conta que, ao
dirigir a palavra a alguns ciganos no Mato grosso em 1819, eles lhe
responderam "num sotaque arrastado e nasalado". Além de
usarem "uma polidez servil, o que não é comum entre os
portugueses."
Já George Gardner vai mais adiante, considerando que os ciganos no
Brasil, "embora falem português como os demais habitantes do país,
entre si usam sempre sua própria língua."
Próximo a este testemunho está o de Maria Graham sobre os ciganos no
Rio de Janeiro, na década de 1820. Acreditando que falavam ainda um
mesmo "dialeto" que usavam na Europa, Graham se exime de
avaliar até que ponto tal dialeto poderia ter mudado em relação ao
original: "Conservam seu dialeto particular, mas não consegui
ficar pessoalmente bastante conhecida deles para formar qualquer juízo
sobre o grau em que a mudança de país e clima afetou os hábitos
originais."
Décadas
depois, Richard Burton, ao falar sobre os ciganos que encontrou em 1866
no caminho de Rio Claro para Piracicaba, Província de São Paulo,
escreve: "Visitei um bando destes 'verminosos' (...) Fiquei uma noite nas suas tendas. (...) Não consegui induzí-los
para usarem sua própria língua, mas evidentemente eles me
entenderam”.
Portanto,
é certo que os ciganos falavam além do português, uma outra língua
entre si. A "língua cigana" tinha dupla função: alienar os
não-ciganos dos assuntos internos dos bandos e reforçar a identidade.
Mas não há qualquer documentação que permita reconstituir a origem,
as prováveis similaridades com a língua portuguesa e o vocabulário.
Mello Morais Filho elaborou no final do século XIX, no Cancioneiro
Cigano, um pequeno glossário de palavras, supostamente usadas por
ciganos cariocas.
No entanto, difícil é saber o que o autor coletou na própria
comunidade e o que retirou de suas restritas fontes bibliográficas.
Possivelmente
a religião foi o item que os moralistas atacavam com maior vigor. Ao
mesmo tempo os ciganos eram considerados hereges, pagãos, idólatras e
ateus. Atributos estes que se sabe serem inconciliáveis. Esse acúmulo
de estereótipos absurdos expressa bem a condição de “bode expiatório”
em que então viviam (e ainda hoje vivem) os ciganos.
Por
não cumprirem as solenidades do sacramento matrimonial, na visão da
Igreja, os ciganos viviam em pecado como se praticassem concubinato. Além
de tradicionalmente efetuarem suas próprias cerimônias, talvez os
ciganos não se casassem na Igreja devido aos altos custos dos trâmites
burocráticos e do pagamento ao pároco que realizava o casamento. A
burocracia da Igreja dificultava isso, já que os supostos pretendentes
ao matrimônio deveriam levantar documentos, como o de batismo, e
apresentar testemunhas, a fim de que se garantisse o local de residência,
de não serem já casados, atestando-se a idoneidade dos requerentes.
Como se pode deduzir, todos esses requisitos eram bastante difíceis de
serem cumpridos pelos ciganos.
Por
serem quase sempre arredios à Igreja, os ciganos costumavam realizar
seus próprios rituais matrimoniais e funerários, mas isto não impediu
que eventualmente algum casal cigano se unisse de forma lícita pelas bênçãos
eclesiásticas. Um exemplo disto ocorreu no Século XVIII.
É provavel que estes casais, antes ou depois, realizassem outra cerimônia,
conforme as tradições ciganas, fora da Igreja. Embora distantes de
muitas das convenções da Igreja, acrescenta-se que os testemunhos mais
afirmam do que contestam a fidelidade das mulheres ciganas.
A
emancipação dos filhos ainda muito jovens para constituírem novas famílias,
junto à falta eventual de parceiras para os rapazes, pode ter
ocasionado a busca de mulheres fora da comunidade cigana. Em 1892,
ciganos foram acusados de cometerem "sequestro" de uma moça não-cigana
em São José do Tocantins (atual Tocantins).
Duas hipóteses poderiam perfeitamente esclarecer e justificar o fato. A
primeira seria uma eventual carência de mulheres no bando desses
ciganos, pelo que um deles foi obrigado a “roubar” simbolicamente a
sua noiva gadjé, mas com prévio
consentimento da moça, e provavelmente até de ambas as famílias. Na literatura antropológica este ritual é conhecido como “o
rapto da noiva”, que sempre existiu e ainda existe em dezenas de
sociedades, no mundo todo, e inclusive entre os ciganos. A segunda hipótese
seria a possibilidade de a jovem ter-se enamorado, ou até mesmo ter
sido engravidada por este cigano, “fugindo” depois com seu amante,
conforme uma velha tradição gadjé
brasileira. Acrescente-se que o casamento de uma cigana com um não-cigano
deve ter sido muito raro, porque ser filho de um cigano era um dos
valores importantes na identidade cigana.
Ociosidade,
mendicância e vadiagem.
O
cotidiano cigano era cheio de contatos informais para os negócios,
visitas a familiares ou a doentes, e eventualmente festas. Ao contrário
da população laboriosa (os trabalhadores autônomos ou assalariados de
então, e ainda hoje), os ciganos não tinham suas tarefas mensuradas e
realizadas de forma cíclica e rotineira; não estavam sobre a égide do
relógio, não consideravam precisamente a duração dos dias e das
noites, desconheciam ou faziam questão de ignorarar o tempo abstrato e
linear, uniformente dividido. Durante o período imperial, através de
uma ação conjunta da sociedade e do Estado, o tempo/ócio foi acuado e
disciplinado, tornando-se "gradativa e repressivamente transformado
em tempo/trabalho livre."
A
elite incomodava-se com o modo como os ciganos dispunham de seu tempo,
que lhes parecia ser na ociosidade. Além de defenderem que o trabalho
era a única forma de os pobres terem alguma dignidade, os ricos viam o
ócio como patrimônio e privilégio unicamente deles. E os ciganos, ao
desfrutarem também do ócio, serviam de mau exemplo aos homens
laboriosos, e constituiam uma dissonância ao trinômio trabalho / ordem
/ progresso. Nesta perspectiva, o cigano seria um miserável devido a
sua preguiça ou um indivíduo enriquecido graças as suas atividades ilícitas.
Willems e Lucassen, ao tratarem deste tema, informam:
Viu-se
anteriormente, que os ciganos constituíam-se em um dos segmentos
sociais identificados como vadios, embora de forma sui
generis, por se diferenciarem etnicamente dos demais. Portanto,
entender como se viam os vadios, ajuda a perceber como se viam os
ciganos.
Embora
no vocábulo português "vagabundo" tenha um sentido
equivalente a vagabond (grafia
idêntica no inglês e no francês), a palavra alemã vagabund
e a espanhola vagabundo,
"é ao vadio e à vadiagem, que mais dizem respeito as leis portuguesas.". Isto
se refere a ênfase dada "para o combate à ausência de trabalho (vadiagem)",
ficando num segundo plano o "caráter andejo e desocupado (vagabundagem)"
que representava o perigo, a ameaça à ordem pública.
O
vadio era, além daquele indivíduo sem domicílio, aquele que se
recusava a seguir o ritmo e as regras do trabalho. Decorria daí a
imagem de desonestidade e de falta de vínculos sociais. Portanto, a
concepção de vadiagem compreendia tanto a itinerância quanto a
ociosidade, "comportamentos considerados ameaçadores à
estabilidade social". No entanto, não havia consenso definitivo
quanto à percepção "do que era vadio ou ocioso".
Às vezes, vadiagem referia-se especialmente aos "ociosos" delinqüentes
com atividades "ilícitas", como jogos e roubos. Noutras ocasiões,
o sentido se restringia à "conduta transgressiva do jornaleiro que
interrompia seus afazeres em proveito das 'vadiações' e divertimentos
de rua". Por fim, numa acepção ampliada, a expressão vadio
"remetia às camadas livres pobres tradicionalmente vistas como
inclinadas para ociosidade e vadiagem."
Mais
que um inconveniente, a manutenção da ordem pública e a vadiagem eram
"vistas como um ônus, um 'peso' que recaía sobre a
sociedade".
No imaginário das elites urbanas, a vadiagem significava o substrato
comum de onde surgiam todos os outros crimes. Principalmente nas décadas
de 1820 e 1830, temia-se que os vadios não apenas engrossassem os
protestos das camadas pobres das cidades, contra a carestia e a opressão,
mas também se levantassem contra os ricos, pondo em perigo as
propriedades.
À
medida que crescia essa população "desordeira" e
"perigosa", maior era a preocupação com as algazarras e os
delitos (roubos, principalmente). O número de pobres vagando nas ruas
aumentava com as crises econômicas conjunturais, quando escasseavam os
empregos e havia carestia de alimentos.
O Código Criminal do Império
de 1830, no artigo 295, determinava que a vadiagem e a mendicância
fossem consideradas crimes policiais. Devendo o criminoso cumprir pena
de oito a vinte e quatro dias de prisão para pessoas que não se
ocupassem de forma honesta e útil para sua subsistência. "A lei
de 26 de outubro de 1830 reformaria esse artigo, elevando a pena para um
ano e seis meses de prisão, podendo ser duplicada em caso de reincidência."
O
Código indicava que os vadios
deveriam tornar-se "úteis" e inserir-se no sistema produtivo
e na ordem estabelecida. Para os ciganos, tal legislação significava
que sofreriam ações repressivas ainda mais violentas, já que eram
considerados "incorrigíveis", sem qualquer esperança de
“regeneração” a curto prazo. Por isso, a solução imediata era
expulsá-los da cidade e até mesmo da Província. Além disso, até as
autoridades militares achavam que os ciganos não eram
"desmarginalizáveis" pelo recrutamento militar.
Por causa da enorme desconfiança com relação aos ciganos, eles foram
simplesmente considerados “irrecuperáveis”. Conforme algumas
teorias pseudo-científicas da época, acreditava-se que os ciganos eram
uma "raça" na qual o caráter (negativo) de seus membros já
estaria determinado desde o nascimento.
Tradicionalmente,
as sociedades sedentárias vêm no nomadismo um comportamento suspeito e
associado à criminalidade. A maioria dos dicionários e enciclopédias
do século XIX, tanto em língua portuguesa, quanto em francesa,
rejeitavam e tratavam pejorativamente o nomadismo, pois este seria um
modo de vida contrário ao "crescente progresso". Afinal, o
ideal civilizatório requisitava a presença da cidade, por conseguinte,
exigia o sedentarismo: "Vistos a partir do signo da falta e do seu
não-ser, os nômades são os que não têm habitação fixa, não
deixam traços duradouros de sua existência, não são
civilizados".
Infantilizados
e apontados como vagabundos e bárbaros, os nômades enquanto
forasteiros, eram potencialmente depredadores e desestabilizadores da
ordem pública. Como estrangeiros, possuíam algo de fascinante;
identificados como hostis, sua presença trazia uma alternativa ao modo
de vida sedentário, por isto colocavam em questão os papéis sociais;
como endemoniados, recordavam o mal, dimensão que deveria ser extirpada
da sociedade sedentária e cristã. Mobilizando uma série de valores
que afrontam o status quo e
criando novas perspectivas culturais, os nômades causavam repulsa e
fascínio.
Havia
na imagem do nômade a conciliação de contrários, aliava a
animalidade à divindade; virtude e perigo. Caracterizava-se pela
insensatez, desobediência e rebeldia, desprezo pelas normas, desafio às
autoridades, violações sistemáticas e transgressões, audácia e astúcia,
poderes mágicos e dons de cura. Esta ambivalência e ambigüidade
manifestava-se em atração e repulsa pelo nômade. Por isto, na maioria
das vezes é reprimido, mas não suprimido (exterminado), pois engendra
o movimento e o desequilíbrio, continuamente provocando rearranjos,
reequilíbrios; ou seja, contém um dinamismo muito mais criativo do que
aquele do status quo.
Transgredindo, os nômades faziam suas marcas na História.
Portanto,
o vagabundo se caracterizava pela ausência de domicílio, que é
associada à imoralidade (incluindo a promiscuidade), à pouca higiene,
à falta de vínculos com a sociedade sedentária e civilizada; o
vagabundo, como estrangeiro, é mal afamado, ladrão em potencial,
preguiçoso, delinqüente em potencial e propagador de epidemias.
Em
Minas Gerais, desde o período colonial, além de mal visto pelo ócio
ou irregularidade com que trabalhava, o indivíduo "sem eira nem
beira', "pé ligeiro", era associado à vadiagem, e por
conseguinte, à imoralidade, pois seus valores eram contrários aos da
família. Numa sociedade fundamentada nas relações pessoais (laços de
sangue e boa vizinhança), a "itinerância" era uma afronta à
ordem pública. A falta de laços de dependência com qualquer senhor ou
patrão era uma inconveniência às relações sociais e ao poder como
se apresentavam. Como "outro", desconhecido e à margem das
classes, era também intolerável, indesejável.
No entanto, "a itinerância dava ao indivíduo sentimento de
autonomia e liberdade dificilmente experimentado por outras camadas
livres pobres."
A
população branca de Minas Gerais, na segunda metade do século XVIII,
não atingia a 25%,
com a predominância de "aventureiros e fugitivos".
Esta população se caracterizava pela exclusão e marginalidade,
formando, junto com os mestiços livres e pobres, um conjunto de
desclassificados sociais, cujo quotidiano era marcado pela miséria e a
violência. Entre mendigos, desertores, padres infratores, negras
quitandeiras, prostitutas, feiticeiras, ladrões, assassinos, falsários,
bandidos e garimpeiros, os ciganos eram apenas mais um grupo social, porém
diferenciado etnicamente, a tornar as ruas barulhentas e a promover a
desordem pública.
Numa sociedade caracterizada por uma enorme desigualdade social e econômica,
a ordem social apresentava-se sempre frágil.
Todos
esses tipos marginalizados percorriam o território mineiro, numa
intensa e confusa movimentação, resultando em uma ocupação fluida e
desordenada, e trazendo inúmeras preocupações às autoridades
provinciais. Na sociedade das Minas oitocentistas, "os aventureiros
dirigem seus esforços às recompensas imediatas, desprezando a
estabilidade e a segurança pessoal, numa existência de audácia, de
imprevidência e sem fixação."
Na
busca de se estabelecer uma civilização, onde o imenso território
fosse adequadamente ocupado por outra população ordeira, procurava-se
construir uma idéia forte de Nação e conhecer e controlar aqueles que
promoviam as desordens. Numa sociedade desigual e intolerante, frente
aos vadios e nômades, a repressão jurídica e policial a estes
segmentos acentuou-se. Além disso, enfatizava-se também a imagem
"de uma unidade nacional e de uma administração pública apolítica
e racional devidamente assessorada por uma gama de saberes científicos
e imparciais. Por outro lado, a descentralização e a politização da
sociedade passaram a ser apontadas como caminhos da corrupção e da
ineficiência, num repúdio ao conflito e à heterogeneidade, em nome do
elogio da homogeneidade e do consenso."
Ladrões
e o mito do roubo de crianças.
Ladrões
de galinha, de cavalos e de crianças, eis algumas variações da mesma
forte imagem do cigano ladrão. Entre os delitos dos quais são
acusados, nenhum foi mais freqüente e significativo do que o roubo. Por
esta razão é também o mais temido traço do "caráter
cigano". Como um ato imperdoável, principalmente num momento em
que a noção de propriedade ia ganhando cada vez mais força, a associação
ao roubo impregnava com um estigma marcante os tão
"suspeitos" ciganos.
Há
uma longa trajetória de incompreensão dos não-ciganos quanto aos
furtos ciganos.
Alguns ciganólogos consideram que os primeiros ciganos que chegaram ao
continente europeu traziam consigo o hábito da pilhagem, comum em
certas regiões da Ásia (continente de origem provável de pelo menos
alguns grupos ciganos). Ao contrário do que entendiam os direitos
consuetudinários dos países europeus, nestas regiões asiáticas, a
pilhagem não era considerada um delito, principalmente quando feita por
viajantes. "Desde sua chegada à Europa, os ascendentes dos Rom
continuaram a exercer seu 'direito à pilhagem', moldando-se assim em
tudo inocente uma primeira reputação de 'ladrões'."
Tendo
em vista esta longínqua origem da principal má fama dos ciganos, em
Minas Gerais, durante o oitocentos
esta reputação engendrava a seguinte dinâmica: à medida que
apareciam boatos de que um bando de ciganos estava chegando a uma
determinada região, muitos ladrões não-ciganos passavam a aumentar
suas atividades, na certeza de que estariam impunes e a culpa seria
atribuída por toda população aos ciganos. Diante da freqüência com
que isto ocorria, atribuindo-se toda desconfiança aos ciganos, estes não
tinham mais razão de ficarem constrangidos ¾
saliente-se que a má fama dificultava as transações comerciais ¾,
o que reforçava a imagem que originalmente lhes foi imposta. Por outro
lado, o fato de um cigano roubar e ser pego, era mal visto pelo bando ao
qual pertencia, já que a culpa do cigano José ou do cigano Pedro,
seria atribuída a todo o grupo. Se José é um homem pobre livre que
rouba, por exemplo, ele é um mau sujeito. Se ele é cigano, rouba
porque é cigano. Com o desenrolar destas relações hostis, os ciganos
reverteram essa imagem moral, em princípio negativa, transformando-a em
algo para se orgulhar em determinadas circunstâncias, pois os
diferenciava frente aos não-ciganos.
Para
o cigano, o uso de artimanhas, para ludibriar o não-cigano, era uma
forma de afirmação frente ao grupo, demonstrando ser mais esperto que
o negociante mineiro. A variante do ladrão de animais, sobretudo
cavalos e bestas de carga, é a mais forte desta imagem. As acusações
de roubo de animais eram freqüentes, embora fossem difíceis de provar
tais queixas. Em Vila Rica, num documento de 1800, registra-se "A
devassa pelo achado dos furtos de bestas em poder dos ciganos João
Manoel e outros no sítio dos crioulos."
Além
das já citadas suspeitas de roubos de escravos, constavam também acusações
relativas a roubo de crianças. Neste sentido, é importante
considerarmos, ligeiramente, o percurso da imagem do cigano ladrão de
criança na Europa.
Quando
Cervantes, no início do século XVII, criou o tema do roubo de crianças
pelos ciganos, estava inaugurando um dos maiores filões da literatura
ficcional sobre os ciganos.
No século XIX, numerosos autores utilizaram o tema da criança roubada
como objetivo "educativo". Acreditavam que o contraste entre o
"mundo civilizado" dos jovens leitores e a "vida
perniciosa" dos ciganos, por suposição, incitaria as crianças a
apreciar mais sua própria cultura e a obedecer a seus pais. Essas
“estórias” fantasmas contribuiram bastante para criar uma imagem
extremamente negativa dos ciganos. Assim os autores manipulavam a imagem
dos ciganos para valorizar as virtudes cívicas e civilizadas dos não-ciganos.
Essa literatura sobre os ciganos foi uma estratégia de educação
moral, portanto de dominação.
Uma
vez considerada a origem literária do mito de roubo de crianças, não
devemos descartar a possibilidade de ciganos acolherem crianças que
ficavam fascinadas, com seu modo de vida. Eventualmente, famílias
ciganas podem ter adotado crianças não-ciganas abandonadas por mães
(geralmente solteiras) não-ciganas. Vale lembrar que nas vilas de Minas
entre 1700 e 1715, "de cada 100 nascimentos, 90 eram de filhos ilegítimos."
Com a decadência da mineração e a sedentarização crescente da
população mineira, o número de filhos ilegítimos diminuiu, mas
durante o oitocentos ainda era grande o número de enjeitados.
Provavelmente,
algumas famílias ciganas adotaram muitas dessas crianças. Além de ser
uma estratégia de fortalecimento do grupo pelo aumento numérico, a adoção
restituía parcialmente o status
aos casais ciganos que por alguma razão não podiam conceber
naturalmente seus filhos ¾
já que a maternidade e, se possível uma prole numerosa, era bastante
valorizada pelos ciganos. Dessas adoções, obviamente sem qualquer
formalização jurídica, surgiram muitas reclamações de pais legítimos
arrependidos.
Ilustrando
tais suspeitas, houve em Pará de Minas, em 1881, o caso do menino
Benjamim Oliveira que fugiu junto com a Companhia Sotero, circo do qual
posteriormente escaparia: "Partiu com ciganos (...) Descobre,
entretanto, que os ciganos desejavam trocá-lo por um cavalo. Escapou
novamente (...)."
Há, ainda, acusações mais graves. A primeira de que ciganos teriam
seqüestrado uma criança em Vassouras (Província do Rio de Janeiro)
para comê-la, em 1888.
Já, em 1892, encontrou-se em Bom Sucesso (Minas Gerais) "o
esqueleto de uma criança desaparecida há seis meses".
Como na mesma época do desaparecimento, havia chegado um bando de
"turcos" (uma das designações dos ciganos dadas pelos
mineiros), esta mera coincidência, associada às imagens tradicionais,
revoltou a população, colocando os ciganos mais uma vez como bode
expiatório.
Nenhuma
das acusações de roubo, acompanhada ou não por assassinato ou
canibalismo, foi comprovada. No entanto, estas simples suspeitas somadas
a eventuais casos reais de trapaças e roubos, por exemplo no comércio
de cavalos, solidificava a idéia de ciganos como sinônimo de ladrões.
Conclusão.
Estar
diante do cigano era estar diante da diferença extrema, fragmentadora.
Agindo como elemento de decomposição da suposta unidade que constituía
a sociedade mineira, os ciganos catalisavam conflitos e davam vazão a
incertezas. Disso resultou, muitas vezes, uma coisificação dos
ciganos, e consequentemente as mais variadas formas de violência contra
eles.
Qualquer
cigano era reduzido ao estatuto da imagem cigana ¾
construída como se fosse natural, imutável e indestrutível. Nascer
cigano era ter seu destino parcialmente já traçado. Isso significava
estar do lado oposto à "boa sociedade". Assim cada cigano era
a síntese de tudo que se pensava sobre os ciganos. Por isso, freqüentemente,
eram prejulgados. Em seguida , equivocadamente, executavam-se punições
relativas a contravenções e crimes, supostamente cometidos por
ciganos, equivocadamente.
Vinculados
a um conjunto de estereótipos, predominantemente negativos, os ciganos
foram identificados como tendo uma natureza "perigosa", uma
encarnação da ameaça, pois seriam sujos e imorais. Assim, o cotidiano
cigano sempre esteve intimamente associado à imagem que se construiu
deles. Imagem esta que manifestava as ressonâncias dos pesadelos e,
eventualmente, até dos sonhos, da sociedade que os
"abrigava".
O
discurso civilizatório oitocentista, era um projeto político-cultural
que idealizava uma sociedade em que não houvesse conflito,
consequentemente em que não houvesse diversidade cultural, nem
transformação social que não fosse em direção ao progresso.
Homogeneizar a população, criando o "ser brasileiro", era a
estratégia para o controle da população de uma forma geral. A solução
mais utilizada pelas autoridades policiais quanto aos ciganos,
"incorrigíveis" e "incivilizáveis",
era a expulsão dos bandos para onde tinham vindo, ou para a
cidade vizinha, ou melhor ainda para a província (depois, estado)
fronteiriço. Preventivamente, realizava-se
isto pela via mais "branda", ou seja, dentro do quadro
da lei. As municipalidades, por exemplo, utilizavam-se das Posturas. Uma
vez burlada a legislação, iniciava-se a segunda via, explicitamente
violenta. Procedia-se a perseguições "instrumentais",
visando provocar um pânico entre os ciganos. Assim, num momento de
grande movimentação de ciganos e de forte repressão policial,
surgiram as "correrias" que, freqüentemente, resultaram em
sangrentos tiroteios.
Como
"ladrões e assassinos" ou como saltimbancos admirados, os
ciganos estiveram, durante todo o período analisado, distantes dos
"homens bons". Como comerciantes de escravos e animais ou
exercendo a "buena-dicha", aos ciganos sempre couberam aquelas
atividades desinteressantes para os grandes empreendedores e socialmente
desvalorizadas ("ilícitas", "impuras" e
"repugnantes"). Como nômades ou sedentarizados, perambulavam
por caminhos inóspitos, acampavam em áreas pouco propícias e se
estabeleciam em espaços insalubres nas cidades.
No
entanto, os ciganos souberam subverter quase todas as situações que o
contexto desfavorável lhes oferecia. Adaptaram-se, penetrando nas
lacunas que a dinâmica econômica e social criavam. A adaptação para
a sobrevivência foi o grande trunfo da condição cigana. Mesmo tendo
uma identidade aparentemente frágil, eles a recriaram frente às mais díspares
circunstâncias. A sobrevivência foi a realização mais duradoura, o
grande evento, da história cigana. Por isso Angus Fraser, autor do
melhor trabalho historiográfico sobre ciganos, escreve na primeira página
de seu livro:
"Quando
se consideram as vicissitudes que eles encontraram ¾
porque a história a ser relatada agora será antes de tudo uma história
daquilo que foi feito por outros para destruir a sua diversidade ¾
deve-se concluir que a sua principal façanha foi a de ter
sobrevivido."
Escrever
uma história dos ciganos é escrever a história dos que a rejeitaram.
Lidando com esta escrita, perpassamos por muitas duplicidades:
sedentarismo e nomadismo, tradição e renovação, fascínio e repulsa,
unidade e fragmentação. Mas o universo cigano mais que de
duplicidades, é repleto de multiplicidades, entre as quais estão as
relações com os não-ciganos, as identidades dos grupos e as imagens
que se formaram dos ciganos.
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"Logo após a Independência, a repressão à vadiagem e
à ociosidade emergeria como uma das principais metas das elites
brasileiras. A formação do Estado brasileiro implicou a tentativa
de disciplinar o cotidiano das camadas pobres e enquadrá-las na
ordem pela via do trabalho 'honesto e lícito'. Coagir 'ociosos' a
tomarem ocupação regular passou a ser questão de ordem política.
A instabilidade política e econômica reforçou a idéia de que a
revolta dos pobres estava intimamente ligada à vadiagem. Assim era
lógico concluir que, além do crime, a rebeldia era mais um rebento
da vadiagem, certamente o mais perigoso." (Fraga Filho 1996,
pp. 91-92).
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