MEDIDAS SÓCIO
EDUCATIVAS E DIREITOS HUMANOS*
*
Roteiro da exposição do Deputado Marcos Rolim nos painéis do
Congresso Nacional da ABMP ( Gramado, Nov. 99) e na III Conferência
Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Brasília, Nov.
99)
Nota
inicial - Minha participação recente em dois dos mais
importantes eventos na área dos direitos da criança e do adolescente
no Brasil - o Congresso da ABMP e a Conferência Nacional - me
permitiu um contato mais sistemático com a polêmica aberta em torno
da necessidade de uma Lei de Execução das Medidas Sócio Educativas.
Minha intervenção naqueles eventos seguiu o roteiro que segue. A
decisão de publicá-lo aqui deve-se, basicamente, a um conjunto de
solicitações que tenho recebido de militantes da área, de
diferentes estados brasileiros. É preciso, não obstante, destacar as
limitações de um roteiro que me foi útil apenas na medida em que
estruturou minha fala. Na verdade, eu deveria - a partir dele -
conceber um texto devidamente fundamentado, o que ainda não pude
fazer. De outra parte, devo dizer que as idéias básicas do roteiro
reproduzem as principais conclusões da Tese de Mestrado, "Retórica e Realidade dos Direitos da Criança
no ?Brasil" apresentada por Sinara Porto Fajardo na
Universidade de Saragoza (Espanha). Ao longo destes últimos anos,
Sinara foi minha assessora na Comissão de Cidadania e Direitos
Humanos da AL/RS. Não apenas pela admiração que tenho por ela, mas,
fundamentalmente, pela concordância com suas teses, recomendo
vivamente seu trabalho a todos aqueles interessados em uma análise
mais aprofundada do Estatuto. Para facilitar o acesso a sua tese,
tomei a decisão de publicá-la, na íntegra, nesta página.
Marcos Rolim
O
Estatuto - importância e limites
Já se assinalou,
suficientemente, o quanto o ECA expressa uma mudança de paradigma.
Particularmente, temos sustentado junto à opinião pública a
importância deste diploma legal contrastando-o com o paradigma antigo
da " situação irregular" o que se torna decisivo face à
extraordinária ignorância das disposições do próprio Estatuto;
desconhecimento que, assinale-se, não é encontrado apenas entre as
pessoas do povo, mas também entre inúmeros operadores do direito e,
seguramente, entre a maioria dos políticos deste país.
De tudo o que se possa
dizer a respeito das alterações introduzidas pela Lei do ECA, penso
que poderíamos sintetizar as mudanças preconizadas - e, ainda hoje,
não garantidas - em torno de três grandes temas:
1) Alteração de
conteúdo - crianças e adolescentes como titulares de direitos
2) Alteração de
método - substituição d?o assistencialismo pela sócio-educação
3) Alteração de
gestão - descentralização e participação popular
Uma mudança de
paradigma envolve a transposição de um ambiente conceitual. Um
paradigma é um ambiente onde os conceitos existem em uma determinada
estrutura. A mudança de paradigma exige uma outra estrutura
conceitual e, normalmente, a emergência de novos conceitos. Dito de
uma forma mais simples: a mudança de paradigma exige um pensar
diferente.
Resulta daí que as
mudanças de paradigma só podem ser concebidas enquanto processos de
reforma cultural.
Na base das
dificuldades para uma efetiva aplicação do ECA no Brasil
encontraremos a ausência desta reforma cultural. Experimentamos,
então, uma permanente tensão entre as normas e sua efetividade. Não
raro, veremos o antigo paradigma surgir ali onde já não seria
possível tolerá-lo, ou onde já se imaginava um terreno "
conquistado".
Este é o processo que
vislumbramos hoje nas relações sociais e na ação do Estado diante
do ECA.
Por óbvio, as leis
não são suficientes para a transformação da sociedade. Elas
expressam , mais propriamente, a dupla condição de instrumento e
caminho, no sentido de " empoderarem" os agentes que
demandam pelo direito e autorizarem uma expectativa de regulação de
situações conflitivas.
A lei justa contribui
para a transformação ?social, senão pelas garantias que introduz,
pelos símbolos que constrói.
O ECA é um exemplo
destas possibilidades. No movimento atual de defesa dos direitos da
criança e do adolescente no Brasil, adquire o caráter de uma
bandeira de luta simbolizando um projeto de sociedade fundado nos
Direitos Humanos e no interesse primordial de crianças e
adolescentes.
É este mesmo caráter,
não obstante, que favorece uma visão acrítica e fetichista da
legislação o que termina por dificultar uma análise mais profunda
dos seus limites enquanto instrumento de transformação social.
Tomo como referência
desta exposição, o trabalho desenvolvido por uma grande amiga minha,
com quem tive o prazer de trabalhar na Comissão de Cidadania e
Direitos Humanos da Assembléia Legislativa do RS, Sinara Porto
Fajardo. É ela quem assinala:
" A garantia dos
direitos dos adolescentes em conflito com as normas jurídicas não é
violada apenas nas fases de execução das medidas sócio-educativas
devido às péssimas condições das entidades de internação; nem
tampouco pelo escasso empenho na implementação de medidas abertas e
semi-abertas. Há uma ambiguidade básica no próprio modelo de
justiça juvenil desenhado no ECA, que expõe uma questão tampouco
resolvida no plano internacional, que é a tensão produzida entre um
caráter penal e garantista, por um lado e entre um caráter mais
pedagógico e flexível, por outro. Em realidade, o que temos é a
vigência de um sistema onde, em regra, não são oferecidas nem
garantias, nem educação, nem proteção?."
Podemos destacar pelo
menos 4 grandes temas a partir dos quais se desenvolvem significativas
ambiguidades:
1) Representação do
Estado em relação aos direitos fundamentais:
Qual o modelo de Estado
que a positivação dos direitos fundamentais autoriza? O que se
imagina, a partir do ECA - e da própria C.F. - é um Estado
conceitualmente afeto ao Bem Estar Social. Como se sabe, estamos muito
longe disto no Brasil e, ao que tudo indica, caminhando em sentido
oposto.
2) Proteção da
infância e juventude X "controle social"
· proteção a partir
da violação da infância
· medida Sócio
Educativa a partir da violação da segurança
3) O conceito de
proteção integral
· não há clareza
quanto aos métodos de proteção - enfoque intervencionista, tutelar,
que se contrapõe ao conceito de criança e adolescente como sujeitos
de direitos.
4) O modelo de justiça
juvenil
· Equilíbrio
catastrófico entre o pedagógico e o penal
· Pedagógico e não
garantista - duração indeterminada das medidas
· Garantista e não
pedagógico - direito de não falar qualquer coi?sa que prejudique sua
defesa- direito de mentir
Há um hibridismo de
modelos no ECA: pelo discurso, afirma-se um modelo de bem estar; pela
prática, um sistema protetor e de justiça
Os
riscos destas ambiguidades:
O protecionismo com
ênfase terapêutica reforça a estigmatização do adolescente.
Sempre que o delito é tomado como expressão de uma patologia,
obteremos consequências claramente não garantistas na execução das
medidas.
Por outro lado, se o
discurso educativo é, no mais das vezes, uma expressão retórica e
alienada produzida pelo próprio sistema, o que teremos é a
concretização de uma falácia pedagógica introduzida pelo ECA
segundo a qual a sócio educação indeterminada é caminho para a
reintegração social.
Paralelamente,
reforça-se o espaço para a legitimação de uma visão penalista
estreita pela qual se imagina que a repressão seja uma resposta
concreta aos conflitos sociais.
Na justiça juvenil
brasileira, então, nos parece correto afirmar que a ambiguidade
principal , tanto aquela presente no texto legal, quanto na prática
da execução das ditas medidas sócio educativas, dá-se entre as
dimensões do pedagógico e do penal.
As medidas
sócio-educativas contrapõe-se à noção de pena, pelo menos no que
diz respeito ao seu sentido retributivista, tendendo à uma ênfase
retórica de conteúdo pedagógico que não ?se reflete na prática.
Sobre o caráter pedagógico do modelo, o ECA é claro como quando,
por exemplo, no inciso VI do artigo 122 define a internação em
estabelecimento educacional como medida sócio-educativa. Note-se:
"em estabelecimento educacional" (!) Alguém aqui pode
conceber um estabelecimento educacional com celas, com guardas, com
desnudamentos para revistas, etc. ?
Ora, a privação da
liberdade, se imposta e realizada com base no ECA, é medida
sócio-educativa e não condição para a mesma. Ao não cumprir-se a
Lei, entretanto, surge a necessidade de justificar a privação de
liberdade como meio para se concretizar o conteúdo educacional nunca
efetivado da medida imposta. Essa distorção resulta também
justificadora de medidas cada vez mais repressivas em termos de
segurança das unidades
Várias
violações de direitos emergem
destas
ambiguidades, entre elas:
1 ) sentenças baseadas
em "antecedentes criminais" (sic)
2) a duração
indeterminada das medidas sócio-educativas, o que viola os
princípios da proporcionalidade, legalidade e segurança jurídica.
3) Laudos técnicos
baseados mais no comportamento do que nos objetivos definidos
individualmente;
4) Medicalização ou
psiquiatrização do conteúdo das medidas;
5) Coisificação do
? adolescente infrator, etc.
Estas características
- extremamente funcionais à ineficácia da execução das medidas
sócio-educativas - terminam por reforçar o alarme social, abrindo
espaços para o retorno de modelos superados.
O que temos, então, é
um discurso legitimador do ECA que desconsidera a fragilidade ou mesmo
a inexistência de garantias quando da sentença e quando da
execução. A ênfase garantista do processo é contraditada pela
ênfase comportamentalista no julgamento e pela ênfase repressiva na
execução.
O discurso pedagógico
legitima o modelo simbolicamente enquanto a prática repressiva e
terapêutica constituem a realidade mesma a partir do objetivo do
controle social.
A
demanda punitiva:
Todos os indicadores
disponíveis estão a demonstrar um aumento em nosso país daquilo que
costumo denominar a "demanda punitiva". Firma-se na opinião
pública um sentimento cada vez mais sólido de que é preciso punir
mais, que as leis tem sido brandas e complacentes com os criminosos,
que deve-se colocar mais policiais nas ruas, que deve-se construir
mais presídios, etc. Neste caldo cultural, cresce o apelo em favor da
redução da idade penal. Por certo, este resultado seria
inconcebível não fosse o persistente trabalho de desinformação
assegurado pelos grandes meios de comunicação com relação ao
próprio ECA.
Em verdade, não temos
sequer condições reais de estabele?cer a dimensão verdadeira da
insegurança pública que atormenta os cidadãos. De um lado, há a
"sensação de insegurança" , experiência de angústia ou
pavor vivida como realidade cada vez mais amplamente; de outro, há a
insegurança efetiva que só pode ser medida a partir dos riscos de
vitimização. Como não temos, no Brasil, rigorosamente, pesquisas de
vitimização, não sabemos, ao certo, as dimensões do problema.
O que sabemos, pelos
dados disponíveis, é que a violência sobre crianças e adolescentes
constitui um fenômeno cuja radicalidade e importância deveria
ultrapassar em muito as preocupações públicas manifestas quanto ao
tema da "violência juvenil".
Entretanto, as
projeções simbólicas em torno da idéia do "adolescente
perigoso" se tornaram muito mais fortes do que aquelas que
deveriam se difundir a partir da idéia do "adolescente em
perigo", o que em si mesmo assinala uma inversão desprovida de
qualquer base empírica. De novo, aqui, percebe-se o quanto a ficção
pode contar mais do que a realidade.
Seja como for, é hora
de nos unirmos em torno de ações concretas junto à opinião
pública que esclareçam as pessoas a respeito do ECA e que barrem o
caminho para a redução da idade penal. Uma larga campanha de coleta
de assinaturas em todo o Brasil contra a tese da redução da idade
penal seria uma iniciativa da maior importância política.
Precisamos
de uma Lei de
Execução
de Medidas S?ócio Educativas ?
O debate em curso sobre
a necessidade de uma Lei de Execução de Medidas Sócio Educativas
precisa ser travado a partir de dois pressupostos fundamentais:
primeiro, o de que as partes envolvidas no debate possuem argumentos
relevantes e que ambas buscam os mesmos objetivos; segundo, a idéia
de que o próprio debate deve orientar-se pelos interesses primordiais
dos adolescentes em conflito com a Lei.
A polarização
construída até agora pela polêmica introduz uma enorme facilidade
em ceder à simplificação. Pior do que isso, o debate pode
degradar-se em uma disputa destrutiva com a reprodução de posturas
sectárias e intolerantes. Ora, a diferença deve ser saudada e
recebida como um bom sinal. É preciso, então, estar atento aos
argumentos apresentados a favor e contra a necessidade de uma Lei de
Execução das Medidas Sócio Educativas, recolhendo o que de melhor
eles têm oferecido.
Entendo que a
possibilidade de uma Lei de Execução de conteúdo fortemente
garantista assinalaria um avanço considerável na aplicação do ECA.
Em verdade, garantias nomeadas detalhadamente em uma Lei podem, na
medida em que restringem a margem de discricionariedade de Juizes e
Promotores, por um lado e de administradores e técnicos, por outro,
democratizar o próprio sistema de justiça juvenil em nosso país
constrangendo a prática de inúmeras arbitrariedades que vitimam os
adolescentes em conflito com a lei.
Por certo, o ante
projeto apresentado pelo Desembargador Amaral e Silva está longe de
se constituir em uma ref?erência para uma boa e justa lei. Cabe-lhe o
mérito de ter apresentado à discussão pública a primeira proposta.
Sua proposta, todavia, não merece acolhida por incorporar
disposições equívocas e sustentar medidas de natureza repressiva em
si mesmas inaceitáveis como o isolamento disciplinar, a suspensão de
visitas ou o uso de algemas.
Os argumentos
sustentados contra a necessidade de uma Lei de Execução das Medidas
Sócio Educativas podem ser agrupados em dois grandes eixos:
primeiramente, em torno da idéia de que o ECA já estabelece todas as
garantias, bastando, portanto, aplicá-lo. Este argumento não me
parece sustentável. Em verdade, o ECA deixou de nomear inúmeras
garantias aos adolescentes em conflito com a lei permitindo, a partir
de seus princípios gerais, uma ampla margem de interpretação pelo
que, por decorrência, legitima-se o arbítrio. Na segunda linha, há
os argumentos que se agrupam em torno da idéia de que uma Lei de
Execução significaria, na prática, a introdução de um
"direito penal juvenil" no Brasil, pelo que se agrediria o
cerne do próprio Estatuto. Verifica-se, aqui, uma tendência bastante
significativa de se disputar doutrinariamente a prevalência de
esquemas abstratos em detrimento dos esforços por centralizar o
debate em torno das pessoas mesmas. Não me parece relevante saber se
a "proporcionalidade" é um princípio adstrito ao direito
penal, ou se a "prescrição" é compatível com as
finalidades pedagógicas do ECA. O que me parece relevante saber é se
regras orientadas por estes princípios podem ser boas ou não para os
adolescentes em conflito com a lei. |