Direitos
Humanos e AIDS
HERBERT
DE SOUZA (Betinho)
(Palestra
proferida em 22 de outubro de 1987 na Faculdade de Direito da
USP)
meu
tema é direitos humanos e doenças epidêmicas e eu vou tratar
da questão da AIDS. Estou convencido de que a AIDS é uma doença
revolucionária. Ela recoloca de forma radical para a nossa
sociedade, tanto brasileira quanto internacional, uma série de
problemas vitais que durante muito tempo tentamos ignorar. Nossa
cultura foi se afastando do real e tenta ignorá-lo, ao invés
de desafiá-lo. A medicina moderna foi criando uma idéia de
onipotência e nos dizia, de forma indireta, que todas as doenças
eram curáveis e que finalmente a morte não podia existir. A
cultura ocidental moderna não só passou a ignorar a morte como
a tentar negá-la sob todas as formas e através de todos os
artifícios. Poucas são as pessoas que enfrentam a morte como
seu cotidiano, como algo natural. Na nossa cultura a morte não
existe. E a medicina se imbuiu dessa idéia, transmitida através
da tecnologia e do avanço científico, de que nós estávamos a
pique de superar a morte. Dentro dessa visão, todas as doenças
são tratáveis, todas as enfermidades são curáveis. Num
determinado momento e ciência moderna começou até mesmo a
pensar que a eternidade estava ao alcance da humanidade. Estávamos
já tratando o câncer como a última doença mortal. De alguma
maneira, havia no horizonte de cada um de nós a seguinte
expectativa: o dia em que descobrirem a cura do câncer marcará
o fim das doenças mortais. Acabando as doenças mortais,
acabou-se a morte.
E
eis que surge um vírus, o HIV, que se esconde no sistema imunitário,
nas células que definem, articulam, constróem o sistema imunitário.
E ao se instalar nesse sistema o desarma, fazendo com que as
pessoas passe a ser absolutamente vulneráveis a qualquer ataque
externo. E está produzido o pânico do século XX. Um sistema
imunitário desarmado é a doença mais espetacular produzida ao
longo da história da humanidade.
A
AIDS se apresenta como absolutamente mortal e epidêmica. No
Brasil, hoje, a cada dez meses, dobram os casos de AIDS.
Tomando-se como base três mil casos registrados no Brasil –
subnotificados, obviamente, porque devemos ter cinco ou seis mil
casos -, façamos esse exercício: dobremos a cada dez meses; em
seis anos chegaremos à casa dos milhões, não de pessoas
contaminadas, mas de pessoas com manifestação de AIDS. Então
essa dimensão epitêmica, que existe a nível de Brasil, e a nível
mundial, como que produz uma consciência de pânico. A
humanidade pode, se não encontrar nos próximos seis ou sete
anos a cura ou a vacina, estar condenada a um processo de extermínio
por este vírus. Segundo pesquisas, alguns países da África já
estão nesse quadro, pois 20% da população apresenta manifestação
de AIDS ou se encontra contaminada pelo vírus.
Esse
vírus, sob todos os aspectos, apareceu de forma espetacular,
mortal, com manifestação rápida, fulminante, sem cura. E até
o presente momento, sem nenhum meio de ataque direto que possa
destruí-lo. Ele se transmite através da relação sexual. A
relação sexual, queiramos ou não, é vital para a humanidade
e é universal, e na nossa cultura está marcada por todo tipo
de preconceito, culpabilidade, pecado, danação, inferno. Ele
veio relacionado também ao sangue, que é outro elemento
universal na cultura da humanidade; o sangue está na nossa
cultura sob mil formas, há pessoas que entram em pânico quando
vêem sangue, embora seja parte constitutiva da nossa realidade.
E o sangue se transmite, fundamentalmente, pelo sangue. Mesmo
quando segue através do esperma, é porque o esperma
contaminado entra na corrente sanguínea, ele nos mata através
do sangue.
Mas
a AIDS vem marcada também por várias outras questões: o
racismo, por exemplo. Quando o vírus foi descoberto, logo se
buscou culpado, e o culpado era o negro africano, a AIDS teria
vindo do Haiti. Depois se descobriu que mais americanos iam ao
Haiti que haitianos iam aos EUA, aí se abandonou um pouco essa
idéia. Nela, o culpado era a África, os africanos teriam sido
contaminados, através de suas relações com o macaco, e
passado esse vírus para o resto da humanidade. O racismo
ensaiou seus passos na questão da AIDS e resistiu por uns três
anos, e só recentemente, com o fracasso de todas as teorias que
tentaram explicar a AIDS como resultado dos “seres inferiores
africanos”, é que essa teoria caiu por terra. Racismo, sexo,
sangue. Mas esse vírus também vinha associado a uma coisa já
lembrada, e que é muito brutal para a nossa cultura enfrentar:
a morte. Nossa cultura não admite a morte. A AIDS vinha dizer
assim: “Convençam-se que todos são mortais”. E uma nova
doença voltou a revelar para o século XX que a morte é
absolutamente inevitáveis.
Bastavam
esses quatro elementos para definir a AIDS como extremamente
revolucionária e explosiva. Se comparamos o número de suas vítimas
e o pânico existente em torno dela, não há a menor proporção.
Mas eu acho, estou convencido, que existe uma razão objetiva
para esse pânico. É que de fato não estamos diante de uma
epidemia mundial, que só será vencida pelo desenvolvimento
científico, pela mudança de comportamento de alguns setores da
população e pela intervenção da sociedade e do Estado, de
forma radical e enérgica, no controle do sangue a nível
mundial. Mas eu queria ainda fazer referência a algo que a AIDS
desvelou no mundo contemporâneo: a questão dos preconceitos
que essa sociedade guarda em relação às pessoas. Eu, quando
decidi falar aberta e publicamente que estava contaminado pelo vírus
da AIDS, sabia que podia dizer isso como hemofílico, que fui
contaminado através de transfusões de sangue, mas eu já tinha
presenciado a morte e a tragédia de várias outras pessoas, que
morreram de AIDS, que tiveram que morrer clandestinamente porque
eram homossexuais ou drogados. E esses homossexuais e drogados
haviam incorporado a culpabilidade, a discriminação da
sociedade em relação a eles, e assumido isso de tal maneira,
que preferiam a morte anônima a lutar pelos seus direitos.
Uma
vez fui procurado por uma jovem que me disse o seguinte: “Meu
irmão é funcionário de uma empresa estatal, ele tem AIDS e não
consegue se tratar em nenhum hospital; meu pai e eu é que temos
de cuidar dele, os hospitais se recusam e a empresa não dá a
menor assistência”. Aí eu falei: “Se você quiser, nesse
exato momento, vamos chamar a televisão, as rádios, os
jornalistas e vamos fazer essa denúncia”. Ela respondeu:
“Mas isso pode prejudicar o meu irmão”. E eu: “Minha
amiga, você não disse que seu irmão está em estado terminal,
morrendo?”. “’E”. “E o que mais ele pode perder? Ele não
vai morrer?”. Ela disse: “É, ele vai morrer, mas eu tenho
que pensar”. Aí falei: “Bom, você pense e me diga; no
momento que você quiser, vamos denunciar essa empresa estatal
que está discriminando uma pessoa humana, doente, por abuso e
discriminação”. Vinte dias depois, fui chamado pela mesma
pessoa que me disse: “Eu queria te agradecer porque fui
conversar com a direção da empresa, exigi tratamento, disse
que denunciaria essa discriminação e hoje meu irmão está
morrendo com conforto, num hospital, com apartamento, com ar
refrigerado, com tudo que ele tem direito”. E essa pessoa se
sentia feliz porque seu irmão estava morrendo em paz.
Conhecendo
esse e vários outros casos, percebi que a AIDS estava
revelando, de forma trágica, o modo como a nossa sociedade
discrimina as pessoas, discrimina o homossexual, discrimina a
relação sexual, discrimina a privacidade das pessoas, o
direito de existir da forma como a sua consciência julga necessário,
ou de acordo com seus sentimentos ou com a sua vontade. E que
ainda descarrega sua discriminação sobre as cabeças e consciências
dessas pessoas. E o mais trágico é que muitas delas
internalizam essa discriminação e morrem na clandestinidade,
sem lutar pelos seus direitos mais elementares, como, por
exemplo, o direito de morrer em paz. Senão de viver, mas de
morrer em paz.
Essa
talvez tenha sido uma das experiências mais difíceis para mim.
Eu presenciava o fato em homossexuais, drogados, ou o que fosse,
e estava diante de pessoas, não diante de objetos da minha
condenação moral. Ao mesmo tempo, meus dois irmãos
manifestavam a doença. E estávamos enfrentando esse problema
ainda clandestinos. Foi então que decidi sair da
clandestinidade. Já tinha vivido assim durante cinco anos,
clandestino na ditadura militar; para mim era o suficiente. É
inadmissível que alguém sofra por um vírus, uma doença, uma
enfermidade, e que, além disso, além de ter de enfrentar a
morte, ainda precise se esconder da sociedade e dos seus irmãos
e irmãs. E a experiência que eu vivi ao dizer que era hemofílico
e contaminado por AIDS, e que meus irmãos também eram, foi e
está sendo uma experiência extremamente positiva. Para mim e
pelo menos para mais um, porque o outro irmão provavelmente não
tenha condições de estar percebendo o que está acontecendo
com ele. Ao romper a clandestinidade, ao denunciar a discriminação,
recebi muita solidariedade.
Solidariedade
de amigos recentes, amigos de muito tempo, mas também de
pessoas completamente desconhecidas, que nunca me viram, que
nunca souberam, que me encontram na rua e demonstram apoio e
afeto. Então eu descobri também isso, que quando a gente
aposta na dimensão negativa, a gente colhe a dimensão
negativa. O pessimista sempre colhe a desgraça. Agora, quando a
gente aposta na dimensão positiva, na solidariedade, também
colhe a dimensão positiva. Acho que é uma coisa perigosíssima
admitirmos, em princípio, que as pessoas são ruins, que as
pessoas são más, egoístas e covardes. Acho que devemos partir
do princípio oposto, e apostar nisso. E tomar o resto como exceção
e não como regra. Há um caso ilustrativo. Meu filho de cinco
anos e meio brincava sempre com duas crianças e, quando eu saí
na televisão, no jornal ou no rádio, os dois amiguinhos
desapareceram de nossa casa. Minha esposa pressentiu algum
problema. A primeira reação nossa foi da mais profunda
tristeza. Discriminar a mim que tenho 52 anos não me incomoda
muito, mas discriminar uma criança de 5 anos e meio é triste.
Triste e inadmissível. Decidimos chamar a família, o pai e mãe
das duas crianças, e eles vieram. Sentamos e dissemos: “Olha,
nós sabemos que vocês devem estar preocupados com os filhos de
vocês; é justo; todo pai e toda mãe se preocupam com os
filhos, com a saúde deles, mas queremos dizer a vocês algumas
coisas”. Aí demos, durante uma hora, mais ou menos, um curso
prático sobre hemofilia, transfusão de sangue, contaminação
genética. Falamos que nosso filho não é hemofílico, portanto
não toma transfusão de sangue, portanto não está
contaminado. Depois mais meia hora sobre AIDS, as formas de
contaminação, as formas de transmissão, como se transmite,
como não se transmite. E os dois escutavam mais atentamente e,
depois dessa conversa, já estavam querendo saber sobre outras
coisas, sobre onde nós tínhamos estado no exílio, curiosos
sobre outras dimensões da nossa vida. E, depois de duas horas
de conversa, toda a questão estava resolvida. No outro dia,
cedo, as duas crianças amigas já estavam lá em casa,
brincando com o nosso filho. E continuam brincando até hoje.
Esse
exemplo só nos mostrou o seguinte: a passividade, o pessimismo,
a entrega ao que existe de pior, só reproduz o pior. Se nós não
tivéssemos conversado com aquela família, provavelmente as
crianças não estariam brincando com nosso filho. Mas, depois
da conversa, da informação, da abertura, da confiança na
capacidade deles em entender a situação e enfrentá-la, a
situação mudou. Não quero dizer que todos vão ter condições
de viver e de proceder como nós. A situação para os
homossexuais é muito difícil, mas é possível fazer alguma
coisa.
Partindo
da experiência pessoal, quero dizer o seguinte: a AIDS está
produzindo um verdadeiro strip-tease da nossa sociedade, dos
nossos valores, da nossa cultura, assim como do sistema de saúde
em nosso país. Aqui, o sistema de saúde não existe para a
prevenção. É um sistema da cura, da morte e do comércio.
Desde há muito deficiente, foi destruído ao longo desses vinte
e tantos anos de ditadura. Na verdade, nunca tivemos uma política
séria de saúde pública, que estivesse voltada para interesses
da população.
Eu
já disse que a AIDS era a ponta de um iceberg, porque é a
ponta mais dramática, mais visível. Mas logo abaixo vem uma série
de doenças endêmicas que poderiam ter sido absolutamente
eliminadas do país, com pouco investimento e pouco recurso, e
que até hoje não o foram, para vergonha nossa. O Brasil é um
país tuberculoso, um país com doença de Chagas, com lepra,
com esquistossomose e uma série de outras enfermidades que
atingem a milhões de pessoas, sem contar aquelas que morrem sem
estar doentes, porque morrem de fome. Como é o caso da
mortalidade infantil no Nordeste e também (por que não?) nas
periferias das nossas capitais. Há porém a consciência política
de que nós não temos um sistema de saúde; mas, de doença e
comércio – exatamente esse comércio que produziu a
calamidade do sangue, transformando em mercadoria e hoje
transmitindo a morte, por meio da transfusão, através da AIDS,
hepatite B e várias outras doenças. E essa situação tem
muito mais a ver com política e cidadania e direitos humanos do
que com qualquer coisa.
Nessa
luta relacionada à AIDS, tive uma revelação fantástica: eu
descobri que o principal problema de saúde no Brasil era o
ministro da Saúde. Ele é ministro da Saúde de um país que
ocupa o 2º lugar no mundo em casos absolutos de AIDS, nunca
entendeu o que é uma epidemia, tendo tido a coragem de dizer
que não importava AZT porque o Brasil tinha que fazer pesquisa
científica para comprovar sua eficiência e proteger o
consumidor. Isso quando nós sabemos que esse mesmo ministro é
quem permite a importação e o uso, aqui no Brasil, de drogas
condenadas no mundo inteiro.
Outro
exemplo da forma como a gente enfrentas obstáculos ali onde não
deveria haver, foi quando o diretor da Cacex, perguntado pelo
jornalista se ia importar ou não AZT, saiu-se com esta jóia:
“AZT é coisa de bicha rica”. Pois bem, depois dessa ele
continuou em seu cargo, porque uma das coisas que se perdeu
nesse país foi aquela coisa elementar que se chama sentido de
dignidade.
Mas
gostaria de terminar dizendo o seguinte: creio que nós podemos
transformar a tragédia da AIDS, da enfermidade e da doença num
desafio, numa oportunidade, numa possibilidade de recuperar na
nossa sociedade, em nós mesmos, em cada um de nós e em todos nós,
o sentido da vida e da dignidade. E, com esse sentido da vida e
da dignidade, seremos capazes de lutar pela construção de uma
sociedade democrática, de uma sociedade justa e fraterna.
Debate
Pergunta:
Caro Betinho, todo o mundo foi contaminado pela emoção,
felizmente uma boa contaminação... Se essa doença emergiu,
como você observou, foi porque a nossa elite se sentiu
atingida, e no Brasil ela nunca se sente atingida. Há dois anos
eu lhe disse que você trouxe do exílio uma lição muito
importante para nós todos, que, atabalhoadamente, queremos
construir um país melhor. E a lição que você nos deu, eu
senti de perto vi, como é que você trabalhou, quando estávamos
divididos, com mil picuinhas na questão da reforma agrária,
com todas as entidades se dividindo a troco de ninharias, ano de
82, nós vimos, no final de 82, você, como um dos articuladores
principais, uma paciência homérica, conseguir sentar, na mesma
mesa, grupos que jamais aceitariam sentar na mesma mesa, grupos
que estão sendo dizimados agora no campo. Essa campanha pela
reforma agrária foi uma das coisas mais lindas que já vi nesse
país; ela começou aos poucos, de repente se espalhou pelo
Brasil inteiro, ano de 83, ano de 84, em São Paulo, vimos
passeatas, concentrações de mil trabalhadores rurais do Vale
do Ribeira, interior do Estado, que a imprensa escondeu; e, no
Brasil, como se escondem as coisas, a grande massa da população
é uma massa invisível, o que a AIDS fez foi atingir a massa
invisível. E tudo isso, se hoje no Congresso Constituinte
conseguimos fazer com que a reforma agrária, que foi a grande
derrota de cem anos atrás na Abolição, voltasse a ser de fato
um outro ponto decisivo, um ponto central, isso deve muito à
sua paciência, à sua sabedoria, a essa sua calma, e eu queria
lhe agradecer por isso, como cidadão brasileiro e... com a emoção
que cabe para cada pessoa trazer.
Betinho:
Queria fazer dois comentários. O primeiro é o seguinte: nós não
conhecemos realmente, no Brasil, o perfil social da AIDS, que
classes sociais ela está atingindo. Como vocês sabem, a
pesquisa social no Brasil é miserável. Os indicadores sociais
no Brasil são miseráveis, tão pobres quanto a renda per
capita. Dados sobre desemprego, sobre acidentes de trabalho,
sobre, enfim, tudo isso que a gente gostaria de saber, que
existem em países mais conscientes, nós não temos, são dados
tão pobres quanto a população. Por isso, acho que a gente
deve tomar com bastante cuidado a constatação sobre quem está
sendo afetado por AIDS no Brasil, e sobre quem vai ser afetado.
A desgraça que atingiu os americanos pode, paradoxalmente, ser
um elemento de salvação da própria humanidade. Se a AIDS é
uma doença do chamado Terceiro Mundo, como aliás já está
sendo na África, com os africanos morrendo de AIDS há muito
tempo... Com a pesquisa dos japoneses, agora, de que esse vírus
poderia estar existindo há mais de setenta anos, isso fica mais
provável ainda. Acho que nós dificilmente teríamos a
concentração de esforço e de capacidade científica que está
sendo colocada agora em relação à AIDS. É muito provável
que o perfil dos aidéticos nos EUA seja basicamente de classe média,
inclusive porque a classe média americana é a grande maioria
daquela sociedade. No caso do Brasil, eu temo que, além da
classe média, que é essa parte visível em que você falou,
uma grande proporção da população pobre vá ser atingida. O
que acontecerá, infelizmente, se nós, num prazo muito curto, não
vermos condições de debelar a crise.
Acho
que este governo não revelou a menor capacidade e
sensibilidade, diante deste e de todos os outros problemas
sociais que conhecemos. E eu diria até mais, que o próprio
governo americano não se empenhou à altura do desafio que está
colocado. Porque a questão da AIDS é de uma velocidade
espetacular, cada mês, cada seis meses, valem, no caso da AIDS,
o que valeria cinco, dez anos para outras enfermidades; então,
os investimentos que o mundo desenvolvido está colocando em
relação à AIDS não correspondem à gravidade da epidemia,
nem aqui, nem lá. Se eles dedicassem 10% do dinheiro gasto em
corrida armamentista à pesquisa da AIDS, não tenha dúvida de
que nós já estaríamos hoje muito mais próximos da cura, se
é que já não estivéssemos com a cura. Existe uma outra coisa
fantástica na AIDS: não posso aceitar que ela seja incurável,
não existe essa idéia, o que existe é a incapacidade da ciência
em chegar ao conhecimento do problema, quer dizer, à cura da
AIDS. Essa é uma questão.
Quanto
à reforma agrária, realmente acho que uma das lições que
tiramos da Campanha Nacional pela Reforma Agrária, aí por
analogia, comparando a questão com a questão da AIDS, é a
seguinte: durante bastante tempo, muito de nós trabalhamos mais
a divisão que a unidade. Essa é outra coisa: por que não
trabalhar mais a unidade que a divisão? Acho que a Campanha
Nacional de Reforma Agrária é uma evidência dessa
possibilidade. Hoje, movimentos sociais com diferenças
profundas, que são mantidas, são capazes de sentar juntos e
lutar por uma mesma emenda popular, por uma mesma perspectiva.
Acho que isso é um pouco o que falei de apostar naquilo que a
gente tem de positivo, de proposta, e não de autoderrota
antecipada em que, muitas vezes, a gente entra.
Pergunta:
Sabemos que algumas empresas estariam fazendo exames de sangue
em seus candidatos para ver se apresentam o vírus da AIDS, e se
tiverem, elas recusam os candidatos contaminados. Queria saber
como você sente esta questão do estigma da AIDS, sendo
colocado em relação ao direito das pessoas, privando dos
direitos, invadindo de forma violenta a intimidade e a
privacidade dessas pessoas.
Betinho:
Eu acho que existem já hoje uma série de fatos que mostram
como a discriminação contra as pessoas, particularmente no
caso da AIDS, está afetando concretamente os direitos humanos.
Uma ética médica mesmo, uma ética científica, exigiria
sigilo absoluto no diagnóstico de qualquer enfermidade. Quer
dizer: a relação do paciente com o médico, do ponto de vista
ético, deveria ser tão sigilosa quanto foi a relação fiel e
padre na confissão. Pelo menos parece que a Igreja Católica
conseguiu manter isso por milhares de anos sem que houvesse
grandes denúncias de violação. Infelizmente, hoje, com o
problema da AIDS, temos recebido, por exemplo, na ABIA, uma série
de denúncias ou preocupações de que várias empresas estariam
pressionando laboratórios ou médicos para que comuniquem os
resultados dos exames à empresa. E obviamente, essa comunicação,
se é positiva, se supõe que ela produziria, de forma velada ou
não, creio eu, motivo de despedida. Até agora, no entanto, não
tivemos nenhuma denúncia pessoal, individualizada, de uma
pessoa que chegasse e dissesse assim: “Foi feito o teste, foi
constatada a positividade e eu fui demitido”. No entanto, já
recebemos uma série de indicações de que problemas como este
poderiam estar ocorrendo. E observe que isso, além de
constituir uma discriminação contra a privacidade e o direito
das pessoas, é uma medida de caráter absolutamente idiota.
Porque uma pessoa aidética, trabalhando no seu ambiente, ela não
constitui risco algum de contaminação.
Esse
é um lado da questão que eu acho que está aí presente. Temos
tentado desenvolver trabalhos na linha de direitos e na linha da
legislação, que previna esse tipo de discriminação. E a
principal questão se refere ao direito do sigilo do exame. Por
exemplo, existe a obrigatoriedade da notificação aos serviços
públicos, à Secretaria da Saúde etc., para se fazer registro,
o controle da epidemia. Mas essa comunicação poderia ser dada
em código. Nos EUA, por exemplo, quando as pessoas vão fazer
exames, pergunta-se a elas, antes do exame, se querem ser
comunicadas do resultado, e se quiserem de que forma, quer
dizer, a pessoa é consultada previamente sobre como quer
exercer seu direito de privacidade. Acho que o problema é mais
complicado quando você observa uma pessoa que é positiva e que
é casada, porque isso envolve também o direito da esposa e dos
filhos. Então, na verdade, a AIDS abriu um capítulo importante
no campo da ética. Assim como reabre outros capítulos mais difíceis
para a nossa cultura, como é o caso da eutanásia. Quando você
está diante de um caso terminal, o que você faz? O que é
respeitar o direito à morte de uma pessoa? No caso específico
das relações de trabalho, acho que já existe hoje um
conhecimento suficiente para garantir, ou para lutar para
garantir, os direitos do trabalhador. E é claro que uma pessoa
com AIDS, desde que seja superada a crise de uma infecção
oportunista, por exemplo, ela tem todas as condições de voltar
ao trabalho e de exercer o seu direito ao trabalho,
tranquilamente.
Quero,
sempre resgatando a parte positiva, dizer o seguinte: Nós já
fomos chamados por várias empresas estatais, Embratel e
Eletrobrás, para fazer seminários, painéis para os
empregados, sobre AIDS. O último tinha 1.600 empregados, em
duas assembléias, para as quais eles foram liberados do
trabalho, a fim de discutir com médicos, psicólogos, e
inclusive eu estava presente, sobre todos os aspectos da AIDS,
com debate aberto. Um médico da empresa defendeu um ponto de
vista muito correto, ele disse: “Aqui não é diferente do
resta da sociedade brasileira, então, muito provavelmente devem
existir empregados com AIDS e nesses casos nós vamos tratar
deles e se eles tiverem condições de trabalhar, vão
trabalhar, porque não oferecem perigo de contaminação”.
Eu
acho que existe sempre a possibilidade de nós tomarmos a
iniciativa de colocar, nas relações de trabalho, a questão da
AIDS, ao invés de esperar sempre que o problema chegue sob seu
aspecto negativo, que é exatamente a discriminação, a
dispensa, o pânico e o medo no contexto onde o trabalhador está.
Nós tivemos contato, por exemplo, com o Sindicato dos Portuários
do Rio de Janeiro, para fazer uma pesquisa e um trabalho entre
os portuários, porque foram descobertos, parece, seis casos de
AIDS. Agora a situação,
a meu ver, é particularmente dramática na população carcerária,
porque aí, somando-se à violência já brutal, e às condições
de vida brutais em que vivem, você ainda coloca a questão da
AIDS pelo lado da droga e das relações sexuais. Acho que um
dos maiores desafios aos direitos humanos hoje, na questão da
AIDS, se coloca ali onde está, digamos, a violência das violências,
a miséria das misérias: na população carcerária. No
ambiente de trabalho, acho que ainda temos condições até
mesmo de manter a solidariedade, impedindo que essas coisas se
manifestem. Nós temos que travar essa luta antes que a AIDS se
transforme numa epidemia de grandes proporções, gerando o pânico
na população. Por sorte, nós ainda não temos o pânico.
Pergunta:
A gente acaba chegando a conclusão de que a AIDS é uma doença
extremamente peculiar, porque ela não mexe só com o problema
da saúde, é uma doença que traz uma característica a acaba
alterando o comportamento
de uma forma que a gente pode dizer que, daqui para a frente, só
vamos ter uma geração, que está começando agora ou que está
com vinte e poucos anos, marcada em todos os níveis pela questão
da AIDS, não só no nível sexual, mas a nível de
comportamento geral sob todos os aspectos: como a gente se
aproxima das pessoas, como a gente conversa com as pessoas. Então
todas aquelas conquistas da juventude durante toda uma década,
rompendo com uma série de tabus, está extremamente
comprometida por essa doença. Na hora que a gente vai combater,
encarar o problema da AIDS, a gente tem que começar a tomar
pelos diversos aspectos. Primeiro, o problema sanitário, basta
olhar esses hospitais da periferia de São Paulo: AIDS em série,
a capacidade de difusão é uma coisa assustadora. Depois, tem o
problema moral. O lado do preconceito, da discriminação.
Enfim, é uma série de aspectos que a gente tem que pegar. O
lado da informação. Quando você contou o caso com teu filho,
eu envergonhado me questiono se não teria a mesma atitude dos
pais dos meninos, porque a falta de informação é uma coisa
impressionante. Então, eu gostaria de saber, você que já está
aí mu, nível de discussão e está exercendo um trabalho,
gostaria que contasse um pouco do seu trabalho, o que vocês estão
fazendo, como vocês estão atuando e como vocês estão
procurando pegar todos esses aspectos e jogar para as pessoas.
Betinho:
Bom, antes de responder a isso queria acrescentar um elemento na
minha análise que acho que é fundamental. Tenho dito que
existem dois tipos de vírus. Não sou virologista. Mas existe
um outro vírus na consciência das pessoas. Existem milhões de
pessoas contaminadas pelo vírus do medo. Tem pessoas que hoje
estão morrendo de AIDS, sem ter AIDS. Por exemplo, há os que
se suicidam porque acham que estão contaminados. Em São Paulo,
teve uma família que se suicidou. Existem pessoas que começam
a sentir e a sofrer o medo da AIDS sem ter nenhuma razão para
tal, e que no entanto sofrem do medo tal qual uma outra pessoa
que teria razão. E essas não são milhares, são milhões. Então,
existe um problema ao nível coletivo do medo. E que eu até me
pergunto, qual é a razão desse medo. A maioria esmagadora de
pessoas com medo de estarem
com AIDS não tem razões objetivas para tal, no entanto
elas foram contaminadas pelo medo. Eu diria, sem tentar ser
psicanalista, que a AIDS começou a ser uma espécie de
catalisadora de medos, de sentimentos de culpa, de preconceitos,
de tudo, uma espécie de Chernobyl virológica, um negócio
incontrolável. Eu já vi, por exemplo, casos de adolescentes
que, porque há quatro anos tiveram relações com uma mulher
desconhecida ou porque há dois anos transaram com não sei quem
e porque de repente perceberam uma pinta vermelha nas costas,
entram em estado de pânico e querem fazer exame para ver se estão
com AIDS. Eu já curei vários desses medos, porque fiz algumas
perguntas chaves e desmoralizei o medo. E as pessoas se curam.
Então existe essa outra dimensão, porque até agora eu estava
falando do AIDS-AIDS, do vírus-vírus, mas esse outro também
é real, é esse medo difuso que existe na sociedade e que está
atingindo hoje, fundamentalmente, a juventude.
Mas
atinge profundamente também as mulheres. Porque veja que coisa
fantástica, uma mulher casada com um heterossexual, de repente
fala assim: “Se o meu marido tem uma transa fora, ele pode se
contaminar e me contaminar”. A partir do momento que ela
percebe essa possibilidade, que é difusa mas possível, ela
pode passar a ter relações sexuais com o seu marido sob a
marca do medo e exigir dele que use preservativo. Isso não é
incomum, está acontecendo. Por exemplo, na classe média,
hoje em dia, o medo é generalizado: as relações
sexuais liberadas, tardiamente para nós nos anos 60, nos anos
50, já estão banidas pelo medo. Isso que você estava dizendo,
que hoje tem a geração antes do AIDS/depois do AIDS, é
verdade. Eu sou de uma geração que levou décadas para chegar
à liberação sexual. Quando nós mal tínhamos chegado na
liberação sexual, vem essa desgraça para cortar o processo.
Eu realmente me sinto muito revoltado, eu pessoalmente me sinto
indignado, tenho raiva desse vírus por causa disso, porque a
nossa geração toda viveu a repressão sexual de uma forma
muito violenta. Eu fui educado pelo demônio, não foi Deus. Eu
tinha medo do inferno, medo do pecado, sentimento de culpa em
relação ao sexo, era carregado de culpabilidade, de desgraça.
Me lembro de que, discutindo com meu professor, por sinal muito
aberto, o último que eu tive, frei Mateus, eu perguntava coisas
que até o irritavam: “Mas beijo é pecado?”. Hoje se diz:
“Mas beijo transmite AIDS?”. Então tinha aquilo que não
era possível para o namorado, mas era possível para o noivo, e
certas coisas só para depois de casado, enfim, era uma desgraça
essa geração nossa de quem tem 40, 50 anos. Então nós falávamos,
eu pelo menos dizia assim: “Meu filho hoje é liberado, porque
eu nunca ensinei, nunca apresentei o demônio para ele, ele não
conhece o demônio e, de repente, eu vejo meu filho, com 22
anos, apavorado com a AIDS, abrindo de novo o caminho para essa
neura; junto com a neura vem a culpabilidade, vem o diabo! O
diabo sempre arranja uma forma de voltar e se meter na história.
Essa é uma observação en passant aqui para o nosso debate.
Agora
nós, da Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS, somos
quarenta pessoas, das mais diferentes profissões: tem antropólogo,
virologista, infectologista, pediatra, psiquiatra, cientista
social, bispo, não é Dom Eugênio Salles, do Rio de Janeiro,
é Dom Mauro Morelli, de Duque de Caxias, no Rio de Janeiro,
Nilo Batista, que é jurista, enfim, a gente tenta abordar a
AIDS sob os mais diferentes enfoques. E nós nos propomos a
fazer basicamente três coisas: 1º) seguir, acompanhar as políticas
do governo em termos de saúde, no caso particularmente da AIDS,
tudo que o governo fizer de positivo nós aplaudiremos, tudo que
fizer de negativo, nós criticamos; 2º) informar e prevenir. Nós
realmente estamos convencidos de que o que podemos fazer é
prevenir, dado que a cura não está nas nossas mãos; ela é o
desafio da ciência moderna. Mas nós podemos trabalhar a
informação: jornais, revistas, televisão, produzindo
materiais, audiovisuais etc., conferências, seminários, para
trabalhar aquilo que você pode trabalhar, a consciência das
pessoas; 3º) construir um banco de dados, aberto à sociedade,
sobre AIDS, com uma dimensão nacional e internacional. Quando
este banco estiver operando totalmente, nós vamos ter condições
de estar via satélite em contato com os bancos de dados sobre
AIDS nos EUA, na França, na Inglaterra, colocando essa informação,
aqui, ao alcance de quem lida com o problema.
Existe
um problema que não assumimos, por falta de condições
financeiras: o da assistência material. O que é dramático.
Porque, muitas vezes, o aidético se vê morrendo, e isolado,
sem recursos. Mas existem grupos que estão fazendo isso, como o
GAPA. Hoje eu estive com Dom Evaristo Arns, e ele disse que
reservou o melhor espaço, o mais bonito espaço que a
Arquidiocese de São Paulo tem, para construir um hospital,
enfim, algo para atender às vítimas da AIDS com todo amor, com
todo carinho, e já pensando exatamente nessa realidade epidêmica,
se preparando para o futuro. Nesse sentido acho que Dom Evaristo
dá – como diríamos nós que somos brasileiros – um show de
visão e de solidariedade, de sensibilidade humana, que é incrível.
Mas essa postura tem que ser promovida para que frutifique,
porque ela é a luta da saúde. Porque não quero isolar a questão
da AIDS da luta da saúde, do direito à saúde. E acho que se
ela é mais dramática, ela não é só, ela não pode ser
isolada. Porque quando você, por exemplo, luta para o sangue não
seja contaminado, você está garantindo o direito da saúde à
população. E a questão do sangue é um escândalo, é um
absurdo a forma como se trata o sangue. Foi feita uma pesquisa
no Rio de Janeiro absolutamente incrível, pesquisaram cem
mendigos, setenta eram doadores de sangue, para vocês terem uma
idéia a que ponto essa coisa chegou.
Pergunta:
Queria retomar a parte que você falou do caso daquela moça com
o irmão já em estado terminal. Esse medo que a gente vê
existir na pessoa a nível de empresa, a gente também vê
atitudes das autoridades de saúde que parecem mais permeadas
pelo medo do que por qualquer avaliação mais adequada da situação.
E
já que uma das coisas que vocês têm como objetivo é estar
acompanhando as políticas de saúde do governo, aqui em São
Paulo foi feito um convênio com a Febem, e todas as nossas seis
mil crianças vão passar pelo teste do HIV. Na verdade,
realmente parece muito mais uma decisão de pânico que uma
decisão de quem vai fazer alguma coisa, porque muito
provavelmente o resultado disso aí vai simplesmente revelar
mais um aspecto da incapacidade do nosso sistema de saúde de
estar dando conta do problema.
Betinho:
Só um comentário. Você veja como a lógica nem sempre é
verdadeira. Pela lógica, se você quer proteger uma comunidade,
você aplica o teste em todas as comunidades. Mas, estou de
acordo contigo, essa lógica pode ser simplesmente uma forma
irracional de enfrentar um problema que é muito mais complicado
do que simplesmente fazer testes. Inclusive porque sabemos hoje
que os testes de AIDS são em vários casos muito relativos, você
tem falso negativo, falso positivo, você tem tempos em que se
manifestam ou não, existem dúvidas sobre esses tempos. Tenho
discutido sobre o problema do teste, e muitos no nosso grupo
defendem a teoria de que não é por aí, que não é este o
caminho, que o caminho da prevenção não passa por aí.
Principalmente quando você tem comunidades que já estão
vivendo abjetivamente uma situação de violência
institucionalizada, como é o caso das crianças que estão
internadas nessas instituições, e os presos.
E
refletindo um pouco a partir da minha própria experiência, por
exemplo, vivi a seguinte situação objetiva: eu era hemofílico,
tinha tomado transfusão de sangue durante minha vida inteira e
em 1986 havia uma estatística no Rio de Janeiro, que dizia que
95% dos hemofílicos eram contaminados. Aí falei: “Bom, vou
fazer o teste ou não?”. Eu vacilei, eu oscilei durante muito
tempo, porque dizia assim: “Bom, eu estou nos 95%, então
basta tomar as medidas de proteção à minha esposa, nas minhas
relações com ela, que tudo bem, para que eu vou desafiar os
95%?”. E fiquei meses nessa situação até que um dia me
bateu na cabeça o seguinte: “Mas, e se eu estiver nos 5%,
minha vida vai mudar...”.
O
teste tem essa coisa incrível, uma coisa é você pensar que é,
outra é você ter o teste dizendo assim: “Positivo”, aí
aquela espécie de soco na boca do estômago que você leva, se
recompõe, me recompus e tal, aí minha esposa fez o teste, deu
negativo, testou, fez dois, três testes, negativo, tudo bem. Aí
eu comecei a refletir sobre como é complexa essa coisa no caso
da AIDS. Quando dá positivo, se você sabe que é positivo e não
toma cuidado, você pira, você dança. Mas se você não dança,
se você é capaz de se cercar das condições emocionais e
psicológicas para fazer face a esse problema, você racionaliza
o seu enfrentamento com a doença, estabelece monitoramento,
transfere a responsabilidade de estar se olhando todo o tempo
para um médico, faz testes etc. e enfrenta. Porque sempre me
perguntavam: “Mas você é positivo ou não?”. Falava assim:
“Bom, não fiz o exame”. Uma vez feito o exame, não tem
mais isso, você deve decidir: “Assumo publicamente ou assumo
diante de mim que eu vou ocultar”. Enfim, tem todas essas
complicações, todos esses problemas que vão se tecendo em
torno do problema. Agora, no caso específico que você falou,
porque isto estou fazendo na minha inteira liberdade, fui eu que
decidi; mas quando você pega uma coletividade que está sob a
guarda do Estado brasileiro realmente eu tenho milhares de dúvidas,
porque estamos longe de ter um Estado que defenda aos interesses
do cidadão. Estamos vivendo exatamente um Estado que está
oprimindo o cidadão, que não é capaz de respeitar seus
direitos. então, se se quer saber se uma população carcerária
está contaminada, um cientista poderia dizer assim: “Faça
uma pesquisa por amostragem, sigilosa, e você vai saber quantos
por cento daquela população está contaminada ou não, sem
passar todos pelo teste e pelas consequências do teste”, que
ninguém tem condições nessa sociedade, nesse momento, de
saber quais vão ser. Inclusive que tipo de “aidário” se
vai produzir a partir daí. Então, realmente, esse problemas,
que se levanta, é o tipo de problema que a gente tem que reunir
teólogos, moralistas, filósofos, juristas, comissão de
direitos humanos, sentar e realmente ir a fundo para pensar. E
temos que fazer isso já, porque não dá para... quer dizer
essa coisa é séria demais para ficar por conta da Funabem.
Pergunta:
Tenho uma informação importante para passar aqui. Tenho
conhecimento de uma medida judicial que está sendo tomada aqui
em São Paulo com relação a esses bancos de sangue que não
fazem teste anti-AIDS. Trata-se de um inquérito civil que está
na Procuradoria Geral da Justiça para apurar os fatos, a denúncia
feita pela revista Veja, há pouco tempo, a respeito desses
bancos de sangue. E depois, se comprovados que esses bancos de
sangue não fazem realmente o teste, será promovida a
competente ação para que eles obrigatoriamente passem a fazer
o teste. E, se houver interesse por parte da sua entidade, posso
colocar você em contato com o advogado que está tomando essas
medidas.
Betinho:
Tem interesse sim, porque, no caso do Rio de Janeiro, estamos
pensando numa campanha, numa articulação em relação
especificamente à questão do sangue. Legislação, inclusive,
no Rio de Janeiro, nós já temos, que obriga os bancos de
sangue a fazerem testes, a controlarem a qualidade do sangue.
Mas, ao lado disso, temos cerca de 70% dos bancos de sangue que
não fazem nada, o menor controle e mais uma quantidade, não
temos cifras, de bancos de sangue clandestinos. No caso do Rio
de Janeiro, creio que no caso de São Paulo também, é bom que
se saiba, que uma parte dos bancos de sangue está ligada ao
jogo do bicho, ao narcotráfico e a toda forma de marginalidade
que existe por aí. Inclusive, na história dos bancos de sangue
do Rio, é conhecido um fato de que ali na avenida Rio Branco,
no Edifício Central, havia um ponto de jogo do bicho no subterrâneo,
e as pessoas iam jogar, não tinham dinheiro, subiam para o
banco de sangue, davam um pouquinho de sangue, pegavam o
dinheiro e faziam o joguinho embaixo. E, com isso, pode ser, até
mais do que dava o próprio jogo. O submundo que está ligado à
questão do sangue, a nível nacional e internacional, é algo
espetacular. Isso é uma longa história que a AIDS também veio
tornar mais uma vez pública. Agora, vocês vejam o seguinte,
quem é encarregado no Rio de Janeiro de fazer a fiscalização:
o Departamento de Vigilância Sanitária. Eles têm, para 169
bancos de sangue, uma viatura estragada e quatro funcionários,
então, de nada adianta a legislação se você não tem
estrutura para realizar. Agora, com toda campanha feita, nós
inclusive colocamos publicamente que eles precisariam,
imediatamente, de vinte viaturas e de cinquenta técnicos, para
fazer uma visita, por mês, aos bancos de sangue. E agora
estamos nos articulando com o Secretário Estadual de Saúde,
Secretário Municipal de Saúde, Sindicatos dos Médicos,
associações e moradores, enfim, uma espécie de pool de
associações para tentar definir uma estratégia global de
ataque do sangue e acreditamos que, por esse caminho, nós vamos
conseguir alguma coisa. E, nesse campo, nós achamos o seguinte:
que é absolutamente fundamental comprometer a classe médica
com o controle do sangue. Meu princípio é muito elementar: um
médico prescreve sangue, o médico brasileiro hoje deve saber
que o sangue pode matar o paciente, portanto é responsabilidade
dele, ou co-responsabilidade, averiguar se o sangue está
testado ou não. Se nós conseguíssemos, da classe médica,
adesão a esse princípio, a essa política, acho que poderíamos
resolver o problema do sangue em pouquíssimo tempo, porque é fácil
verificar se está controlado ou não. Agora, para um leigo,
para uma família em desespero, para uma pessoa acidentada que
entra numa emergência não é, mas para um médico é.
Pergunta:
Eu, até hoje, não consegui ter medo da AIDS, eu parto do ponto
de vista de que todos nós somos mortais. Agora vou passar para
você alguma coisa que eu ouço das pessoas. Hoje foi dito,
aqui, que a AIDS é uma doença revolucionária, que ela veio
provar que a morte existe, que ela iguala os homens porque
atinge a todos, poderosos ou não, que uns reclamam contra a
necessidade do controle sexual, a necessidade de escolher seus
parceiros, outros, que a AIDS veio barrar, veio controlar a
atitude do homem, então gostaria de saber o que você acha –
a AIDS pode ser até positiva, o vírus da AIDS? Ela veio chamar
uma responsabilidade maior do homem? Ela veio conscientizar
todos nós que existe Deus e que o homem não pode controlar a
morte?
Betinho:
Bom, eu sou contra o vírus da AIDS, quero fazer uma declaração
de voto radicalmente contra, quer dizer, a AIDS é uma
enfermidade terrível, tem que ser combatida de todas as formas.
As pessoas que morrem de AIDS muitas vezes morrem em situações
dramáticas, absolutamente dramáticas, então não gostaria de
ser interpretado como dizendo: “Bom, Deus salve a AIDS!”.
Deus, acabe com a AIDS! Eu diria assim: o diabo inventou essa
coisa e temos que desinventar rapidamente. O que eu tento dizer,
mostrar, é que todos esses desafios podem ser enfrentados
positivamente, podem ser transformados em momentos de superação.
E um dos momentos de superação, que eu acho que a AIDS pode
produzir, é uma mudança de atitude, frente à vida e à morte.
Acho que é um desafio que está colocado. Acho que toda pessoa
que não admite a morte, vive com medo dela. Aliás, nem vive
porque passa a viver, passa a ter medo de uma forma que torna a
vida insuportável. E outra dimensão que talvez a gente pudesse
colocar como desafio, como um problema a ser enfrentado, é que
eu acho que a AIDS recoloca a pesquisa científica num caminho
absolutamente fundamental, que é o do sistema imunitário. Ela
está obrigando a ciência moderna a percorrer um caminho
revolucionário na visão da própria saúde. Dezenas ou
centenas de doenças que hoje são tratadas como doenças, no
futuro vão ser tratadas como resultado da relação entre o
homem e o meio ambiente. E o que faz a relação do homem com o
meio ambiente é o sistema imunitário. Agora ela, em si mesma,
é absolutamente terrível, negativa, ela é uma doença, é um
vírus que tem que ser eliminado. Não gostaria de passar por
alguém que dissesse assim ou como um certo cardeal do Rio de
Janeiro, que a AIDS é um castigo de Deus, para punir o pecado
da nossa sociedade. Quer dizer, a AIDS não é pecado, não é
nada mais do que um vírus, o resto é o que nós fizermos dele.
E aí é que eu vejo a questão de como nós seremos ou não
capazes de enfrentar esses desafios e superá-los.
Pergunta:
Uma questão de esclarecimento em relação à campanha publicitária
que o governo fez durante um tempo. Eu moro na periferia, São
Miguel Paulista, e de repente a gente percebeu que as crianças
não queriam mais andar sem camisa, todos queriam sempre andar
com a camisinha, preocupadas com a AIDS. Como você viu, essa
campanha publicitária do governo... E por outro lado, como
preocupação da esquerda, um pouco mais radical, ou nossa também,
está um grave problema, o problema da fome, miséria,
desemprego, os vários problemas sociais. E o problema da AIDS
talvez seja da burguesia, até pintou isso. E eu também vi isso
com grande preocupação. Até o dia em que, de repente, eu
estava percebendo que alguém com um peso muito grande, com uma
visão muito longe, falava que se não cuidarmos, daqui a dez
anos, possivelmente, a AIDS matará tanto quanto a fome. Que
caminhos você vê, de esclarecimento, de consciência, que a
gente poderia contribuir em relação à classe popular, em relação
às pessoas com quem a gente trabalha?
Betinho:
Em relação à campanha do governo, eu uma vez disse que era
uma campanha feita num horário em que todo mundo estava
dormindo ou pegando AIDS. Porque começa a passar lá
pelas onze horas da noite... Enfim, em matéria de propaganda,
em matéria de comunicação, de informação, acho que ela foi
tão fraca que morreu por si mesma, ela desapareceu e ninguém
percebeu. Nesse sentido é até curioso como as campanhas da
Globo, da Bandeirantes, da Manchete e das outras, e os trabalhos
dos jornais foram dezenas de vezes mais efetivos que a campanha
do governo. E aí, por exemplo, tenho um depoimento em relação
à campanha da Globo. A Globo ficou profundamente sensibilizada
com o problema da AIDS, a Globo perdeu vários empregados. Então,
não foi preciso muita força para sensibilizar os meios de
comunicação de massa de que isso era uma questão grave. Quem
não entendeu isso foi só o Ministério da Saúde.
E
quando as campanhas foram apresentadas houve muita reação, de
diferentes lados, em relação à importância e a gravidade do
problema da AIDS. Vieram de diferentes lados. por exemplo,
muitos grupos homossexuais condenavam campanhas em relação à
AIDS porque achavam que era uma discriminação, que a campanha
estava sendo usada para discriminar os homossexuais. Alguns
grupos de prostitutas, por exemplo, reagiram e disseram: “Mais
outra repressão!”. Os drogados então, que vivem oprimidos,
mais ainda. Então os chamados grupos de risco, ou os grupos que
estavam mais expostos à contaminação, reagiram. Setores da
Igreja também reagiram, porque disseram: vão propor agora o
uso de métodos de controle da natalidade, que nós proibimos,
que não podemos assumir. Eu uma vez, inclusive, tive uma
conversa com alguns bispos da CNBB, e eu dizia: “Olha, acho
que temos que distinguir a questão da reprodução da questão
de defesa da vida. Se uma pessoa põe uma camisinha para não
procriar é uma coisa; mas se põe para defender a vida dessa
parceira, é completamente diferente”. Então houve essa reação
por parte da Igreja, que também foi um problema. E houve uma
profunda incapacidade, por parte do governo, de perceber que o
problema era sério. Dentre essas reações, também, algumas
vezes a gente falava sobre a AIDS e alguém levantava e dizia:
“É, mas a fome está matando mais, a esquistossomose está
matando mais, a doença de Chagas está... acidente de carro está
matando mais” etc. Eu falei: “Bom, eu realmente vim aqui
para falar de AIDS, não para fazer uma competição sobre o que
é pior”. Isso é uma competição que não me agrada. E não
acho também que a prevenção à AIDS seja exclusiva, porque
acho que todas as ações relacionadas à saúde da população
têm de ser articuladas, integradas. Não vou dizer que primeiro
cuido de uma coisa e depois de outra. Agora existe uma diferença
qualitativa entre doença de Chagas e AIDS. Uma pessoa pode ter
doença de Chagas e viver oitenta anos. Mas uma pessoa com AIDS
vive, uma vez que se manifesta, em média, dois anos. A doença
de Chagas não é epidêmica, é endêmica. E se o governo
brasileiro, ou a sociedade brasileira, resolvesse eliminá-la,
eliminaria, mas a AIDS é outra coisa. Então não dá para
comparar qualitativamente. E, finalmente, outra questão grave
é que uma epidemia se mede pela velocidade da sua propagação,
é o célebre tabuleiro, aquele cara que começou com um grão
de trigo e levou o rei à falência. Se você começa com três
mil dobrando a cada
dez meses, em seis anos você chagou à casa dos milhões. Daí
que hoje, por exemplo, sou daquelas pessoas que pertence ao que
chamo o Exército de Brancaleone, as causas, as grandes causas,
principalmente as perdidas, que nós temos, eu abraço todas.
Então uma parte é para a reforma agrária, outra parte é para
isso, outra parte é para aquilo. Mas eu vi que realmente, em
defesa de muitas coisas, inclusive da própria sobrevivência de
uma parte importante da nossa população, você tem que
enfrentar a questão da AIDS. E aproveitar esse enfrentamento
para articular isso em todas as dimensões. Por isso que eu digo
que a AIDS é uma ponta de iceberg que revela a falência do
nosso sistema de saúde pública. Então, é óbvio que hoje
morram mais crianças de fome que pessoas morrem de AIDS, é óbvio,
mas acho que nós temos que prevenir para que a AIDS não
mate milhões no futuro e impedir que as crianças morram de
fome no presente, acho que essas duas coisas são perfeitamente
compatíveis.
Pergunta:
Queria dizer o seguinte: acho que estamos no renascimento de uma
nova fase do humanismo. Betinho, falando da AIDS, lembrou a
questão da morte, da religião. Do ponto de vista das igrejas,
as grandes epidemias sempre foram os grandes momentos de afirmação
do humanismo. Mas poucos têm uma visão mais construtiva sobre
a questão da morte. A palavra da Igreja neste ponto é
fundamental, pois ela não pode ficar omissa.
Betinho:
Bom, que estas sejam minhas últimas palavras... Eu confesso que
há situações difíceis, esse é um tema extremamente
complicado para se elaborar. Eu não gosto muito da palavra mistério
porque sempre atrás dela se esconde muita coisa, inclusive o
medo. Eu hoje creio que o importante é a vida, a vida é um
processo, mas é um processo feito de milhões de sucessões de
instantes que você vive. E ao mesmo tempo que o importante é a
vida, o importante também é admitir consciente e
tranquilamente que a morte está presente em cada momento da
vida. É como se você pegasse sempre uma moeda em que o lado em
que você está vendo é a vida e, se você vira, está a morte.
Toda vez que você pensa que esta moeda não tem verso e
reverso, você está caindo numa armadilha. Portanto, a vida é
uma convivência com a morte, nesse sentido. Nós não temos
medo só da morte, acho que a gente tem, às vezes, mais medo é
da vida.
Uma
vez, vivi uma experiência, foi uma experiência de morte aqui
em São Paulo; eu estava clandestino e tive uma úlcera
supurada, uma hemorragia que não estancava, e fui parar no
Hospital das Clínicas. Lá fui operado pelo Dr. Danilo. E tudo
me dizia que ia morrer, porque eu era hemofílico, estava com
hemorragia, ia ser operado; portanto ia morrer. A convicção da
morte era praticamente total. E eu perguntei ao Dr. Danilo:
“Qual é a minha chance?”. Ele falou em 95% de chance. Eu li
o contrário, 95% de morte, então tinha só 5%. De novo estou
sempre repetindo essas chances. Aí eu disse: “Bom, eu estou
diante dela, diante dela eu tenho que, como dizia na minha
terra, tem que ser homem, né, então vamos ser homem”, e me
apagaram e eu acordei, não morri, como vocês todos podem ver.
Mas, quando descobri que estava vivo, entrei em pânico, eu tive
medo da vida. Que era como se eu voltasse a dizer: “Ih, vou
ter que morrer de novo”. E isso porque eu estava vivo. Então,
foi uma das experiências mais fortes que eu enfrentei e depois
produzi uma série de filosofias para mim mesmo, para meu uso,
dizendo assim: “Bom, mas suponhamos que eu tivesse morrido,
realmente eu morri ali, acabou, sobrou alguma coisa? Ficou
alguma coisa, e o espírito, existe espírito?” E o máximo
que eu cheguei naquela ocasião, que é mais ou menos o que
sinto hoje, é o seguinte: é possível que algum nível de
consciência, que eu não sei qual é, sobreviva ao
desaparecimento físico. Essa, para mim, é uma hipótese muito
interessante porque, imagine eu com a minha consciência e sem o
meu corpo... É uma coisa fascinante. Mas se não for, e é o
fim mesmo, é algo espetacular porque aí eu elaborei uma outra
visão, que é o seguinte: a morte não existe para mim, porque
só pode existir morte para um sujeito; se eu desapareço, deixo
de ser sujeito da minha morte. Então, na verdade, a morte só
existe para o outro, a morte é algo que existe para o outro. Se
meu irmão morre, dentro dessa visão, eu é que sinto a morte
dele, eu que vou vivenciar a morte dele, mas ele não existirá
para vivenciar sua própria morte. Então, isso também me
tranquilizou, quer dizer, as duas hipóteses são altamente
tranquilizadoras. Eu cheguei à conclusão de que realmente o
que eu temo é o sofrimento, e não a morte. Por exemplo, eu
tenho medo de avião, mas não é por causa do avião; é que eu
acho que, se cair, machuca, dói, então é o medo do
sofrimento, mas não o medo da morte. Eu consegui chegar até aí,
se eu morrer e tiver alguma coisa a mais, eu volto para dizer o
quê...
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