Princípio
da complementariedade e soberania
Flávia
Piovesan*
Texto
baseado nas notas taquigráficas de conferência proferida
no Seminário Internacional “O Tribunal Penal
Internacional e a Constituição Brasileira”, promovido
pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça
Federal, em 30 de setembro de 1999, no auditório do
Superior Tribunal de Justiça, em Brasília-DF.
A
proposta da minha intervenção é enfocar o princípio da
complementaridade e a soberania, tendo em vista o Estatuto
do Tribunal Penal Internacional e a Constituição
brasileira de 1988. A pergunta que foi apresentada é: o
Tribunal seria uma intervenção indevida no exercício da
soberania nacional, tendo em vista a Carta de 1988?
Passo
a enfrentar essa questão a partir de três reflexões. A
primeira delas, que me parece preliminar, é como
compreender o conceito de soberania à luz do movimento de
internacionalização dos direitos humanos; qual é o
impacto do Direito Internacional dos Direitos Humanos na
noção de soberania estatal ? Feita essa abordagem
preliminar, passaremos à segunda reflexão: de que modo o
Estatuto do Tribunal Penal Internacional concebe o princípio
da complementaridade e soberania. Por fim, enfrentaremos a
questão à luz da Carta de 1988: de que forma a Carta
brasileira de 1988 enfrenta essa matéria, quais as
perspectivas, quais os desafios para a implementação da
jurisdição internacional dos direitos humanos no Direito
brasileiro.
Passaremos
para a primeira questão, trazendo um mapeamento, pois me
parece fundamental tecer os contornos do contexto no qual
o tema se insere: como compreender o conceito de soberania
à luz do movimento de internacionalização e
universalização dos direitos humanos; em que o Direito
Internacional dos Direitos Humanos interfere no modo pelo
qual a soberania tem sido exercida.
Vamos
afirmar, inicialmente, que o movimento de internacionalização
dos direitos humanos é extremamente recente na história.
Surge a partir do pós-guerra, como resposta à barbárie,
às atrocidades, aos horrores cometidos ao longo da era
Hitler. Se a era Hitler foi marcada pela lógica da
destruição, da descartabilidade da pessoa, pelo genocídio
que resultou na morte de onze milhões de pessoas, o pós-guerra
deveria significar a reconstrução dos direitos humanos.
Por
isso, há autores, como o Prof. Lui Henke, que definem e
dividem o Direito Internacional em duas metades: o Direito
Internacional pré-45 e o Direito Internacional pós-45,
dadas as extraordinárias transformações decorrentes da
Segunda Guerra no campo do Direito Internacional. É nesse
cenário que se desenha essa utopia, esse esforço de
reconstrução e resgate do valor da dignidade humana;
busca-se rechaçar o legado do nazismo que foi condicionar
a titularidade de direitos, a condição de sujeito de
direitos, à pertinência a determinada raça – a pura
ariana. Portanto, a nossa busca é lançar os direitos
humanos como paradigma, como referencial ético a orientar
a comunidade internacional.
Fortalece-se,
assim, a idéia de que a proteção dos direitos humanos não
deve se reduzir ao domínio reservado do Estado. Não deve
se restringir, confinar-se às muralhas, à competência
nacional exclusiva ou à jurisdição doméstica
exclusiva, porque revela tema de legítimo interesse da
comunidade internacional.
Essa
concepção, por si só, que vem fomentada a partir de
1945, enseja duas revoluções: a primeira revolução na
noção tradicional de soberania absoluta do Estado, que
passa desde aí a sofrer um processo de relativização e
flexibilização. Só há direitos humanos, globais,
internacionais, universais, com soberania flexibilizada.
Caso contrário, não há como projetar esse tema na
agenda internacional. A segunda revolução é a idéia de
que nós, cidadãs e cidadãos, temos direitos protegidos
aqui, no âmbito interno, mas também no âmbito
internacional.
Nossa
ênfase será: a visão contemporânea de direitos humanos
é aquela que consegue compreender essa dimensão, ou
seja, somar a esfera nacional e a esfera internacional e
avaliar a resultante à luz do princípio da prevalência
dos direitos humanos e da primazia da pessoa.
Portanto,
no que tange ao impacto do Direito Internacional dos
direitos humanos na concepção de soberania, destaco a
afirmação do Secretário-Geral da ONU, quando diz que,
ainda que o respeito à soberania do Estado seja uma questão
central, é inegável que a antiga doutrina da soberania
exclusiva e absoluta não mais se aplica. Uma das maiores
exigências, diz ele, do nosso tempo, é a de repensar o
conceito de soberania. Enfatizar os direitos dos indivíduos
e dos povos é uma dimensão da soberania universal. É
essa a soberania que estamos querendo, que reside em toda
a humanidade e que permite aos povos um envolvimento legítimo
em questões que afetam o mundo como um todo. Um movimento
que cada vez mais encontra expansão no gradual
fortalecimento do Direito Internacional.
Lembro-me
de um livro que li há pouco do Prof. Abram Chayes, da
Universidade de Harvard,
chamado The New
Sovereignty, em que ele diz que a soberania não pode
mais consistir na liberdade dos Estados de atuarem
independentemente e de forma isolada à luz do seu
interesse específico e próprio. A soberania hoje
consiste, sim, numa cooperação internacional em prol de
finalidades comuns. Um novo conceito de soberania, diz o
autor, aponta a existência de um Estado não isolado, mas
membro da comunidade e do sistema internacional. Os
Estados, conclui, expressam e realizam a sua soberania,
participando da comunidade internacional, ou seja,
participar do sistema internacional é sobretudo um ato de
soberania por excelência. Prenuncia-se, desse modo, o fim
da era em que a forma pela qual o Estado tratava os seus
nacionais era concebida como um problema de jurisdição
doméstica decorrente da sua soberania. Nesse contexto,
pode-se afirmar que uma das principais preocupações
desse movimento de internacionalização dos direitos
humanos é justamente convertê-los em tema de legítimo
interesse da comunidade internacional.
Lembro
que esse Direito do pós-guerra – que conta com pouco
mais de cinqüenta anos – pressupõe como legítima e
necessária a preocupação de atores estatais e não-estatais
a respeito do modo pelo qual os habitantes de outros
Estados são tratados. A rede de proteção dos direitos
humanos internacionais busca, a todo tempo, redefinir o
que é matéria de exclusiva jurisdição doméstica dos
Estados.
Outro
autor, Richard Builder, diz que o movimento do Direito
Internacional dos Direitos Humanos é baseado numa clara
concepção de que toda nação tem a obrigação de
respeitar os direitos humanos dos seus cidadãos e que
todas as nações e a comunidade internacional têm o
direito e a responsabilidade de protestar se um Estado não
cumpre as suas obrigações. É por isso que esse aparato,
esse sistema normativo internacional, busca desenvolver
normas, procedimentos, instituições, em prol da
implementação dessa concepção.
Li,
recentemente, uma matéria publicada no The
New York Times, a respeito da “Síndrome
Pinochet”, em que se dizia: Os
ditadores, hoje, enfrentam a Síndrome Pinochet. Nas
palavras do representante da Human
Rights Watch, essa síndrome pode demonstrar quão
distante estamos do tempo em que os déspotas, que
aterrorizam a sua população, poderiam descansar tranqüilos
em qualquer exílio, em qualquer parte do mundo. Vivemos
hoje esse processo.
O
processo de universalização dos direitos humanos
permitiu a formação desse aparato, desse Direito, que é
o Direito Internacional dos Direitos Humanos. Em 1945,
temos o nascimento da ONU, e em 1948, o nascimento da
Declaração Universal dos Direitos Humanos, que é o termômetro,
o parâmetro, o horizonte moral da humanidade. A partir da
Declaração de 1948 é que se fomenta e se apresenta todo
o aparato do Direito Internacional dos Direitos Humanos. São
formados sistemas no âmbito global, das Nações Unidas,
e nos âmbitos regionais – americano, europeu e
africano.
E
qual é o enfoque necessário para interpretar esse
Direito? A idéia básica é que esses diversos sistemas
de proteção interagem em benefício dos indivíduos
protegidos. A idéia, sempre, quando lemos qualquer Convenção
contra tortura, sobre a mulher, sobre a criança, o Pacto
dos Direitos Civis e Políticos ou o Estatuto da Corte
Internacional Penal, a minha lente deve ser: "isso
serve para aprimorar, para ser uma garantia a mais,
suplementar ao exercício dos direitos humanos". O
propósito é unicamente este: ampliar, fortalecer a proteção
dos direitos humanos, adotando sempre, como lógica e
princípio, a primazia da pessoa humana, ou seja, é dessa
maneira que esse todo normativo forma essa unidade de
sentido, e é dessa maneira que esse todo interage com o
Direito brasileiro. O impacto sobre o Direito brasileiro há
de ser este, uma garantia a mais. A nossa cidadania é
redefinida, ampliada, a partir desses parâmetros
internacionais.
É
sob esse enfoque que temos de compreender o Tribunal
Internacional Criminal permanente. Tendo em vista o Princípio
da Complementaridade e da Soberania, insisto neste ponto:
essa sistemática é uma garantia adicional de proteção.
Cabe ao Estado – isso está repetido dezenas de vezes
nesse Estatuto – a responsabilidade primária com relação
aos direitos humanos. A comunidade internacional e, por
sua vez, esse Tribunal, têm a responsabilidade subsidiária
e complementar acionável quando as instituições
nacionais mostrarem-se falhas ou omissas na proteção dos
direitos humanos.
Uma
outra idéia que adiciono é a de o Estado, no livre exercício
da sua soberania, aceitar esse monitoramento
internacional. O Estado vai consentir no controle, na
fiscalização do modo pelo qual implementa os direitos
humanos. Insisto neste ponto: esse Estatuto só se aplica
se o Estado se mostrar falho, omisso, incapaz de responder
às violações de direitos humanos.
Feitas
essas considerações, passamos à segunda reflexão –
de que modo esse Estatuto concebe o Princípio da
Complementaridade e da Soberania. Lembro que, desde o pós-guerra,
uma das primeiras convenções dos direitos humanos
produzidas foi a Convenção para a Prevenção e Repressão
do Crime de Genocídio. Desde 1948, o art. 6º dessa
Convenção estabelecia que o julgamento do crime de genocídio
seria realizado pelos tribunais competentes do Estado em
cujo território foi o ato cometido ou pela Corte
Internacional Criminal competente. O raciocínio é
simples: considerando que o genocídio é um crime que,
por sua gravidade, viola a ordem internacional, constitui
um crime internacional, e considerando ainda que, em face
do seu alcance, muito provavelmente as instituições
nacionais se demonstrarão falhas, omissas ou incapazes de
responder àquele conflito, imaginou-se importante e
relevante a criação de um tribunal internacional. A
jurisdição internacional nasce como uma esperança de
realização de justiça e de combate à impunidade. E a
importância da criação dessa jurisdição vem
revigorada, na nossa avaliação, nesta década de 90, em
face dos genocídios que a marcaram, vide casos Bósnia,
Ruanda, Kosovo e Timor.
Indago
se imaginam possível, hoje, o Judiciário do Timor ou,
ontem, o Judiciário de Kosovo, ou da antiga Iugoslávia,
terem condições para responder àquele padrão de
conflituosidade. Quando há milhões e milhões de mortos,
quando há um conflito entre etnias, grupos, culturas, o
aparato estatal, muitas vezes por meio do seu sistema
judicial, entra em colapso.
Trago
dados a respeito, por exemplo, de Ruanda. Chama-me a atenção
o relatório “Ruanda, vidas destroçadas, a violência
sexual durante o genocídio ruandês e as suas conseqüências”.
Calcula-se que entre quatro e cinco mil crianças tenham
nascido em conseqüência dos estupros cometidos em
Ruanda. Essa é uma dimensão do conflito étnico entre
tutsis e hutus que resultou na morte de milhões e milhões
de pessoas. Será que o Judiciário de Ruanda tem condições
para responder a esse conflito? Parece-nos que a resposta
é negativa. Por isso, a importância de um Tribunal
Internacional Criminal.
Cada
vez mais autores, como Samuel Huntington, dizem que, se a
guerra fria demonstrava e apresentava um mundo
bipolarizado, o pós-guerra fria é marcado por essa
explosão de conflitos étnico-culturais a que estamos,
lamentavelmente, assistindo. Portanto, há mais de cinqüenta
anos, desde a Convenção contra o Genocídio, discute-se
a criação desse Tribunal Penal Criminal Internacional,
merecendo menção as experiências dos Tribunais ad
hoc de Nuremberg, Bósnia e Ruanda.
O
Direito Internacional dos Direitos Humanos sempre
enfrentou o desafio dos treats
with teeth, ou seja, é necessário incluir dentes nos
tratados, sanções aos tratados, criar a força da justiça
e fazer com que ela possa imperar e prevalecer em face da
injustiça da força, da violência e do arbítrio. É por
isso que entendemos decisivo esse avanço extraordinário
da criação do Tribunal Internacional Criminal Permanente
para o julgamento dos mais graves crimes que alcançam a
humanidade: o genocídio; a tortura; a violência sexual
do estupro; o desaparecimento forçado; os crimes de
guerra; e os crimes de agressão.
O
Tribunal Internacional Penal surge como um aparato
complementar à jurisdição penal nacional. O Estatuto de
Roma reitera a idéia de que o Estado tem a
responsabilidade primária, o dever jurídico de emprestar
a sua jurisdição. No entanto, se isso não ocorrer, a
responsabilidade subsidiária é da comunidade
internacional. Lembro, ainda, os arts. 17 a 19 do Estatuto
que prevêem as condições de admissibilidade para a
jurisdição do Tribunal Internacional, como a não-disposição
ou a incapacidade de o Estado julgar esses crimes, o que
inclui a inexistência de um processo imparcial
independente, o colapso do sistema judicial nacional, a
impossibilidade de obtenção de provas, testemunhas
necessárias etc. Dessa maneira, entendemos que o Estatuto
busca equacionar a garantia do direito à justiça, o fim
da impunidade, a soberania do Estado à luz do Princípio
de Complementariedade.
Compartilho
com as posições defendidas pela Drª. Sylvia Steiner
quando salienta a importância do Tribunal Internacional
Criminal permanente como órgão de preservação da
dignidade humana. Lembro-me de uma questão de uma prova
que elaborei para os meus alunos que citava Bobbio – A
Era dos Direitos –, quando ele afirma que na maioria
das situações em que está em causa um direito
fundamental, verifica-se que dois direitos igualmente
fundamentais se enfrentam, e não se pode proteger
incondicionalmente um deles sem tornar o outro inoperante.
Ele afirma que se deve falar em direitos fundamentais não-absolutos,
mas relativos e, por isso, de um lado, o direito à justiça,
o combate à impunidade, em relação aos mais graves
crimes da humanidade e, de outro, a eventual hipótese da
aplicação excepcional da pena de prisão perpétua. Quer
dizer, nesse confronto, o que prevalece?
É
lógico que a grande maioria vai negar a prisão perpétua,
ninguém pode ser simpatizante ou defender esse tipo de
pena; no entanto, nessa balança, tenho de optar, e esse
conflito de valores deve ser solucionado à luz da condição,
é essa pauta valorativa que nos vai orientar a detectar a
racionalidade abraçada pelo sistema e a racionalidade da
dignidade humana, essa é a alma do constitucionalismo de
1988. Portanto, com toda a convicção, entendo que a
balança deve pesar em prol do direito à justiça, do
combate à impunidade, quando se trata de crimes que
afrontam a humanidade.
Veja-se
a questão da prisão perpétua – é uma hipótese da
hipótese: a jurisdição nacional não funcionou, não
foi capaz de responder ao conflito; a questão chega ao
Tribunal Internacional Criminal permanente e esse, em vez
de se valer da regra geral, que é a pena privativa de
liberdade de trinta anos, poderá, excepcionalmente,
valer-se desse tipo de pena. Portanto, penso que nessa
balança – e por isso entendo que a análise deva ser
feita nesse contexto, e não apenas enfocando a prisão
perpétua como instituto – temos de avaliar esse
contexto e dar essa dimensão mais ampla.
Passamos
aqui à última reflexão. De que forma a Carta brasileira
enfrenta essa temática? Quais são as perspectivas, os
desafios para a implementação da jurisdição
internacional no caso brasileiro? O Tribunal seria uma
intervenção indevida na soberania nacional? Lembro que,
no caso brasileiro, o processo de incorporação dos
principais tratados do Direito Internacional dos Direitos
Humanos veio em decorrência do processo de democratização
iniciado em 1985. É clara, na nossa experiência, essa
relação entre o processo de democratização e o de
ratificação dos principais tratados. Esse texto empresta
à dignidade humana, aos direitos humanos, uma ênfase
extraordinária. É um marco jurídico da institucionalização
dos direitos humanos e da transição democrática no
nosso País. Ineditamente, consagra no seu art. 4º, inc.
II, o primado do respeito aos direitos humanos como
paradigma propugnado para a ordem internacional.
Se
fizéssemos um exame comparado, avaliaríamos que a
primeira Constituição, a de 1824, realçava apenas os
valores da independência e da soberania em um momento em
que se buscava consolidar as fronteiras nacionais. A
partir da Carta de 1891, a essas preocupações são
somados os princípios da defesa da paz e da solução pacífica
de conflitos, quer dizer, endossava-se aí essa vocação
pacifista do Brasil; e com essa Carta, de uma forma inédita,
ao lado dessas preocupações com soberania, com não-intervenção,
com defesa da paz, com solução pacífica dos conflitos,
acrescentam-se outros princípios como: prevalência dos
direitos humanos, repúdio ao terrorismo, ao racismo,
cooperação internacional para o progresso da humanidade
e concessão de asilo político. Portanto, esses princípios
invocam a abertura da ordem jurídica brasileira ao
sistema internacional de proteção dos direitos humanos,
e exigem um novo olhar, uma nova interpretação desses
princípios tradicionais como: soberania nacional, não-intervenção,
impondo a flexibilização e a relativização desses
valores.
Se
para o Estado brasileiro a prevalência dos direitos
humanos é princípio a reger o Brasil no contexto
internacional, estamos, conseqüentemente, admitindo a
concepção de que os direitos humanos constituem-se em
tema de legítimo interesse da comunidade internacional.
Eles surgem como tema global. Lembro o art. 5º, § 2º,
que estabelece três categorias de direitos fundamentais:
os direitos ali expressos, os direitos implícitos e os
direitos internacionais que entendemos terem hierarquia
constitucional. Essa interpretação ainda vem corroborada
pelo art. 7º do Ato das Disposições Transitórias, que
consagra que o Brasil propugnará pela criação de um
tribunal internacional dos direitos humanos. Por isso a
ratificação do Estatuto é absolutamente compatível e
consonante com a ordem brasileira, não havendo como
argumentar que esse Tribunal seria uma intervenção
indevida no exercício da soberania nacional.
Termino
por afirmar que nenhum direito é verdadeiramente
assegurado se não for resguardado por uma corte
competente. As cortes internacionais simbolizam e
fortalecem a idéia de que o sistema internacional dos
direitos humanos é um sistema de direitos legais, que
compreende direitos e obrigações juridicamente
vinculantes. A idéia de Estado de Direito, e desse Estado
de Direito global, requer a existência de cortes
imparciais, internacionais, capazes de proferir decisões
obrigatórias e vinculantes. Vive-se hoje, sobretudo, o
processo de judicialização do Direito Internacional dos
Direitos Humanos, que contribuirá para reduzir o grau de
politização desse sistema. Portanto, necessária,
imperativa, nos parece, a ratificação do Estatuto; com a
ratificação desse Estatuto, teremos ampliada e
redefinida a nossa cidadania. O conceito de cidadania, na
lente contemporânea, deve ser alargado e ampliado para
compreender direitos e garantias aqui previstos, e
direitos e garantias previstos na ordem internacional.
A
partir da Carta de 88, intensifica-se essa interação,
essa conjugação entre Direito Internacional e Direito
interno, que fortalecem a sistemática de proteção dos
direitos fundamentais com uma lógica e principiologia próprias,
fundadas no Princípio da Primazia dos Direitos Humanos.
Vivemos, hoje, o processo de constitucionalização do
Direito Internacional somado ao processo de
internacionalização do Direito Constitucional.
Em
suma, com direitos humanos internacionais e com a
implementação de cortes internacionais para a garantia
desses direitos, há a redefinição da cidadania e da
soberania à luz do princípio de complementaridade.
Consolida-se esta perspectiva inovadora, contemporânea
com relação aos direitos humanos, capaz de conjugar a
ordem interna e a ordem internacional à luz da primazia
da pessoa, à luz do princípio da prevalência dos
direitos humanos.
Flávia
Piovesan
é Professora da Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo (PUC-SP).
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