Baltasar
Garzón Real
Entrevista a
Revista Playboy
Baltasar Garzón
Ele mandou prender Pinochet
Caçador de cabeças,o juiz espanhol ficou famoso enfrentando
ex-presidentes, generais e milionários
Eram 11 horas da noite de 16 de outubro de 1998 e o general chileno
Augusto
Pinochet, 82 anos, cochilava num quarto do oitavo andar da London
Clinic, no
número 20 da Devonshire Place, no centro da capital britânica. Não
entendeu o
que estava acontecendo quando, despertado pelo barulho, viu um homem de
cabelos ruivos e terno azul-marinho de pé, ao lado da sua cama, com uma
folha de
papel na mão. Era a primeira vez em muitos anos -- uns trinta, quem
sabe? -- que
um estranho entrava em seus aposentos sem autorização. O homem
anunciou:
-- Mr. Pinochet, I am an official of Scotland Yard and I come to
communicate to
you that for judge Ronald Bartle's order you are arrested, in
incommunicable
character.
Meio embriagado por remédios e pílulas para dormir -- e também porque
não fala
inglês , o general parecia atônito. Resmungou, com a voz fina de
sempre, mas
enérgico:
-- No comprendo, no comprendo. Póngase de acá y llame a Juan!
O policial britânico também não entendeu que estava sendo posto para
fora do
quarto e que o general queria a presença de um de seus guarda-costas
chilenos.
Simplesmente reiterou o que já havia dito antes, dessa vez lendo
solenemente:
-- If you are Augusto Pinochet Ugarte, born in Valparaiso, Chile, on
November
25, 1915, bearer of the bill of identity Chilean number 1.128.923, I
come to
communicate to you that for judge Ronald Bartle's order you are
arrested, in
incommunicable character.
Por Fernando Morais
Ilustração: Montalvo
A mais fiel
tradução das palavras do funcionário britânico, segundo o escritor
Ariel
Dorfman, ele próprio uma vítima da ditadura de Pinochet, deveria ser
esta:
"General, estou aqui para informar-lhe que 3 000 mortos chilenos
decidiram não
deixá-lo envelhecer em paz". Qualquer que fosse a tradução, o
fato é que um dos
mais temidos e poderosos ditadores deste século estava preso.
Não eram 3 000, nem chilenos. O
homem que mudou o destino de
Pinochet é um espanhol míope, de
1,80 metro de altura, com cara de
galã de cinema -- e que nunca havia
posto os pés no Chile. Naquele
exato instante, 1300 quilômetros ao
sul de Londres, o juiz Baltasar
Garzón Real, 43 anos, estava em
uma taverna de Sevilha, no coração
da sua Andaluzia, fazendo aquilo de
que mais gosta: dançando flamenco
com a mulher, Rosario, e bebendo
um espanholíssimo vinho tinto da
região de Rioja.
Só às 9 da manhã de sábado, dia 17, foi que ficou sabendo do
ocorrido na noite
anterior em Londres.
Pinochet, no entanto, ainda levaria seis dias para entender o que
acontecera. A
escolta pessoal que ele trouxera do Chile -- doze homens que se
revezavam em
turnos de 8 horas -- já havia farejado movimentações suspeitas no
hospital, dias
antes. Temendo que antigos exilados chilenos pudessem fazer alguma
provocação,
os agentes pediram à polícia britânica que reforçasse a guarda de
plantão na porta
da clínica.
Uma semana antes, o general havia sido operado de uma hérnia no London
Bridge
Hospital. No dia 14, fora discretamente transferido para o centro de
recuperação
da London Clinic, onde ainda deveria passar dez dias, pagando uma
diária de 1
600 dólares. Foi nessa mudança que alguém -- supõe-se que um
funcionário da
Justiça britânica -- se deu conta da presença do ex-ditador e avisou
Baltasar
Garzón, em Madri. O juiz já contava com a possibilidade de apanhar o
general em
Londres. Semanas antes ele fora informado, por amigos do serviço de
inteligência
francês, de que Pinochet pedira um visto especial para submeter-se a
uma cirurgia
na França. Mas as autoridades francesas temiam que, tão logo o ditador
pusesse
os pés em Paris, Garzón apresentasse um mandado de prisão contra ele.
Para
evitar embaraços diplomáticos, os franceses preferiram livrar-se do
abacaxi com
um discreto "não".
Ao receber a informação, o juiz enviou um fax ao escritório londrino
da Interpol, a
polícia internacional, perguntando se o cidadão chileno Augusto
Pinochet Ugarte se
encontrava no país. Diante da resposta afirmativa, preparou o pedido de
extradição. A burocracia judiciária espanhola ainda tentou brecar o
processo,
alegando que a Espanha não tinha competência para investigar
atividades de
governos estrangeiros, mas apenas para exigir o cumprimento de leis
internacionais
das quais o país fosse signatário. Correndo de gabinete em gabinete,
Garzón
recebeu outra informação preciosa: advertido pelo serviço secreto do
Exército
chileno de que "algo estranho" podia estar sendo preparado
contra ele, Pinochet
preparava-se para deixar a Inglaterra. Após alguns telefonemas para
Londres
(sempre com a ajuda de um assessor, já que Garzón, como Pinochet,
também não
fala inglês), o juiz espanhol soube que, por exigência médica, o
general ainda
permaneceria por mais 72 horas no país.
Começou uma corrida contra o tempo. Nos três dias seguintes nenhum dos
procuradores da equipe de Garzón deixou o salão da 5ª Vara da
Audiência
Nacional, em Madri. Na sexta-feira à noite o juiz tinha nas mãos um
processo de
300 páginas. Ao pé do calhamaço, Garzón requeria à Justiça inglesa
a decretação
da prisão preventiva de Pinochet para que a Espanha pudesse apresentar
um
pedido de extradição para julgá-lo por "prática de tortura,
terrorismo e genocídio",
crimes previstos em acordo internacional do qual os três países
envolvidos --
Chile, Espanha e Inglaterra -- são signatários.
Haveria tempo para pegar o velho ditador? Garzón sabia que Pinochet
deveria
embarcar na manhã seguinte, tão logo acordasse. Sabia também que no
sábado os
tribunais ingleses estariam fechados. Preparava-se para tomar um avião
para
Londres, com o processo dentro de uma pasta, quando foi alertado por um
dos
assessores: por que não mandar o processo e a petição via internet?
Foi assim
que, na noite de sexta-feira, o juiz Ronald Bartle recebeu, sob a forma
de e-mail, o
"Sumário 19/97" e, anexado a ele, o pedido de prisão.
Minutos depois de aberto
em Londres, o attach do computador foi transformado no mandado de
prisão que
às 11 da noite seria lido por um oficial da Scotland Yard, a
mitológica polícia
britânica, para um sonado Pinochet.
A chegada inesperada de um grupo de agentes da Yard à London Clinic
não
surpreendeu o capitão chileno Juan Gana, guarda-costas de plantão na
porta do
quarto do general. Certamente tratava-se do reforço de segurança
solicitado dias
antes. Daí para o espanto foi um pulo: os policiais informaram que
estavam lá com
uma ordem de prisão da Justiça britânica contra Pinochet. Ao ouvir
que teria que
entregar sua arma, o capitão tentou reagir:
-- Sou oficial do Exército chileno. Não recebo ordens de autoridades
estrangeiras.
Quando enfiou a mão no paletó para pegar o telefone celular, Juan Gana
foi
agarrado pelos britânicos, temerosos de que ele fosse sacar a pistola.
Desarmado,
foi retirado do prédio para que a ordem pudesse ser lida no quarto para
Pinochet.
Agitado e sem entender direito o que se passava, o general só voltaria
a dormir
meia hora depois, a poder de soníferos, quando chegou sua mulher, Lucia
Hiriart.
Conhecendo o caráter explosivo do marido -- que, além disso, é
diabético e tem
um marca-passo instalado no peito --, Lucia explicou aos médicos por
que
decidira esconder a verdade do general:
-- Se Augusto percebe o que está acontecendo, tem um ataque de raiva e
morre.
Apesar dos desmentidos da esposa, Pinochet ainda desconfiava de que
alguma
coisa estranha ocorria à sua volta:
-- Eu não entrei neste país como um bandido, não sairei como um
bandido. Sou
senador vitalício do Chile e tenho imunidade diplomática.
Após muita insistência da mulher, o general deitou-se novamente e
dormiu. Só seis
dias depois ficaria sabendo da verdade: sim, ele corria o risco de
deixar a
Grã-Bretanha preso -- como um bandido.
Na manhã de segunda-feira, enquanto o presidente chileno Eduardo Frei
embarcava de Lisboa para Santiago, abandonando às pressas a
Conferência de
Cúpula dos Países Ibero-Americanos para descascar um dos maiores
pepinos de
seu governo, Baltasar Garzón, em Madri, cumpria sua rotina diária como
se nada
de anormal tivesse acontecido. Às 7 da manhã deixou a casa geminada
onde mora
com a mulher e três filhos, num pequeno condomínio de classe média no
bairro de
Pozuelo de Alarcón. Acompanhado, como sempre, de quatro jovens
guarda-costas, levou quinze minutos para atravessar uma Madri ensolarada
e
chegar à Rua Gênova, no arborizado bairro central de Colón. É ali,
num moderno
prédio de quatro andares, que está instalada a Audiência Nacional, um
tribunal
sem equivalente no Brasil. Foi criada em 1977, logo após o fim da
ditadura
franquista, para investigar, sem qualquer limitação de competência
territorial, os
casos de terrorismo, narcotráfico e "delinqüência econômica
organizada", ou seja,
corrupção.
O juiz trabalha num ambiente simples: sua sala tem cerca de 20 metros
quadrados
e como móveis apenas um sofá, uma mesinha de canto e uma mesa de
madeira
clara, sobre a qual pode-se ver um microcomputador Pentium II. Quem
quiser ter
acesso ao arsenal de Garzón terá que dar alguns passos, atravessar o
corredor e
cruzar outra porta. O expediente da 5ª Vara ocupa um amplo salão de
cerca de
15 metros por 6. É aí que trabalham los muchachos de Garzón, como
são
conhecidos os doze promotores públicos -- três mulheres e nove homens
-- que o
acompanham há vários anos e que montam as peças de acusação para o
magistrado.
O "urânio enriquecido", como dizem os jornalistas, está bem
protegido na
memória dos micros, que trabalham em rede e aos quais só tem acesso
quem
conhece a senha. É aí que começa a complicação para quem quiser
bisbilhotar os
segredos de Baltasar Garzón: a senha dos computadores muda
automaticamente
todos os dias. Quando o último micro da rede é desligado, no final do
expediente,
um programa especialmente criado para o juiz apaga a senha do dia e cria
aleatoriamente uma nova para o dia seguinte. Um sorteio feito pelo
próprio
programa seleciona o único membro da equipe que será o detentor da
senha que
naquele dia dará acesso ao conteúdo da memória do computador. À
medida que
os outros promotores vão chegando, o escolhido vai transmitindo
verbalmente a
cada um a senha criada pelo micro, sem a qual ninguém, nem Garzón,
entra no
winchester -- e na montanha de informações sobre corrupção, drogas,
tortura,
assassinatos.
Foi daqui, desses micros, que
saiu a munição que Baltasar
Garzón utilizou para pôr na
cadeia gente de todo tipo -- de
terroristas da ETA, o grupo
nacionalista espanhol que luta
pela independência do País
Basco, a policiais que torturavam
terroristas da ETA. Daqui saíram
mandados de prisão contra um
ex-presidente da República do
Togo, na África, acusado de corrupção, contra dois generais, um
brigadeiro e um
almirante argentinos, acusados de tortura, contra Amira Yoma, cunhada do
presidente argentino Carlos Menem, denunciada por lavagem de dinheiro
para
narcotraficantes, contra o milionário ex-primeiro-ministro italiano
Silvio Berlusconi,
que Garzón acusou por sonegação de impostos, e contra capi da Máfia
italiana e
traficantes de drogas dos cartéis de Cáli e Medellín, na Colômbia.
Foram ainda
esses jovens promotores que conduziram a investigação que permitiu a
Garzón
enviar para detrás das grades alguns dos mais vistosos nomes do
ministério do
ex-premiê socialista Felipe González (1982-1996) -- de cujo governo
ele próprio,
Baltasar Garzón, chegou a participar, como secretário do Plano
Nacional de
Combate às Drogas.
Diante de tais
façanhas, é de supor que o autor delas seja um Torquemada, um
ferrabrás. Nada mais falso. Até o ar mal-humorado que ele exibe nas
fotografias é
apenas aparente: seus dentes superiores são um pouco salientes, traço
que o deixa
meio bicudo e mal-encarado quando fecha a boca. Pessoalmente, o juiz
Garzón é
um homem suave, educado e gentil, dono de uma jovialidade que triunfa
sobre os
cabelos grisalhos. Com voz anasalada, meio fanhosa -- sim, como Pinochet
ele
também fala fino --, raramente se exalta na frente de estranhos. E,
para alguém que
é acusado pelos inimigos de adorar o estrelato, Garzón revela
surpreendente
discrição: uma busca minuciosa nos arquivos dos principais jornais
espanhóis dos
últimos dez anos renderá, se tanto, quatro ou cinco reportagens em que
ele
aparece dando declarações.
Esse deliberado silêncio, no
entanto, não impediu que ele se
convertesse na mais célebre
personalidade espanhola da
atualidade. Segundo um
levantamento feito pelo
jornalista madrilenho Pepe
Oneto, "nenhum personagem da
história da Espanha ocupou
tanto espaço no jornal The New York Times, na CNN ou na internet".
Uma boa
ferramenta de busca na rede mundial de computadores vai revelar que o
nome de
Baltasar Garzón aparece mais de 6 000 vezes na web.
Apesar disso, e considerando tratar-se de um homem marcado para morrer
-- já
recebeu incontáveis ameaças de morte --, Garzón leva uma vida de
espanhol
normal. Ganha 700 000 pesetas mensais (uns 4500 dólares), às quais se
somam
outras 150 000 do salário da mulher, professora de Biologia numa escola
pública
secundária, o que permite uma vida de classe média confortável num
país de custo
de vida estável e bons preços como a Espanha. Gosta de ópera, conhece
a poesia
de bons autores espanhóis como García Lorca e Rafael Alberti, aluga
vídeos do
diretor de cinema suceo Ingmar Bergman, é um hincha -- torcedor
fanático -- do
Barcelona, no verão pratica canoagem e no inverno esquia nos Pirineus
(quase
sempre em companhia do filho, Baltasar, de 14 anos). Quando dá tempo,
ajuda as
filhas Maria, de 15 anos, e Aurora, de 7, nas lições de casa. Durante
um jantar
num restaurante, é capaz de interromper a comida, tomar a mulher pela
mão e sair
pelo salão dançando sevillanas, uma variação do flamenco.
Tem algumas manias, como a de jamais sentar-se de costas para uma porta,
como os caubóis do cinema -- mesmo sabendo que se trata de uma medida
de
segurança inócua, já que nunca anda armado. Outra, segundo os amigos
e
subordinados: se ele aparecer com um tal terno verde-escuro, é sinal de
que o
meritíssimo está de péssimos bofes. O Garzón de bom humor só
costuma aparecer
quando ele está com os poucos amigos: é nessas horas que o juiz exibe
o talento
de grande contador daquilo que os espanhóis chamam de "chistes
verdes" --
piadas pesadas.
É bom garfo e bom copo -- considera-se um especialista em uísques
envelhecidos
e em vinhos tintos de Rioja. Mas os excessos etílicos e gastronômicos
costumam
cobrar-lhe um preço alto. Garzón é capaz de engordar até 5 quilos em
poucos
dias, uma tragédia para um homem vaidoso como ele. Sempre gostou de
praticar
esportes. Além do futebol de salão, que joga com os colegas do
Judiciário, na
juventude praticou salto em distância e chegou a ser faixa marrom de
judô. Mesmo
padecendo de problemas nos meniscos -- mal que gosta de alardear, pois
acredita
tratar-se de uma "doença de craque" --, Garzón ignorou os
conselhos de médicos
e da mulher e três anos atrás correu a meia maratona de Sevilha,
sempre
acompanhado de dois esbaforidos guarda-costas.
Depois do futebol de salão sua principal diversão são as capeas,
espécie de
minitouradas para amadores. Assim como no Brasil alugam-se campinhos
para
peladas de fim de semana, na Espanha as pessoas pagam para usar as
capeas,
alugando a pequena arena, a capa, os estuques (as varetas para provocar
o
animal) e, claro, o animal -- modestos bezerros, nunca um assustador
miúra. Se as
qualidades do Garzón goleiro podem ser postas em dúvida, o mesmo não
acontece com o Garzón capeador: até os inimigos reconhecem que o juiz
teria
dado um bom toureiro. Nunca, naturalmente, com os atuais 85
quilos.
As pessoas que privam de sua intimidade contam-se nos dedos de uma mão
e
entre elas está a ex-presa política argentina Adriana Arce, hoje
residindo na
Espanha. Ela parece ser, de todos, a mais próxima de Garzón.
Sobrevivente da
tenebrosa ESMA -- a Escola de Mecânica da Armada argentina, que foi
transformada em centro de tortura e execução de presos políticos --,
Adriana, uma
bela e bem-humorada quarentona, é a executiva da Fundação de Artistas
e
Intelectuais em Defesa dos Povos Indígenas Ibero-Americanos, presidida
pelo juiz
Garzón. Criada há dez anos, a entidade dedica-se essencialmente a
estimular o
surgimento de cultivos alternativos às plantações de coca em países
da América do
Sul. Parte do dinheiro para isso vem de um jogo beneficente de futebol
realizado
uma vez por ano, em Madri ou Barcelona, entre uma seleção dos melhores
craques da Europa e um time formado por personalidades do cinema, da
política e
da televisão. É nesse jogo que o juiz tem oportunidade de exibir seus
dotes de
goleiro -- sim, porque a única exigência que Garzón faz, já que a
idéia foi dele, é
que o lugar de arqueiro do time amador seja sempre seu. Seus 15 segundos
de
glória futebolística aconteceram dois anos atrás, quando pegou um
pênalti batido
pelo holandês Johann Cruyff.
No trabalho Garzón é um homem duro, capaz de fazer uma grosseria em
público
com um funcionário que tenha descumprido uma ordem. Depois se
arrepende,
pede desculpas e convida o subordinado para uma capea. Com os inimigos,
é
implacável. Embora não haja notícia de que jamais tenha encostado a
mão em um
preso, é conhecido pelo aperto verbal a que os submete: nos
interrogatórios e nas
audiências, costuma levar maços de papel com 300, 400 perguntas, de
cujas
respostas saem mais algumas centenas de novas indagações. Esse rigor
com os
que o cercam fez com que Garzón granjeasse muitos inimigos e perdesse
alguns de
seus melhores amigos. O mais conhecido destes é o juiz Javier Gómez de
Liaño,
seu colega de Audiência. Durante o chamado "caso Sogecable"
-- um escândalo
financeiro envolvendo empresas de TV a cabo --, Garzón não hesitou em
acusar
de prevaricação o amigo de muitos anos. Gómez de Liaño guarda dele
amargas
recordações:
-- Com aquela vozinha de menino mimado, Garzón é um sujeito perigoso,
uma
pessoa que errou a vocação. Ele não é um juiz, tem alma de polícia.
Quando não
houver mais ninguém para botar na cadeia, Garzón vai prender a si
próprio.
Quem se dispuser a olhar a biografia de Baltasar Garzón não
encontrará nenhum
traço que fizesse supor que ele iria parar onde se encontra hoje. Até
os 17 anos,
tinha três sonhos na vida. Queria ser, pela ordem, padre, jogador
profissional de
futebol ou toureiro. O caminho para a primeira vocação veio
naturalmente. O
agricultor Ildefonso e sua mulher, María, muito pobres, viviam na vila
de Torres, na
Andaluzia, quando nasceu Baltasar, o primeiro de seus cinco filhos, no
dia 26 de
outubro de 1955 época em que o major Augusto Pinochet ainda era um
desconhecido oficial de Operações da Divisão de Cavalaria de
Rancagua, poucos
quilômetros ao sul de Santiago.
Quando terminou o primário, em 1965, o pequeno "Balta" foi
matriculado no
Seminário de San Felipe Néri, na cidade de Baeza. Em 1973 conheceu
María del
Rosario, a "Yayo", uma bela e miúda moreninha que estudava no
Instituto
Santíssima Trindade e morava no convento das freiras Felipenses, ambos
em
Baeza. Uma madrugada, flagrado pelo padre-bedel cantando sevillanas para
Rosario sob as janelas do convento, Garzón foi expulso do seminário, a
seis meses
do fim do curso. Não fosse a paixão juvenil, é possível que ele
tivesse seguido a
vocação e que Pinochet pudesse terminar seus dias em paz no Chile.
Mas a
paixão vencera mesmo a vocação. Desimpedido, ele começou a namorar
Yayo. E
resolveu também que não queria ser goleiro nem toureiro, mas
advogado.
Terminada a faculdade, em 1979, Garzón casou-se com Rosario. Estimulado
pela
mulher, prestou concurso para juiz e, nomeado, passou por várias
cidadezinhas do
interior da Espanha. Seu nome só apareceria nos jornais em 1983. No
auge da
guerra movida pelo governo contra os bascos da ETA, Garzón conseguiu a
condenação de um coronel das forças de segurança pelo assassinato de
três
adolescentes, confundidos com militantes da organização. Quatro anos
depois, aos
31 anos, aprovado em outro concurso, passou a ser o mais jovem juiz da
Inspetoria do Conselho Geral do Poder Judiciário Nacional, uma espécie
de
polícia da Justiça. No dia 1º de janeiro de 1988, também por
concurso, assumiu o
posto que o colocaria nas primeiras páginas de jornais do mundo
inteiro: juiz de
instrução da 5ª Vara da Audiência Nacional.
Desde o começo
passou a trabalhar obsessivamente nas três frentes de que o
tribunal se ocupa: drogas, terrorismo e corrupção. Sobretudo no que
dizia respeito
às duas últimas, ele sabia que tinha que atuar com redobrado cuidado:
embora o
primeiro-ministro Felipe González, recém-reeleito para mais um
período de seis
anos, estivesse no auge de seu prestígio, Garzón suspeitava de que
alguma coisa
suja estava sendo escondida pelo governo. Um dos compromissos do governo
socialista com os militares era reprimir duramente o movimento
independentista
basco -- mais precisamente, seu braço militar, a ETA. Confiando na
intuição (e de
posse de informações secretas), Garzón mandou desenterrar um velho
processo
de 1983 no qual os policiais José Amedo e Michel Domínguez eram
acusados de
seqüestrar por engano o industrial Segundo Marrey, supondo tratar-se do
dirigente
basco Mikel Gorostiola. A reabertura do processo trouxe à tona mais
crimes de
Amedo e Domínguez, que o juiz acabou conseguindo condenar a um total de
108
anos de prisão.
A opinião pública ainda não se
esquecera do chamado "Caso
Amedo" quando Garzón
reapareceu triunfalmente na
cidade de Arosa, na Galícia,
região que é considerada a porta de entrada da cocaína na Espanha. A
bordo de
um helicóptero e comandando por rádio um destacamento de 350
policiais, o
jovem juiz conseguiu prender trinta traficantes espanhóis, portugueses,
colombianos e turcos, todos da alta hierarquia do tráfico internacional
de cocaína.
As prisões produziram informações que deram margem a outra operação
ousada.
Meses depois, em conjunto com as polícias de Portugal e de Cabo Verde,
Garzón
conseguiu interceptar em alto-mar o cargueiro Good Luck, que partira da
Colômbia, fora reabastecido em Cabo Verde e navegava em direção às
Ilhas
Canárias, território ultramarino espanhol. Foram apreendidos 450
quilos de pó.
Mas os porões do Good Luck transportavam coisa mais valiosa:
informação. Ao
final dos interrogatórios dos tripulantes, Garzón foi bater no
Panamá, atrás de um
empresário envolvido em lavagem de dinheiro do tráfico. E foi de lá
que retornou à
Espanha com dois nomes escondidos no bolso.
A revelação do primeiro caiu como uma bomba: o juiz anunciou que
estava
pedindo a prisão preventiva de Amira Yoma, cunhada e secretária
particular do
presidente Carlos Menem, da Argentina, pelo crime de lavagem de dinheiro
do
narcotráfico. Ao saber da denúncia, Amira telefonou furiosa para um
amigo que
vivia em Marbella, no sul da Espanha:
-- Quem é esse juiz come-merda chamado Baltasar Garzón? Será que esse
sujeito
não sabe que sou cunhada do presidente da Argentina?
O amigo que estava do outro lado da linha era o cidadão sírio Monzer
Al-Kassar
-- exatamente o segundo nome que Garzón trouxera de suas
investigações. Depois
de vários meses de investigações que passaram pelos serviços
secretos de Israel,
dos Estados Unidos e da Inglaterra, o juiz conseguiu juntar as peças do
quebra-cabeça e montar finalmente o retrato de Al-Kassar. Com 55 anos,
baixinho, vasta cabeleira branca, sempre vestido com elegância, Monzer
Al-Kassar ganhara o apelido de "Príncipe de Marbella" depois
de ter construído
um palacete de mármore nesse luxuoso balneário, onde vivia fazia dez
anos.
Uma das várias denúncias que Garzón tinha contra ele era pesada:
Al-Kassar
teria sido o responsável pela entrega das armas usadas pelo comando
terrorista
palestino que em outubro de 1985 seqüestrou na costa de Alexandria, no
Egito, o
transatlântico italiano Achille Lauro, com 600 pessoas a bordo -- para
devolver os
passageiros sãos e salvos, os terroristas, que acabaram presos, exigiam
a
libertação de cinqüenta palestinos encarcerados em Israel. As
ligações de
Al-Kassar com o presidente argentino vinham da coincidência de serem
todos --
ele, Menem, a mulher deste, Zulema, a irmã dela, Amira, e seu marido,
Ibrahim
Al-Ibrahim -- originários de famílias nascidas em Yabrud, na
Síria.
Foi com essa carga de "urânio enriquecido" dentro da pasta
que Garzón bateu na
porta do palácio de mármore de Monzer Al-Kassar, em Marbella, e lhe
deu voz
de prisão. Depois de ver seu cliente mofar durante meses e meses num
xadrez
madrilenho, os advogados do preso pediram a Garzón que estabelecesse
uma
fiança para que ele pudesse continuar respondendo ao processo em
liberdade.
Aparentemente seguro de que ninguém cometeria o desatino de desembolsar
tal
fortuna, o juiz fixou a fiança em estratosféricos 2 bilhões de
pesetas -- cerca de
12,5 milhões de dólares. No dia seguinte, porém, o dinheiro estava
depositado em
juízo e Monzer Al-Kassar retornava a Marbella.
No começo de 1993, quando Al-Kassar ainda estava preso, era
indiscutível o
prestígio de Garzón como um juiz duro, inimigo da violência e do
terrorismo e
algoz dos políticos corruptos. Ao mesmo tempo, o governo de Felipe
González
capengava nas pesquisas de opinião pública. Era enorme o risco de que
o Partido
Socialista Operário Espanhol (PSOE), no poder fazia onze anos, perdesse
as
eleições marcadas para junho daquele ano. Foi então que o
primeiro-ministro
Felipe González aplicou uma jogada de mestre. Chamou a imprensa e
anunciou
que o juiz Garzón, sem partido, disputaria uma cadeira de deputado nas
próximas
eleições como candidato independente, mas pela coligação do PSOE. E,
como
demonstração do prestígio de que o juiz desfrutava, González
comunicou que
Garzón seria o "número 2" da lista do partido, abaixo apenas
dele,
primeiro-ministro. Diante do espanto dos repórteres, o premiê
arrematou:
-- Garzón conosco é a prova de que no PSOE há desejo de
transparência.
Vencidas as eleições, vou colocá-lo na cabeça de um dispositivo que
criarei para
investigar a fundo a corrupção na Espanha -- esteja ela onde estiver,
e
principalmente nos partidos políticos.
Convertido em estrela da campanha, Garzón licenciou-se da Audiência
Nacional e
saiu à cata de votos. A eleição, claro, foi um passeio. Mas foi
preciso pouco
tempo para o juiz entender que na política as coisas talvez não
funcionassem como
nos tribunais. Empossado como secretário do Plano Nacional de Combate
às
Drogas, foi informado de que não teria autoridade sobre nenhuma força
de
segurança para enfrentar o narcotráfico.
Garzón começou a descobrir casos
de corrupção dentro do próprio
governo. Pediu providências ao
primeiro-ministro mas elas eram
sempre proteladas. Com o tempo,
já nem conseguia mais despachar
ou mesmo falar com González. Em
maio de 1994, Garzón anuncia que
está se demitindo do governo e
renunciando ao mandato de
deputado:
-- Foram precisos nove meses para
descobrir que o senhor Felipe
González me usou, como se usa um fantoche. Levo comigo um sabor muito
amargo.
Segundo os muitos inimigos que fez no poder, Garzón levava mais ao
deixar o
governo: informações, e graças a elas desvendou dezenas de casos de
militantes
bascos mortos pelos chamados Grupos Antiterroristas de Libertação
(GAL), um
esquadrão da morte criado clandestinamente pelo governo e mantido com
verbas
secretas controladas diretamente pela cúpula socialista. Descobriu,
entre outras
coisas, que os fundos secretos do governo tinham prêmios para os
policiais que
matassem militantes bascos: 12 000 dólares por cabeça. E que, ao todo,
29
pessoas haviam sido assassinadas, muitas delas depois de tortura, pelos
homens
dos GAL. O juiz não tardou a encurralar oficiais, coronéis, generais
da polícia.
Mesmo debaixo de uma brutal campanha de intimidação, continuou
investigando
os GAL até bater no topo da pirâmide e conseguir condenar, além de
dezenas de
altos funcionários do governo, três ex-ministros de Felipe González e
um
ex-prefeito de Madri. Nas eleições seguintes, González seria
derrotado pelo atual
primeiro-ministro, José María Aznar, do conservador Partido
Popular.
Comparado ora ao lendário policial americano Elliot Ness, ora ao juiz
italiano
Giovanni Falconi, morto pela Máfia siciliana, o Baltasar Garzón que
derrubou o
governo socialista e encurralou o ex-ditador Augusto Pinochet parece
não ter
sucumbido à fama que o colocou nas primeiras páginas de jornais de
todo o
mundo. Quando lhe perguntam que destino ele acha que terá o general
chileno,
Garzón responde com serenidade, como se aquele fosse apenas mais um de
seus
incontáveis processos:
-- Sempre confiei na Justiça. Estou convencido de que Pinochet, mais
dia, menos
dia, desembarcará no aeroporto de Barajas, em Madri. E aqui será
julgado pelos
crimes que cometeu.
Parece ser apenas uma frase de efeito. Pode ser, mas a verdade é que o
serviço
médico da prisão militar de Alcalá de Henares, nas imediações de
Madri, já foi
avisado para se preparar, porque a qualquer momento poderá chegar lá
um
homem de 83 anos, com um marca-passo no peito, diabético e padecendo de
uma
infecção urinária crônica. Um homem que acreditava ser intocável,
até o dia em
que ouviu falar no nome de um jovem juiz espanhol chamado Baltasar
Garzón.
|