Tribunal de direitos humanos:
cadê o Brasil?
José
Miguel Vivanco
James
Cavallaro
No dia 15 deste mês, mais de cem países, inclusive o Brasil, se
reunirào em Roma para finalizar o tratado que criará o Tribunal Penal
Internacional, órgão pioneiro que investigará e processará acusados
de genocídio, crimnes contra a humanidade e outros graves crimes de
guerra.
Esse tribunal, se estabelecido, irá revolucionar a proteção
internacional dos direitos humanos, criando um mecanismo por meio do
qual violadores individuais desses direitos poderão ser julgados e
punidos.
Hoje, as instâncias internacionais permanentes apenas determinam
a resposabilidade dos Estados por violações - uma avaliação abstrata
que, por não pretender punir os agentes diretamente responsáveis, não
consegue impedir futuras violações.
Todavia diferenças radicais persistem em relação à natureza
desse novo tribunal, à sua independência e aos seus poderes. Um grupo
coeso de 45 países - entre les Argentina, África do Sul, Alemanha,
Inglaterra e Canadá - tem batalhado para fazer do tribunal uma
instituiçào forte e independente.
Por outro lado, os Estados Unidos e a França têm defendido
medidas que enfraqueceriam e politizariam o tribunal.
Um terceiro grupo de países,
incluindo a Índia, o Irã, a Colômbia e o Egito tem tentado obstruir a
criaçào do tribunal, impondo sua visão minoritária aos outros
países em desenvolvimento.
Apesar de sua importância histórica, esse novo tribunal de
direitos humanso não tem recebido a atençào merecida aqui no Brasil -
em boa medida, por falta de uma política clara de apoio por parte o
governo. Até o momento, o Brasil, mesmo presente às reuniões
preparatórias, tem ficado nas sombras desse processo.
Essa indiferença contrasta muito com a visão que o presidente
Fernando Henrique Cardoso tanto se esforça por promover no exterior: a
de uma nação comprometida com o respeito aos direitos humanos, que
apóia iniciativas contra a impunidade, tanto no Brasil como por
intermédio e cooperação internacional.
Caso o declarado apio aos direitos humanos seja mais do que
retórica, entào é chegado o momento para que o Itamaraty se defina
clara e publicamente em favor desse tribunal, considerando os seguintes
cinco princípios fundamentais.
1) A competência do tribunal deve ser ampla. Segundo uma
proposta alemã, o tribunal deveria poder exercê-la, em caos concretos,
sem necessidade de autorização do Estado.
A competência nesses termos é compatível com as normas
internacionais em vig6encia que permitem a Estados processar indivíduos
que cometam crimes contra a humanidade, pratiquem genocídio ou violem o
direito internacional de forma semelhante.
Propostas francesas limitariam a competência do tribunal,
exigindo ratificaçào como pré-requisito para toda açào ou, pior, a
prerrogatiova do Estado de recusar processos, caso a caso.
2) A competência do tribunal não pode se controlada pelo
Conselho de Segurança das Nações Unidas. Um artigo no estatuto
proposto requer que o tribunal obtenha aprovação do Conselho de
Segurança, antes de prosseguir com um caso que esse conselho esteja “tratando”,
conforme o capítulo 7 da Carta das Nações Unidas.
Essa proposta permitiria aos membros permanentes do Conselho o
uso de seu poder de veto para proteger acusados em potencial sempre que
os interesses de seu país estivessem envolvidos, prejudicando dessa
forma a independência e a credibilidade do tribunal. Como possível
futuro membro permanente do Conselho de Segurança, o Brasil conta tanto
com influência quanto com autoridade moral para lutar contra essa
proposta.
3) A acusação deve ser independente. O atual estatuto proposto
limita a acusação a iniciar suas ações somente quando o Conselho de
Segurança referir o caso ou quando um Estado-parte que tenha aceito a
competência do tribunal registrar uma denúncia.
Como os Estados e o Conselho de Segurança podem, por inúmeras
razões, ser relutantes em
encaminhar casos a um órgào internacional, o poder de acionar o
tribunal deve ser expandido, para permitir que a acusação inicie as
suas ações tomando por base sua própria investigação ou
informações obtidas de quaisquer outras fontes, inclusive indivíduops
e ONGs.
4) O tribunal deve servir como complemento aos sistemas de
Justiça criminal em países nos quais recursos judiciais sejam
inacessíveis ou ineficientes.
Conforme o princípio da
complementaridade, o estatuto proposto estabelece que um caso será admissível somente quando o
sistema judicial nacional “nào estiver disposto” a conduzir as
investigações ou o processo, ou “não tiver condições” para
isso.
De forma acertada, estabelece que, enquanto o acusado e os
Estados em questão podem questionar a admissibilidade, ao tribunal
caberá a decisão final sobre a questão. O Brasil deveria opor-se a
toda tentativa de destituir o tribunal do poder dessa decisão.
5) O estatuto do tribunal deveria refletir a realidade
contemporânea de conflitos armados. Estes se dào predominantemente em
nível não-internacional. Portanto, o tribunal deveria ter competência
para julgar casos envolvendo ataques indiscriminados contra civis, danos
irreparáveis ao meio ambiente e migração forçada de populações
inteiras, entre outros.
Ao mesmo tempo, o estatuto deveria conter uma ampla definição
de crimes de guerra, para que abusos cometidos nos conflitos modernos -
como violência sexual, casos de estupro sistemático e crescente
aliciamento de crianças como soldados - constem da compet6encia do
tribunal.
As medidas citadas, além de outras novas e importantes
questões, serão debatidas durante a Conferência de Roma. Isso requer,
cremos, a participação de uma delegação brasileira do mais alto
nível. Essa delegação deveria incluir a máxima autoridade nacional
em direitos humanos, o secretário José Gregori, e os mais destacados
juristas de direito internacional nessa área.
José Miguel Vivanco, 37,
é diretor-executivo da Divisão das Américas da Human Rights
Watch.
James Louis Cavallaro, 35,
advogado norte-americano formado pelas universidades de Berkeley e
Harvard nos Estados Unidos, é diretor no Brasil da Divisão das
Américas da Human Rights Watch.
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