Declaração
dos Princípios Básicos de Justiça
Relativos às Vítimas da Criminalidade
e de Abuso de Poder
A Assembleia Geral,
Lembrando que o Sexto Congresso sobre a
Prevenção do Crime e o Tratamento dos Delinquentes recomendou que a
Organização das Nações Unidas prosseguisse o seu actual trabalho de
elaboração de princípios orientadores e de normas relativas ao abuso
de poder económico e político 56,
Consciente de que milhões de pessoas em
todo o mundo sofreram prejuízos em consequência de crimes e de outros
actos representando um abuso de poder e que os direitos destas vítimas
não foram devidamente reconhecidos,
Consciente de que as vítimas da
criminalidade e as vítimas de abuso de poder e, frequentemente, também
as respectivas famílias, testemunhas e outras pessoas que acorrem em
seu auxílio sofrem injustamente perdas, danos ou prejuízos e que
podem, além disso, ser submetidas a provações suplementares quando
colaboram na perseguição dos delinquentes,
1. Afirma a necessidade de adopção, a nível nacional e internacional,
de medidas que visem garantir o reconhecimento universal e eficaz dos
direitos das vítimas da criminalidade e de abuso de poder;
2. Sublinha a necessidade de encorajar
todos os Estados a desenvolverem os esforços feitos com esse objectivo,
sem prejuízo dos direitos dos suspeitos ou dos delinquentes;
3. Adopta a Declaração dos Princípios
Básicos de Justiça Relativos às Vítimas da Criminalidade e de Abuso
de Poder, que consta em anexo à presente resolução, e que visa ajudar
os Governos e a comunidade internacional nos esforços desenvolvidos, no
sentido de fazer justiça às vítimas da criminalidade e de abuso de
poder e no sentido de lhes proporcionar a necessária assistência;
4. Solicita aos Estados membros que tomem
as medidas necessárias para tornar efectivas as disposições da
Declaração e que, a fim de reduzir a vitimização, a que se faz
referência daqui em diante, se empenhem em:
a) Aplicar medidas nos domínios da
assistência social, da saúde, incluindo a saúde mental, da educação
e da economia, bem como medidas especiais de prevenção criminal para
reduzir a vitimização e promover a ajuda às vítimas em situação de
carência;
b) Incentivar os esforços colectivos e a
participação dos cidadãos na prevenção do crime;
c) Examinar regularmente a legislação e
as práticas existentes, a fim de assegurar a respectiva adaptação à
evolução das situações, e adoptar e aplicar legislação que proíba
actos contrários às normas internacionalmente reconhecidas no âmbito
dos direitos do homem, do comportamento das empresas e de outros actos
de abuso de poder;
d) Estabelecer e reforçar os meios
necessários à investigação, à prossecução e à condenação dos
culpados da prática de crimes;
e) Promover a divulgação de
informações que permitam aos cidadãos a fiscalização da conduta dos
funcionários e das empresas e promover outros meios de acolher as
preocupações dos cidadãos;
f) Incentivar o respeito dos códigos de
conduta e das normas éticas, e, nomeadamente, das normas
internacionais, por parte dos funcionários, incluindo o pessoal
encarregado da aplicação das leis, o dos serviços penitenciários, o
dos serviços médicos e sociais e o das forças armadas, bem como por
parte do pessoal das empresas comerciais;
g) Proibir as práticas e os
procedimentos susceptíveis de favorecer os abusos, tais como o uso de
locais secretos de detenção e a detenção em situação
incomunicável;
h) Colaborar com os outros Estados, no
quadro de acordos de auxílio judiciário e administrativo, em domínios
como o da investigação e o da prossecução penal dos delinquentes, da
sua extradição e da penhora dos seus bens para os fins de
indemnização às vítimas.
5. Recomenda que, aos níveis
internacional e regional, sejam tomadas todas as medidas apropriadas
para:
a) Desenvolver as actividades de
formação destinadas a incentivar o respeito pelas normas e princípios
das Nações Unidas e a reduzir as possibilidades de abuso;
b) Organizar trabalhos conjuntos de
investigação, orientados de forma prática, sobre os modos de reduzir
a vitimização e de ajudar as vítimas, e para desenvolver trocas de
informação sobre os meios mais eficazes de o fazer;
c) Prestar assistência directa aos
Governos que a peçam, a fim de os ajudar a reduzir a vitimização e a
aliviar a situação de carência em que as vítimas se encontrem;
d) Proporcionar meios de recurso
acessíveis às vítimas, quando as vias de recurso existentes a nível
nacional possam revelar-se insuficientes.
6. Solicita ao SecretárioGeral que
convide os Estados membros a informarem periodicamente a Assembleia
Geral sobre a aplicação da Declaração, bem como sobre as medidas que
tomem para tal efeito;
7. Solicita, igualmente, ao
SecretárioGeral que utilize as oportunidades oferecidas por todos os
órgãos e organismos competentes dentro do sistema das Nações Unidas,
a fim de ajudar os Estados membros, sempre que necessário, a melhorarem
os meios de que dispõem para protecção das vítimas a nível nacional
e através da cooperação internacional;
8. Solicita, também, ao
Secretário-Geral que promova a realização dos objectivos da
Declaração, nomeadamente dando-lhe uma divulgação tão ampla quanto
possível;
9. Solicita, insistentemente, às
instituições especializadas e às outras entidades e órgãos da
Organização das Nações Unidas, às outras organizações
intergovernamentais e não governamentais interessadas, bem como aos
cidadãos em geral, que cooperem na aplicação das disposições da
Declaração.
96.ª sessão plenária
29 de Novembro de 1985
ANEXO
Declaração dos
Princípios Fundamentais de Justiça Relativos às Vítimas
da Criminalidade e de Abuso de Poder
A. Vítimas da criminalidade
1. Entendem-se por "vítimas"
as pessoas que, individual ou colectivamente, tenham sofrido um
prejuízo, nomeadamente um atentado à sua integridade física ou
mental, um sofrimento de ordem moral, uma perda material, ou um grave
atentado aos seus direitos fundamentais, como consequência de actos ou
de omissões violadores das leis penais em vigor num Estado membro,
incluindo as que proíbem o abuso de poder.
2. Uma pessoa pode ser considerada como
"vítima", no quadro da presente Declaração, quer o autor
seja ou não identificado, preso, processado ou declarado culpado, e
quaisquer que sejam os laços de parentesco deste com a vítima. O termo
"vítima" inclui também, conforme o caso, a família próxima
ou as pessoas a cargo da vítima directa e as pessoas que tenham sofrido
um prejuízo ao intervirem para prestar assistência às vítimas em
situação de carência ou para impedir a vitimização.
3. As disposições da presente secção
aplicam-se a todos, sem distinção alguma, nomeadamente de raça, cor,
sexo, idade, língua, religião, nacionalidade, opiniões políticas ou
outras, crenças ou práticas culturais, situação económica,
nascimento ou situação familiar, origem étnica ou social ou
capacidade física.
Acesso à justiça e tratamento equitativo
4. As vítimas devem ser tratadas com
compaixão e respeito pela sua dignidade. Têm direito ao acesso às
instâncias judiciárias e a uma rápida reparação do prejuízo por si
sofrido, de acordo com o disposto na legislação nacional.
5. Há que criar e, se necessário,
reforçar mecanismos judiciários e administrativos que permitam às
vítimas a obtenção de reparação através de procedimentos, oficiais
ou oficiosos, que sejam rápidos, equitativos, de baixo custo e
acessíveis. As vítimas devem ser informadas dos direitos que lhes são
reconhecidos para procurar a obtenção de reparação por estes meios.
6. A capacidade do aparelho judiciário e
administrativo para responder às necessidades das vítimas deve ser
melhorada:
a) Informando as vítimas da sua função
e das possibilidades de recurso abertas, das datas e da marcha dos
processos e da decisão das suas causas, especialmente quando se trate
de crimes graves e quando tenham pedido essas informações;
b) Permitindo que as opiniões e as preocupações das vítimas sejam
apresentadas e examinadas nas fases adequadas do processo, quando os
seus interesses pessoais estejam em causa, sem prejuízo dos direitos da
defesa e no quadro do sistema de justiça penal do país;
c) Prestando às vítimas a assistência adequada ao longo de todo o
processo;
d) Tomando medidas para minimizar, tanto quanto possível, as
dificuldades encontradas pelas vítimas, proteger a sua vida privada e
garantir a sua segurança, bem como a da sua família e a das suas
testemunhas, preservando-as de manobras de intimidação e de
represálias;
e) Evitando demoras desnecessárias na resolução das causas e na
execução das decisões ou sentenças que concedam indemnização às
vítimas.
7. Os meios extrajudiciários de
solução de diferendos, incluindo a mediação, a arbitragem e as
práticas de direito consuetudinário ou as práticas autóctones de
justiça, devem ser utilizados, quando se revelem adequados, para
facilitar a conciliação e obter a reparação em favor das vítimas.
Obrigação de restituição e de reparação
8. Os autores de crimes ou os terceiros
responsáveis pelo seu comportamento devem, se necessário, reparar de
forma equitativa o prejuízo causado às vítimas, às suas famílias ou
às pessoas a seu cargo. Tal reparação deve incluir a restituição
dos bens, uma indemnização pelo prejuízo ou pelas perdas sofridos, o
reembolso das despesas feitas como consequência da vitimização, a
prestação de serviços e o restabelecimento dos direitos.
9. Os Governos devem reexaminar as
respectivas práticas, regulamentos e leis, de modo a fazer da
restituição uma sentença possível nos casos penais, para além das
outras sanções penais.
10. Em todos os casos em que sejam
causados graves danos ao ambiente, a restituição deve incluir, na
medida do possível, a reabilitação do ambiente, a reposição das
infra-estruturas, a substituição dos equipamentos colectivos e o
reembolso das despesas de reinstalação, quando tais danos impliquem o
desmembramento de uma comunidade.
11. Quando funcionários ou outras
pessoas, agindo a título oficial ou quase oficial, tenham cometido uma
infracção penal, as vítimas devem receber a restituição por parte
do Estado cujos funcionários ou agentes sejam responsáveis pelos
prejuízos sofridos. No caso em que o Governo sob cuja autoridade se
verificou o acto ou a omissão na origem da vitimização já não
exista, o Estado ou o Governo sucessor deve assegurar a restituição
às vítimas.
Indemnização
12. Quando não seja possível obter do
delinquente ou de outras fontes uma indemnização completa, os Estados
devem procurar assegurar uma indemnização financeira:
a) Às vítimas que tenham sofrido um
dano corporal ou um atentado importante à sua integridade física ou
mental, como consequência de actos criminosos graves;
b) À família, em particular às pessoas a cargo das pessoas que tenham
falecido ou que tenham sido atingidas por incapacidade física ou mental
como consequência da vitimização.
13. Será incentivado o estabelecimento,
o reforço e a expansão de fundos nacionais de indemnização às
vítimas. De acordo com as necessidades, poderão estabelecer-se outros
fundos com tal objectivo, nomeadamente nos casos em que o Estado de
nacionalidade da vítima não esteja em condições de indemnizá-la
pelo dano sofrido.
Serviços
14. As vítimas devem receber a
assistência material, médica, psicológica e social de que necessitem,
através de organismos estatais, de voluntariado, comunitários e
autóctones.
15. As vítimas devem ser informadas da
existência de serviços de saúde, de serviços sociais e de outras
formas de assistência que lhes possam ser úteis, e devem ter fácil
acesso aos mesmos.
16. O pessoal dos serviços de polícia,
de justiça e de saúde, tal como o dos serviços sociais e o de outros
serviços interessados deve receber uma formação que o sensibilize
para as necessidades das vítimas, bem como instruções que garantam
uma ajuda pronta e adequada às vítimas.
17. Quando sejam prestados serviços e
ajuda às vítimas, deve ser dispensada atenção às que tenham
necessidades especiais em razão da natureza do prejuízo sofrido ou de
factores tais como os referidos no parágrafo 3, supra.
B. Vítimas de abuso de poder
18. Entendem-se por "vítimas"
as pessoas que, individual ou colectivamente, tenham sofrido prejuízos,
nomeadamente um atentado à sua integridade física ou mental, um
sofrimento de ordem moral, uma perda material, ou um grave atentado aos
seus direitos fundamentais, como consequência de actos ou de omissões
que, não constituindo ainda uma violação da legislação penal
nacional, representam violações das normas internacionalmente
reconhecidas em matéria de direitos do homem.
19. Os Estados deveriam encarar a
possibilidade de inserção nas suas legislações nacionais de normas
que proíbam os abusos de poder e que prevejam reparações às vítimas
de tais abusos. Entre tais reparações deveriam figurar, nomeadamente,
a restituição e a indemnização, bem como a assistência e o apoio de
ordem material, médica, psicológica e social que sejam necessários.
20. Os Estados deveriam encarar a
possibilidade de negociar convenções internacionais multilaterais
relativas às vítimas, de acordo com a definição do parágrafo 18.
21. Os Estados deveriam reexaminar
periodicamente a legislação e as práticas em vigor, com vista a
adaptá-las à evolução das situações, deveriam adoptar e aplicar,
se necessário, textos legislativos que proibissem qualquer acto que
constituísse um grave abuso de poder político ou económico e que
incentivassem as políticas e os mecanismos de prevenção destes actos
e deveriam estabelecer direitos e recursos apropriados para as vítimas
de tais actos, garantindo o seu exercício. |