As sanções
pelas violações do Direito Internacional Humanitário
Se, por um lado, as Partes nas
Convenções têm apenas a obrigação de fazer cessar as
violações em geral, elas têm também, por outro, a obri-gação
de reprimir e de actuar criminalmente sobre aquelas que se
qualificam como infrac-ções graves e são desde logo
consideradas cri-mes de guerra. Mesmo se parece curioso que o
Direito Humanitário tenha previsto um sis-tema de repressão
penal, uma vez que a sua preocupação essencial são as vítimas,
não há dúvida de que a sanção faz parte de qualquer edifício
jurídico coerente e que a sua função dissuasiva actua
indirectamente em favor das vítimas.
1.A INCRIMINAÇÃO
No quadro da aplicação do DIH,
convém dis-tinguir a categoria mais vasta de crimes de direito
internacional daquela que apenas diz respeito às infracções das
Convenções e Pro-tocolos em situações de conflito armado
inter-nacional e não internacional..
Os crimes de direito
internacional
São os seguintes:
Crimes contra a paz (crimes
de agressão), ou seja, a preparação e o desencadear de uma
guerra de agressão ou feita em violação dos tratados;
Crimes de guerra no
sentido do princípio 6b) de Nuremberga que fornece uma lista não
exaustiva e relativamente imprecisa de vio-lações, algumas das
quais são incriminadas pelo Direito Humanitário;
Crimes contra a Humanidade,
que aparecem hoje como um con-ceito de conteúdo variável.
Existem, com efeito, duas noções de crimes contra a Humanidade.
Por um lado, aquela que está espe-cificamente prevista no artigo
6. o c) dos Princípios de Nuremberga:
assassínios, escravatura,
deportação e todos os actos desumanos cometidos contra quaisquer
elementos da população civil em liga-ção com um crime contra a
paz ou um crime de guerra. Por outro lado, uma outra, mais
genérica, que cobre três categorias de infracções: as do
artigo 6. o c), o genocídio e o crime de apartheid;
Crime de genocídio:
definido como infracção autónoma pela Convenção de 9 de
Dezembro de 1948 N.T. . Em tempo de paz como em tempo de guerra, a
intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional,
étnico, racial ou religioso constitui um geno-cídio, quer
físico quer biológico; apenas o genocídio cultural não é
incriminado;
Crime de apartheid:
nos termos da Conven-ção de 30 de Novembro de 1973 N.T.2 , a
inten-ção de manter ou instituir o domínio de um grupo racial
de seres humanos sobre outro constitui um crime contra a
Humanidade.
144 Direito Internacional umanitário
N.T.Portugal aderiu a esta
Convenção a 9 de Fevereiro de 1999, tendo formulado uma
declaração no momento da adesão.
N.T.2 Portugal não é parte nesta
Convenção
As infracções às Convenções
e Protocolo I
O DIH, por seu turno, distingue as
infracções graves das outras infracções. Só as primeiras
devem ser objecto de sanções penais; quanto às segundas, os
Estados obrigam-se a tomar as medidas necessárias (legislação
nacional e eventuais sanções disciplinares) para as fazer cessar
.
As infracções graves cometidas
contra pessoas e bens são enumeradas em cada uma das quatro
Convenções 2 e, na sua maioria, redefinidas.
Temos, em primeiro lugar, as
infracções comuns às quatro Conven-ções:
homicídio voluntário, tortura ou
tratamentos desumanos, incluindo experiências biológicas, facto
de causar intencionalmente grandes sofrimentos ou de ofender
gravemente a integridade física ou a saúde, destruição e
apropriação de bens não justificadas por necessidades militares
e executadas em grande escala, de forma ilí-cita e arbitrária 3
.
Em segundo lugar, as infracções
comuns à terceira e quarta Con-venções: obrigar um prisioneiro
de guerra a servir nas forças arma-das da Potência inimiga;
privar um prisioneiro de guerra ou uma pessoa civil do seu direito
de ser julgado regular e imparcialmente nos termos das
disposições daquelas Convenções. Existem ainda as infracções
específicas da quarta Convenção: deportações e
transfe-rências ilegais, detenção ilegal de pessoa protegida e
tomada de reféns.
Por fim, existem as infracções
acrescentadas pelo primeiro Protocolo e qualificadas como crimes
de guerra 4 : ataques contra pessoas (civis ou fora de combate) ou
bens (civis ou obras e instalações que con-tenham forças
perigosas) e pérfida utilização dos emblemas da Cruz Vermelha e
do Crescente Vermelho). Por outro lado, são igualmente
consideradas infracções graves, desde que cometidas
intencionalmente: a transferência pela Potência ocupante de uma
parte da sua própria população civil para o território que
ocupa ou a deportação, no interior ou para fora do território
ocupado, da totalidade ou de
As sanções pelas violações do
Direito Internacional Humanitário 145
Embora as infracções menores,
pela sua repetição,possam vir a tornar-se infracções graves.
2 Artigo comum 50.o /51.o /130.o
/147.o .
3 Esta disposição não figura no
artigo 130.o da terceira Convenção.
4 Artigos 11.o §4 e 85.o §§3 e 4
PI
..parte da população desse
território; a demora injustificada no repa-triamento dos
prisioneiros de guerra ou dos civis; as práticas de apar-theid
e outras práticas desumanas ou degradantes baseadas na
discriminação racial; e a negação a uma pessoa protegida do
seu direito de ser julgada regular e imparcialmente.
O conjunto destas infracções
graves 5 foi objecto de duas precisões importantes no primeiro
Protocolo: por um lado, o artigo 86. o , n.o 1 especifica que as
infracções cometidas por omissão devem igualmente ser punidas;
por outro, o artigo 86. o , n.o 2, impõe responsabilidades
especiais aos comandantes militares, no sentido de que a
infracção cometida por um subordinado não isenta os seus
superiores de res-ponsabilidade, desde que, estando estes
informados, nada façam para impedir ou reprimir essa infracção.
As violações do artigo 3.o comum
e do Protocolo II
Os textos relativos aos CANI não
contêm quaisquer outras disposi-ções a respeito da respectiva
aplicação para além da que estabelece a obrigação de difusão
6 a qual, como é óbvio, compete ao Estado. No que concerne à
repressão das violações, o Direito Humanitário não pode
atribuir aos insurrectos competência para perseguir
criminal-mente e julgar os autores das violações, nem reservar
esta compe-tência apenas para o Governo legítimo, sob pena de
abusos. Da mesma forma, embora o artigo 3. o comum e o segundo
Protocolo enumerem os mesmos tipos de infracções que os
previstos relati-vamente aos CAI (homicídios, torturas, penas
colectivas, tomadas de reféns, actos de terrorismo, atentados à
dignidade da pessoa, escra-vatura, pilhagens), as violações
destas disposições não podem ser qualificadas como infracções
graves, exis-tindo apenas a obrigação de lhes pôr fim e não de
as perseguir e reprimir.
No entanto, desde há alguns anos,
a responsabilidade penal individual no quadro dos
146 Direito Internacional umanitário
5 Para uma análise detalhada de
todas elas,vide David,E.,op.cit., pp.547-626.
6 O artigo 19.o enuncia de forma
lapidar que o Protocolo será divulgado «o mais amplamente
possível »..
CANI tem vindo a afirmar-se pouco a
pouco 7 : em primeiro lugar, no caso de crimes de genocídio e
crimes contra a Humanidade, a com-petência universal pode ser
exercida a todo o tempo contra os auto-res de tais actos, quer
estes sejam perpetrados no contexto de um conflito interno quer de
um conflito internacional 8 ; em segundo lugar, as leis nacionais
de numerosos Estados (nomeadamente Bélgica, Suíça, Estados
Unidos e Espanha) incriminam as violações do Direito
Humanitário aplicável aos CANI a coberto das disposições
relativas aos crimes de guerra.
2.OS MECANISMOS DE INVESTIGAÇÃO
Para serem incriminados, os factos
que um dos beligerantes afirma cons-tituírem uma violação do
DIH, devem ser apurados com precisão. As Convenções de 1949
prevêem um procedimento de inquérito bilate-ral instaurado por
iniciativa de uma das Partes no conflito 9 . Mas os Estados, por
falta de consentimento das Partes em causa, não conse-guiram
jamais desencadear qualquer procedimento de inquérito bila-teral.
Ao criar a Comissão internacional
para o apuramento dos factos, o artigo 90. o do pri-meiro
Protocolo realizou, teoricamente, um progresso importante, uma vez
que o processo de inquérito é institucionalizado e entregue a
uma instância cujo carácter permanente deverá assegurar a
respectiva eficácia, objectividade e capacidade dissuasora.
O funcionamento da Comissão
internacional para
o apuramento dos factos
A Comissão foi constituída com a
vigésima declaração de aceitação da sua competência, que
ocorreu em 1991 quando o Canadá, ao ratificar os Protocolos,
admitiu esta possibi-lidade. Os quinze membros da Comissão
As sanções pelas violações do
Direito Internacional Humanitário 147
7 Graditzky,Th.:«La
responsabilité pénale individuelle pour violation du Droit
international humanitaire applicable en situation de conflitarmé
non international » (em português:«A responsabilidade penal
individual por violação do Direito internacional humanitário
aplicável em situação de conflito armado não internacional
»),RICR, 1998,pp.29-57.
8 Para o crime de genocídio,vide
TIJ, parecer consultivo,18 de Maio de 1951,reservas à Convenção
para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio,bem como
TIJ,acórdão de 11 de Julho de 1996 (Excepções
Preliminares),caso relativo à aplicação da Convenção para a
Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio (Bósnia- -Herzegovina
v.Jugoslávia);para os crimes contra a Humanidade,
TPIJ,2 de Outubro de 1995,
Acusação v.Dusko Tadic,§141.
9 Artigos comuns
52.o /53.o /132.o /149.o
..foram então eleitos pelos
Estados que reconheceram essa competência:
20 para o primeiro mandato em 1991,
49 para o segundo em 1996.
Podem recorrer à Comissão os
Estados 10 que, no momento da assi-natura, ratificação ou
adesão ao Protocolo, ou em qualquer momento posterior, tenham
aceite a sua competência, relativa-mente aos factos cometidos por
outros Estados na mesma situa-ção.
Em termos concretos, a aceitação
da competência da Comissão por uma Parte contratante pode ser
feita de duas maneiras. Por um lado, subscrevendo a cláusula
facultativa de jurisdição obri-gatória 11 ; neste caso, a Parte
contratante queixosa pode mandar instaurar um inquérito contra
uma parte que haja proferido idên-tica declaração. Por outro,
de maneira ad hoc, ao aceitar poste-riormente a
competência da Comissão para investigar uma situação
particular 12 , o que inclui Estados que não sejam Partes nos
Pro-tocolos e movimentos de libertação nacional. O processo de
recurso é assim similar ao da cláusula facultativa de
jurisdição obrigatória perante o TIJ, apresentando os mesmos
inconve-nientes:
apenas um terço dos Estados Partes
no Protocolo fize-ram esta declaração e o acordo ad hoc requer
sempre o consentimento da parte posta em causa.
A competência da Comissão
internacional para o apuramento dos fatos
Foram confiadas à Comissão duas
tarefas diferentes e apenas no quadro dos conflitos armados
internacionais.
A investigação de
todos os factos susceptíveis de constituírem uma infracção
grave nos ter-mos das Convenções e dos Protocolos, bem como
outras violações 13 . Os poderes da Comis-são limitam-se ao
apuramento dos factos, não abrangendo a respectiva
qualificação, que deverá ser feita por uma instância
jurisdi-cional.
No entanto, ao reconhecer a sua
148 Direito Internacional umanitário
10 Mas igualmente os movimentos de
libertação nacional (artigo 96.o §3
PI).Não podem recorrer à
Comissão as organizações internacionais, governamentais ou
não;quanto à possibilidade de recurso por fatos praticados pelo
próprio Estado requerente,ela não se encontra prevista,nem é
excluída, no Protocolo,apenas tendo sido rejeitada no decorrer
das negociações.
11 Artigo 90.o §2,alínea a)P I;
vide anexo.
12 Artigo 90.o §2,alínea d)P I.
13 Artigo 90.o §2,alínea c)–i)P
I
..própria competência, a
Comissão estará forçosamente a fazer um jul-gamento prévio
relativamente à qualificação dos factos.
Nos termos do artigo 90. o, §5, a
Comissão apresenta às Partes inte-ressadas um relatório sobre
os resultados da investigação, com as reco-mendações que
julgar apropriadas. A menos que todas as Partes no conflito o
tenham solicitado, a Comissão não divulgará publicamente as
suas conclusões.
Os bons ofícios 14
, a fim de facilitar a reposição da observância das
disposições das Convenções e do primeiro Protocolo. Eles podem
con-sistir na comunicação das conclusões sobre as questões de
facto ou possibilidades de solução amigável. A Comissão pode
prestar os seus bons ofícios quando estejam em causa quaisquer
violações de DIH, sejam elas graves ou menores.
A Comissão internacional para o
apuramento dos factos tem sido acu-sada de passividade e
imobilismo. Embora juridicamente esteja em funções, reuniu
apenas para adoptar o seu regulamento interno e designar os seus
membros, jamais para investigar eventuais viola-ções.
Mas a responsabilidade por esta
situação pertence também aos Estados, que nunca pediram a sua
intervenção.
3.A REPRESSÃO PENAL
Convém, desde logo, recordar que,
enquanto ramo do Direito Inter-nacional Público, o DIH se
subordina às disposições gerais do pri-meiro no que diz
respeito às sanções aplicáveis em caso de violação,
nomeadamente aquelas que visam a indemnização por danos
ilíci-tos.
Explicitamente mencionada no
Direito da Haia 15 , a responsabi-lidade internacional do Estado
autor de danos ilícitos foi reafirmada pelo Direito de Genebra 16
. O Estado beligerante que viole uma dis-posição de DIH está
obrigado a indemnizar desde que a sua conduta dê origem a
qualquer prejuízo ou dano de ordem material: sendo a restitutio
in inte-grum raramente possível no caso de danos originados
por actos de guerra, essa indemni-
sanções pelas violações do
Direito Internacional Humanitário 149
14 Artigo 90.o §2,alínea c)–ii).
15 Quarta Convenção,artigo 3.o .
16 Artigos comuns 51.o ,52.o ,
131.o /148.o e artigo 91.o P I
..zação deverá ser calculada em
termos de valor pecuniário. Mas o mecanismo da responsabilidade
internacional visa exclusivamente a indemnização da vítima e
não a condenação do Estado que, pelo contrário, apenas é
responsável pelos actos das pessoas pertencen-tes às suas
forças armadas e não pelas acções dos membros da sua
administração civil 17 .
A violação do DIH, em
conformidade com as normas gerais da responsabilidade
internacional, pode assim conduzir à aplicação de sanções
equivalentes às civis 18 mas, em certas hipóteses, é a
responsabilidade penal dos autores das violações que pode ser
accionada.
A repressão a nível nacional
O DIH preconiza um sistema de
repressão penal que impõe aos Esta-dos a obrigação de
perseguir criminalmente os presumíveis autores de infracções
graves, de os procurar, de os levar a comparecer perante os seus
próprios tribunais ou mesmo de os extraditar para julgamento num
outro Estado. Na ausência de uma jurisdição uni-versal sobre os
crimes de guerra, as Convenções e o primeiro Pro-tocolo
estabeleceram um regime de competência universal e de
instauração obrigatória de acção penal: a obrigação de
reprimir as infracções é, assim, independente da nacionalidade
do autor, das víti-mas ou do local onde o acto seja cometido. Os
Estados Partes têm uma obrigação alternativa: aut dedere,
aut judicare – punir (ou pelo menos julgar ou instaurar
acção penal) ou extraditar para outro Estado 19 , de acordo com
a lei do Estado reque-rido, embora a extradição só esteja
prevista a título subsidiário.
Se a qualificação dos actos que
constituem cri-mes de guerra é regulada pelo próprio DIH, este
deixa às leis nacionais a obrigação de definir as sanções
penais adequadas e às jurisdições nacionais a determinação
das penas a aplicar.
150 Direito Internacional umanitário
17 De acordo com a letra do artigo
91.o P I in finee com reserva da noção de diligência devida.
18 Sobre o âmbito desta
responsabilidade em função do carácter internacional ou não do
conflito,vide David, E.,op.cit.,pp.524-547.
19 Pode tratar-se de qualquer
Estado Parte nas Convenções de Genebra,seja ou não parte no
conflito armado
..Este sistema de competência
universal assenta na cooperação judi-ciária, nenhuma Parte se
podendo exonerar a si própria, nem exo-nerar uma outra Parte, das
responsabilidades que lhe incumbem por infracções graves ao DIH.
Para esse fim, os Estados devem partilhar entre si toda a
informação útil e todos os dados disponíveis e pres-tar-se
mutuamente toda a assistência, por forma a conseguirem loca-lizar,
capturar e julgar os indivíduos suspeitos da prática de crimes
de guerra e de crimes contra a Humanidade. Uma tal cooperação
– que pode ir até à extradição – permitirá pôr fim à
impunidade. Mas alguns Estados recusam-se a extraditar os seus
nacionais e, no contexto dos CANI, as medidas de conciliação 20
tomadas pelas autoridades no poder traduzem-se muitas vezes numa
amnistia geral que deixa impunes inúmeros crimes de guerra,
nomeadamente os que são imputáveis à parte vitoriosa.
De uma forma geral, a repressão
pelos tribunais nacionais é muito discreta 21 e há que
reconhecer que o sistema da competência universal nunca funcionou
verdadeiramente. A maior parte das vezes, os Estados não têm a
vontade política de perseguir criminalmente os seus próprios
cidadãos, sobretudo quando estes se encontram no topo da
hierarquia governamental ou militar, ou então não dispõem da
capacidade material para o fazer. Os processos Eichmann (1961),
Barbie (1985) e Demjanjuk (1986) são apenas exceções.
Mas se o DIH não prevê uma
jurisdição penal universal para julgar as suas violações, como
acontece relativamente aos crimes de genocídio ou de apartheid
22 , também não a exclui.
A repressão a nível internacional
A ideia de uma jurisdição penal
inter-nacional esteve presente ao longo de todo o
As sanções pelas violações do
Direito Internacional Humanitário 151
20 Artigo 6.o §5 P II.
21 À excepção do massacre de My
Lai no Vietname (16 de Março de 1968)que levou 25 militares a
comparecer perante os tribunais americanos em 1970 e 1971; mas a
maioria deles foi absolvida ou condenada a penas disciplinares;
só o tenente Calley,acusado de haver premeditado a morte de 102
civis vietnamitas,cometido ele próprio alguns dos homicídios e
ordenado os restantes aos homens colocados sob o seu comando, foi
condenado a 20 anos de prisão. Cumpriu apenas dois anos, antes de
ser libertado sem que o Pentágono fornecesse qualquer
explicação.
22 A propósito dos quais as
Convenções de 1948 e 1973 reenviam para uma jurisdição penal
internacional que nunca chegou a ser criada
..século
XX 23 estando, no limiar do terceiro milénio, prestes a tornar-se
realidade.
a)As jurisdições do passado
O Tratado de Versailles, em 1919,
havia previsto levar o Imperador Guilherme II a comparecer perante
um tribunal internacional por «atentado supremo contra a moral
internacional e a autoridade sagrada dos tratados», bem como
instaurar acção penal contra as pes-soas suspeitas de haver
cometido actos contrários às leis e costumes da guerra. O
processo do Imperador não chegou a ter lugar e o Supremo Tribunal
de Leipzig instaurou apenas uma dúzia de processos, traduzindo-se
as sentenças proferidas em penas insignificantes.
Após a Segunda Guerra Mundial, os
processos de Nuremberga e de Tóquio marcaram incontestavelmente
um progresso em termos de repressão internacional, uma vez que o
direito aí elaborado, com os princípios de Nuremberga,
permanece. No entanto, estes tribunais, pelo seu funcionamento,
ignoraram o princípio fundamental da legalidade dos crimes e das
penas e, pela sua composição, aplica-ram o direito e a justiça
dos vencedores sobre os vencidos. Mas é ver-dade que não existia
qualquer outra alternativa!…
b)Os tribunais penais
internacionaisad hoc
Foi necessário que ocorressem a
guerra do des-membramento da Jugoslávia e o genocídio do Ruanda
para que o Conselho de Segurança se decidisse pela criação de
dois tribunais penais internacionais para julgar as violações do
DIH cometidas nestes dois territórios 24 .
A cria-ção destes tribunais ad
hoc foi objecto de críticas que podemos reagrupar em torno de
três aspectos. Em primeiro lugar, o modo da sua criação, que
rejeitou a via convencional
152 Direito Internacional umanitário
23 Recordemos que,em 1872, Gustave
Moynier sentiu a necessidade de criar uma instituição
judiciária internacional adequada para prevenir e reprimir as
violações da Convenção de 1864; a mesma preocupação viria a
animar Henri Donnadieu de Vabres em 1947 na Assembleia Geral das
Nações Unidas.
24 Vide R.I.C.R.:«Jurisdiction
pénale internationale et droit international humanitaire:les
tribunaux pour l ’ex-Yougoslavie et pour le Rwanda » (em
português:«Jurisdição penal internacional e direito
internacional humanitário:os tribunais para a ex-Jugoslávia e
para o Ruanda »), dossier,1997,pp.637-778
..(utilizada aquando dos Acordos de
Londres de 8 de Agosto de 1945) em benefício de uma resolução
do Conselho de Segurança, consi-derada mais rápida e sobretudo
mais eficaz, uma vez que o TPIJ e o TPIR foram estabelecidos
enquanto medidas coercivas adoptadas ao abrigo do capítulo VII da
Carta. Mais ainda, os TPI são órgãos sub-sidiários do Conselho
de Segurança, estando por isso subordinados à acção do seu
criador. Em segundo lugar, os TPI traduzem uma jus-tiça manietada
e extraordinária 25 : justiça manietada pelos membros
permanentes do Conselho, que decidem quem vai ser julgado e por
que crime; justiça extraordinária uma vez o direito ordinário
exis-tente – Comissão internacional para o apuramento dos
factos e exer-cício da competência universal – poderia ser
aplicada 26 . Por último, a criação de tais tribunais tem como
efeito diferir a instituição de uma jurisdição internacional
permanente. Todavia, o contributo dos TPI, embora limitado, não
deverá ser negligenciado 27 , tanto no que diz respeito às
questões de procedimento (reforço do direito a um processo
equitativo pela rejeição do julgamento de contumazes e do
possível recurso aos testemunhos anónimos), como às questões
substanciais (papel do costume no DIH). A experiência destes dois
tribunais permitiu progredir em termos da vontade de cumprir a
obrigação de punir os criminosos de guerra.
Trata-se de um passo no sentido da
criação de um Tribunal penal internacional, permanente e
universal.
c)O Tribunal Penal Internacional
Foi através da resolução 260, de
9 de Dezem-bro de 1948, que a Assembleia Geral das Nações Unidas
convidou a Comissão de Direito Internacional a examinar a
possibili-dade de criação de um órgão jurisdicional
internacional encarregado de julgar as pessoas
As sanções pelas violações do
Direito Internacional Humanitário 153
25 Russbach,O.,op.cit.,
nomeadamente pp.54 ss.
26 O problema do Tribunal Penal
Internacional para o Ruanda é, no entanto,diferente,uma vez que,
por um lado,as violações do DIH cometidas durante um CANI não
são penalizadas pelas Convenções e Protocolos e,por
outro,porque a justiça internacional se revela mais necessária
quando as violações são cometidas no decorrer de um conflito
interno e a imparcialidade da justiça nacional está longe de
estar garantida na sequência de um conflito onde os juízes
estarão forçosamente no campo dos «vencedores » ou dos
«vencidos ».
27 Tavernier,P.:«L ’expérience
des Tribunaux pénaux internationaux pour l ’ex-Yougoslavie et
le Rwanda » (em português:«A experiência dos Tribunais penais
internacionais para a ex-Jugoslávia e para o Ruanda »),RICR,1997,pp.647-663..
acusadas de crimes de genocídio.
Após assinaláveis atrasos 28 , a Comissão terminou em 1994 os
seus trabalhos sobre o projecto de estatuto de um tribunal penal
internacional. Em 1996, a Assembleia Geral decidiu convocar a
Conferência diplomática de plenipoten-ciários das Nações
Unidas sobre a criação de um tribunal penal inter-nacional, que
teve lugar em Roma, de 15 a 17 de Julho de 1998.
O objectivo era muito ambicioso:
tratava-se de lutar contra o fenó-meno da impunidade dos
criminosos de guerra e genocidas, pondo fim à necessidade de
estabelecer tribunais repressivos numa base circunstancial.
Existia, a priori, um
consenso para a criação de uma tal jurisdição. Que Governo
ousaria pronunciar-se publicamente contra um tribu-nal encarregado
de julgar os autores dos mais odiosos crimes? Toda-via, este
consenso rapidamente se quebrou ao serem abordados os problemas da
competência e independência do Tribunal. As fortes reticências
americanas, durante muito tempo secundadas pela França, reduziram
o tratado adoptado a 17 de Julho de 1998 29 a um compromisso que
está longe de ser satisfatório.
O Tribunal Penal Internacional
terá compe-tência 30 para julgar crimes de genocídio, cri-mes
contra a Humanidade e crimes de guerra (todos estes crimes podem
ser submetidos à apreciação do TPI, mesmo se cometidos no
contexto de um conflito armado não inter-nacional), bem como o
crime de agressão.
Mas o texto final apresenta três
tipos de limi-tações.
Em primeiro lugar, os Estados
signa-tários têm a possibilidade de não reconhecer a
competência do TPI durante um período de sete anos no que diz
respeito aos crimes de guerra 31 . Em segundo lugar, uma questão
pode ser submetida ao TPI na sequência de queixa de um Estado
parte no tratado, do Conselho
154 Direito Internacional umanitário
28 Atrasos devidos,nomeadamente, à
adopção pela Assembleia Geral das Nações Unidas de uma
definição de agressão;iniciados pela SDN, os trabalhos apenas
terminariam em 1974,ou seja …50 anos depois. Um tempo de
reflexão pelo menos igual terá sido necessário para o Tribunal
Penal Internacional.
29 Por 120 votos a favor,7 contra
(entre os quais os Estados Unidos)
e 21 abstenções,não tendo 12
Estados participado na votação. 30 Existe uma relação de
complementaridade entre o TPI e as jurisdições nacionais: um
presumível criminoso só será submetido a julgamento perante o
TPI caso o seu próprio Estado não tenha a capacidade ou a
vontade de o julgar.
31 No final dos sete anos, esta
disposição será «reexaminada », sem mais precisão
..de Segurança ou por iniciativa
da acusação mas, neste último caso, a acusação deverá obter
de uma «câmara preliminar» de juízes a auto-rização para
abrir instrução e o Conselho de Segurança, mediante uma
resolução adoptada ao abrigo do capítulo VII, pode
solicitar-lhe que suspenda as investigações por um período de
doze meses, reno-vável.
Em terceiro lugar, à excepção da
hipótese de queixa apresentada pelo Conselho de Segurança, o TPI
apenas pode exercer a sua juris-dição na condição de que o
Estado em cujo território o crime seja cometido ou o Estado de
que seja cidadão o presumível autor sejam partes no tratado.
Em resumo, o Tribunal Penal
Internacional, que se localizará em Haia, está dotado de uma
competência mais ampla do que os tribunais ad hoc,
mas os seus poderes são infinitamente mais restritos. O Tribu-nal
será mais um instrumento de prevenção dos conflitos através da
dissuasão judiciária do que um verdadeiro tribunal repressivo. A
dia-léctica entre a soberania e as preocupações humanitárias
levou à cria-ção de algumas novas normas de direito penal
internacional, mas não esqueceu determinados mecanismos que lhe
permitem abster-se da apreciação de certos casos, nomeadamente
no que diz respeito aos crimes de guerra, os quais durante os sete
anos subsequentes à entrada em vigor do tratado 32 , podem ser
excluídos da competência do Tribunal.
Sete anos representam um enorme
atraso que parecerá bem longo às futuras vítimas da guerra!
Tenhamos consciência de que o
Tribunal não entrará em funcionamento senão daqui a vários
anos.
32 O Estatuto do Tribunal deverá
ser ratificado por sessenta Estados para poder entrar em vigor.
Com as revisões constitucionais que se poderão tornar
necessárias para proceder a uma tal ratificação, calcula-se que
o TPI entre em funcionamento dentro de quatro ou cinco anos.
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