A
Favor da vida contra a pena de morte
Maria
Ignês Rocha de Souza Bierrenbach
“Só
Deus é senhor absoluto – e juiz supremo – da vida e
da morte”
Hélio
Pellegrino
Na
atual conjuntura, a falta de perspectivas provocada pela
agudização da crise econômica-social, a perda de
referenciais éticos e morais com altos níveis de
demandos e corrupção e a malversação da coisa pública,
induzem à prescrição de receitas radicais. Rápidas e
até mesmo com conteúdo mágico para combater a exacerbação
da violência. Dentre elas se inscreve a pena de morte,
com lugar cativo e sempre voltando à cena, estimulada por
ampla platéia.
A disparidade entre os 30% da população que
se manifestam contra a pena de morte e os 70% favoráveis
à sua adoção não se deve certamente a um confronto
entre as forças do bem e do mal, mas reflete algum tipo
de maniqueísmo mais ou menos velado e tem a ver com
diferentes óticas de interpretação da realidade e
distintos métodos para se atingir o mesmo objetivo de paz
e justiça social.
É legítima a indignação das pessoas
contra os assassinatos bárbaros e os crimes violentos.
Agrego-me às vozes que clamam por justiça e exigem o fim
da impunidade. É preciso dar um basta à insegurança
generalizada e recuperar a tranquilidade perdida,
provavelmente na perversidade de um equivocado crescimento
e acelerada concentração urbana. Faz-se relevante
contrapor às propostas de pena de morte uma política de
segurança pública que atenda as necessidades e os mais
legítimos interesses da população.
Enquanto certos diagnósticos se apegam a
recortes fragmentados da violência, explorando a dor e a
tragédia de alguns crimes, exacerbando os aspectos
macabros e criando um clima emocional que, no fundo,
atende os interesses de uns poucos, propõe-se um sereno
resgate de causas mais abrangentes.
As
raízes da violência
É preciso buscar na peculiaridade da nossa
colonização as raízes mais profundas da violência que
perpassa a sociedade. A barbárie do genocídio contra os
índios e os grilhões da escravidão deixaram marcas
indeléveis, criando uma mentalidade de desrespeito aos
direitos mais elementares de cidadania, cultivados ainda
hoje por parcelas significativas das elites dos mais
diferentes matizes econômicos, políticos e intelectuais
e, de certa forma, introjetada na população por um
processo de cooptação habilmente articulado e deveras
conveniente.
O brilhante intelectual Antonio
Houaiss,
ex-ministro da Cultura, em entrevista à Folha
de S. Paulo (18/01/93) diz que “estimamos que o
Brasil tenha importado em torno de 3,6 milhões de
escravos negros contra os setecentos mil importados pelo
Estados Unidos. E o remanescente nos EUA é uma população
muito mais preservada. No fim do século XVIII e meados do
século XIX o tempo de vida dos escravos no eito não ia
além de seis ou sete anos... O Brasil é um país de violência
desde sempre”. Esses são dados extremamente expressivos
das condições desumanas com que eram tratados os
escravos e da banalização de suas mortes, sujeitas a um
prazo de carência de seis a sete anos de vida.
Quase quinhentos anos depois a situação de
violência assume outros contornos não menos
preocupantes. Dados do IBGE indicam que 32 milhões de
crianças, dos sessenta milhões da população na faixa
de zero a dezoito anos, vivem em famílias cuja renda per
capita é de meio salário-mínimo, ou seja, em condições
indignas de sobrevivência. No fim do século XX, quatro
milhões de crianças em idade escolar estão fora das
escolas, quando se sabe que o ensino básico é
instrumento fundamental para alavancar o desenvolvimento.
Aos índices alarmantes de mortalidade infantil
acrescenta-se, agora, um novo indicador, resultado do
refinamento de dados da pesquisa nacional: o assassinato
de 994 crianças e jovens, no ano de 1990, que atinge a
marca de 2,7 mortes/dia, segundo o Núcleo de Estudos da
Violência da USP, arrematando o quadro neoliberal de
modernidade nacional.
Se, em rápidas pinceladas, o diagnóstico
diferencial apresenta esse fosso, o que dizer das receitas
para sanar os males nacionais, entre as quais a pena de
morte assume um lugar anacronicamente destacado?
A
concepção ética e moral da pena de morte
Á força da idéia da pena de morte está
intimamente relacionada à cultura massiva do medo da violência,
à busca ostensiva da segurança, em contraposição ao
enfraquecimento do conceito de justiça, e à frequência
da impunidade.
A pena de morte nada mais é senão a
institucionalização pelo Estado de um dos mecanismos de
defesa criados pela população para combater o
acirramento da violência, enquanto os justiceiros e os
esquadrões da morte situam-se entre os instrumentos
informais e oficiosos.
No contexto dos objetivos éticos do controle
da força é relevante destacar uma polêmica falsamente
engendrada e legalmente disseminada na sociedade sobre uma
oposição ou polarização entre os direitos dos homens
justos e os dos maus, ou das atenções ou benesses
recebidas pelos segundos e, supostamente, financiadas
pelos primeiros. Essa controvérsia, em última instância,
atende aos interesses dos conservadores e serve para
desacreditar a luta pelos direitos humanos e
desestabilizar as entidades de defesa.
Em contrapartida, as evidências apontam para
a estabilidade e paz social relacionadas ao exercício
sistemático da não-violência e o respeito dos direitos
básicos dos cidadãos, mesmo quando criminosos ou
encarcerados.
Maria Sylvia de Carvalho Franco explicita com
prioridade esta questão: “Nesta era, atos covardes e
hediondos multiplicam-se contra crianças e mulheres
seviciadas até no próprio lar, jovens destruídos pelas
drogas, pessoas sequestradas. Quanto a isso há
unanimidade: é imperativo salvaguardar o cidadão. Mas e
os maus feitores? Serão também eles sujeitos de
‘direitos humanos’? Quem diz ‘não’ a esta
pergunta está, ipso facto, negando a si mesmo tal
prerrogativa. Sem a igualdade efetiva e sem lei garantida
em sua universalidade, todos ficam à mercê da força
bruta. A escolha é nítida: ou o império da lei ou
estado de guerra”.
As propostas de pena de morte ligam-se ao
maniqueísmo do bem e do mal, na medida em que os
“bons” julgam-se no direito de indicar a punição
para os “maus”, enquanto aos “maus” é dada a
oportunidade de expiação de suas culpas, oferecendo suas
vidas em holocausto. trata-se de um equivocado conceito de
justiça, ou, melhor dizendo, uma regulamentação da
vingança, embasada na Lei de Talião: olho por olho,
dente por dente.
A cada época, desde o desaparecimento dos
suplícios, aparecem novas justificativas éticas, morais
ou políticas para o direito de punir. A civilização
aboliu o corpo como alvo da repressão penal, exposto vivo
ou morto, esquartejado ou oferecido como espetáculo.
Eliminou-se o domínio da pena sobre o sofrimento físico,
a dor. Assim, a adoção da pena de morte configura uma
regressão em termos de costumes e civilização.
Na nova acepção da pena, o palco é a mídia
eletrônica e a platéia os milhares de espectadores que
engrossam os níveis de audiência. O espetáculo da pena
de morte, via satélite, com a mediação da TV, garantirá
as condições assépticas e de distanciamento exigidas
pela nova era, sem tirar o pulsar das emoções a cores.
É o impulso da marketing que faz crescer o número de
adeptos da pena de morte, comovidos pelos crimes violentos
apresentados e embalados na histeria coletiva da vingança,
a sede de sangue que, ao fim e ao cabo, vai construir mais
um componente de opressão do próprio povo.
A força da imagem, assim, trabalha no
sentido de aumentar a violência na sociedade, pois caso a
mídia pretendesse diminuir os índices de agressão,
deveriam ser veiculadas mensagens de conteúdo positivo. Já
refutava o psicanalista Hélio Pallegrino, num texto sobre
a pena de morte, “o princípio – psicanaliticamente
ilusório – de que o delinquente grave tem arraigado
amor à própria vida. Em verdade, acontece o oposto. A
auto-estima do ser humano se constrói a partir dos
cuidados – do amor – recebidos de fora – dos outros.
Este amor, internalizado, vai constituir o fundamento da
possibilidade que cada um terá de amar-se a si mesmo, por
ter sido amado. Se sou capaz de amar a mim próprio e à
minha vida, sou também proporcionalmente capaz de amar ao
próximo, meu semelhante, meu irmão – e meu espelho”.
A pena de morte, instrumento medieval e
ultrapassado, é trazida à baila sempre que ocorrem
crimes violentos que abalam a opinião pública. Os
argumentos utilitários empregados em sua defesa não se
sustentam no exame da realidade.
Já no século XVIII, em pleno Iluminismo, o
Marquês de Beccaria dizia que o caráter intimidatório
ou dissuasório das penas não estava no seu rigor ou
intensidade, mas na certeza de sua aplicação. Trata-se
de um verdadeiro libelo contra a pena de morte, cuja
severidade não ajuda a reduzir os índices de
criminalidade ou diminuir a violência. A efetividade das
penas está no combate à impunidade e na garantia da punição
do responsável e não na sua taxa de crueldade.
Pesquisa do ONU demonstra: na Inglaterra,
onde não existe pena de morte, ocorre um homicídio para
cada cem mil habitantes/ano. Nos Estados Unidos, onde há
pena de morte, são dez homicídios para cada cem mil
habitantes. Nos estados da Califórnia, Texas e Flórida,
onde há pena de morte, o número de homicídios é
significativamente maior do que nos estados de Dakota do
Norte ou Vermont, onde ela não existe (no ano de 1991,
respectivamente, 3550, 2690, 1140 contra 8 e 22 homicídios).
Outros argumentos podem ser aduzidos contra a
pena de morte. Contudo, dois deles são relevantes,
considerando-se a nossa formação cultural e a
reconhecida fragilidade das nossas instituições. Um
deles reporta-se à pena de morte como instrumento de
discriminação social, tal como ocorre hoje com as prisões
e averiguações pela polícia nas ruas das metrópoles,
onde prevalecem os preconceitos de raça, cor e classe
social. Bryan Stevenson, advogado norte-americano, afirma
que 100% dos condenados à pena de morte, nos Estados
Unidos são pobres, 40% são negros e 15% hispânicos.
O segundo argumento diz respeito à
irreversibilidade da pena em contraposição aos erros
judiciais. Só nos Estados Unidos, neste século, 139
pessoas foram condenadas à morte por engano, dentre as
quais 23 foram executadas. O que esperar do sistema
policial-judicional-prisional brasileiro, cujas características
marcantes são a arbitrariedade, a morosidade, o
emperramento burocrático, a superlotação, e, porque não
dizer, a corrupção, tantas vezes denunciada e parte
integrante da realidade do Brasil atual.
Ressalte-se que a comparação com os Estados
Unidos é feita por ser este o único país democrático
ocidental onde o anacrônico instituto da pena capital
ainda subsiste, em 35 estados.
O professor Sérgio Adorno, analisando os
dados americanos na relação entre execução e
criminalidade, comenta que “tudo leva a crer que o
aumento ou diminuição dos crimes esteja associado a
maior ou menor prosperidade dos Estados. Naqueles onde a
prosperidade se fez notar nos últimos anos – estados da
região oeste – a criminalidade tende a declinar.
Naqueles que concentram as populações mais pobres e
atrasadas – os estados do sul – as taxas de
criminalidade são ascendentes”.
No ano de 1993, 48 países haviam abolido a
pena de morte para todos os crimes, enquanto dezesseis países
a aboliram para os delitos comuns, com exceção dos
crimes de guerra. Vinte países a aboliram de fato nos últimos
dez anos, a exemplo das novas democracias do leste
europeu.
Pode o Brasil ficar na companhia dos 106 países
retencionistas, tais como o Irã, Iraque e China, que
continuam a aplicar a pena de morte? Os países que
possuem a pena de morte na legislação e a aplicam de
fato inscrevem-se entre os que apresentam as mais precárias
condições econômicas e sociais, e restritas liberdade
políticas e civis.
O
papel dos principais atores
Examinemos
a posição dos atores principais, direta ou indiretamente
relacionados à pena de morte, questionando o poder
entendido como monopólio do bem e do mal e propugnando
pela reconstrução das instituições envolvidas.
Os
juízes, em geral, seguem a tendência adotada na
administração da justiça penal, executada na
neutralidade técnica, pretensamente inerente à função,
e excessivamente comprometidos com os formalismos que, na
realidade, servem aos interesses das elites dominantes.
Bryan
Stenvenson, advogado norte-americano, em palestra
proferida na sede da OAB-Seção São Paulo, em abril de
1991, embasado na experiência americana, questionou a
qualidade dos serviços de advocacia prestados pelos
defensores legais encarregados das defesas dos
sentenciados para morrer, que em sua totalidade são
pobres e, portanto, não dispõem de recursos para
contratar penalistas com condições para absolver seus
clientes, quer utilizando subterfúgios legais, quer em
nome da justiça. Assim, ele está convencido de que há
dois fatores determinantes para o corredor da morte nas
cadeiras elétricas do sul dos Estados Unidos: a raça e a
sorte, uma vez que a discriminação e a loteria na
escolha do advogado determinam a distinção entre a vida
e a morte.
Quanto
à polícia, é preciso reconhecer que a instituição não
vem cumprindo a função de combate à criminalidade. No
caso da polícia civil, o encarceramento dos presos nos
distritos policiais traz uma enorme sobrecarga,
desviando-a de suas funções eminentemente
investigativas. A polícia militar perde-se em funções
administrativas, na prestação de serviços sociais ou no
combate ao novo inimigo – a população pobre das
periferias das grandes cidades, onde atua de forma
discriminatória e violenta.
Em
São Paulo, em 1992, 1359 civis foram mortos e 317 feridos
em supostos confrontos com a polícia militar, numa
exacerbação da violência só compatível com a
arbitrariedade da política estadual de segurança
vigente. Outros dados significativos, tendo por fonte a própria
Polícia Militar: no governo Paulo Maluf (1979-1982), um
morto a cada trinta horas; nos governos Franco Montoro
(1983-1986) e Orestes Quércia (1987-1990), um morto a
cada dezessete horas e no governo Luiz A. Fleury – atual
governador -, um morto pela polícia militar a cada seis
horas.
Os
perfis das vítimas, no dizer de Caco Barcellos, indicam
trabalhadores jovens, sem especialização, negros ou
pardos, migrantes, primeiro grau incompleto, renda
inferior a cem dólares mensais e moradores na periferia
da cidade. O jornalista constatou ainda que os jovens são
vítimas preferenciais, o que coincide com a pesquisa do Núcleo
de Estudos da Violência, que apontou maior incidência de
mortes na faixa etária de quinze a dezessete anos. As
duas pesquisas são unânimes em afirmar que as vítimas não
tinham antecedentes criminais e nenhum tipo de passagem
pela polícia, o que configura o extermínio de cidadãos
comuns.
O
sistema penitenciário, cuja falência já foi decretada há
muito tempo, resiste à modernização, permanecendo
insensível às condições desumanas a que são
submetidos os encarcerados. As condições prisionais no
país estão tão deterioradas que as penas de morte
expressam-se de forma aguda em configurações de rebelião
e são parte do cotidiano dos presos.
Dois
casos ilustrativos ocorreram em outubro de 1992 em São
Paulo. O primeiro refere-se ao massacre de 111 presos na
Casa de Detenção, mortos após invasão do presídio
pela polícia militar, e completamente submetidos e
indefesos.
O
massacre da Casa de Detenção chocou pelo impacto dos números;
entretanto a violência não é um evento pontual ou
localizado, mas um processo perverso e contínuo. A pena
de restrição de liberdade imposta pela lei com o
respaldo da sociedade é agravada pelo burocratismo, pelo
emperramento da máquina carcerária. A prisão drástica
medida de exclusão social, não se mostra suficiente para
efeito de castigo. Reproduz-se ainda, no limiar do
terceiro milênio, o obscurantismo medieval da segregação
dos doentes mentais e dos leprosos – hoje aidéticos –
em sentenças perpétuas de degredos em masmorras fétidas,
onde a real punição é a pena de morte, prescrita por
antecipação. Configura-se uma multiplicação de penas e
de sofrimento, de inestimável alcance físico, mental e
moral para os presos que, por sua própria condição,
permanecem em estado de anomia, sem vez ou voz.
O
segundo reporta-se às instituições de internação de
crianças e jovens, no exemplo, da Fundação Estadual do
Bem-Estar do Menor de São Paulo (FEBEM/SP), onde se
observam as mesmas características comuns a outras
instituições totais, tanto no âmbito da saúde mental
como nas prisões. A chamada “rebelião”, ou a sequência
de acontecimentos ocorridos no espaço de internação,
caracteriza-se pela desordem e violência. Não que esses
componentes não existissem anteriormente. Pelo contrário,
eles são constitutivos das instituições fechadas, num
processo crônico e anacrônico, onde permanecem velados
até que haja interesse em sua manifestação de maior ou
menor porte. Então, basta um motivo aparentemente
corriqueiro ou uma série de motivos mais ou menos
arquitetados para que ocorram as chamadas “rebeliões”
que, com certeza, não atendem às necessidade e aos
interesses das crianças e jovens internados, apesar de
protagonistas destacados.
A
força da legislação
O
direito à vida está inscrito no capítulo inviolável
das garantias individuais da Constituição Federal e é
assegurado pela Convenção Americana de Direitos Humanos
– o chamado Pacto de São José, recentemente subscrito
pelo governo brasileiro. Essas são premissas do Estado de
Direito democrático incompatíveis com a proposta de pena
de morte.
Na
Constituição Federal, a proibição da pena de morte
(artigo 5º) compõe o Título II, referente aos Direitos
e Garantias Fundamentais, o que a inclui entre os direitos
constitucionais indisponíveis, e a torna duplamente
vetada.
A
inviolabilidade dos direitos fundamentais está presente
no artigo 60, parágrafo 4º, IV da Constituição
Federal, que proíbe qualquer emenda que vise abolir cada
um e todos os direitos fundamentais, demonstrando a
preocupação do legislador em assegurar mecanismos
impeditivos de qualquer ameaça à garantia de direitos,
inclusive a adoção da pena de morte.
Nessa
perspectiva, submeter a pena de morte a um plebiscito
popular é o mesmo que submeter a julgamento a própria
concepção de democracia ou justiça.
Fábio
Konder Comparato examina com propriedade esta questão,
num parecer onde discute se “a emenda constitucional
para permitir a pena de morte é matéria que possa ser
decidida pelo plebiscito e não por referendo [...] Mas,
dir-se-á, essa proibição, que atinge indubitavelmente o
Congresso, estende-se também ao próprio povo como
titular da soberania? [...] Quem, no âmbito do Congresso,
teria a coragem ou a desfaçatez de negar a soberania
popular? Contra esse populismo finório importa afirmar e
reprisar que democracia não é soberania popular
ilimitada e irresponsável. Reduzido à sua expressão
mais simples, o regime democrático é composto de dois
elementos essenciais: o princípio majoritário e a
garantia dos direitos fundamentais. A vontade popular que
despreza a dignidade da pessoa humana não é democrática,
é tirânica”.
A
Convenção Americana sobre Direitos do Homem no seu apêndice
5, artigo 4, trata do direito à vida: “Toda pessoa tem
direito a que se respeite sua vida. Este direito estará
protegido por lei [...] Ninguém pode ser privado da vida
arbitrariamente [...] Não se restabelecerá a pena de
morte nos países que a aboliram”.
Considerações
finais
O
desenvolvimento econômico-político e social do país é
fator determinante no combate à criminalidade e à violência.
De fato, não há argumentos favoráveis à pena de morte
que se sustentem frente à realidade nacional de extrema
concentração de renda e profunda desigualdade social, de
fome e de miséria.
As
desigualdades sociais tendem à revolta e à violência e
não é o aparelho repressivo ou a equivocada construção
de grandes presídios que vão dar respostas. Corre-se o
risco de alimentar equipamentos e meios indefinidamente,
sem consequências práticas e sem dar conta da demanda
sempre crescente.
A
Segurança Pública é resultante de um conjunto de
fatores sociais interligados, dentre os quais o pleno
emprego, os salários dignos, a moradia, a saúde, a
escola pública de qualidade. Isso significa que um
governo que tenha vontade política de enfrentar os
problemas de Segurança Pública tem necessidade de
investir no desenvolvimento econômico-social, elaborando
políticas públicas num amplo espectro – agrícola,
industrial, cultural, educacional etc. – que resultem
num melhor padrão de vida da sociedade na busca de eqüidade
e democracia social.
A
política de Segurança Pública é uma grande síntese,
embora algumas medidas de impacto para romper com o status
quo devam ser implementadas. A revisão integrada do
sistema jurídico-penal em termos de fundamentos, conteúdos,
métodos, e a modernização da legislação penal e
processual penal, adequando-se à dinâmica da sociedade,
trariam mudanças significativas. O referido “sistema”
abrange desde o inquérito policial até o papel do Ministério
Público e do Poder Judiciário e, inclusive, o
cumprimento da pena e a reinserção social do condenado.
Essa
abordagem, globatizante pressupõe um diagnóstico
afirmativo para embasar uma política de direito à
segurança, que passa por projeções de mudanças
estruturais e reformas interativas do referido sistema,
sem as quais a visão de totalidade fica comprometida. Além
disso, são necessárias múltiplas estratégias de ação,
de modo a enfrentar com efetividade os obstáculos e
resistências decorrentes do processo de mudança.
A
polícia detém o poder legal de usar a força, o controle
da decisão do ponto de vista técnico, mas tem de
reconhecer que precisa mudar, profissionalizar-se e
informatizar-se, descentralizar instâncias decisórias e
flexibilizar a atuação dos policiais, comunicar-se com a
comunidade na busca de efetividade.
Nessa
linha, o corporativismo deverá ser enfrentado a nada mais
efetivo que o controle externo para diminuir o ímpeto de
sua força e combater a impunidade. A desmilitarização e
unificação das polícias civil e militar é recomendada,
assim como a transferência do Instituto Médico-Legal
para fora do âmbito policial, possivelmente para a
Universidade.
Pressupõe-se,
ainda, a restrição da competência dos tribunais
militares estaduais aos crimes militares em estrito senso.
Em outras palavras, torna-se imperiosa a fixação da
competência da Justiça comum e não da Justiça Militar
para o processo e Julgamento de crimes comuns praticados
por policiais militares. Repudia-se a existência de uma
Justiça Militar asseguradora de um foro privilegiado para
os policiais militares, fator terminante da impunidade.
A
Justiça requer, também, algum tipo de controle externo
para que a sociedade possa exigir dos magistrados o mesmo
que se exige dos advogados, ou seja, o cumprimento de
prazos. Este é apenas um dos múltiplos exemplos das
vantagens que um sistema de controle traria para que os
processos não se protelem indefinidamente, circunstância
que configura mais um atentado aos direitos de quem esteja
preso ou processado.
A
prestação de contas é uma forma moderna de controle
democrático. A informática e os bancos de dados
cientificamente orientados dariam condições para um
controle de qualidade na prestação de serviços, tanto
no que diz respeito a uma melhor distribuição de pessoal
(concentrado, em geral, em objetivos-meio), com uma alocação
de recursos materiais (a exemplo do número de viaturas
nas ruas ou o controle dos armamentos) e financeiros (relação
custo-benefício), além das condições de avaliação e
reformulação embasada em informações reais e confiáveis.
Como
regra geral, os investimentos em recursos humanos são
fundamentais: valorização das funções, reposição
salarial condigna (que evitaria corrupção e abusos de
toda ordem), formação continuada de mão-de-obra, a
partir das respectivas escolas, especializações e
treinamentos, envolvendo policiais, técnicos e juízes no
debate e compreensão de temas ligados à Justiça Social
e à cidadania, sem os quais não se constrói uma nação
democrática.
De
fato, nos primórdios do terceiro milênio constitui quase
um anacronismo verificar, no Brasil, que ainda é preciso
que nos preocupemos com questões relativas ao direito à
vida, direito fundamental do cidadão, internacionalmente
consagrado há mais de duzentos anos, quando, ao longo do
século XX, a humanidade já evoluiu para o reconhecimento
de direitos humanos de Segunda, terceira e mesmo Quarta
geração, quais sejam, por exemplo, os direitos sociais,
os direitos ecológicos e a tutela da intimidade e do
prazer.
Segundo
Norberto Bobbio, os direitos humanos são históricos,
isto é, nascidos em certas circunstâncias e forjados nas
lutas sociais pelas seus conquistas e estão relacionados
à ação ou omissão do Estado.
Temos
que usar a força da proclamação dos direitos universais
do homem como resistência à opressão, combate à
concentração excessiva do poder político e econômico,
busca da democratização do Estado e conquista do efetivo
exercício de direitos por parte dos cidadãos despossuídos
deste país, que constituem a massa dos sem direitos.
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