SOBRE A
PENA DE MORTE
Hélio
Bicudo
(Do livro:
"Violência – o Brasil cruel e sem
maquiagem",
Hélio Bicudo, Ed. Moderna, São Paulo,
1994, pág. 84 a 96)
Crimes
violentos envolvendo celebridades - como o assassinato
da atriz Daniela Perez - ou caracterizados por extrema
crueldade por exemplo, o seqüestro seguido de morte da
menina Miriam Brandão, em Belo Horizonte - são
divulgados com grande sensacionalismo por toda a
imprensa. E nessas ocasiões sempre volta à tona a
questão da legalização da pena de morte no país.
Falamos
em legalização porque a pena de morte extralegal já
se encontra institucionalizada na sociedade brasileira há
muito tempo. Em São Paulo a Polícia mata e divulga o número
de assassinatos cometidos por seis integrantes: só em
1992 foram mais de 1.500 pessoas, entre crianças,
meninas, meninos, jovens, trabalhadores e, inclusive,
delinqüentes, além de mais de cem detentos massacrados
no Presídio do Carandiru. O exemplo de São Paulo pode
ser estendido ao resto do país, onde a Polícia e as
organizações parapoliciais - os esquadrões da morte e
os justiceiros matam impunemente nas cidades e nos
campos. Em Brasília, no dia 2 de fevereiro de 1993, um
antigo membro dos chamados "setores da inteligência
do Exército" - o major Sebastião Curió -
protagonizou uma operação em tudo semelhante à atuação
dos esquadrões da morte. Ele matou um adolescente e
feriu outro, ambos desarmados, sob a alegação de que
os rapazes, supostamente, furtavam mansões de militares
na periferia da cidade.
Ora, se a
pena de morte tivesse algum conteúdo intimidativo, ou
seja, funcionasse como elemento de prevenção geral, os
delitos violentos no Brasil apresentariam índices de
incidência cada vez menores. Mas as evidências negam
essa hipótese.
Na
verdade, grande parte da responsabilidade pelo aumento
dos índices de criminalidade pode ser creditada à
propaganda direta ou subliminar da violência, que, graças
ao poder da mídia eletrônica, empolga o conjunto da
população. O rádio e a televisão multiplicam os
fatos, e eles penetram em nossas casas como se
estivessem sendo praticados naquele momento, diante de
nossos olhos. Sempre existiu violência contra o povo.
Assassinatos, roubos e crimes sexuais são praticados há
tempos – quem se der ao trabalho de pesquisar o noticiário
dos jornais de décadas passadas, irá encontrar os
mesmos crimes, executados por tarados sexuais, homicidas
cruéis ou assaltantes audazes.
Entretanto,
esses delitos não recebiam uma divulgação maciça,
sensibilizando tão-somente as comunidades onde
ocorriam. Hoje, um crime cometido em qualquer lugar
repercute imediatamente em todo o país e até fora
dele. Afinal os meios de comunicação estão
incessantemente à cata do sensacionalismo, que aumenta
os índices de audiência, com reflexos evidentes no
faturamento das empresas de rádio e televisão.
Então, o
povo passa a acreditar em um nível de violência que,
apesar de elevado e de exigir medidas de contenção,
lhe é apresentado como de uma intensidade insuportável
e irremediável. E cujo único antídoto possível
encontra-se na violência maior - a pena de morte.
No artigo
"Democracia e pena de morte: as antinomias de um
debate", publicado na edição n.º 13 (maio/agosto
de 1992) de Travessia, revista do migrante, o professor
Sérgio Adorno adverte:
Pesquisa
conduzida pelo Datafolha, em setembro de 1991, revelou
que 48% dos 7.018 brasileiros entrevistados votariam a
favor da pena de morte. O perfil dos cidadãos favoráveis
à pena de morte é constituído por indivíduos
majoritariamente do sexo masculino, com idade entre 26 e
40 anos, com escolaridade até primeiro grau,
simpatizantes dos partidos políticos de direita,
habitantes das regiões Norte e Centro-Oeste e moradores
dos municípios de médio porte. Ao que tudo indica esse
perfil é semelhante ao perfil das forças sociais e políticas
conservadoras.
Curioso
é observar que, mesmo em um dos templos sagrados do
aprendizado do Direito - a Faculdade de Direito da USP
-, é possível encontrar esses defensores.
Levantamento
promovido pelo Cediso (Centro de Estudos Direito e
Sociedade), da Faculdade de Direito da USP, encontrou,
em uma amostra de quatrocentos futuros advogados, 22% de
estudantes favoráveis à aplicação da pena capital,
sobretudo para estupro (81%), seqüestro (75%) e roubo
(63%), seguidos de morte. Do mesmo modo, o perfil desses
futuros bacharéis associa-se ao conservadorismo. Entre
aqueles que opinaram favoravelmente, 50% votaria em
candidato do PDS (atual PPR), Paulo Maluf, à Presidência
da República. Aqui também parece haver coincidência
entre opções político-ideológicas e as atitudes
favoráveis à adoção de medidas extremas de contenção
da violência criminal. Essas coincidências parecem ser
tão sólidas e arraigadas a ponto de anular o próprio
Direito moderno, cujo principio fundamental é, como se
sabe, preservar o mais importante bem das coletividades
humanas - a vida - contra tudo o que o limite ou o
coloque em risco, parta de quem quer que seja, dos indivíduos
privados ao Estado. Mais curioso é notar que inclinações
favoráveis à pena de morte são igualmente percebidas
entre presos, justamente os candidatos a essa pena.
Enquete realizada na Casa de Detenção de São Paulo
verificou que 44% dos presos manifestaram opinião favorável.
Entre esses, encontram-se 50% dos que cometeram latrocínio
(roubo seguido de morte) e 45% daqueles que praticaram
homicídio, modalidades delituosas para as quais se
reivindica a legalização da pena capital. Em outra
pesquisa, realizada junto à mesma população, pôde-se
confirmar essas inclinações. De modo geral, em virtude
de suas experiências de vida e do contato, quase sempre
violento, com as agencias de contenção à
criminalidade, mais particularmente com a Polícia, os
delinqüentes aca bam internalizando o autoritarismo dos
agentes e das instituições de controle da ordem pública.
Acreditam que para diminuir os crime, notadamente os
mais violentos, é necessário empregar uma mão forte,
capaz de intimidar os delinqüentes.
Contra a
força da violência, apenas uma força superior e temível
pode contê-la. Nesse particular, a despeito das
diferentes posições sociais que diversos cidadãos
podem ocupar na sociedade, em algo alguns deles estão
de acordo: tanto cidadãos "de bem",
respeitadores da lei e da ordem, conservadores em suas
convicções político-ideológicas, quanto aqueles que
afrontaram essa mesma ordem social, rompendo com o
"pacto de bem-viver", aceitam a pena de morte
como solução para a criminalidade urbana violenta.
Mas não
é só. Temos uma Polícia despreparada, dividida em
dois segmentos que disputam espaço para mostrar
"eficiência" no desempenho de suas atividades
e, assim , impor, acima do bem comum, o seu
corporativismo. Temos uma magistratura e um Ministério
Público muitas vezes inoperantes, preocupados com as
exterioridades do poder representado por seus juízes e
promotores públicos, julgando apenas fatos e não
pessoas. E temos um sistema penitenciário falido,
incapaz de encontrar suas verdadeiras finalidades
centradas no ideal de recuperação dos criminosos.
Diante desse quadro, o Povo, sentindo-se inteiramente
desprotegido, busca a solução para o problema da violência
na pena de morte. E, evidentemente, essa não é a solução.
Em 1985,
uma onda de delitos graves abateu-se sobre a comunidade
de São Mateus, na Zona Leste da cidade de São Paulo,
uma das áreas mais carentes da periferia paulistana.
Abalados, os habitantes da região perguntaram-se se a
pena de morte não coibiria a violência que os apanhava
tão desprevenidos. As mulheres de São Mateus
resolveram promover um debate sobre a questão. Ouviram
pessoas, chamaram especialistas e, por fim, concluíram
que a pena de morte iria alcançar principalmente os
mais pobres, aqueles que são os clientes preferenciais
de nossas prisões. Portanto, a pena de morte
consistiria em mais um instrumento do Estado para
reprimir e, em conseqüência, oprimir o povo.
A pena de
morte não solucionou o problema da criminalidade
violenta sequer nos países que a adotaram ou ainda a
adotam.
Nações
civilizadas, como a Inglaterra, a França, a Alemanha e
a Itália, já aboliram a pena de morte. Em outras, como
nos Estados Unidos 39 estados norte-americanos aplicam a
pena capital - não se pode dizer que a criminalidade
tenha arrefecido, embora o número de execuções
aumente a cada ano. Ali, segundo a reportagem An eye for
an eye, publicada em 24 de janeiro de 1983 na revista
Time, usam-se a cadeira elétrica, a câmara de gás, o
fuzilamento, o enforcamento e até overdose de tóxicos.
Naquele ano, registraram-se 9,7 homicídios por 100 mil
habitantes. No entanto, em 1960 ocorreram 4,7 homicídios
por 100 mil habitantes, cifra que pulou para 9,4 em 1973
e 9,8 em 1993. Enquanto isso, no Canadá a taxa caiu de
3,09 em 1975 - quando se aboliu a pena de morte - para
2,74 em 1983. E no Irã, em 198 I, no auge da campanha
contra o uso de drogas, 459 pessoas foram executadas em
17 meses, o que não amenizou o problema do narcotráfico,
já que continuam ocorrendo numerosas execuções pelos
mesmos motivos.
Como se vê,
a pena morte nada resolveu nos Estados Unidos, onde a
criminalidade cresce de maneira espantosa, ou no resto
do mundo. Mas também é certo que o povo em geral,
tanto nos Estados Unidos como no Brasil, diante do
aumento da criminalidade violenta, tende a aprovar a
pena de morte (revista Veja, de 12 de agosto de 1984).
Mas isso se deve, de um modo geral, à falta de maiores
esclarecimentos e, em particular, a motivações
emocionais, estimuladas por uma propaganda sistemática
da violência. No Brasil, frente à inoperância de uma
Polícia desfalcada em seus quadros e muitas vezes até
corrupta e tendo em vista um poder Judiciário elitista,
cada vez mais afastado dos problemas que afligem a
população, clama-se por uma solução. E a pena de
morte pode parecer que é a solução. Mas não o é,
nem aqui nem em qualquer outro lugar, como demonstram as
estatísticas.
O MITO DA
INTIMIDAÇÃO
Na
Inglaterra, de 250 criminosos enforcados no início do século
XX, 170 confessaram ter assistido a uma ou duas execuções
capitais. E também nos Estados Unidos a pena de morte -
seja executada em público, como no passado, ou
restrita, presenciada por um número limitado de
testemunhas - nunca produziu efeitos intimidativos. (De
outro modo, cidades como Nova Iguaçu ou mesmo São
Paulo, palcos de assassínios de delinqüentes e de
marginais pela Polícia e pelos esquadrões da morte,
seriam o paraíso da Terra.) Em 1983, o então
governador de Nova Iorque, Mario M. Cuomo, afirmou não
existirem evidências de que a pena de morte fosse
intimidativa. Aliás, em 1978, a Academia Nacional de Ciências
dos Estados Unidos já havia chegado à mesma conclusão.
Ora, a
intimidação, o grande argumento para a inclusão e
morte na legislação, requer, antes de tudo, que o
delinqüente possa avaliar os prováveis custos de mo se
enquadrariam os homicídios cometidos por indivíduos
sob o efeito de drogas ou não-lúcidos no momento do
delito? O professor de Direito Anthony Amsterdam, da
Universidade de Nova Iorque, questiona se alguém faz a
si mesmo perguntas como: "eu tenho medo da pena de
morte, eu não estaria intimidado?" Ele concluiu
que as pessoas não cometem homicídios por inúmeras
razões, entre as quais não se inclui a existência ou
não da pena de morte.
CRUEL E
IRREPARÁVEL
Há
outros aspectos relevantes. A pena de morte é cruel.
Nos Estados Unidos, em 1983, I.137 i condenados, entre
eles uma dúzia de menores de 20 anos, aguardavam o
momento da execução nos chamados "corredores da
morte". O sofrimento de esperar a "sua vez de
morrer", assistindo à passagem dos demais
condenados à cadeira elétrica, constitui uma
brutalidade inominável.
E, para
aumentar o peso dramático da situação, existem as
falhas mecânicas: se o primeiro choque não for
suficiente, repete-se a operação uma ou duas vezes ...
e o condenado é literalmente fritado em vida.
Mas o
questionamento da pena de morte não termina aí. Como
entender que exista uma morte ilegal e outra legal?. O
que transforma a morte aplicada pelo Estado em morte
legal? Se eu rapto alguém e confino essa pessoa em um
quarto contra a sua vontade, isso é um seqüestro. E se
eu a mato, cometi um assassinato. Mas, se eu sou um
agente do Estado e visto um uniforme, o primeiro fato
passa a chamar-se prisão e o segundo, execução de
pena de morte.
E há
mais: o que dizer da possibilidade, sempre presente, de
se executar inocentes? Nos Estados Unidos, ficaram célebres
os casos Sacco-Vanzetti, Hauptmann e casal Rosenberg.
Somem-se,
ainda, as deficiências na defesa dos réus pobres.
Delinqüentes ricos dispõem de facilidades para
contratar advogados hábeis, que intervêm já na fase
do inquérito policial - por exemplo, recorrendo ao tráfico
de influências, ou mesmo ao pagamento de propinas, para
manipular as provas que depois serão levadas à apreciação
do juiz. Enquanto isso, os réus pobres têm contra si o
peso das provas colhidas unilateralmente pela Polícia,
de modo que, em juízo, a sua condenação é uma decorrência
obrigatória. Condenado e executado, o mesmo que
posteriormente se verifique a sua inocência, a reparação
se reduziria a uma indenização a seus possíveis
herdeiros. Como se vê, a pena de morte traz uma enorme
carga de autoritarismo, tanto que constitui um
instrumento bastante apreciado, e até usado em larga
escala, no grupo das nações totalitárias. E não é
por outro motivo que no VI Congresso das Nações Unidas
sobre prevenção do delito e tratamento do delinqüente
os representantes do então bloco comunista e dos países
árabes colocaram-se francamente favoráveis à pena de
morte.
A FALÁCIA
DOS CUSTOS MENORES
Um
argumento que vez por outra aparece no debate sobre a
pena de morte refere-se ao alto custo, para a sociedade,
da manutenção de um réu condenado no sistema
penitenciário. Sugere-se que nos casos de períodos
longos, determinados pela imposição de penas nos
delitos mais graves, seria mais econômico sentenciá-lo
à morte e executá-lo.
Trata-se de um argumento
que não resiste a uma análise ética, pois não se
pode avaliar a vida apor padrões econômicos, para então
recomendar a morte. Além disso, a proposta não se
fundamenta em quaisquer dados objetivos. Calcula-se que,
nos Estados Unidos, o custo de uma prisão perpétua
seja de 500 mil dólares, contra uma despesa média de l
milhão de dólares de um processo de condenação à
morte, montante que pode superar a casa dos 5 milhões
de dólares.
Essas
cifras elevadas decorrem da irreversibilidade da pena de
morte. Um processo que visa eliminar a vida de uma
pessoa deve, obrigatoriamente, estar cercado de
garantias, para reduzir as possibilidades de erro;
pressupõe alto grau de especialização dos
profissionais envolvidos nas investigações que apontam
a autoria do crime; exige uma decisão preliminar
fundamentada na perfeição técnica; e requer a
multiplicação de instâncias julgadoras, aumentando
assim a margem de segurança das conclusões judiciais.
Segundo a
Anistia Internacional, em 1990, os processos de
indiciados executados nos Estados Unidos duraram em média
7 anos e 11 meses. O custo de um processo desse tipo,
transcorrido num período entre 8 e 15 anos, é
invariavelmente superior aos gastos com um preso, por
mais longo que seja o período de reclusão.
A questão
da violência jamais encontrará solução na violência,
venha ela de onde vier, do próprio povo ou dos poderes
constituídos. Nas nações Européias chamadas
"abolicionistas", a incidência de crimes
violentos diminuiu a partir da abolição da pena de
morte. Mesmo assim, diz-se que os índices de violência
crescem vertiginosamente nesses países. Na França, por
exemplo, setores da direita mais radical clamam pelo
restabelecimento da pena de morte.
Alegam
que o aumento da violência deve-se, sobretudo, ao fluxo
de migrantes do Terceiro Mundo (cuja adaptação a uma
nova vida, cheia de tensões, diga-se, não é cuidada
pelos organismos do Estado). Essas pessoas seriam, então,
alvo das grandes pressões nos sofisticados centros
urbanos onde passaram a viver, e daí explode, muitas
vezes, a violência.
No
entanto, documentos publicados pelos ministérios
franceses do Interior e da Segurança Pública e da
Defesa, com dados estatísticos relativos a 1991,
desmentem que tal aumento irrefreável da violência
origine-se da abolição da pena de morte. Segundo o
relatório, no início da década de 60, os crimes
contra as pessoas representavam 10% do total da
criminalidade. Nos anos 90, esse índice estabilizou-se
em menos de 4%, permanecendo também estável o número
de homicídios (1.355 em 1991, o mesmo de 1990).
Já a Polícia
nacional francesa registrou os seguintes dados em 1991:
77% de roubos (o mesmo percentual de 1990); 74% de infrações
à legislação sobre tóxicos, à paz pública e aos
regulamentos (idem em 1990); 60% dos crimes contra as
pessoas (idem em 1990); 35% de processos por infrações
econômicas e financeiras (36% em 1990). No mesmo ano, a
Polícia provincial francesa apresentou os seguintes
fatos: 23% de roubos (o mesmo percentual de 1990); 26%
de infrações à legislação sobre tóxicos, à paz pública
e aos regulamentos (idem em 1990); 40% dos crimes contra
as pessoas (idem em 1990); 65% de processos por infrações
econômicas e financeiras (64% em 1990).
E o fenômeno
não privilegia apenas as grandes cidades dos países
ricos do hemisfério norte. Ele ocorre também nos países
pobres. No Brasil, diante das condições de vida no
campo, levas de trabalhadores rurais acorrem às cidades
à procura de emprego, de educação, de saúde, enfim,
do mínimo
exigível para uma existência digna. Como já se
ressaltou, na cidade grande, sem infra-estrutura, a família
se desintegra e seus membros podem ceder aos apelos da
delinqüência........
Convém
ainda lembrar a tradicional questão: "devem-se
extirpar os ramos podres de uma árvore para que ela
possa sobreviver".
Isso tem
ensejado grandes massacres, porque a determinação dos
galhos a serem cortados parte sempre daqueles que
dominam a sociedade num dado instante. Foi, sem dúvida,
a partir da dicotomia "fins e meios" que o
nazismo sacrificou milhões de vidas humanas.
No
Brasil, país habitado por milhões de pessoas
marginalizadas por uma ordem social reconhecidamente
injusta, a legalização da pena de morte apenas
delegaria ao Estado mais poder para a opressão do povo,
como já concluíram as mulheres de São Mateus. No caso
brasileiro, a pena de morte irá agravar a problemática
da morte em vez de, como se pretende, defender a vida.
E
finalmente, na ordem constitucional estabelecida, a pena
de morte é indefensável, conforme estabelece o Artigo
5º, da Lei Maior, ao assegurar, com absoluta prevalência,
o direito à vida. Nesse particular, convém ressaltar a
absoluta inconstitucionalidade da emenda apresentada a
exame pelo Congresso Nacional, que pretende instituir um
plebiscito para que o povo opte pela manutenção do
sistema vigente ou pela inclusão da pena de morte.
Vejamos
os principais problemas dessa proposta. Em primeiro
lugar, o plebiscito nem sempre representa a melhor forma
de expressão da soberania popular. As massas
desinformadas, manipuladas e levadas ao paroxismo da emoção
- como ocorre no Brasil - não têm condições para
opinar serenamente. A esse propósito, podemos lembrar
um episódio acontecido há 2.000 anos: quando Pôncio
Pilatos, entre o dever e o medo, renunciou às suas
atribuições específicas e entregou a decisão ao
povo, a turba preferiu Barrabás a Cristo. Talvez
assistamos a um espetáculo semelhante, caso o Congresso
abdique de sua representatividade e de suas
responsabilidades e coloque a decisão que lhe compete
nas mãos do POVO. Isso não é democracia, mas
democratismo, populismo ou o que mais seja, aconselhado
Pelo mais nefasto comodismo na adoção de posições
políticas, éticas e morais. Não vamos, mais uma vez,
lavar as mãos.
Acrescente-se,
por último, que a proposta e respectiva emenda em
debate contrariam o Pacto Internacional de Derechos
Civiles y Políticos, aprovado pela Assembléia Geral
das Nações Unidas a 16 de dezembro de 1966 (Resolução
2.200, A, XXI) e ratificado pelo governo brasileiro.
Nesse acordo, os países subscritores adotam o princípio
da progressividade. Isso significa que eles não podem,
sob qualquer pretexto, admitir restrições ou
menosprezo a nenhum dos direitos humanos fundamentais já
reconhecidos ou vigentes em um dos Estados signatários,
em virtude de leis, convenções, regulamentos ou
costumes.
Pode-se
mencionar, ainda, o Pacto de São José - celebrado
na Convenção Americana sobre Direitos Humanos, em São
José da Costa Rica, a 22 de novembro de 1969 -, que
contém o mesmo teor e também foi subscrito pelo Brasil
e ratificado pelo Congresso Nacional.
Em
resumo: o projeto de emenda constitucional é
inconstitucional e, além disso, ofende a letra e o espírito
de tratados já subscritos pelo Brasil. E, se não
compartilharmos da idéia de que acordos assinados
resumem-se a meros farrapos de papel, temos a obrigação
ética e moral de nortear a legislação ordinária no
sentido por eles apontados. O primeiro, aprovado na Câmara
Federal com parecer favorável de autoria do deputado
Nilson Gibson e unanimemente aceito, foi encaminhado ao
Senado em 1996, onde, infelizmente, ainda permanece. O
segundo já passou pela aprovação da Câmara e do
Senado, e encontra-se ratificado.
Em artigo
publicado na Folha de S. Paulo, em 15 de março de 1993,
o jurista Antonio Augusto Cançado Trindade dá uma lúcida
contribuição à polêmica:
A
reabertura do debate sobre a pena de morte no Brasil
pareceria prima facie sugerir que se contempla a
possibilidade, como chegou a veicular um órgão de
nossa imprensa, de "revisão" de nossa posição
quanto à Convenção Americana sobre Direitos Humanos.
Muito ao contrário, ao aderir à convenção, o propósito
do Brasil não pode er sido outro que o de cumprir
devidamente a clara obrigação que contraiu do não-estabelecimento
da pena de morte no país. Se violada essa obrigação
convencional, estaria configurada a responsabilidade
internacional do Brasil. Uma denúncia bizarra da convenção
seria uma vergonha nacional, que nos lançaria de volta
à idade das trevas em matéria de direitos humanos, e
exporia o país ao opróbrio da comunidade
internacional. Os direitos e garantias consagrados na
convenção Americana constituem uma conquista
definitiva da civilização, e qualquer sugestão de sua
denúncia haveria assim de deparar-se com o pronto repúdio
de nossos dirigentes mais esclarecidos, da vasta maioria
de nossos círculos jurídicos e acadêmicos e das
entidades de direitos humanos como porta-vozes da
sociedade civil. A este repúdio somar-se-ia uma pronta
mobilizarão de influentes setores da comunidade
internacional dos direitos humanos, para a qual não
hesitaríamos em contribuir decididamente.
Precisamos,
a todo custo, ter em nossas mentes que a Constituição
é a nossa Lei Maior. Tudo que possa, de qualquer
maneira, solapar seus mandamentos deve ser recusado,
submetendo-se todos ao seu império. Não mais nos
encontramos - ou pretendemos não nos encontrar - num
regime de arbítrio, em que leis ordinárias,
regimentos, circulares ou avisos têm maior força que a
Constituição. Vamos defendê-la com todo o nosso
empenho, pois só assim estaremos abrindo os caminhos
para o restabelecimento da democracia no Brasil. E,
assim, faremos coro com Bernard Shaw, que disse:
"até o fim dos tempos, homicídio vai gerar homicídio,
sempre em nome do direito, da honra e da paz, até que
os deuses se cansem de sangue e criem uma raça que
possa compreender".
Concluindo,
poderíamos reafirmar a convicção de que, sob
quaisquer ângulos que se encare a questão, não tem
sentido a legalização da pena de morte. Tal projeto
esbarra em obstáculos constitucionais incontornáveis e
não serve como prevenção da criminalidade. E, sob o
aspecto teológico, são inaceitáveis os argumentos que
apontam a violência como atitude compatível com as
mensagens de amor e de compreensão contidas no Velho e
no Novo Testamento, ambos indicando os rumos para uma
sociedade nova, solidária, fraterna, justa e com paz.
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