ABC
dos Novos Direitos e Deveres
Dilemas para o Século XXI
Direitos Globais no Universo em Mutação
Fábrica
de homens-bomba
Shawqi Nasser
Ver
a crise em curso no Oriente Médio
apenas pelo prisma das dicotomias religiosas
encobre as realidades que enchem os olhos
do mais desatento turista que visite Israel
e a Palestina nos dias de hoje, onde pululam
a pobreza, a miséria e a injustiça,
verdadeiras usinas do terror.
Em
recente visita a Jerusalém, pude
constatar que 40% do comércio da
cidade velha cerrou suas portas por falta
de clientes, expulsos pela ausência
de segurança, que impede a prosperidade
de qualquer tipo de atividade econômica.
Lembrei-me, então, de outra viagem
que fizera dois anos atrás, quando
uma estabilidade política mínima
levava milhares de pessoas das mais variadas
partes do mundo aos mercados, às
mesquitas, às igrejas, ao muro de
lamentações, aos lugares sagrados
da chamada Terra Santa.
Na
nova e lamentável realidade pude
constatar que os israelenses vivem agora
sobressaltados com aqueles que oprimem,
e os oprimidos palestinos, tratados como
sub-raça, como dejetos da humanidade,
a quem não resta ao menos a esperança
de uma vida digna, reagindo como animais
à fome, à pobreza, à
miséria e a todo tipo de humilhação,
movidos por instintos puramente animais.
A
política opressora imposta ao povo
palestino (se é isso que podemos
chamar de política), está
aquém da política ambiental,
pois transforma seres humanos em dejetos.
Jovens e adultos, mulheres e crianças
palestinos são submetidos às
mais terríveis humilhações,
como serem obrigados a tirar as roupas nas
barreiras militares, passarem todo o dia
sob frio inclemente para somente à
noite serem liberados. Liberados para a
angústia, para o sofrimento, para
o desatino de se tornarem ‘‘homens-bomba’’
ou qualquer serventia que possam dar a seus
corpos e às suas mentes mutilados.
Foi
justamente essa política que deu
origem à explosão de suas
intifadas, ameaçando e destruindo
mesmo a autoridade e a liderança
da Autoridade Palestina e de seu líder
máximo, Yasser Arafat, que, negando-se
a adotar a política de Israel contra
os próprios irmãos, é
acusado de não ter pulso para controlar
sua gente. Ele, que não é
responsável pela desgraça
a que a política de Sharon submeteu
seu povo, teria que contê-lo na hora
do desespero. Missão impossível.
Pois, desesperados e desesperançados,
jovens ou velhos, relegados à condição
de subgente, tornam-se alvos fáceis
de transmutarem-se em homens-bomba, na descrença
de uma vida digna que as leis internacionais
asseguram a todos os seres humanos.
Assim,
Sharon encontra justificativa para continuar
o massacre contra o povo palestino, com
apoio dos Estados Unidos, e Israel segue
a sua política de matar, como na
recente chacina da aldeia de Betrima, que
teve 26 mortos e centenas de feridos, onde
estive e pude ver a repetição
do massacre de Sabra & Shabila. O revide
pelos homens-bomba era inevitável
e incontrolável, pois são
homens que vivem em campos de refugiados
sem esperança de serventia senão
a de usar o próprio corpo, com sacrifício
da vida, chamando a atenção
do mundo para a desgraça de seus
irmãos e das futuras gerações.
Clamam assim pelo respeito às resoluções
242, 338 e 194 da ONU, que estipulam o fim
da ocupação israelense aos
territórios palestinos, inclusive
Jerusalém Oriental, e a volta dos
refugiados, a suspensão dos bloqueios
militares e econômicos e a abertura
de postos de trabalho que proporcionem condições
dignas de vida aos seus cidadãos.
Fica
claro que o combate a essa política
de autodestruição para ambos
os lados contendores — Israel e Palestina
— não se dará pelo uso
da força, que até hoje tem
se mostrado inócua e alimentadora
de novas ondas de violência, mas pela
suspensão das agressões de
toda ordem — militar, econômica
e psicológica. As raízes das
lutas contra a ocupação israelense
não serão arrancadas com mera
conquista de uma das regiões mais
destroçadas e esgotadas do mundo.
É preciso que se desenvolva uma guerra
contra a pobreza, a miséria e a injustiça,
para que os erros do passado não
se repitam. Só então poderão
brotar as sementes da esperança que
ocuparão o lugar do terror.
Shawqi Nasser é presidente
da Associação Árabe
Palestina Brasileira
Correio Brasiliense, quinta-feira, 24 de
janeiro de 2002
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