ABC
dos Novos Direitos e Deveres
Dilemas para o Século XXI
Direitos Globais no Universo em Mutação
Muito
além do "homem-bomba"
Karla Hansen
Uma
mulher jovem e bonita chega a um lugar miserável
e se dirige a uma barreira militar. Um soldado,
mais jovem que ela, abre sua bolsa, revira
suas roupas como à procura de uma
arma. Ele tem uma expressão fria
e hostil, os dois não trocam uma
palavra sequer, apenas olhares. O outro
não é só um estranho,
mas uma ameaça.
Desde
essa primeira cena até os créditos
finais do filme Paradise Now meu coração
adquiriu um novo ritmo e custou a voltar
ao normal. A trama criada por Hany Abu-Assad,
diretor e um dos roteiristas, sobre dois
amigos palestinos recrutados para atuarem
como "homens-bomba" num atentado
em Tel-Aviv - ao mesmo tempo, indicado e
boicotado ao Oscar de melhor filme estrangeiro
- estabelece com o público uma relação
de tensão permanente, nos fazendo
sentir como seus personagens, com o corpo
atado a uma bomba que está a ponto
de explodir. Desse modo, o autor nos coloca
no meio do conflito - este sim, explosivo
- entre israelenses e palestinos e nos tira
do lugar confortável de meros espectadores
passivos, indiferentes, às vezes,
da história.
Khaled
e Said são dois jovens, amigos de
infância, que nasceram, cresceram
e vivem num campo de refugiados palestinos.
Pobres, sem perspectivas de vida, têm
um subemprego numa oficina mecânica
de carros e passam o tempo livre ocioso.
São apresentados como dois jovens
comuns que poderiam viver em qualquer periferia
do mundo, até o momento em que são
chamados pelo professor da comunidade local,
representante de um grupo extremista, para
fazerem parte de um atentado suicida em
Tel Aviv.
Paradoxalmente,
esse professor dá aulas para crianças
e é também o intelectual da
operação, quem oferece instruções
e dá um suporte moral, religioso
e filosófico aos jovens, que dali
a poucos dias deverão explodir pelos
ares e levar com eles outras tantas vidas.
Vemos, então, que não se trata
de uma escolha. Há uma forte base
religiosa conduzindo seus pensamentos e
seus atos e um contexto que empurra, desde
pequenos - em particular os meninos -, para
esse destino. Eles realmente acreditam que
essa é uma oportunidade de se tornarem
heróis, de dar um sentido grandioso
à suas vidas, de alcançarem
o paraíso já, now.
Mas,
ainda que aceitem a missão sem hesitar
e com certo orgulho, não estão
livres de conflitos, pelo menos, não
Said. Afinal, por pior que sejam suas condições
de vida, por mais vazia que ela seja, ele
deverá deixar a família sem
que, nem mesmo sua mãe saiba qual
será o seu destino. Angustiado na
noite que antecede a operação,
ele procura Suha - a recém-chegada,
da primeira cena do filme - com o pretexto
de lhe entregar as chaves do carro que ela
havia deixado na oficina para consertar.
Said é bem recebido por Suha, que
já havia demonstrado interesse pelo
jovem e introspectivo mecânico.
O
encontro traz ainda mais conflitos à
trama. Ela é filha de um importante
e respeitado líder político
palestino já morto. Bem nascida,
criou-se na França e no Marrocos,
e representa uma organização
de defesa de direitos humanos. Ela é
o contra-ponto à irracionalidade
dos atos extremistas, do terrorismo, que
classifica como "pura vingança".
Sua tese se baseia na "guerra moral",
tal como a desobediência civil ou
o uso da inteligência contra a força
bruta da supremacia militar e econômica
de Israel. A cena traz à tona as
diferenças de pontos de vistas que
existem hoje entre os palestinos, algo que
passa despercebido pela mídia ocidental.
Ao contrário, somos levados a crer
que a situação é homogênea,
monocromática, onde há um
quadro complexo, com diversos matizes.
Penetrando,
assim, na intimidade dos personagens, o
filme quase nos faz ver seus pensamentos,
sentir seus medos, suas dúvidas,
viver suas angústias. E, sobretudo,
desmistifica o "homem-bomba".
Ele não é um monstro, ainda
que sua ação seja abominável.
Na verdade, ele é bem menos autodeterminado
do que possa parecer. Além disso,
há um contexto mais rico e menos
homogêneo, no qual os "homens-bomba"
representam apenas uma face, mais radical,
da sociedade palestina.
Inevitável
perceber que esse contexto social, econômico
e político forjador dos "homens-bomba"
é bem semelhante ao de nossos jovens
"soldados" nos "exércitos"
formados pelo tráfico de drogas.
A maior diferença é que os
palestinos se apóiam e são
imantados pela crença religiosa para
se lançarem a uma guerra insana e
os nossos não. Mas tanto para os
de lá, quanto para os daqui, a crença
é a mesma. Ambos vivem num mundo
de enormes desigualdades e, em particular,
para os jovens, a vida tem pouco ou nenhum
valor, logo, é preciso viver o "paraíso"
agora. Essa semelhança fica ainda
mais forte quando os jovens Khaled e Said
saem da Palestina e vão para Tel-Aviv,
evidenciando os mesmos contrastes que vemos
entre a Rocinha e a Barra da Tijuca, por
exemplo.
Essa
é na visão do professor de
história Wanderley Quêdo, convidado
da sessão promovida pelo programa
"Professor vai de graça ao cinema",
do projeto Cine-Escola, a questão
central apresentada pelo filme e não
o "choque de civilizações",
como tem sido divulgado à exaustão
pelos meios de comunicação.
O que alimenta o conflito entre palestinos
e israelenses, segundo ele, é uma
questão de fundo político
e econômico, cuja origem está
na criação do Estado de Israel,
no pós-guerra, e no conseqüente
êxodo de palestinos para os campos
de refugiados.
Também
não é um "choque de civilizações"
porque os muçulmanos têm o
mesmo patriarca - Abraão - dos cristãos
e dos judeus, sendo que "o islamismo
é uma das três grandes religiões
monoteístas do mundo", explica
Quêdo. Logo, a questão central,
hoje, no Oriente Médio, diz respeito
mais ao domínio econômico -
das reservas de água e de petróleo
da região - o que gera uma brutal
desigualdade entre os povos vizinhos, do
que a diferenças religiosas e, muito
menos, étnicas, já que "não
existe uma etnia israelense", conclui
o professor.
Admitindo
que o filme é pesado e, às
vezes, maniqueísta ou panfletário,
Wanderley Quêdo explica a importância
de se tentar entender o terrorismo, para
além de preconceitos e visões
estereotipadas e resume: "Como cristão,
acho o ato terrorista abominável;
como humanista, o terrorismo é inaceitável
e, como socialista, ele é dialético,
no sentido de que é preciso fazer
um exercício da razão para
entender o outro, o diferente, aquele que
diz não, quando eu digo sim".
Paradise
Now" é, assim, essencial para
quem deseja entender um conflito que chega
a nós de forma superficial, tendenciosa
e massificada. Não se trata, no entanto,
de um elogio ao "homem-bomba"
- e essa foi uma das razões para
que o filme fosse boicotado em Hollywood
- mas de um filme que expõe a complexidade
da situação na qual hoje vivem
3,5 milhões de palestinos, na Cisjordânia.
Ficha
Técnica do filme:
Título: Paradise Now
Autor: Hany Abu-Assad
Gênero: Ficção
Produção: Augustus Film /
Razor Film Produktion GmbH / Lumen
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