A
Síndrome de Estocolmo
Guy Fawkes - Brasília/DF
Aquilo
foi realmente surpreendente.
Estocolmo, capital da Suécia. São
dez e quinze da manhã de uma quinta-feira,
23 de agosto de 1973. Dois fugitivos da prisão
entram em um banco, o Banco da Suécia,
com o intuito de assaltá-lo. Portanto
sub-metralhadoras, rendem os guardas, e em pouco
tempo colocam todos à mercê de
sua truculência.
Após
aproximadamente cinco dias de tensão,
os assaltantes são rendidos e os reféns,
libertados. Mas, certamente, ninguém
poderia prever o que aconteceria depois: os
reféns manifestaram grande hostilidade
contra os policiais e defenderam ardorosamente
os assaltantes que os agrediram e humilharam.
Os reféns passaram a se identificar com
os assaltantes. O que teria acontecido?
Fazendo alusão ao lugar em que ocorreu
o assalto, os reféns passaram a manifestar
um conjunto de sintomas que ficou conhecido
entre os psicólogos como Síndrome
de Estocolmo. Caracterizam-se por sentimentos
positivos que a vítima desenvolve pelo
seu agressor ou captor, e sentimentos negativos
para com todos aqueles que tentam, de alguma
forma, interferir nessa relação
de dependência. A síndrome de Estocolmo,
por vezes conhecida como síndrome de
Helsinki, costuma ocorrer após um tempo
suficientemente prolongado de intimidação
psicológica.
Um
exemplo clássico de síndrome de
Estocolmo foi o aconteceu a Patricia "Patty"
Hearst, filha do magnata norte-americano William
Randolph Hearst, seqüestrada pelo Exército
Simbionês de Libertação,
em fevereiro de 1974. Colocada em isolamento
e submetida a agressões sexuais, Patty
Hearst foi aos poucos absorvendo o sistema de
crenças da organização
paramilitar, tornando-se a guerrilheira Tanya.
A síndrome de Estocolmo é conseqüência
direta de uma lavagem cerebral.
Muitos
de nós apresentamos os sintomas desta
estranha síndrome. Como assim?
Estamos sendo, dia após dia, enganados
e explorados por um sistema econômico
opressor. Somos reféns cativos desse
sistema e de seus representantes, os políticos,
banqueiros, empresários e militares.
Mas nutrimos uma mal-disfarçada admiração
por eles, devido, em parte, ao longo e maciço
bombardeio de propaganda político-ideológica,
a que estamos submetidos - uma autêntica
lavagem cerebral. E assim, passamos a desejar
ser como eles.
Costumamos
dizer que nossos captores são parasitas,
que roubam às nossas custas, que exploram
o trabalhador, etc., etc., etc.. Sem sombra
de dúvida essas afirmações
têm fundamento, mas geralmente são
ditas da boca para fora: à primeira oportunidade
que temos de assumir postos de comando na escala
social que nos possibilitam atingir um maior
status econômico e social, repentinamente
esquecemos delas e mudamos o discurso. Não,
não é que mudamos de ideologia
e passamos "para o outro lado". Na
verdade, já estávamos identificados
com "o outro lado" antes mesmo de
chegar ao poder. Estamos acometidos pela síndrome
de Estocolmo.
Somos
como o escravo que, após anos de submissão
ao seu amo, consegue a oportunidade de se apropriar
do látego e passa a submeter seus semelhantes,
perpetuando um ciclo aparentemente sem fim.
Por isso, muitas vezes nos indignamos com os
poderosos, mas assinamos a Caras e compramos
Citröens e Nokias, para nos parecermos
cada vez mais com os ricos e poderosos - ou,
pelo menos para nos sentirmos como eles, mesmo
que a aquisição de tais bens de
consumo possam a vir nos "quebrar"
financeiramente. É a ilusão zombando
da realidade, é o fascínio pelo
poder desdenhando do bolso.
Vendo
as coisas sob toda essa ótica, dá
para entender perfeitamente porque a maior parte
da classe média brasileira, quando não
fazia oposição "moderada",
apoiava a regime militar nos anos 60 e 70 e
desprezava a importância de movimentos
"radicais" de oposição
- como a guerrilha urbana. Afinal, não
queríamos mudar de fato a situação.
Ou queríamos reformas políticas
(de preferência as que beneficiassem as
nossas ilusões de consumo) ou não
queríamos reformar nada e apenas fazer
coro à propaganda governamental autoritária
e retrógrada.
Também
dá para entender porque às vezes
nos deparamos com o vira-casaca, um espécime
cada vez mais numeroso da fauna política.
Um desses espécimes, conhecido sociólogo
que já foi simpatizante "moderado"
da esquerda, tornou-se o neo-entreguista de
hoje. No fundo é um portador da síndrome
de Estocolmo: criticava o poder, sem dúvida,
mas gostava de flertar com ele. O exílio
(ô, força de expressão!)
no Chile, regado a caviar, fez-lhe muito bem…
Obviamente
estou me referindo ao atual presidente da República,
Fernando Henrique Cardoso. Mas alguns outros
exemplos de representantes da "esquerda
light" (segundo expressão publicada
na reacionária revista Veja) acometidos
por essa patologia social podem ser citados:
José Serra, ministro da Saúde
(militava no movimento estudantil em sua juventude),
Raul Jungmann, ministro da Reforma Agrária,
(antigo militante do PCB, hoje critica a ação
cada vez maior do MST em todo o Brasil), Francisco
Weffort, ministro da Cultura (ex-militante do
PT, que recentemente se mostrou contrário
às manifestações contra
os 500 anos de dominação estrangeira
em Porto Seguro, na Bahia).
De
todos esses "comunistas arrependidos"
não se pode deixar de acrescentar Fernando
Gabeira, deputado, atualmente filiado ao PT.
Gabeira hoje pensa que a militância política
dos anos 60 e 70 objetivava a uma espécie
de utopia romântica irrealizável.
Logo ele, que já chegou até mesmo
a participar do seqüestro de um embaixador
americano… e é claro, tem o Luís
Inácio, ex-metalúrgico, líder
de um dos maiores partidos políticos
do país, hoje cada vez mais identificado
com certos setores empresariais (principalmente
os "pequenos" e os "médios").
É o "Lula Light", para citar
outra expressão da Veja. Já foi
dito acima que os infectados pela síndrome
de Estocolmo expressam sentimentos negativos
contra quem tenta quebrar essa relação
patológica. Basta lembrar as recentes
críticas de "Lula Light made in
Duda Mendonça" contra o MST, essa
organização socialista que tem
objetivos bem mais radicais com relação
à distribuição de terra
no Brasil do que muita gente das classes média
e alta gostariam que fosse, e que não
tem tantas ligações com o PT quanto
certos jornalistas e intelectuais de direita
querem fazer crer.
O
fato é que parece haver uma curiosa relação
entre a síndrome de Estocolmo e o esquerdismo
político "moderado"…
muitos que se apresentam como rebeldes oposicionistas
hoje acabam se tornando os opressores sociais
de amanhã. Antes que esquerdistas queiram
me apedrejar, esperem um pouco: de nada adianta
nos opormos a essa nojeira político-social
em que se transformou o país se temos,
encravado nas profundezas do nosso inconsciente,
a herança milenar da luta pelo poder.
E cá entre nós: nossos partidos
políticos, tanto de esquerda quanto de
direita, nunca se interessaram realmente em
quebrar esse esquema, não é mesmo?
E todos eles aceitam a democracia representativa
como única forma de democracia possível.
Trata-se de um sistema que consiste em pôr
gente no poder para "representarem o povo"
(presidentes, governadores, ministros, etc.)
e assegurar sua proteção com "cães
de guarda" (polícia, exército,
etc.) contra possíveis manifestações
de oposição. No esquema democrático
atual, o amo e o escravo são duas faces
da mesma moeda.
É
claro, nenhum ser racional duvida que a democracia
representativa seja muito melhor do que um fascismo
ditatorial. Tem-se mais liberdade de pensamento
e de expressão, além de uma parcela
maior de participação política.
Também o voto é um poderoso meio
de atuação política, sem
dúvida. Mas é apenas uma forma
de se colocar no poder pessoas infectadas pelo
vírus da síndrome de Estocolmo
para exercê-lo em nosso lugar. Não
podemos intervir nas injustiças governamentais
apenas de quatro em quatro anos, se a corja
que aí se encontra abusa de nossos direitos
dia após dia! Podem até me chamar
de "romântico ingênuo",
mas uma forma mais radical de democracia precisa
surgir se quisermos mudar verdadeiramente as
coisas. Não basta apenas sacudir as estruturas
do edifício do poder para reformá-lo
e deixá-lo mais bonitinho. É preciso
implodí-las, destruí-las nas suas
bases. E essas bases estão enraizadas
em nossas consciências e inconsciências.
É preciso nos descondicionarmos da lavagem
cerebral que nos impuseram.
A
democracia que conhecemos funciona, que não
se duvide disto. Mas vem mostrando seus limites
de forma cada vez mais nítida.
Às
vezes, ouvimos argumentos cínicos do
tipo: "a luta pelo poder faz parte da natureza
humana; estamos constantemente competindo com
os outros, o Mercado está aí para
confirmar isso; uns saem perdendo e outros saem
ganhando, é uma lei da natureza; etc.,
etc., etc.". Os que pensam assim (e não
são poucos) tentam, na verdade, justificar
biologicamente o sistema atual de dominação
com fatos que se observam na natureza, criando
uma espécie de darwinismo deturpado.
Mas mesmo o que é apenas aparentemente
justificável não implica necessariamente
em ser aceitável. Um pai jamais consideraria
aceitável a conduta de um homem que violentou
sexualmente sua filha, embora essa mesma conduta
possa ser justificável biologicamente.
Afinal, o instinto agressivo e o instinto sexual
fazem parte da natureza humana. Não podemos
aceitar um sistema só porque ele se fundamenta
em teses que, aliás, são altamente
controversas e que não possuem sequer
comprovação científica
definitiva. Mas já que se tocou em argumentos
tão cientificistas, cabe então
lembrar que foram processos naturais que possibilitaram
ao macaco-homem descer das árvores há
4 milhões de anos atrás e criar
ferramentas para a sua sobrevivência,
dentre as quais a mais brilhante de todas: a
cultura, que contém elementos que muitas
vezes contrariam a própria "lei
da selva" - coisas como ética, amor,
solidariedade, altruísmo, etc..
Enquanto
houver poderosos no planeta haverão quem
queira ser como eles. E esse ciclo de poder
precisa ser quebrado se queremos uma sociedade
verdadeiramente humana e humanista. Uma revolução
social pode estar a caminho a partir do momento
em que mudarmos a percepção que
temos de coisas que consideramos tão
óbvias. Podemos ser vítimas, mas
não seres passivos, e as armas dos "assaltantes
de nossa liberdade" são, de fato,
poucas, e temos força para rendê-los.
A solução é radicalizar.
"Só
os tolos se regozijam quando os governos mudam."
(provérbio romeno) |