Interculturalidade e Educação
Escolar
Candau,
V. M.
Vivemos uma época em que a consciência de que o mundo passa por
transformações profundas é cada dia mais forte. Esta realidade
provoca em muitas pessoas e grupos, sentimentos, sensações e
desejos contraditórios, ao mesmo tempo de insegurança e medo,
potenciadores de apatia e conformismo, como também de novidade e
esperança, mobilizadores das melhores energias e criatividade
para a construção de um mundo diferente, mais humano e solidário.
Esta dialética é especialmente aguda na América Latina, em que
o sonho de afirmação de uma sociedade democrática e igualitária,
"um mundo em que todos os mundos tenham seu lugar", nas
palavras do Comandante Marcos (Chiapas), esbarra diariamente com o
projeto neoliberal hegemônico e o avanço de reformas estruturais
que acentuam a marginalização e a exclusão, em nome da abertura
dos mercados e do sonho de entrar no "primeiro
mundo".....
Neste processo crescente de exclusão, que assume novas caras e
dimensões no continente, os mais afetados são os
"outros", os diferentes, os que não dominam os códigos
da modernidade, não têm acesso ao processo de globalização em
suas diferentes dimensões, estão configurados por culturas que
se resistem a colocar no centro a competitividade e o consumo como
valores fundamentais da vida, pertencem a etnias historicamente
subjugadas e silenciadas, questionam os estereótipos de gênero
presentes nas nossas sociedades, lutam diariamente pela sobrevivência
e pelos direitos humanos básicos que lhe são negados.
Como exemplo trágico destes processos de discriminação e exclusão
presentes no continente e não sempre reconhecidos, podemos citar
a morte de um índio Pataxó, em 1997, em uma das ruas de Brasília,
cidade símbolo de modernidade, incendiado por jovens de classe média
alta que, para justificar o seu crime, declararam não saber que
se tratava de um índio e que pensavam ser "apenas" um
mendigo... No entanto, no meio destas contradições e conflitos,
cresce a consciência do caráter multicultural do continente e de
cada um dos nossos países. Talvez o novo deste fenômeno seja o
seu caráter afirmativo e propositivo. Faz muito tempo que sabemos
que a miscigenação é um dos traços de nossa formação histórico-cultural,
que os povos originários e os afro-americanos são testemunhas do
massacre realizado ao longo dos últimos quinhentos anos, assim
como de resistência e fortaleza, que os processos de
"hibridização cultural" (Garcia Canclini) se
multiplicam e acentuam no continente. Mas, em geral, associávamos
esta realidade a uma valência negativa, a algo que nos impedia de
gerar processos de desenvolvimento e de afirmação de identidades
próprias em pé de igualdade com diferentes povos e nações.
Me atreveria a afirmar que é esta perspectiva que está mudando,
pelo menos em grupos significativos de nossas sociedades,
especialmente aqueles aos que é negado o acesso pleno à
cidadania e à democracia. Suas vozes se fazem ouvir, surda, clara
ou violentamente. E a sociedade começa a se preocupar pela
construção de dinâmicas sociais mais inclusivas e
participativas, em muitos casos orientadas exclusivamente para
minimizar tensões e conflitos. Certamente o que já não é possível
é negar esta problemática.
É neste contexto que se situa este trabalho que pretende analisar
as relações entre educação e interculturalidade hoje na América
Latina, o papel da educação escolar nesta perspectiva e os
desafios que teremos de enfrentar para promover processos
educativos verdadeiramente informados pela perspectiva
intercultural.
Origens da perspectiva intercultural em educação
A reflexão sobre o papel da educação em uma sociedade cada vez
mais de caráter multicultural, é recente e crescente no nível
internacional e, de modo particular, na América Latina. No
entanto, a gênese desta preocupação obedece a origens e motivações
diferentes em diversos contextos, como o europeu, o
norte-americano e o latino-americano.
Segundo Jordán (96), esta perspectiva surge não somente por razões
pedagógicas, mas principalmente por motivos sociais, políticos,
ideológicos e culturais . A origem desta corrente pedagógica
pode ser situada aproximadamente há trinta anos, nos Estados
Unidos, a partir dos movimentos de pressão e reivindicação de
algumas minorias étnico-culturais, principalmente negras.
"Estes protestos antidiscriminatórios encontraram logo eco
em outros países ocidentais: por exemplo, grupos asiáticos na
Inglaterra, índios no Canadá, aborígenes na Austrália, indonésios
na Holanda, etc. Ao mesmo tempo que foram implantados os direitos
civis reivindicados, começaram a proliferar por parte dos grupos
como os mencionados, as correlativas demandas sociais, culturais e
educativas. Se é verdade que os diferentes grupos étnico-culturais
se mostraram ativos durante estes anos em pressionar os poderes públicos
a favor de uma recuperação de sua identidade cultural e,
inclusive, de uma consideração escolar de suas diferentes línguas
e culturas, não é menos real o hiato todavia existente entre os
ideais democráticos pluralistas proclamados pela maioria
dominante e as práticas mais ou menos discriminadoras que os
grupos minoritários continuam freqüentemente experimentando em
nossos dias". (Jordán,96, p.11-12).
Portanto, é possível afirmar que a perspectiva intercultural em
educação não pode ser dissociada da problemática social e política
presente em cada contexto. Relações culturais e étnicas estão
permeadas por relações de poder. Daí seu caráter muitas vezes
contestador, conflitivo e mesmo socialmente explosivo.
No caso europeu, a preocupação por trabalhar os processos
educativos nesta perspectiva nasce do fenômeno da imigração, da
presença na Europa ocidental, cada vez mais numerosa nas últimas
décadas, de pessoas provenientes dos mais variados continentes,
da África, Ásia e América Latina, assim como, na última década,
do Leste Europeu. Esta realidade cria novas situações, entre as
quais a presença maciça de estrangeiros nas escolas públicas
dos diferentes países provocando uma problemática complexa e, em
muitos casos, conflitiva. A maior parte das políticas adotadas
por estes países tendem a enfatizar a inserção destas populações
no novo contexto , favorecendo a assimilação cultural, muitas
vezes realizada tendo por base o fato de se ignorar e mesmo negar
a cultura de origem destes grupos. Recentemente, também o
reconhecimento das diferentes nacionalidades presentes no mesmo país
tem favorecido o desenvolvimento desta preocupação no bojo dos
esforços de promoção de uma educação intercultural, como é o
caso da Espanha. O fato é que as experiências de educação
multicultural, utilizando diferentes abordagens e metodologias, se
vêm multiplicando no contexto europeu e norte-americano, assim
como uma ampla produção acadêmica vem se desenvolvendo,
acompanhada da promoção da pesquisa na área.
No entanto, no que diz respeito à América Latina, a preocupação
intercultural, nasce a partir de outro horizonte. Para Zúñiga
Castillo e Ansión Mallet (97), esta abordagem surge referida as
nossas populações indígenas. Para estes autores, referindo-se
ao Peru
"As primeiras demandas de exigências educativas que emanam
da diversidade cultural de nosso país se deram nas primeiras décadas
deste século, graças a José Carlos Mariátegui e Luis E.
Valcarcel. Conjuntamente com as necessidades de ordem étnico e
cultural, eles perceberam agudamente as necessidades sócio-econômicas
das populações quéchuas e aimaras. Por esta razão, Mariátegui
postula que o problema do índio no Peru é o problema da terra.
Valcárcel, desde seu papel de educador, propõe o funcionamento
de Núcleos Escolares Camponeses que oferecessem uma educação
integral às crianças, que incluísse componentes de preparação
para o trabalho, um de caráter agropecuário e outro técnico".
(p.31)
A partir desta época são várias as experiências educativas
realizadas em diferentes países latino- americanos, orientadas a
atender de modo mais adequado a diferentes grupos sociais e
culturais marginalizados. Neste sentido, especialmente a partir da
década dos cinqüenta, os movimentos de educação popular
contribuíram de modo muito significativo e enriquecedor para
promover processos educativos a partir dos componentes culturais
dos diversos grupos populares.
Partimos da hipótese de que a preocupação por uma educação
que respeite a diversidade cultural emerge de modo original na América
Latina e é muito anterior ao atual movimento de valorização
desta perspectiva que se desenvolve no plano internacional.
Valeria a pena investigar detalhadamente este processo, resgatar
suas melhores experiências e aprofundar na sua análise para
enriquecer as atuais reflexões e discussões nesta área.
No entanto, o desafio de promover uma educação intercultural não
se restringe a determinadas populações específicas, como se
somente a elas fosse exigido o esforço de reconhecimento e
valorização das culturas diferentes da sua de origem. Hoje urge
ampliar este enfoque e considerar a educação intercultural como
um princípio orientador, teórica e praticamente, dos sistemas
educacionais na sua globalidade.
A cultura escolar: um universo monocultural?
Rigoberta Menchú Tum, guatemalteca, indígena quiché, prêmio
Nobel da Paz em 1992, militante dos direitos humanos, narra assim
a opinião do seu pai sobre a função da escola:
"Infelizmente, se ponho você numa escola, vão
‘desclassar’ você, vão ‘ladinizar’ você e isso eu não
quero e por esta razão não a ponho."
E, acrescenta a própria Rigoberta:
"Talvez o meu pai tivesse tido a oportunidade de me oferecer
a possibilidade de uma escola aos quatorze anos, mas não podia,
porque sabia as conseqüências e as idéias que me iam meter na
escola" (In: Burgos, 83, p.216)
Estas palavras explicitam dramaticamente a questão das relações
entre escola e cultura(s) e o papel homogeneizador da cultura
escolar. Muitos grupos sociais e culturais vivem sentimentos, as
vezes não explicitados, semelhantes aos expressados por Rigoberta
e seu pai. O fracasso escolar, certamente seletivo, está aí para
evidenciar quem são os que fracassam na escola. A desconexão
entre a cultura escolar e a cultura social de referência dos
alunos e alunas tem sido ultimamente denunciada por inúmeros
autores e evidenciada por diversas pesquisas. As nossas salas de
aula, onde pretensamente se ensina e se aprende, deveriam ser espaços
de lidar com o conhecimento sistematizado, construir significados,
reforçar, questionar e construir interesses sociais, formas de
poder, de vivências que têm necessariamente uma dimensão
antropológica, política e cultural.
No entanto, em geral, a cultura escolar apresenta um caráter
monocultural. Para Gimeno Sacristán (95):
"A cultura dominante nas salas de aula é a que corresponde
à visão de determinados grupos sociais: nos conteúdos escolares
e nos textos aparecem poucas vezes a cultura popular, as
subculturas dos jovens, as contribuições das mulheres à
sociedade, as formas de vida rurais, e dos povos desfavorecidos
(exceto os elementos de exotismo), o problema da fome, do
desemprego ou dos maus tratos, o racismo e a xenofobia, as conseqüências
do consumismo e muitos outros temas problemas que parecem “incômodos”.
Consciente e inconscientemente se produz um primeiro velamento que
afeta os conflitos sociais que nos rodeiam quotidianamente.(p.97).
A análise do cotidiano escolar de diferentes escolas tem
evidenciado claramente a pertinência destas afirmações. A
cultura escolar predominante nas nossas escolas se revela como
"engessada", pouco permeável ao contexto em que se
insere, aos universos culturais das crianças e jovens a que se
dirige e a multiculturalidade das nossas sociedades.
Parece que o sistema público de ensino, nascido no contexto da
modernidade, assentado no ideal de uma escola básica a que todos
têm direito e que garanta o acesso a todos dos conhecimentos
sistematizados de caráter considerado "universal", além
de estar longe de garantir a democratização efetiva do direito
à educação e ao conhecimento sistematizado, terminou por criar
uma cultura escolar padronizada, ritualística, formal, pouco dinâmica,
que enfatiza processos de mera transferência de conhecimentos,
quando esta de fato acontece, e está referida à cultura de
determinados atores sociais, brancos, de classe média , de
extrato burguês e configurados pela cultura ocidental,
considerada como universal.
A dinâmica cristalizada na cultura escolar apresenta uma enorme
dificuldade de incorporar os avanços do desenvolvimento científico
e tecnológico, as diferentes formas de aquisição de
conhecimentos, as diversas linguagens e expressões culturais e as
novas sensibilidades presentes de modo especial nas novas gerações
e nos diferentes grupos culturais. Os processos de aquisição-construção-desconstrução-reconstrução
do conhecimento, em profunda crise na sociedade atual, onde
caminhos e linguagens diversificadas se impõem, aparecem no dia a
dia das salas de aula de modo homogêneo e repetitivo, através de
formas estereotipadas, na grande maioria das situações.
Chama atenção quando se convive com o cotidiano de diferentes
escolas, como são homogêneos os rituais, os símbolos, a
organização do espaço e dos tempos, as comemorações de datas
cívicas, as festas, as expressões corporais, etc. Mudam as
culturas sociais de referência mas a cultura da escola parece
gozar de uma capacidade de se auto-construir independentemente e
sem interagir com estes universos. É possível detectar um
"congelamento" da cultura da escola que, na maioria dos
casos, a torna "estranha" aos seus habitantes.
No entanto, como afirma Giroux (95) :
"Os/as educadores/as não poderão ignorar, no próximo século,
as difíceis questões do multiculturalismo, da raça, da
identidade, do poder, do conhecimento, da ética e do trabalho
que, na verdade, as escolas já estão tendo de enfrentar. Essas
questões exercem um papel importante na definição do
significado e do propósito da escolarização, do que significa
ensinar e da forma como os/as estudantes devem ser ensinados/as
para viver em um mundo que será amplamente mais globalizado, high
tech e racialmente diverso que em qualquer outra época da história"(p.88)
Da multiculturalidade à interculturalidade
Os termos multiculturalismo e interculturalismo são muitas vezes
utilizados como sinônimos. No entanto, neste trabalho empregamos
a palavra multiculturalismo para significar uma realidade social:
a presença de diferentes grupos culturais numa mesma sociedade.
A toma de consciência desta realidade, em geral é motivada por
fatos concretos que explicitam diferentes interesses, discriminações
e preconceitos presentes no tecido social. Uma situação até então
considerada "normal" e "natural", se revela
como permeada por relações de poder, historicamente construídas
e marcada por desigualdades e estereótipos raciais e culturais.
Os "outros", os diferentes se revelam em toda a sua
concretude. Para muitas pessoas e grupos sociais esta descoberta
é altamente ameaçadora. Surgem então comportamentos e dinâmicas
sociais que constróem muros. Física , afetiva e ideologicamente
evita-se o contato e criam-se mundos próprios, sem relação com
os "diferentes". Fenômenos desta natureza provocam na
sociedade "apartheid’s" sociais e culturais, processos
de guetificação que, nas grandes cidades latino-americanas, cada
vez mais se acentuam. Portanto, a consciência do caráter
multicultural de uma sociedade não leva espontânea e
necessariamente ao desenvolvimento de uma dinâmica social
informada pelo caráter intercultural.
O interculturalismo supõe a deliberada interrelação entre
diferentes culturas. "O prefixo inter indica uma relação
entre vários elementos diferentes: marca uma reciprocidade
(interação, intercâmbio, ruptura do isolamento) e, ao mesmo
tempo uma separação ou disjuntiva (interdição, interposição,
diferença). Este prefixo não corresponde a um ‘mero indicador
retórico, mas se refere a um processo dinâmico marcado pela
reciprocidade de perspectivas’. Estas perspectivas são
representações sociais construídas em interação (Ibidem).
Para Micheline Rey (1986) o prefixo se refere à interação,
mudança e solidariedade objetiva. Caracteriza uma vontade de
mudança, de ação no contexto de uma sociedade multicultural".(Muñoz
Sedano, 97, p.119)
Para Zuñiga Castillo e Ansión Mallet (97) , a interculturalidade
pode converter-se num princípio normativo, no âmbito pessoal e
dos processos sociais.
No nível individual supõe promover o diálogo no interior de
cada pessoa entre as diversas influências culturais que a
configuram e a que está exposta, às vezes em conflito ou não
sempre fáceis de serem harmonizadas.
"Obviamente surgem problemas ao se tentar processar as múltiplas
influências, mas, ao fazê-lo de modo mais consciente, talvez se
facilite um processo que de toda maneira se inicia no interior da
pessoa sem que ela tome plena consciência dele. Este diálogo
consciente se pode dar de muitas formas e não se sabe bem como se
produz. No entanto, se pode perceber visivelmente que pessoas
submetidas a influências culturais diversas freqüentemente
processam estas influencias de modos similares" (p.15)
Em geral, este processo emerge com maior frequência quando se
muda de contexto habitual de vida ou, por alguma razão, se é
obrigado a entrar em relação com grupos e culturas diferentes da
nossa de origem.
Quanto ao nível social, a interculturalidade orienta processos
que têm por base o reconhecimento do direito à diversidade e a
luta contra todas as formas de discriminação e desigualdade
social e tentam promover relações dialógicas e igualitárias
entre pessoas e grupos que pertencem a universos culturais
diferentes. Neste sentido, trata-se de um processo permanente,
sempre inacabado, marcado por uma deliberada intenção de
promover uma relação dialógica e democrática entre as culturas
e os grupos involucrados e não unicamente de uma coexistência
pacífica num mesmo território. Esta seria a condição
fundamental para qualquer processo ser qualificado de
intercultural.
Educação Intercultural: o que é e o que não é
Tendo presente as reflexões acima realizadas, podemos afirmar com
Jordán (96) que a educação intercultural no âmbito escolar não
pode ser reduzida:
- a um desejável horizonte democrático e a um ideal pedagógico
com pouca incidência na prática cotidiana, limitado à introdução
de um conjunto da atividades esporádicas sem integração com o
currículo escolar, a uma série de apresentações de palestras,
espetáculos musicais, comidas, danças, videos, etc, sobre
diferentes culturas;
- a um conjunto de atividades ou mesmo a um currículo específico
dirigido exclusivamente a determinados grupos sócio-culturais
e/ou escolas onde há uma presença significativa de alunos/as
"diferentes"; neste caso, facilmente terminaria por
adotar a abordagem da educação compensatória, interpretando a
diferença como déficit, particularmente na área acadêmica;
- a uma preocupação exclusiva de determinadas áreas
curriculares , consideradas mais afins a este tipo de preocupação
como as ciências sociais, filosofia, língua materna, atividades
artísticas, etc;
Muitos têm sido os modelos educativos desenvolvidos na
perspectiva da promoção de uma educação intercultural.
Em um "Taller Nacional" sobre "Educação Popular e
Pedagogia da Diversidade", realizado em Cochabamba (Bolívia),
de 12 a 15 de julho de 1996, partindo-se da afirmação de uma
relação dinâmica entre contexto e cultura que foi assim
expressada:
"Todas as culturas são dinâmicas e vão recreando-se e
modificando-se de acordo com seus marcos de regeneração e/ou
reprodução. Deste modo todas as culturas possuem processos
internos que lhes permitem manter-se como diferentes e singulares,
ao mesmo tempo que estabelecem relações e vínculos com outras
culturas através de negociações que lhes permitem seguir
vivendo no meio de outras ou da assimilação e acomodação de
elementos destas culturas para sua vida própria. Esta dupla
dimensão de relações internas e externas se dá em relação ao
contexto e ao espaço em que se desenvolve cada cultura"
(p.19),
Os participantes diferenciaram duas tendências a partir da análise
de diferentes experiências educativas que se propõem trabalhar a
diversidade a partir da perspectiva cultural. A primeira,
"proposta única que se adapta à diferença", parte de
uma proposta global, de caráter geral, que vai se adaptando na prática
às diferenças. Quanto á segunda, "proposta a partir da
diferença", inverte este movimento e tem como ponto de
partida o reconhecimento da diferença como base para qualquer
trabalho educativo. "Não se trata de adaptar uma visão e ação
únicas e sim de desenvolver ações diferentes em cada contexto
cultural diferente" (p.21).
Esta tensão dialética entre o comum e o diferente é inerente à
perspectiva da educação intercultural e é possível distinguir
e agrupar as diferentes propostas a partir de como se situam e
trabalham esta tensão.
Para Bartolomé Pina (97), o critério fundamental que identifica
as diferentes tendências é sua finalidade última, o que se
pretende potenciar através da ação educativa. Surgem então, a
partir da análise de programas concretos, cinco grandes opções:
manter a cultura hegemônica de uma sociedade determinada,
reconhecer a existência de uma sociedade multicultural, fomentar
a solidariedade e reciprocidade entre culturas, denunciar a
injustiça provocada pela assimetria cultural e lutar contra ela e
avançar em direção a um projeto educativo global que inclua a
opção intercultural e a luta contra todas as formas de
discriminação. Somente os modelos orientados pelas três últimas
finalidades assinaladas poderiam, segundo esta autora, ser
considerados como adotando de alguma forma ou em algum grau, mesmo
com caráter limitado, uma perspectiva intercultural.
Quais seriam, então, os critérios básicos para se promover
processos educativos em uma perspectiva intercultural? Enumeramos
a seguir alguns que consideramos fundamentais:
- o ponto de partida deve ser uma perspectiva em que a educação
é vista como uma prática social em íntima relação com as
diferentes dinâmicas presentes numa sociedade concreta:
"A pedagogia intercultural é tanto escolar como social. A
sociedade e a escola têm de unir suas ações no processo de
educação intercultural. Consequentemente, não seria arriscado
afirmar que a pedagogia intercultural tem um 50 por 100 de
pedagogia escolar e outro 50 por 100 de pedagogia social".
(Merino y Muñoz, 95, p.133)
- é importante articular a nível das políticas educativas,
assim como das práticas pedagógicas, o reconhecimento e valorização
da diversidade cultural com as questões relativas á igualdade e
ao direito à educação como direito de todos/as. Estas duas exigências
mutuamente se reclamam e não podem ser vistas como contrapostas.
A atenção às diferentes identidades é inerente a construção
da igualdade e da democracia;
- a educação intercultural não pode ser reduzida a algumas
situações e/ou atividades realizadas em momentos específicos ou
por determinadas áreas curriculares, nem focalizr sua atenção
exclusivamente em determinados grupos sociais. Trata-se de um
enfoque global que deve afetar a cultura escolar e a cultura da
escola como um todo, a todos os atores e a todas as dimensões do
processo educativo, assim como a cada uma das escolas e ao sistema
de ensino como um todo;
- esta perspectiva questiona o etnocentrismo que, explícita ou
implicitamente está presente na escola e nas políticas
educativas e coloca uma questão radical: que critérios utilizar
para selecionar e justificar os conteúdos "no sentido
amplo", que não pode ser reduzido aos aspectos cognitivos-
da educação escolar?
- a educação intercultural afeta não somente aos diferentes
aspectos do currículo explícito, objetivos, conteúdos
propostos, métodos e estilos de ensino, materiais didáticos
utilizados, etc, como também o currículo oculto e as relações
entre os diferentes agentes do processo educativo professores/as,
alunos/as, coordenadores/as, pais, agentes comunitários, etc.
Neste sentido, trabalhar os ritos, símbolos, imagens, etc,
presentes no dia a dia da escola e a auto-estima dos diferentes
sujeitos e construir relações democrática que superem o
autoritarismo e o machismo tão fortemente arraigados nas culturas
latino-americanas, constituem desafios iniludíveis.
A perspectiva da educação intercultural apresenta uma grande
complexidade e nos convida a repensar os diferentes aspectos e
componentes da cultura escolar e da cultura da escola eo sistema
de ensino como um todo. Não pode ser trivializada. Coloca questões
radicais que têm que ver com o papel da escola hoje e no próximo
milênio. Todos os educadores e educadoras estamos convidados a
ressituar nossas teorias e nossas práticas a partir dos desafios
que ela nos coloca.
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