Razão
e paixão
A
atitude experimentalista e o sucesso
tecnológico propiciaram o desigual
conforto humano, mas engendraram
o desconforto para o conhecimento,
que impôs a si mesmo limites metodológicos
e restrições de incidência, que
o paralisaram em campos onde o
experimento não pode operar. Nesses
campos, a ciência cotidiana não
entra e os considera o limbo da
metafísica, o exagero da imaginação
artística e a perfumaria opressora
dos mitos superados.
Mas
será essa mesma ciência que vai,
a partir da razão analítica, perceber
que fenômenos emergentes não são
mais explicáveis pelas "armadilhas
"metodológicas". É preciso
ascender para uma razão que abranja
e se comunique e é necessário
que as barreiras dos saberes sejam
derrubadas, em um movimento de
síntese absolutamente necessário
para dar conta dos fenômenos novos.
No interior da própria ciência,
a razão se autotematiza.
Mas,
no ?cotidiano, a opacidade continua.
Há um mundo do dejà-vu que convive
com o simulacro e a alienação
crescente. Esse mundo é operatório.
Dá conta dos interesses e racionaliza
as correlações de força vigentes.
Mantém e justifica as disparidades.
Aquieta as consciências. Cria
virtualidades consoladoras e simulacros
generosos. Galvaniza as atenções
e os esforços. Dá, com seu sem
sentido, sentidos para as vidas.
Saber clivar é poder.
Para
um mundo limpo, tão limpo como
as máquinas, cuja sujeira é permitida
por não ter o odor e a organicidade
dos seres vivos, uma razão limpa,
sem as instabilidades do afeto
e os riscos da paixão. Para que
essa razão analítico-instrumental
sobrevivesse, era preciso separá-la
do afeto. A inteligência mais
alta é aquela que tem a eqüidistância
dos eunucos e a limpidez da água
destilada. Uma muralha foi construída
entre a razão e a paixão, entre
a cognição e a afetividade, a
se tomar a terminologia piagetiana.
Os ossos limpos são mais respeitados
que as carnes vivas.
O
mundo do dado, como se insurgindo,
não cansou, na história, de mostrar
que onde a razão brilha, há uma
coexistência com a paixão, onde
ela desvela, ali está morando
o afeto. Isso pode ser observado,
tanto individual, quanto coletivamente.
Não há Einstein sem a paixão pelo
Universo, nem Mozart, sem a paixão
pela Música, nem Marx, sem a paixão
pelos desvalidos, nem Picasso,
sem a paixão pela forma, cor e
textura, nem movimentos sociais,
sem ? a paixão pela transformação.
A
jaça na razão neutral, que tanto
preocupou os neopositivistas lógicos,
é o próprio motor que aguça a
descoberta, enriquece o método
e desatavia a criatividade. O
neutral, se houver, só poderá
existir no grau zero do conhecimento,
como no satori zen budista, ou
na meditação. Quando a razão começa
a operar, ela está comprometida.
Mas
afastar a razão da paixão é útil
para efetivar uma dominação sutil:
a dominação que estimula a produção
com a diminuição de angústias
e tensões, a dominação dos controles
mais fáceis, dada a previsibilidade
dos seres com sentimentos pequenos
e pouco intensos, a dominação
da criação de necessidades para
amortecer dúvidas e tecer existências
lineares, que procuram se apropriar
de mercadorias, em si, desnecessárias.
É a calma das pequenas existências,
que fazem da política e da economia
artes aptas para dominar, incentivando.
É a regularidade geométrica do
cosmos, que pode propiciar uma
certa ordem, apesar da aparente
confusão, uma certa estabilidade,
apesar das exclusões, uma certa
serenidade de viver, apesar dos
constantes comandos tanáticos.
Assim,
nessa teia de poderes estabeleceu-se
nova dualidade: a do amor, de
um lado, e o da paixão, de outro.
Para o amor foram carreadas todas
as qualidades superiores: o amor
é construtivo, o amor é solidário,
o amor é doação, o amor é o sentimento
da união serena e estável. ?À
paixão foram reservados os estigmas
do descontrole, da traição, da
agressividade, da infelicidade,
da imprevisão e da destruição.
Assim, a paixão se tornou fonte
de atos perigosos, como, no âmbito
penal, o homicídio passional.
A
dualidade exposta apresenta um
estrato mais profundo ligado à
necessidade de sermos mantidos
mornos. Não é o amor que se opõe
à paixão, mas é o sentimentalismo
que se opõe ao amor apaixonado
ou à paixão amorosa. Essa dualidade
traduz outra representada pela
oposição entre reprodução e transgressão.
O sentimentalismo é curto. Chora
com o imediato, extravaza emoções
de acordo com os padrões e as
etiquetas vigentes. Mas tem vida
curta porque está ligado umbilicalmente
ao espetáculo, à carga forte e
passageira da cena que assoma,
emociona e se vai. Não deixa marcas.
É uma concessão momentânea ao
emocional. É uma descarga que,
ultrapassada, possibilita o retorno
à vida comum com uma certa sensação
de bonança após a borrasca. Nada
é modificado. Nenhum valor é questionado
e nenhuma ação conseqüente deriva
dessa medíocre novela interior.
Mas, apesar disso, exerce útil
papel catártico, propicia a passageira
sensação de dignidade, engendra,
até mesmo, uma certa haura de
glória, que hipertrofia os egos
batidos pelo cinzento das repetições
e pelo absurdo dos pequenos assassinatos
de cada dia. É o sentimento possível
no horror e é o permitido.
O
amor-paixão que move o ser humano
para pontos cruciais, que o lança
p?ara os abismos, ou que o abre
para iluminações, é entrega plenificadora
ou destruidora. É luz e trevas,
nunca penumbra. Seu sentido plenificador
ou destruidor está dependente
do valor, está ligado aos projetos,
está demarcado por trajetórias
individuais, sociais ou culturais.
Ele é demasiadamente humano. Por
isso, é perigoso para a sociedade
de controle. Ele tende a ser abrangente,
mesmo que individualizado, por
traduzir a corporeidade inteira
de quem ama e por ter a intensidade
experiencial que transgride as
previsões estatísticas sobre os
comportamentos humanos. Assim,
há uma unidade paixão-amor, inextricavelmente
ligada à razão criativa, à razão
que descobre, à razão que ousa
e há o risco dos sentidos da paixão,
a partir da trajetória destruidora
ou transformadora que a move,
incidirem fortemente sobre a ordem,
trincando-a ou fragmentando-a
e à falsa calma que sustenta a
crueldade escondida, as desigualdades
mortais e a capitis diminutio
dos seres humanos. É a encruzilhada
entre o mais ser e o menos ser.
É o que move. É o que possibilita
o corte do círculo vicioso do
cênico e do simulacro. Por isso
deve ser sopitada, por se constituir
num incontrolável contra-poder
e construir inusitados contra-saberes.
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