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 Educação
                  para a Democracia(versão resumida de conferência
                  proferida no âmbito do concurso para Professor Titular em
                  Sociologia da Educação na FEUSP, 1996)
 
                    
                    Maria Victoria
                    Benevides      
                  No campo amplo e generoso da Sociologia da Educação, a
                  variedade de interesses e intervenções cresce paralela à
                  velocidade e à complexidade das mudanças culturais -
                  entendidas em todas as suas expressões - nas sociedades
                  contemporâneas. Assim, pretendo discutir um tema que, a meu
                  ver, melhor reúne as reflexões de uma socióloga no trato
                  com a "coisa pública", com a política e suas
                  inarredáveis relações com a educação e os sistemas de
                  ensino: o tema da educação
                  para a democracia.     
                  Porque escolhi esse tema ? Por vários motivos, mas o
                  principal deles diz respeito à realidade brasileira. Além da
                  persistente cultura política oligárquica, durante o regime
                  militar (1964-1985) o Brasil viveu um período de redução
                  dos direitos de cidadania e de minimização da atividade política.
                  Isso correspondeu a uma concepção economicista/produtivista
                  da sociedade, na qual a única função meritória dos indivíduos
                  é produzir, distribuir e consumir bens e serviços. Com o
                  movimento de democratização do país e com o reconhecimento
                  universal de que não há desenvolvimento exclusivamente no
                  campo econômico, sem concomitante desenvolvimento social e
                  político, a questão da educação política se tornou de
                  fundamental importância. Hoje podemos afirmar que a cidadania
                  é uma idéia em expansão; no entanto, a ação política
                  continua desvalorizada e o cidadão pode ser visto apenas como
                  o contribuinte, o consumidor, o reivindicador de benefícios
                  individuais ou corporativos, e não do bem comum. E
                  sequer o princípio constitucional de escola para todos
                  consegue ser cumprido.     
                  É sabido, também, que existe, no sistema de ensino
                  brasileiro, um "espaço" para a educação do cidadão
                  - na maioria das vezes como mero ornamento retórico ou, então,
                  confundida com um vago civismo ou "patriotismo", o
                  qual, evidentemente, varia muito de acordo com as concepções
                  dos principais dirigentes educacionais.     
                  Além disso, a "educação para a cidadania",
                  presente como objetivo precípuo em todos os programas
                  oficiais das secretarias de Educação, estaduais e
                  municipais, independe do compromisso explícito dos diversos
                  governantes com a prática democrática. Mas não existe,
                  ainda, a educação para a democracia, entendida, a
                  partir da óbvia universalização do acesso de todos à
                  escola, tanto para a formação de governados quanto de
                  governantes. Ao contrário, aqui ainda persiste, como no
                  exemplo criticado por Alain no sistema francês, "um
                  ensino monárquico, ou seja, aquele que tem por objetivo
                  separar os que serão sábios e governarão, daqueles que
                  permanecerão ignorantes e obedecerão". Aliás, o grande
                  educador brasileiro Anísio Teixeira também deve ser evocado
                  em sua crítica à "escola paternalista, destinada a
                  educar os governados, os que iriam obedecer e fazer, em oposição
                  aos que iriam mandar e pensar, falhando logo, deste modo, ao
                  conceito democrático que a deveria orientar, de escola de
                  formação do povo, isto é, do soberano, numa
                  democracia".     
                  Além do exemplo brasileiro, é crucial a advertência de
                  Norberto Bobbio, para quem a apatia política dos cidadãos
                  compromete o futuro da democracia, inclusive no chamado
                  primeiro mundo. Dentre as "promessas não cumpridas"
                  para a consolidação do ideal democrático, aponta ele o
                  relativo fracasso da educação para a cidadania como
                  transformação do súdito em cidadão. Bobbio recorre, ainda,
                  às teses de Stuart Mill para reforçar a necessidade de uma
                  educação que forme cidadãos ativos, participantes, capazes
                  de julgar e escolher - indispensáveis numa democracia, mas não
                  necessariamente preferidos por governantes que confiam na
                  tranqüilidade dos cidadãos passivos, sinônimo de súditos dóceis
                  ou indiferentes.     
                  Para discutir o tema valho-me de obras clássicas e de autores
                  contemporâneos, tanto específicos da área de educação
                  quanto das áreas afins. É evidente que estou ciente das
                  limitações desta conferência para tema tão ambicioso - mas
                  mantenho o olhar indagativo, algumas vezes perplexo, mas
                  sempre apaixonado pela riqueza do tema, pelo menos tão antigo
                  e fascinante quanto o próprio tema da democracia, desde o
                  esplendor da polis grega.     
                  Democracia é o regime político fundado na soberania popular
                  e no respeito integral aos direitos humanos. Esta breve definição
                  tem a vantagem de agregar democracia política e democracia
                  social. Em outros termos, reúne os pilares da
                  "democracia dos antigos" - tão bem explicitada por
                  Benjamin Constant e Hannah Arendt, como a liberdade para a
                  participação na vida pública - aos valores do liberalismo e
                  da democracia moderna, quais sejam, as liberdades civis, a
                  igualdade e a solidariedade, a alternância e a transparência
                  nos poder (contra os arcana imperi de que fala Bobbio),
                  o respeito à diversidade e a tolerância. Educação é aqui
                  entendida, basicamente, como a formação do ser humano para
                  desenvolver suas potencialidades de conhecimento, julgamento e
                  escolha para viver conscientemente em sociedade, o que inclui
                  também a noção de que o processo educacional, em si,
                  contribui tanto para conservar quanto para mudar valores, crenças,
                  mentalidades, costumes e práticas.     
                  Ao criticar a democracia existente - "um rascunho do que
                  poderia ser" - John Dewey afirmava que uma sociedade
                  democrática não requeria apenas o governo da maioria, mas a
                  possibilidade de desenvolver, em todos os seus membros, a
                  capacidade de pensar, participar na elaboração e aplicação
                  das políticas públicas e julgar os resultados. O filósofo
                  americano estava falando, sem dúvida, em educação para a
                  democracia.     
                  Na seqüência do prodigioso pensamento da antigüidade clássica,
                  seguindo a orientação aristotélica, cabe destacar a
                  originalidade da tese de Montesquieu sobre as "leis da
                  educação", aquelas que recebemos em primeiro lugar e são
                  decisivas sob todos os aspectos. Montesquieu estabelece uma
                  relação indispensável entre o tipo de regime político e o
                  sistema educacional. É impossível, diz ele, uma república
                  sem educação republicana, uma educação igualitária num
                  regime que não seja igualitário.     
                  No Brasil, com a tradicional oposição entre o "país
                  legal" e o "país real", a aproximação entre
                  a realidade política e o regime democrático consagrado na
                  Constituição vai depender, essencialmente, do esforço
                  educacional.     
                  O que entendo por educação para a democracia ?     
                  A educação para a democracia comporta duas dimensões: a
                  formação para os valores republicanos e democráticos e a
                  formação para a tomada de decisões políticas em todos os níveis,
                  pois numa sociedade verdadeiramente democrática ninguém
                  nasce governante ou governado, mas pode vir a ser,
                  alternativamente - e mais de uma vez no curso da vida - um ou
                  outro.     
                  Três elementos são indispensáveis e interdependentes para a
                  compreensão da EPD:     
                  1. A formação intelectual e a informação - da antigüidade
                  clássica aos nossos dias trata-se do desenvolvimento da
                  capacidade de conhecer para melhor escolher. Para formar o
                  cidadão é preciso começar por informá-lo e introduzi-lo às
                  diferentes áreas do conhecimento, inclusive através da
                  literatura e das artes em geral. A falta, ou insuficiência de
                  informações reforça as desigualdades, fomenta injustiças e
                  pode levar a uma verdadeira segregação. No Brasil, aqueles
                  que não têm acesso ao ensino, à informação e às diversas
                  expressões da cultura lato sensu, são, justamente, os
                  mais marginalizados e "excluídos".     
                  2. A educação moral, vinculada a uma didática de
                  valores que não se aprendem intelectualmente apenas, mas
                  sobretudo pela consciência ética, que é formada tanto de
                  sentimentos quanto de razão; é a conquista de corações
                  e mentes.     
                  3. A educação do comportamento, desde a escola primária,
                  no sentido de enraizar hábitos de tolerância diante
                  do diferente ou divergente, assim como o aprendizado da
                  cooperação ativa e da subordinação do interesse pessoal ou
                  de grupo ao interesse geral, ao bem comum. Sem
                  participação dos interessados no estabelecimento de metas e
                  em sua execução, como já afirmava Dewey, não existe
                  possibilidade alguma de bem comum. É preciso tempo para
                  sacudir a apatia e a inércia, para despertar o interesses
                  positivo e a energia ativa (Dewey). Ora, é evidente que essa
                  é uma tarefa para a educação para a democracia.     
                  À luz da interdependência desses três elementos para a
                  formação democrática, deve ser salientado, aqui, a grave
                  carência que tem representado, nos últimos tempos, o
                  rebaixamento da educação literária comparativamente ao
                  ensino das ciências exatas ou biológicas. Nosso mestre
                  Antonio Candido salientou a esse respeito, com muita
                  propriedade, o papel pedagógico da literatura como um processo
                  de humanização, isto é, "o que confirma no homem
                  aqueles traços que reputamos essenciais, como o exercício da
                  reflexão, a aquisição do saber, a boa disposição para com
                  o próximo, o afinamento das emoções, a capacidade de
                  penetrar nos problemas da vida, o senso da beleza, a percepção
                  da complexidade do mundo e dos seres, o cultivo do humor. A
                  literatura desenvolve em nós a quota de humanidade na medida
                  em que nos torna mais compreensivos e abertos para a natureza,
                  a sociedade, o semelhante".     
                  A educação para a democracia difere, também, da simples
                  instrução cívica, que consiste no ensino da organização
                  do Estado e dos deveres do cidadão, bem como difere da formação
                  política geral, que visa a facilitar aos indivíduos a
                  informação política, qualquer que seja o regime vigente. Em
                  decorrência, a EPD nunca se fará por imposição, como uma
                  doutrina oficial, mas pela persuasão, até mesmo porque um
                  dos valores fundamentais da democracia é a liberdade
                  individual, que não pode ser sacrificada em nome de uma
                  ideologia nacional.     
                  A EPD consiste, portanto, em sua primeira dimensão, na formação
                  do cidadão para viver os grandes valores democráticos que
                  englobam as liberdades civis, os direitos sociais e os de
                  solidariedade dita "planetária".     
                  A educação como formação e consolidação de tais valores
                  torna o ser humano ao mesmo tempo mais consciente de sua
                  dignidade e da de seus semelhantes - o que garante o valor da
                  solidariedade - assim como mais apto para exercer a sua
                  soberania enquanto cidadão.     
                  Em sua segunda dimensão, a EPD consiste na cidadania ativa,
                  ou seja, a formação para a participação na vida pública.
                  Isso significa participar como cidadão comum ou como
                  governante. A educação não consiste apenas no processo
                  social que permite ao indivíduo, enquanto governado, ter
                  conhecimento de direitos e deveres e deles dar conta com escrúpulo
                  e inteligência - mas sim capacitar a todos para a posição
                  de governante em potencial (Calvez). Essa educação tem uma
                  metodologia própria, cuja estrutura é dada pelas regras da argumentação,
                  com sua lógica própria, bem diversa da lógica da demonstração
                  científica.     
                  O pensamento clássico, como é sabido, qualificava a educação
                  como uma instituição política - isto é, como elemento da
                  organização do Estado. A principal tarefa dos governantes -
                  no mundo greco-romano - era, justamente, propiciar a educação
                  de cidadãos ativos e participantes. Essa era considerada a
                  principal virtude - a aretê- de um regime político. A
                  formação da sociedade pressupunha um povo adulto na política,
                  e não tutelado ou meramente indiferente. Era este,
                  certamente, o leitmotiv de Platão, no diálogo com os
                  sofistas e, certamente, o de Aristóteles, em Política e
                  em Ética a Nicômaco.     
                  A educação, segundo Aristóteles, deveria inculcar o amor às
                  leis - elaboradas com a participação dos cidadãos -, mas a
                  lei perderia sua função pedagógica se não se enraizasse na
                  virtude e nos costumes: "a lei torna-se simples convenção,
                  uma espécie de fiança, que garante as relações
                  convencionais de justiça entre os homens, mas é impotente
                  para tornar os cidadãos justos e bons". Daí, a ligação
                  estreita entre costumes democráticos e regime democrático,
                  assim como a importância da educação pública para a
                  salvaguarda da ética e do respeito às instituições. Aristóteles
                  admite, dentro da categoria dos cidadãos ativos, a
                  possibilidade de o governado tornar-se governante, "pois
                  os mais nobres valores morais são os mesmos, para todos os
                  indivíduos e para a coletividade. Cabe à Educação inculcá-los".
                  Ora, se isso é razoável e desejável, a educação para a
                  democracia é necessária também
                  para formar govermantes.     
                  Em Da Republica, Cicero defende a educação específica
                  para o governo, "para servir o Estado". Considerava,
                  por exemplo, estranho que os sábios, leigos na arte da navegação,
                  se declarassem aptos a comandar um navio em situação de
                  turbulência, embora jamais o houvessem tentado em mares tranqüilos.
                  Justificavam o desprezo pelo estudo e o ensino das coisas do
                  governo, da res publica, porque acreditavam poder
                  assumi-lo em caso de crise. Ora, argumenta o cônsul romano, a
                  simples possibilidade da responsabilidade pública exige a
                  aquisição "de todos os conhecimentos os quais
                  ignoramos, se, algum dia, precisarmos deles nos valer".     
                  A EPD na dimensão de formação de governantes significa,
                  concretamente, a preparação para o julgamento político
                  necessário à tomada de decisões. Trata-se de enfrentar
                  problemas - dos mais variados tipos - e o critério para o
                  julgamento será sempre o da justiça - decorrente dos valores
                  da liberdade, da igualdade e da solidariedade.     
                  Logo, a EPD é uma formação para a discussão, para a
                  argumentação, com o pressuposto da tolerância.     
                  Nesta ordem de considerações, deve-se entender por valores
                  republicanos, basicamente:     
                  a) o respeito às leis, acima da vontade dos homens, e
                  entendidas como "educadoras", no sentido já visto
                  na antigüidade clássica. "Todo verdadeiro
                  republicano", ensinava Rousseau, " bebia no leite de
                  sua mãe o amor da pátria, isto é, das leis e da
                  liberdade";     
                  b) o respeito ao bem público, acima do interesse
                  privado e patriarcal. Em nosso país trata-se de romper a
                  tradição doméstica, tendente ao despotismo, que moldou
                  nossos costumes (vale a pena lembrar que despotes, em
                  grego, é pai de família, e que a família antiga, como bem
                  observou Benjamim Constant, representava a negação de
                  direitos e liberdades individuais);     
                  c) o sentido de responsabilidade no exercício do poder, inclusive
                  o poder implícito na ação dos educadores, sejam eles
                  professores, orientadores ou demais profissionais do ensino.
                  Em política, a responsabilidade tem dois significados, melhor
                  compreensíveis na língua inglesa: accountabillity e responsibility.
                  O primeiro termo significa o dever de prestar contas,
                  englobando todos os mandatários, isto é, os que exercem o
                  poder em nome de outrem; o segundo terno significa a sujeição
                  de todos, governantes ou governados, ao rigor das sanções
                  legalmente previstas. Em ambos os casos, a responsabilidade é
                  da essência do regime democrático.     
                  E por valores democráticos, estreitamente ligados aos
                  republicanos, entendem-se:     
                  a) a virtude do amor à igualdade, de que falava
                  Montesquieu, e o conseqüente repúdio a qualquer forma de
                  privilégio;     
                  b) o respeito integral aos direitos humanos, cuja essência
                  consiste na vocação de todos - independentemente de diferenças
                  de raça e etnia, sexo, instrução, credo religioso,
                  julgamento moral, opção política ou posição social - a
                  viver com dignidade, o que traz implícito o valor da
                  solidariedade;     
                  c) o acatamento da vontade da maioria, legitimamente
                  formada, porém com constante respeito pelos direitos das
                  minorias, o que pressupõe a aceitação da diversidade e
                  a prática da tolerância.     
                  A virtude da tolerância, aliada à arte da argumentação, não
                  significa levar ao extremo o temor do etnocentrismo e bloquear
                  todo julgamento ético em nome do relativismo cultural.     
                  Pascal já ironizava a distinção entre verdade e erro,
                  conforme se estivesse de um ou de outro lado da linha dos
                  Pirineus. Mas o respeito à diferença não significa
                  esterilidade de convicções. Ao relativismo cultural, Karl
                  Popper opõe o pluralismo crítico, no sentido de que a velha
                  ética, fundada no saber pessoal e seguro, decorrente da
                  autoridade, deve ser substituída por uma nova ética, fundada
                  na idéia do saber objetivo e, necessariamente, inseguro.
                  Necessitamos de outras pessoas para o descobrimento e correção
                  de nossos erros - especialmente de pessoas que foram educadas
                  em culturas diferentes - e isso conduz à tolerância, o que não
                  implica na aprovação incondicional de práticas que
                  violentam nossos próprios valores.     
                  Em sua veemente defesa da democracia, Dewey também se
                  manifesta contra a "consagração" do relativismo
                  cultural, pois a sua plena aceitação, inclusive de práticas
                  opressoras em outras culturas, significaria admitir que os
                  direitos fundamentais de igualdade, liberdade e dignidade
                  devem variar conforme as civilizações e as coordenadas geográficas.     
                  O que não significa, evidentemente, propugnar algum tipo de
                  uniformidade cultural. A própria educação, segundo ele,
                  deveria garantir o direito à informação, permitir a hipótese
                  de que, talvez, outros povos ou setores sociais numa mesma
                  sociedade, podem ser beneficiados por conhecerem formas
                  alternativas de vida, concepções diferentes das suas raízes.
                  E ter, enfim, a liberdade de escolher. Nesse sentido, a educação
                  para a democracia é entendida como a educação para saber
                  discutir e escolher.     
                  A didática dos valores supõe, como já visto, a lógica da
                  argumentação. Aqui é importante voltar ao tema de Antonio
                  Candido, quando insiste que "nas nossas sociedades a
                  literatura tem sido um instrumento poderoso de instrução e
                  educação, entrando nos currículos, sendo proposta a cada um
                  como equipamento intelectual e afetivo. Os valores que a
                  sociedade preconiza, ou os que considera prejudiciais, estão
                  presentes nas diversas manifestações da ficção, da poesia
                  e da ação dramática. A literatura confirma e nega, propõe
                  e denuncia, apóia e combate, fornecendo a possibilidade de
                  vivermos dialeticamente os problemas. Por isso é indispensável
                  tanto a literatura sancionada quanto a literatura proscrita; a
                  que os poderes sugerem e a que nasce dos movimentos de negação
                  do estado de coisas predominante".     
                  Os direitos implícitos nos valores são definíveis
                  intelectualmente, mas o seu conhecimento não é suficiente
                  para que eles sejam respeitados, promovidos e protegidos. Os
                  direitos são históricos: é preciso entendê-los nas suas
                  origens, mas também no seu significado atual e universal,
                  assim como é mister compreender as dificuldades políticas e
                  culturais para sua plena realização.     
                  Vale lembrar como Montesquieu já situava os direitos da
                  humanidade acima de todos os outros. Numa luminosa reflexão,
                  infelizmente pouco divulgada, por pertencer aos seus escritos
                  esparsos, ele afirma: " Se eu soubesse de algo que me
                  fosse útil e prejudicial à minha família, eu o rejeitaria
                  de meu espírito. Se soubesse de algo que fosse útil à minha
                  família e não à minha pátria, procuraria esquecê-lo. Se
                  soubesse de algo que fosse útil à minha pátria e
                  prejudicial à Europa, ou então útil à Europa e prejudicial
                  ao gênero humano, eu consideraria isso um crime".     
                  É conhecida a relação muitas vezes vista como dilemática
                  entre igualdade e liberdade. Ora, os direitos civis e políticos
                  exigem que todos gozem da mesma liberdade, mas são os
                  direitos sociais que garantirão a redução das desigualdades
                  de origem, para que a falta de igualdade não acabe gerando,
                  justamente, a falta de liberdade.     
                  Por sua vez, não é menos verdade que a liberdade propicia as
                  condições para a reivindicação de direitos sociais. Já em
                  abril de 1792, Condorcet alertava, no Relatório sobre a
                  Instrução Pública apresentado à Assembléia Legislativa:
                  "os direitos humanos permanecerão formais se não se
                  firmarem na base da igualdade efetiva dos indivíduos em
                  relação à Educação e à Instrução".     
                  É nesse sentido que se posicionam todos os críticos das
                  "mistificações igualitárias", presentes nas teses
                  das "oportunidades iguais" na escola, apesar do
                  abismo das diferenças sociais. Dewey, por exemplo, é
                  bastante claro ao considerar completamente "absurda"
                  a idéia de que a liberdade poderia ser igual para todos, sem
                  que se levem em conta as diferenças prévias em matéria de
                  educação, condições sócio-econômicas, controle social
                  caracterizado pela instituição da propriedade.     
                  Ao discutir os valores democráticos é importante, no
                  entanto, estabelecer certos pontos e destacar o valor da
                  solidariedade. A liberdade e a igualdade estão, como se vê,
                  estreitamente ligadas à tolerância. Mas esta é uma virtude
                  passiva, ou seja, é a aceitação da alteridade e das diferenças.
                  Enquanto que a solidariedade é, em si mesma, uma virtude
                  ativa - por isso muito mais difícil de ser cultivada -, pois
                  exige uma ação positiva para o enfrentamento das diferenças
                  injustas entre os cidadãos.     
                  A educação para esses três valores deve ser diferenciada. Não
                  basta educar para a tolerância e para a liberdade, sem o
                  forte vinculo estabelecido entre igualdade e solidariedade.
                  Esta implicará no despertar dos sentimentos de indignação e
                  revolta contra a injustiça e, como proposta pedagógica,
                  deverá impulsionar a criatividade das iniciativas tendentes a
                  suprimi-la, bem como levar ao aprendizado da tomada de decisões
                  em função de prioridades sociais.     
                  Nos Propos de Alain está explícita esta prioridade,
                  quando o autor denuncia a preferência dos professores pelos
                  "aristocratas", quando deveriam alegrar-se muito
                  mais por um camponês que aprende um pouco do que por um
                  elegante matemático que chega às Grandes Écoles. "
                  Todo esforço dos poderes públicos deveria ser empregado para
                  a educação das massas, ao invés de fazer brilhar algumas
                  exceções, alguns reis nascidos do povo e que dão um ar de
                  justiça à desigualdade".     
                  Onde deve ser desenvolvida a educação para a democracia?     
                  A escola é o locus privilegiado, embora sofra,
                  atualmente, a concorrência de outras instituições - como os
                  meios de comunicação de massa. A escola continua sendo a única
                  instituição cuja função oficial e exclusiva é a educação.     
                  É evidente que existem outros espaços para a educação do
                  cidadão, dos partidos aos sindicatos, às associações
                  profissionais, aos movimentos sociais, aos institutos legais
                  da democracia direta. Mas a escola não deve substituir a
                  militância, pois forma cidadãos ativos e livres, e não,
                  como alertava Fernando de Azevedo, homens de partido, de facções
                  virtualmente intolerantes.     
                  O principal paradoxo da democracia persiste: ela não existe
                  sem uma educação apropriada do povo para fazê-la funcionar,
                  ou seja, sem a formação de cidadãos democráticos. E a
                  formação de cidadãos democráticos supõe a preexistência
                  destes como educadores do povo, tanto no Estado quanto na
                  sociedade civil (Mougniotte).     
                  Quem educa os educadores? Bobbio responderia que as duas
                  coisas andam juntas, que a política é sempre, como queria
                  Maquiavel, cosa a fare, pois a formação de educadores
                  se dará concomitantemente ao desenvolvimento das práticas
                  democráticas.     
                  E a escola pode ser o grande instrumento para a formação
                  democrática, mas também o teste decisivo sobre o êxito e o
                  desenvolvimento - sempre dinâmico - da democracia como regime
                  político (Mougniotte). O paradoxo continua posto.     
                  Concluindo, a EPD é um processo de longa duração; exige
                  continuidade e, como diria Weber, paciência, paixão e precisão
                  - como para "furar tábuas duras de madeira". Não
                  é objetivo de um governo ou de um partido.     
                  Aliás, a Constituição Brasileira prevê um Plano Nacional
                  de Educação, a ser estabelecido por lei e, portanto, como um
                  programa de toda a comunidade nacional, e não de um
                  determinado governo. É, pois, objetivo de um extenso programa
                  de transformação da sociedade. Assim foi e ainda é nos países
                  que já têm, minimamente consolidados, direitos, liberdades e
                  práticas de cidadania ativa, pois o processo democrático é
                  dinâmico e supõe a possibilidade, sempre em aberto, de criação
                  de novos direitos e novos espaços para sua reivindicação e
                  seu exercício.     
                  Nas palavras de Rousseau, um clássico educador político:
                  "A pátria não subsiste sem liberdade, nem a liberdade
                  sem a virtude, nem a virtude sem os cidadãos (...) Ora,
                  formar cidadãos não é questão de dias, e para tê-los
                  adultos é preciso educá-los desde crianças" (Sur L´économie
                  politique). |