ABUSOS SEXUAIS CONTRA AS ÍNDIAS
YANOMAMI
Relatório
das diligências em Roraima
Deputado Marcos Rolim- PT/RS
Presidente da
Comissão de Direitos Humanos
“...
Os parentes mandaram nós para falar a todo mundo. Eles (Exército)
prometeram: olha Yanomami, nós vamos fazer aqui quartel
para proteger vocês, para não deixar entrar garimpeiro, não
deixar entrar qualquer pessoa que maltrata povo indígena. Lá,
o que eles fizeram, levantaram a casa deles e trouxeram a
luz. Agora, estão mexendo lá. Eles estão solteiros. As
mulheres deles ficaram em Boa Vista. Chegam lá, eles começam
a mexer com as índias. Ficam pedindo para dormir com elas e
dão as coisas de comida, de arroz, farinha. Usam nossas índias.
Agora estão doentes. Tem a doença transmitida, estão
doentes , gonorréia, sífilis. Vocês estão querendo matar
todo o meu povo...”
Davi
Kopenawa
I - Introdução:
Há cerca de dois meses,
recebemos, na Comissão de Direitos Humanos, por parte do
Conselho Indigenista Missionário (CIMI), a grave denúncia
de que índias Yanomami estariam sendo vítimas de abuso
sexual por parte de soldados do Exército Brasileiro. De início,
nossa intenção foi a de realizar uma audiência pública
para tratar do tema, com a presença de lideranças indígenas
e de autoridades militares da amazônia. Após aprovado o
requerimento nesse sentido, na Comissão de Direitos
Humanos, nossa assessoria recebeu, de parte da assessoria
parlamentar do Excército, a sugestão de uma viagem à área
Yanomami para que pudéssemos nosinteirar a respeito da verdade dos fatos. Até então,
as declarações oficiais das autoridades militares negavam
peremptoriamente a veracidade das denúncias.O Exército viabilizaria o deslocamento de Boa Vista
até a região, o que tornaria possível o acesso às
tribos.De início,
concordamos com essa sugestão e suspendemos a audiência.
Para nossa surpresa, tomamos conhecimento de que uma
“comitiva” deparlamentares
vinculados às FFAA estava sendo formada para a viagem,
independentemente de qualquer gestão da CDH. Tomamos, então,
a decisão de comunicar à assessoria parlamentar do Exército
que não integraríamos a referida comitiva e passamos a
organizar uma viagem por nossa própria conta. A data
oportuna surgiu com a realização da trigésima Assembléia
Geral dos Tuxauas (Caciques) de Roraima, entre 5 e 8 de
fevereiro. Em uma aldeia distante 130 km de Boa Vista, cerca
de 180 Tuxauas, representando as etnias Macuxi,
Wapixana, Yanomami, Ingarikó, Taurepang, Wai-Wai, Yekuana,
Maiogong, Waimiri-atroari e Patamona, reuniram-se, como o
fazem anualmente, para discutir seus problemas mais sentidos
e unificar reivindicações e formas de luta que preservem
os seus direitos. Participei na quinta feira (dia 8)da Assembléia e combinei com a representação
Yanomami presente - mediante auxílio de membros do Conselho
Indigenista de Roraima (CIR), do administrador regional da
Funaide Davi
Kopenawua , a principal liderança Yanomami - uma visita no
dia seguinte à Surucucus, região Yanomami onde há uma
unidade avançada do Exército e onde os casos de abuso
sexual teriam acontecido. O deslocamento até Surucucus
deu-se em um avião da FUNAI. Na oportunidade, mantivemos
contatos com os índios e recolhemos o testemunho de 3
meninas Yanomami. De volta a Boa Vista, à noite, mantivemos
contatos com representantes do CIR, com a imprensa local e
comentidades
que acompanham a causa indígena em Roraima. O relatório
que segue sintetiza nossas principais conclusões.
Os termos de um conflito
histórico:
O estado de Roraima
simboliza, hoje, uma das últimas fronteiras brasileiras.Estima-se que a população indígena de Roraima
seja, atualmente, de 36 mil pessoas, o que equivale a 10 %
da população total do estado. Entre a civilização branca
de Roraima observa-se, nitidamente, uma postura beligerante
com relação aos índios. Para o senso comum construído
entre os brancos que migraram para a região, os povos indígenas
representam, antes de tudo, um grande inconveniente. As
terras que já foram demarcadas - como a área Yanomami, por
exemplo - são extensões imensas em plena floresta. Outras,
que ainda aguardam pela homologação - como a área Raposa
Serra do Sol,também.
Muitos políticos e autoridades do estado de Roraima possuem
fazendas e interesses econômicos a preservar nessas áreas
indígenas. Como se não bastasse, as riquezas minerais da
região são muito significativas (notadamente, ouro,
diamantes, cassiterira, cobre, zinco, molibdênio e urânio)
o que mobilizou poderosos interesses vinculados ao garimpo.
Especialmente
durante os anos 80, tivemos em Roraima uma verdadeira
“corrida ao ouro”.Aventureiros de todos os lugares chegaram à Roraima
com a idéia de um Eldorado a seu alcance. No auge da febre
mineradora, chegou-se a extrair entre duas a trêstoneladas de ouro por mês em Roraima. Mesmo com
grande parte dessa produção sendo sonegada e desviada do
estado, a renda pública no período chegou a crescer
2.000%. Luigi Eusebi nos oferece uma idéia desse período
assinalando:“o
comércio local triplicou e os depósitos bancários
cresceram 500%.Multiplicaram-se
as agências e as companhias de táxis aéreos.
Repentinamente surgiram 213 casas de compra e venda de ouro,
diamante, dólares, quase todas ilegais; construíram-se 17
novos hotéis; a conexão aérea com Manaus, única cidade
que une Boa Vista ao resto do mundo, garantida anteriormente
por poucos vôos da Varig, chegou a 35 vôos semanais. Na
floresta foram construídas 162 pistas de aterrisagem
clandestinas, utilizadas por 400 táxis aéreos; na densa
mata, operam 4.500 máquinas e mais de mil dragas extraem
ouro dos rios. O consumo de combustível é o mais alto do
país. O departamento de Aviação Civil do aeroporto de Boa
Vista calculou 7.995 decolagens e aterrissagens em janeiro
de 1989...”(1 )
Com esse tipo de atividade,
a economia de Roraima vinculou-se fortemente ao garimpo a
ponto de, nos anos 80, o preço dos principais produtos à
venda em Boa Vista ser calculado de acordo com as cotações
do ouro. As técnicas de extração do ouro sempre foram
rudimentares por conta das características da área e das
dificuldades de deslocamento. Para amalgamar o material
colhido, usa-se o mercúrio que fixa o ouro, enquanto exala
vapores tóxicos e polui os rios com um veneno de ação
prolongada. Calcula-se que, para cada grama de ouro extraído
sejam utilizados até dois gramas de mercúrio. Se, em 1989
foram extraídas mais de 20 toneladas de ouro em Roraima,
então, pode-se ter uma idéia das dimensões do problema
ecológico produzido pelo uso do mercúrio.
A disputa pela
terra e, portanto, por condições mais favoráveis de
acesso às riquezas minerais da região, colocou as elites
econômicas e políticas de Roraima em uma linha direta de
conflito com os povos indígenas. A história de violência
e de abusos praticados contra os índios nesse estado ainda
está para ser contada. Ela equivale, de qualquer modo, a um
genocídio praticado em um espaço relativamente curto de
tempo e se desdobra até hoje em uma série de ocorrências
que vão das ameaças corriqueira até à tortura e ao
assassinato de lideranças indígenas, além de um clima político
hostil criado contra a Igreja, as Organizações Não
Governamentaise
os especialistas estrangeiros que se tornaram aliados dos
povos indígenas. Esse genocídio foi e vem sendo praticado
com a conivência e, muitas vezes, com a participação
direta de fazendeiros, empresários locais, políticos,
governantes, agentes policiais, parte dos órgãos de
imprensa e parte das autoridades do Poder Judiciário.
Sobre este pano de
fundo, os interesses estratégicos da “Segurança
Nacional” , pensados e definidos pelos comandos militares,
vieram a se sobrepor como um novo desafio às populações
indígenas. Por conta do projeto “Calha Norte” ,
idealizado ainda ao tempo da ditadura militar, passou-se a
implantar na região - próximo à fronteira com a
Venezuela, postos avançados do Exército. Segundo o
projeto, outros ainda deverão ser construídos. Todos eles
no interior de terras indígenas e sem qualquer tipo de
acordo com as comunidades que, por força de disposição
constitucional, são as verdadeiras donas da terra. Esse é
o caso, por exemplo, da unidade militar que se pretende
construir em Uiramutã (6° Pelotão Especial de Fronteira)
, uma cidade fantasma com 180 habitantes plantada em plena
área indígena. (Ali foram erguidas 32 casas e, às custas
de uma fraude eleitoral, declarou-se a emancipação. Graças
a uma corajosa e inédita decisão liminar de um Juiz
Federal de Roraima - Dr. Helder Girão Barreto - a idéia não
prosperou.) As
principais lideranças indígenas não se opõe à instalação
dessas unidades militares. Exigem, entretanto, que elas
sejam instaladas a, pelo menos, 10 km das “malocas” -
unidades habitacionais que reúnem de 30 a 150 índios,
unidos por laços de patentesco. A experiência já vivida
pelas populações indígenas em contato com as unidades
militares foi suficiente para que elas desejem distância
dos abnegados soldados que para lá são deslocados. O caso
de abuso sexual contra as índias Yanomami é, tão somente,
uma dessas razões.
III -Os netos de Omam:
Os Yanomami são um dos
povos mais antigos e primitivos do planeta. Sua história de
contato com a civilização branca é recente tendo se
estreitado, fundamentalmente, a partir dos anos 70.O complexo e difícil idioma Yanomami divide-se em 4
dialetos: Yanã, Yanomã, Yanomamó e Sanumá. Pesquisas
linguísticas demonstram que o ponto histórico de
diferenciação do tronco comum situa-se em algum lugar no
tempo entre 700 e 3.500 anos passados. Sabe-se pouco sobre a
história dos Yanomami, identificados, pela primeira vez, no
século XVIII. Em parte, porque as condições climáticas
da região impedem a preservação de registros fósseis; em
parte, porque os Yanomani não enterram seus mortos. Sua
tradição envolve os hábitos de cremação e de ingestão
das cinzas dos ossos carbonizados.
Os Yanomami são
um povo nômade. Uma de suas características mais
impressionantes é a fragmentação das aldeias, o que gera
novos grupos no espaço de duas ou três gerações.Suas unidades independentes -onde há, em geral, uma
“maloca” ou, na língua Yanomami, “shabono” -caracterizam-se por uma rotina onde se utiliza,
normalmente, uma área de 30 km de diâmetro para caçar.
Periodicamente, essas unidades se mudam para outras áreas a
procura de alimentos e para que a terra “não se canse”.Além da caça, vivem da coleta de frutos e de uma
agricultura rudimentar centrada no cultivo da mandioca,
cana, batata doce, abacaxi, tabaco, urucu e vários tipos de
banana. Cultivam também o algodão, carauá, bambu e outros
vegetais dos quais utilizam as folhas, sementes e fibras
para artesanato, para adorno e para rituais mágico-sacrais.
Conhecem determinadas ervas alucinógenas e as utilizam
eventualmente para fins terapêuticos ou para alcançar
certos “poderes”.
Fonte de recursos,
a florestasignifica
mais do que um espaço para a sobrevivência Yanomami.
Segundo Bruce Albert, ela é uma “entidade viva, com uma
manifestação invisível (urihinari) , um sopro (wixia) ,
bem como um princípio imaterial de fertilidade (nërope).
Os animais (yaropë) que abriga são vistos como
antepassados míticos metamorfoseados em razão do seu
comportamento descontrolado. Nas suas colinas, rios e lagos,
se escondem inúmeros seres maléficos (nëwaripe) que ferem
ou matam os Yanomami como se fosse caça, provocando doenças
e mortes. No topo de suas montanhas moram as imagens dos
ancestrais-animais da primeira humanidade (yaroripë) que se
tornaram os espíritos xamânicos xapiripë deixados por
Omam para cuidar dos humanos.Toda a sua extensão é coberta
pelos espelhos mirekopë onde brincam e dançam esses espíritos.
Na profundeza das águas esconde-se o monstro-sucuri Tëpërësiki,
sogro de Omam, onde vivem também os espíritos Yawarioma,
cujas irmãs seduzem e enlouquecem os jovens caçadores
Yanomami”. (2)
Os Yanomami não
possuem divindades. Acreditam, entretanto, em “espíritos”que podem ser “bons” ou “maus”. Sua rica
mitologia é mantida - como de resto sua tradição cultural
- pela memória e pelos relatos entre as gerações. Eles se
consideram “netos de Omam”, o primeiro homem que criou
todas as formas vivas e os nomeou. Omam articula uma
cosmologia pela qual o universo é formado em quatro esferas
ou níveis: no alto, o “céu jovem”; embaixo, o “céu”,
mais abaixo, a “terra” e o , por último, o subsolo ou
“velho nível”. O mundo é o resultado de um cataclisma
original que rebaixou cada um desses níveis. O “céu
jovem”tornou-se o firmamento e o “céu antigo”
tornou-se a terra em que vivemos. No início, os espíritos
moravam no céu, mas ele caiu sobre a terra por conta da
morte de um grande pagé. Seus espíritos, aborrecidos,
cortaram o céu precipitando os diferentes “níveis”.
Ainda hoje, cada tempestade com trovoadas é compreendida
como novos cortes no céu devido à morte de algum pagé.
Devido à queda do céu, os antepassados dos Yanomami caíram
no subsolo e tornaram-se seres sobrenaturais , canibais de
dentes compridos. Só alguns homens salvaram-se,
escondendo-se sob um cacaueiro no sul da Serra Parima que
conseguiu segurar o céu. Nesse tempo imemorial, dois homens , Omam e Yoasi
deram origem a uma filha mulher.Pelo mito, Omam introduziu o seu pênis entre os
dedos do pé de Yoasi que engravidou na barriga da perna.
Relações incestuosas subsequentes deram origem aos
Yanomami.
Os Yanomami não
possuem qualquer técnica de registro ou escrita. Quanto à
pintura, a utilizam apenas no próprio corpo - como adorno
ou para significar estados especiais como, por exemplo, o
luto - e em suas peças artesanais, incluindo as flechas. Não
lidam com qualquer registro temporal, nem possuem calendários.
As estações são apenas duas: “a do rio que seca” e a
“do rio que enche”. As noções de quantidade com que
lidam são, invariavelmente, de três tipos: “Um” ,
“dois” e “muitos”.Os Yanomami fazem o fogo com atrito na madeira e
procuram mantê-lo sempre aceso. Estamos, em verdade, diante
de um povo pré-histórico cujas características principais
se mantém inalteradas, possivelmente,há milênios.A técnica mais apurada que dominam envolve a construção
dos shabonos -impressionantes unidades habitacionais com
cerca de 20 m de diâmetro e 15mde altura.
IV - Os depoimentos em
Surucucus:
Logo quando chegamos à área
de Surucucus - além do piloto da Funai, estávamos eu, o
administrador regional da FUNAI, sr. Martinho Alves de
Andrade Júnior, Jaílton de Carvalho do jornal “O
Globo” , o sr. Júlio José de Souza, cinegrafista do CIR,
assessor do CIRe
Davi Kopenawa -fomos
abordados por dois integrantes das FFAA, um soldado e um
tenente, que nos solicitaram identificação. Satisfeita
essa exigência, iniciamos o deslocamento até um galpão da
FUNAI contíguo à pista de pouso. Enquanto almoçávamos,
combinamos os procedimentos. A intenção dos militares era
a de nos acompanhar em todos os passos da visita. Agradeci a
atenção que eles nos dispensavam, mas expliquei que esse
acompanhamento não seria possível. Afinal, desejávamos
nos entrevistar com as índias para a coleta de depoimentos
sobre denúncias que poderiam envolver colegas deles. O
contrangimento seria óbvio e os depoimentos dificilmente
seriam tomados. Fomos, então, atéà “maloca” da unidade onde viviam cerca de 90
Yanomami.Os
homens adultos estavam fora, em expedição de caça e
deveriam retornar dentro de dois dias. Uma parte das
mulheres encontrava-se, a duas horas de caminhada, na roça.
Na maloca, estavam um casal de índios idosos, aparentando
mais de sessenta anos, alguns meninos e meninas entre 10 e
12 anos, três bebês e 6índias jovens com idade entre 14 e 18 anos. Fora da
maloca, cerca de 15 outras crianças brincavam e se
exercitavam com suas flechas.
De início, tudo pareceu
difícil, quase impossível. Primeiro, dentro da maloca, a
escuridão tornou-se espessa porque, desavisados, os índios
trataram de se “proteger” de eventuais câmeras fechando
todas as aberturas. Davi, que habita uma outra área
Yanomami bem distante de Surucucus, iniciou a conversa
explicando quem nós éramos e o que nos trazia até ali. O
tempo dessa conversa foi longo o que, imagino, deva refletir
uma outra relação temporal vivida pelos Yanomami em seus
diálogos. Posto o problema, o índio mais velho permitiu
que falássemos com a primeira menina - Judith - que havia
mantido relações sexuais com soldados. Nova dificuldade.
Judith confirmava que aquilo tinha acontecido com ela, mas
dizia que não queria falar sobre esse assunto. Davi, então,
voltou a argumentar sobre a importância do trabalho que
queríamos realizar, etc. Após muita conversa, Judith começou
a falar. Nos relatou, então, com detalhes, tudo o que lhe
ocorrera. Nos contou como tomou a iniciativa de ir até o
quartel procurar comida. Nos disse que durante muitos dias,
os soldados lhe deram bolachas, restos de comida, bebidas
alcoólicas e pequenos “presentes” como linha, por
exemplo. Que vencida essa etapa de “aproximação” e
“confiança” os soldados passaram a convidá-la para
“ir ao mato” ou para tomar banho na cachoeira; que, ato
contínuo, passaram a condicionar a oferta de comida,
bebidas alcoólicas epresentes
ao atendimento daqueles convites. Finalmente, Judith relata
que atendeu aos apelos dos soldados, que estava afeiçoada
por um deles, que pensava que ele quisesse “namorar”com
ela. Manteve, então, relações sexuais com ele e isto lhe
garantiu continuar recebendo os mantimentos . Quando
descobriu que estava grávida, o soldado havia desaparecido.
Judith é uma índia particularmente bonita. Seu rosto mal
encobre as feições de uma menina. Dificilmente terá,
hoje, 18 anos. O filho que teve com esse soldado é já um
menino com três, talvez quatro anos. Nós o conhecemos.
Suas feições e a cor dos seus cabelos evidenciam a
miscegenação. Depois dessa gravidez, Judith já teve outro
bebê cujo pai, índio,é seu atual marido. O mais provável é que Judith
tenha se relacionado com o soldado em uma idade entre 12 e
15 anos.O
depoimento de Helena é muito parecido. Ela estava no outro
lado da Maloca, na companhia de uma terceira índia que
confirmou também ter mantido relações sexuais com
soldados. Essa terceira índia, entretanto, acompanhou o
depoimento das outras duas confirmando o que era dito, mas
sem falar. Helena falou e relatou um processo idêntico de
aproximação e posterior abuso sexual por parte dos
soldados. Quando empregamos a expressão “abuso sexual”estamos nos referindo, bem entendido, a uma relação
libidinosa e sexual entre adulto e criança e/ou adolescente
incapaz de compreender a dimensão desse ato. As índias com
quem conversamos não relatam submissão ao ato sexual
mediante emprego de força ou violência. Relatam , de uma
forma cândida, como foram conduzidas à relação sexual
desprotegida em um jogo de artifícioscaracterizado por uma postura de aproveitamento e
exploração dos integrantes das FFAA de quem deveriam
esperar, antes de tudo, proteção. O que ocorreu com Judith
e Helena, fossem elas brancas, redundaria em processo
criminal contra os autores. Simone, uma outra menina índia
que manteve relações sexuais com soldados estava, no dia
de nossa visita, em Boa Vista para tratamento médico. Não
pudemos confirmar se ela era uma das índias que tratam,
hoje, de doenças venéreas. Nem sabemos quantas das
mulheres, entre aquelas que estavam na roça, poderiam
relatar casos semelhantes de abuso sexual. Os depoimentos
das duas índias foram gravados e filmados. Uma cópia está
na Comissão de Direitos Humanos, outra encontra-se com o
CIR.
V -O histórico de abusos e outras informações
relevantes:
No dia 15 de agosto de
2000, a Procuradora regional da República, Deborah Macedo
Duprat de Britto Pereira, oficiou o Presidente da Funai, Glênio
Alvarez, com a finalidade de instruir procedimento
administrativo firmado a partir de denúncia contida em
reportagem do jornal “O Globo” publicada em 21 de maio
daquele ano. Na oportunidade, a Procuradora solicita informações
a respeito das providências tomadas pela FUNAI no sentido
de apurar denúncias de abuso sexual de índias Yanomami
envolvendo militares do Pelotão de Infantaria de Selva da
região de Surucucus.Em
18 de setembro do ano passado, os Tuxauas Yanomami do Pin
Surucucus solicitaram à FUNAIprovidências quanto aos casos de abuso sexual que
estariam ocorrendo naquela região. No mesmo documento, as
lideranças indígenas informam que os militares estavam
desmatando para retirada de lenha e que isso começava a
espantar a caça. Informavam, também, que os militares
jogavam suas fezes nos igarapés de onde os índios retiram
a água para beber. Em ofício endereçado ao
Superintendente Regional da Funai, em 20de outubro de 2000, o coordenador dos programas de saúde
da Funasa, Aldacy de Souza Xavier, informava que o
coeficiente de mortalidade infantil entre os Yanomami na
região de Surucucus era de 153 óbitos para cada mil crianças
nascidas vivas; que havia 4.250 índios com malária; 18 com
tuberculose e 7 com suspeita de DST. Em outro documento,
datado de 25 de outubro, a mesma autoridade informa que os
sete casos de DST foram confirmados, totalizando 9 casos de
gonorréia entre maio e outubro daquele ano.Também em 20/10, o coordenador da Pastoral
Indigenista, Renato Lang, oficiou ao administrador regional
da FUNAI, ao administrador da FUNASA e à Procuradoria da
República em Roraima, solicitando providências diante das
denúncias de abuso sexual contra índias Yanomami feitas
pelo líder Davi Kopenawua em 11 de outubro. As mesmas denúncias
foram sublinhadas pelo documento final da assembléia
Yanomami de 15/16 de outubro e assinadas por PeriXiri Xana
Yanomami. O jornal Folha de São Paulo retratou essa denúncia
em matéria no dia 22 daquele mês, o mesmo ocorrendo no dia
23 em matéria do jornal Folha de Boa Vista.
No dia 11 de novembro de 2000, o administrador
regional da FUNAI enviou ao Presidente da entidade
documentos onde se confirmam as denúncias de abuso sexual.
Por esses documentos, registrou-se que as índias
identificaram através de fotos os soldados com quem
mantiveram relações sexuais, apontando os nomes deE. S. P,
A
. L .C. ,F. R.
F. P., J . S .
R . ,L . S . F
. , J. R. S. S eJ.N. S.S.(3) As índias apontaram, ainda, os servidores da
COMARA, conhecidos como “T” e “C”, que mantiveram
relações sexuais com as índias.
Pelas
informações que pude recolher ao longo dos contatos
mantidos em Roraima, foi possível apurar que apenas na
comarca de São Gabriel das Cachoeiras, AM - também área
Yanomami - há, nada mais, nada menos que 157 ações de
alimentos de índias contra militares, sendo que desse
total,34 decisões
judiciais já foram favoráveis às demandantes. Essas decisões
vêm sendo cumpridas mediante desconto em folha dos
militares condenados. Ora, o que esse dado parece revelar é a existência
de uma praxe de violações e abusos sexuais praticados por
militares contra as índias em toda a região; o que vem
sendo hipocritamente negado pelos autoridades militares que
já se manifestaram sobre o tema.
VI-Conclusões
Após tudo o que pude ver e ouvir em Roraima, é possível
afirmar que:
a)Não resta qualquer dúvida sobre a ocorrência de
casos de abuso sexual praticados por militares contra índias
Yanomami. Tais casos, ao que tudo indica, não estão
restritos à área de Surucucus e parecem integrar um
problema de dimensões até agora não imaginadas.
b)A existência de unidades militares em áreas indígenas
tem agregado problemas ao invés de soluções.
Particularmente, nos parece inaceitável que eventuais
unidade militares sejam instaladas sem um acordo prévio com
as lideranças indígenas e ao lado de suas comunidades. Além
do problema enfocado de abusos sexuais e dos graves riscos
de saúde às populações indígenas por conta da disseminação
de doenças sexualmente transmitidas, as unidades militares
desmatam para obter suprimentos de lenha, lançam seus
dejetos nos igarapés onde os índios se abastecem e induzem
os índios a manterem relações de dependência.
VII
-Recomendações:
Recomendamos
ao Senhor Presidente da República e comandante supremo das
Forças Armadas, Sr. Fernando Henrique Cardoso, que:
a)Determine a imediata suspensão de todos os projetos
de construção de unidades militares em áreas indígenas
de Roraima;
b)Determine que as Forças Armadas estabeleçam,
juntamente com as lideranças indígenas e com a colaboração
da FUNAI, acordos para a redefinição dos locais para a
eventual construção de unidades militares;
c) Reforce
as providências de patrulhamento para a definitiva retirada
de garimpeiros, fazendeiros e ocupantes ilegais de terras
indígenas em Roraima;
d)Reforce a estrutura administrativa e operacional da
FUNAI na região liberando os recursos orçamentários
necessários;
e) Determine
a apuração rigorosa das denúncias de casos de abuso
sexual, notadamente aqueles sabidamente praticados contra índias
Yanomami;
f)Determine providências urgentes para a efetivação
dos serviços de atenção à saúde dos povos indígenas de
Roraima;
g)Homologue, imediatamente, em área contínua, a terra
indígena de Raposa Serra do Sol, nos termos da portaria
829/98.
Brasília, 19 de fevereiro de 2001
Notas:
(1)EUSEBI,
Luigi. “A Bariga
Morreu” . Ed. Loyola, São Paulo, 1991.
(2)ALBERT,
Bruce. In: “Yanomami”- Ensaio fotográfico de Cláudia Andujar
(3)Preservamos os nomes dos acusados em respeito ao
princípio constitucional de presunção de inocência. Eles
estão à disposição, entretanto, das autoridades
competentes para a apuração das denúncias.