MATAR
? POR QUÊ ?
"O
limite que o legislador deveria fixar para o rigor das penas,
parece residir no sentimento de compaixão, quando esse começa a
prevalecer sobre qualquer outro, no ânimo dos espectadores de um
castigo, reservado no mais para eles do que para o próprio réu."
Cesare
Beccaria ("Dos delitos e das Penas")
Introdução:
Tugendhat (1)
lembra que, ao final de sua Preisschrift über die Grundlage der
Moral, Schopenhauer sustenta um exemplo como "experimentum
crucis": alguém desejava matar outro e desiste de seu
intento por motivos morais. A pergunta de Schopenhauer é: que
motivação seria convincente? Pareceria convincente se o
personagem nos dissesse que ele não o teria feito porque então a
máxima de seu comportamento não se deixaria universalizar? Ou
porque então não teria tratado o outro igualmente como um fim em
si mesmo? O autor segue expondo outras hipóteses que se referem a
conceitos morais e, então, contrapõe a todos a resposta:
"eu não o fiz porque fui tomado de compaixão...ele causa-me
dó." Schopenhauer segue perguntando ao leitor "honesto
e desembaraçado": Qual é o ser humano melhor?
A pergunta
parece-me importante para o debate atual sobre a pena de morte e
introduz uma exigência radical: em que medida, antes mesmo de
qualquer argumento dos defensores das execuções legais, é possível
considerar a providência mesma como sinal de um progresso moral?
Penso que essa pergunta ofereça uma dificuldade incontornável e
que a argumentação favorável à pena de morte só possa
encontrar um caminho de justificação no leito movediço dos
argumentos utilitaristas. Mesmo nesse terreno, entretanto, poderá
ser impugnada. O presente texto é uma tentativa de alinhar,
possivelmente sem a sistematicidade necessária, alguns argumentos
que permitam reforçar as razões mais corriqueiras expostas em
defesa da tese abolicionista quanto à pena capital.
O
cenário político:
A idéia da introdução
da pena de morte tem agregado, na história recente de nosso país,
uma legião de defensores. Grande parte deles situados, não
casualmente, à extrema direita do espectro político. Com essa
expressão, não me refiro àquelas posições de sentido
conservador ou plenamente vinculadas aos valores ideológicos
dominantes. Ao assinalar "extrema direita" pretendo
identificar a posição daqueles que sempre assumiram sua beligerância
diante da própria ordem democrática afirmando conceitos
similares aos que procuraram legitimar os regimes de exceção -
notadamente as ditaduras militares na América Latina; com
conhecidas simpatias pelo ideário fascista. Penso que, dizendo-o
assim, me refiro a um fato no mais incontestável. Parece claro
que vários dos defensores da pena de morte filiam-se a outras
perspectivas político-ideológicas. Há que se nomear, inclusive,
os segmentos fundamentalistas da esquerda, destacadamente àqueles
de inspiração leninista, trotskysta, maoísta ou guevarista -
para citar os mais conhecidos - que sempre tiveram, diante da pena
de morte , uma concepção oportunista recusando-se mesmo a
reconhecer nela a existência de uma questão moral. Para esses,
tudo se resolveria simplesmente a partir da aritmética da
"luta de classes". Assim, na medida em que fosse necessário
eliminar os inimigos "do proletariado" a simples recusa
à tarefa equivaleria a uma desprezível traição aos
"objetivos revolucionários". De qualquer maneira,
aquilo que poderíamos designar como uma "militância"
em favor da pena capital sempre foi um atributo característico
das posições reacionárias e inimigas da democracia. Não seria
demais assinalar, entretanto, que os pressupostos de valorização
da violência - concebida, no mais das vezes, não como a negação
da política, mas como uma espécie de contingência inevitável
de seus momentos agudos - acompanhe, à direita e à esquerda, as
vocações totalitárias.
De forma
relativamente autônoma, por sobre aqueles limites ideológicos,
é evidente que a idéia favorável à introdução da pena
capital tem alcançado uma significativa audiência em nosso país.
Na base desse fenômeno encontraremos uma reação - no mais das
vezes amplificada e legitimada por muitos dos formadores de opinião
com presença nos meios de comunicação social - ao avanço da
criminalidade. Pode-se afirmar, assim, que a base social - talvez,
hoje, majoritária - de apoio à introdução da pena de morte em
nosso país expresse um fenômeno correlato daquilo que a
literatura especializada denomina "sensação de insegurança";
forma específica de uma angústia disseminada que caracteriza, de
resto, as modernas sociedades.
Seja como for,
estamos diante de uma questão política relevante atravessada por
inúmeros pressupostos de natureza moral, religiosa e filosófica.
É preciso, por isso mesmo, um esforço preliminar para que a posição
abolicionista frente à pena capital seja sustentada no terreno
dos princípios.
A
tradição filosófica e o direito penal:
A tarefa de
oferecer uma fundamentação ao abolicionismo seria mais simples não
fosse o fato notório de que a communis opinio dos filósofos, a
começar por Platão, Hegel e Kant , tenha sido favorável à pena
de morte. Especialmente no mundo antigo e na Idade Média, uma
concepção a respeito do Estado - que poderíamos denominar de
"orgânica" - ofereceu uma estrutura dominante de
pensamento segundo a qual "o todo está acima das
partes". A passagem de São Tomás na Suma Teológica parece
sintetizar o argumento: "Cada parte está ordenada ao todo
como o imperfeito ao perfeito (...) Por causa disso, vemos que, se
a extirpação de um membro é benéfica à saúde do corpo humano
em seu todo (...) é louvável e salutar suprimi-lo. Ora, cada
pessoa considerada isoladamente coloca-se em relação à
comunidade como uma parte em relação ao todo. Por conseguinte,
se um homem constitui um perigo para a comunidade (...) é louvável
e salutar matá-lo para salvar o bem comum." (2) A estrutura
mesma do argumento só é compreensível quando situada no quadro
de um modelo de sociedade anterior à modernidade e ao paradigma
dos Direitos Humanos por ela oferecido. H. Bedau o afirma a partir
de uma divisão em três modelos de sociedade: um primeiro, onde não
há reconhecimento da idéia de direitos gerais, mas de obrigações,
como no Antigo Testamento; um segundo modelo de sociedade onde já
há o reconhecimento de direitos gerais, mas apenas aqueles
plasmados pela ordem jurídica e adstritos aos papéis específicos
a serem representados pelas pessoas e, por fim, um terceiro modelo
de sociedade onde se reconhece, de forma absolutamente subversiva
frente à tradição anterior, a existência de direitos gerais e
incondicionados que deveriam ser realizados diante de cada ser
humano pelo único motivo de sua humanidade mesma. (3)
Esta pretensão à
universalização de direitos encontrou na utopia dos Direitos
Humanos uma perspectiva coerente e radical. Graças a ela, pode-se
contemporaneamente reconhecer, por exemplo, a tortura como um
crime contra a humanidade e introduzir nas constituições da
maioria das nações o princípio pelo qual os Estados modernos
assumem o compromisso de não infligir penas "cruéis ou
degradantes" aos condenados. O princípio foi de tal forma
incorporado às tradições culturais de nossa época que mesmo
nos países onde ainda se aplica indiscriminadamente a tortura não
há quem a sustente publicamente. Ao contrário, os governantes,
diretamente responsáveis pelos suplícios ainda tão comuns
impostos aos prisioneiros ou omissos diante da série interminável
de violências oferecidas a eles, costumam negá-las com vigor.
Determinadas visões
no âmbito do direito penal, não obstante, revelam a permanência
de valores culturais de outros modelos de sociedade pelo que
convivemos com muitas ambiguidades. As teorias retribucionistas,
por exemplo, oferecem a perspectiva de continuidade diante dos
ordenamentos primitivos que ressaltavam a legitimidade da vingança
de sangue. Esta tradição que se afirma desde os antigos hebreus
e que foi, apesar da idéia de perdão, transmitida ao
cristianismo e ao catolicismo de São Paulo a Pio XII sustenta-se
em três pontos fundamentais: a idéia de vingança, a de expiação
e a de reequilíbrio entre pena e delito. Em crise na ilustração,
esse tripé viu-se subitamente reforçado no século XVIII pelos
textos de Kant e Hegel. Para o primeiro, a pena deveria ser
compreendida como uma retribuição ética, justificada pelo valor
moral da Lei infringida e do castigo que se impõe. É digno de
nota que Kant tenha rechaçado o argumento de natureza "preventivista"
- que sustenta, por exemplo, toda a visão humanista de Beccaria -
a partir da idéia de que o efeito dissuasório da pena seria
imoral por tratar o ser humano como meio. Tem-se, então, uma posição
pela qual seria moral mesmo matar se para retribuição do mal
praticado e imoral qualquer punição que buscasse inibir a
pratica dos delitos dos demais. (!) A posição de Hegel é muito
semelhante: para ele, trata-se de assegurar com a pena a necessária
retribuição jurídica pela qual a ordem violada seria reposta.
Ora, o que a posição
dos dois autores não permite compreender é o fato assinalado por
Ferrajoli de que a irreparabilidade seja, precisamente, o que
distingue os delitos penais dos civis de maneira que "a pena
- ao contrário do ressarcimento do dano - não pode ser
considerada uma retribuição, nem uma reparação, nem uma
reintegração" (4) . No âmbito do direito penal, estamos
diante da esfera de ocorrências onde se valida plenamente a objeção
de Platão , a saber: "o que está feito, não pode ser
desfeito" Há que se romper, então, com aquilo que Morris
Ginsberg denominou de "obscura e enraizada crença" da
existência de um nexo necessário entre culpa e castigo.
As teorias
relativas que procuram justificar as penas a partir da idéia de
prevenção oferecem a perspectiva de rompimento com a visão
"retributivista". Em verdade, elas se fundamentam em um
pressuposto utilitarista. Ao invés de vincularem-se ao mal
praticado (ao passado, portanto) voltam-se para o futuro. Os
sofrimentos penais - o afirmam, entre outros, Montesquieu,
Voltaire, Beccaria, Hume e Bentham - são opções necessárias
para impedir males maiores e não homenagens gratuitas à ética,
à religião ou à vingança. A passagem de Hobbes em polêmica
com o retributivismo sintetiza o argumento: "Ao ameaçar com
penas, não há que preocupar-se com o mal já passado, senão com
o bem futuro; ou seja: não é lícito infligir penas se não for
com o fim de corrigir o pecador e melhorar os demais com a advertência
da pena aplicada...A vingança, não estando orientada para o
futuro e nascida do orgulho é um ato contra a razão"(5) As
teorias relativas têm oferecido sustentação a quatro grandes
vertentes argumentativas: a) as que apostam na correição do
delinquente; b) as que visam a incapacitação do delinquente; c)
as que procuram reforçar a adesão dos cidadãos à ordem e d) as
que visam dissuadir os cidadãos mediante o exemplo ou a ameaça.
A
falácia da dissuasão:
Fica claro, então,
como as teorias relativas - que apostam na prevenção - podem
oferecer sustentação à idéia da pena de morte bastando, para
isso, que a vertente centrada na incapacitação do delinquente
seja levada às suas últimas consequências. O argumento
igualmente utilitário de Beccaria, não obstante, é suficiente
neste nível de argumentação: para o grande reformador italiano,
a certeza da pena seria muito mais produtiva para a dissuasão do
que sua gravidade; da mesma forma, a extensão da pena haveria de
gerar mais efeitos intimidadores do que sua intensidade. Os
indicadores de violência e criminalidade nas nações modernas
parecem comprovar a intuição de Beccaria. De fato, países que
efetivaram uma aposta em legislações penais notáveis por seu
rigor - os EUA, por exemplo- têm demonstrado resultados muito
menos significativos no enfrentamento à violência do que aquelas
nações que optaram por um "Direito Penal Mínimo".
Trata-se, no mais,
de uma grande ingenuidade imaginar que a gravidade das penas
possam oferecer resultados positivos na luta contra o crime. Na
maior parte das vezes, os que cometem assassinatos , por exemplo,
não o fazem a partir de um cálculo sobre suas prováveis consequências
penais. Casos de arrebatamento, brigas, momentos de pânico, reações
de delinquentes que são flagrados roubando, etc. respondem pela
grande maioria dos homicídios. Muitos dos que matam em circunstâncias
assim padecem de forte instabilidade emocional, alguns são
doentes mentais. Há, ainda, os que respondem violentamente sob o
estímulo do álcool ou de drogas ilícitas. Em nenhum desses
casos, a introdução da pena de morte ou de uma legislação
penal severa produziria algum efeito dissuasório. Estudo levado a
efeito no Japão, entre 1955 e 1957, com 145 presos condenados por
assassinato, não identificou um só caso onde o condenado tenha
pensado, antes de cometer o delito, que poderia ser condenado à
morte. (7) Após 35 anos no serviço médico de prisões britânicas,
Roper afirmou que: a dissuasão não é de maneira alguma algo tão
simples como alguns crêem (...) Os assassinos, em grande maioria,
estão tão tensos no momento do crime são insensíveis às
consequências que sua ação pode lhes acarretar; outros
conseguem convencer-se de que poderão se livrar delas. (8) Todos
os dados disponíveis mundialmente, grande parte deles
sistematizados pela ONU, evidenciam a absoluta ausência de
qualquer relação significativa entre introdução/abolição da
pena de morte e redução/aumento dos indicadores de violência e
criminalidade; de tal forma que, na literatura especializada, esta
já deixou de ser há muitos anos uma questão que mereça algum
debate. Não por outro motivo, até o ano passado, 69 países
haviam abolido a pena de morte para todo e qualquer tipo de
delito; 14 países mantinham a pena capital para situações
excepcionais como caso de guerra; outras 23 nações podiam ser
consideradas abolicionistas na prática posto que, mesmo diante da
providência legal, não realizavam execuções. Por conseguinte,
cerca de 105 países -mais da metade de todos os países do mundo
- já aboliram a pena de morte ou não a praticam efetivamente. Não
obstante, cerca de 90 países a mantém e a aplicam. (9)
A
cifra da injustiça:
A essa altura,
importa assinalar que o Direito Penal constrói uma maneira
definida e objetiva pela qual são elencadas as condutas
consideradas indesejáveis, pela qual pode-se comprovar tanto
quanto possível sua autoria e reprimir a conduta tida como
desviante. Como técnica punitiva, o Direito Penal estabelece,
assim, proibições a serem observadas indistintamente,
circunscrevendo, portanto, a liberdade de todos na própria definição
das ações tipificadas; em segundo lugar, determina a submissão
coativa a juízo penal de todo aquele considerado suspeito de uma
violação e, finalmente, oferece a perspectiva de punição dos
considerados culpados. Este processo possui, evidentemente um
custo que deve ser justificado. Ferrajoli sustenta que ao custo da
justiça - que depende das opções penais do legislador - se
acrescenta um custo altíssimo de injustiça que depende do
funcionamento concreto do sistema de justiça penal: "Ao que
os sociólogos denominam cifra negra da criminalidade - formada
pelo número de culpados que, submetidos ou não a juízo,
terminam impunes e/ou ignorados - é preciso acrescentar uma cifra
não menos obscura, porém mais inquietante e intolerável,:
aquela formada pelo número de inocentes processados e, por vezes,
condenados. Chamarei cifra de ineficiência a primeira dessas
cifras e cifra de injustiça a segunda, na qual se incluem: a) os
inocentes reconhecidos como tais em sentenças de absolvição após
haverem sofrido processo penal e, em ocasiões, prisão
preventiva; b) os inocentes condenados por sentença judicial e
ulteriormente absolvidos por conta de um procedimento de revisão;
c) as vítimas, cujo número jamais se poderá calcular -
verdadeira cifra negra da injustiça - dos erros judiciais não
reparados.." (6)
A pena capital
significa, necessariamente, ampliar de modo imponderável essa
cifra de injustiça. Não apenas, como parece óbvio, pela
possibilidade da condenação de inocentes - o que em si mesmo já
deveria pesar o suficiente para que a idéia fosse abandonada. (De
fato, em um Estado Democrático de Direito há que se pressupor,
no sistema de justiça penal, a vigência de procedimentos
revisionais a qualquer tempo, bastando para isso a apresentação
de fato novo considerado relevante. A pena de morte introduz uma
opção pela qual o próprio direito penal se realiza de forma
absoluta.) Refiro-me a outra dimensão do instituto da pena
capital que deveria ser considerado no todo inaceitável: seu caráter
cruel e desumano. É mesmo difícil compreender porque se
considera a ação de se pendurar um ser humano no pau de arara um
ato de tortura e não se qualifica assim a decisão anunciada de
enforcá-lo; por que se tem como inaceitável aplicar descargas elétricas
em um prisioneiro, enquanto se aceita matá-lo com descargas 20
vezes mais potentes ou, ainda, por que se considera que apontar
uma arma para uma pessoa ou injetar-lhe substâncias químicas que
prolonguem seus sofrimentos são, evidentemente, métodos de
tortura enquanto posicionar alguém frente a um pelotão de
fuzilamento ou aplicar-lhe uma injeção letal possa ser
considerado meios de "fazer justiça". Se da condenação
judicial à pena de morte se passarem 16 minutos até a execução,
ou 16 anos, é possível se imaginar essa espera em termos
distintos da oferta mais radical de sofrimento psíquico? Não
parece significativo que um processo dessa natureza seja, ainda,
tornado possível pelo Estado Moderno? Que valores, efetivamente,
as comunidades representadas por este Estado homicida pretendem
afirmar? O que é possível construir, em nome da humanidade,
quando o Estado resolve executar uma sentença de morte além do
paradoxo segundo o qual é preciso matar um assassino, por
exemplo, para demonstrar às pessoas que matar um ser humano -
quando se poderia escolher não fazê-lo - é uma conduta inaceitável?
Breve
conclusão:
Creio que a escolha
pela imposição da morte a outro ser humano não possa mesmo ser
justificada moralmente. Uma resposta positiva à pergunta sobre se
a pena de morte pode ser justa - o que implicaria, em termos
kantianos, em desconhecer a argumentação sobre sua eventual
utilidade - seria hoje formulada de maneira incontornavelmente
contratualista. Afinal, direitos e obrigações são apresentados,
muitas vezes, como faces distintas de um mesmo e único processo
de sociabilidade. Assim, poder-se-ía tentar a argumentação de
que os responsáveis pelos crimes mais graves -como, por exemplo,
aqueles que a estupidez legiferante no Brasil denominou de
"hediondos" - haveriam se auto- excluído do contrato
social. À margem da civilização, homicidas, estupradores, fascínoras,
etc. teriam, então, se colocado para além das garantias
fundamentais. A execução de gente assim estaria como que
"autorizada" pela sua própria conduta selvagem.
Novamente, o que se
procura desenvolver aqui é a proposição da pena como correlata
à ruptura diante da esperada reciprocidade de conduta moral dos
contratantes em suas relações. Ora, não é certo afirmar que em
toda relação entre os seres humanos deva haver reciprocidade
moral, entendendo-se como tal o equilíbrio entre direitos e
obrigações. Nas relações que os adultos mantém com as crianças,
por exemplo, eles devem honrar uma série de obrigações -
definidas contemporaneamente pela Convenção Internacional dos
Direitos das Crianças. As crianças, entretanto, não possuem
quaisquer obrigações para com os adultos. As pessoas que padecem
de sofrimentos psíquicos podem, a depender do tipo de enfermidade
que as aflige, serem consideradas inimputáveis. Nenhuma dessas
situações nos desobriga ao cuidado que devemos ter diante desses
seres humanos. Tomo esses exemplos para retomar a argumentação
de Tugendhat segundo a qual só pode haver reciprocidade moral
"no núcleo da comunidade moral". Na periferia, assinala
ele, só há direitos e, em nenhum lugar, apenas obrigações.
Ora, quando falamos em "auto-exclusão do contrato
social" estamos falando, concretamente, dessa periferia
formada por segmentos marginalizados socialmente. O discurso filosófico,
não obstante, permite que falemos de contrato social nos
referindo a uma ficção que toma forma na ideologia dominante a
partir da projeção de uma sociedade formada por homens adultos,
trabalhadores assalariados ou , de qualquer forma, aptos para o
trabalho que, por isso mesmo, são responsáveis inteiramente
pelas opções que realizam. Dessa maneira, se uma parte deles
resolve assaltar e, eventualmente, matar estaríamos autorizados a
eliminá-los. (com o devido processo legal, é claro, pois o que
retemos da civilização não nos permite mais sujar as mãos)
Percebe-se, assim, como a noção contratualista permite o
surgimento de uma "moral dos fortes". Não desejo, com
isso, negar que os seres humanos que praticam atos delituosos
sejam responsáveis. Os humanos, afinal, nunca são inteiramente
privados da possibilidade de escolha. Recusar essa conclusão é
renunciar à própria idéia de liberdade. O que desejo ressaltar
é que, no âmbito da justiça penal, é necessário fixar o
limite pelo qual nos obrigamos a separar a pessoa do crime por ela
praticado, reconhecendo-lhe os mesmos direitos pelos quais nos
descobrimos humanos. Os que defendem a pena de morte estão
impossibilitados de fazê-lo e, nesta impossibilidade, se
desumanizam.
Notas:
(1) TUGENDHAT,
Ernest. "Lições Sobre Ética". Petrópolis, RJ, Vozes,
1996, pág. 191.
(2) BOBBIO ,
Norberto. "A Era dos Direitos". Rio de Janeiro, Campus,
1992, pág. 181.
(3)
"International Human Rights". In: Regan und D. Vande
Veer (ed.), And Justice For All,
Totowa (USA), 1982.
(4) FERRAJOLI,
Luigi. "Derecho y Razón , Teoría del garantismo
penal". Madrid, Editorial
Trotta, 1977, pág. 245.
(5) FERRAJOLI,
Luigi. Ob. Cit, pág. 259
(6) FERRAJOLI,
Luigi. Ob. Cit. Pág. 210
(7) KOGI,
Sadataka.
"Etude criminologique et psycho-pathologique des condamnés à mort
ou aux travaux forcés à perpetuité au Japon" Anuales Médico-Psychologiques,
117, 2, III.
(8) ROPER, W.F.
"Murderes in Custody" In: The Hanging Question, Louis Blom-Cooper
(ed.) , Duckworth, Londres, p. 103.
(9) Anistia
Internacional - "Error Capital", Madrid, EDAI, 1999, pág. 14.
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