DIREITOS HUMANOS E UNIVERSALIDADE
Jornal SAJU – Em debate
realizado na Faculdade de Direito da UFRGS, houve um questionamento por um
estudante de direito: "A mutilação do clitóris de mulheres no mundo
islâmico seria um componente cultural integrado à cultura islâmica, e,
portanto, amplamente legitimado.". Essa concepção, relativizadora dos
Direitos Humanos, contrapõe-se a universalidade da categoria dos Direitos
Humanos preconizada fundamentalmente a partir do racionalismo jusnaturalista
do século XVII. Qual a atualidade desse embate: universalismo X relativismo?
Marcos Rolim –
Acredito que a polêmica proposta pelo relativismo cultural não pode ser
sustentada, com radicalidade; vale dizer: possui limitações teóricas
constitutivas que terminam por desacreditar seus próprios pressupostos. Isto
não significa afirmar que os adeptos do relativismo cultural não ofereçam
ao debate público questões pertinentes. Quero apenas destacar que não me
parece ser possível enfrentar qualquer dilema político relevante a partir de
uma posição "relativista", se a entendermos, genericamente, como a
afirmação de uma ética "comunitária" – legitimada por
comunidades – contraposta aos imperativos de uma ética
"universalista", como aquela pressuposta no próprio ideário dos
Direitos Humanos. O exemplo referido na pergunta ilustra bastante bem o que
tenho em mente. De fato, a prática da excisão de clitóris encontra amplo
respaldo cultural nos países muçulmanos. Conta com o apoio, inclusive, da
grande maioria das mulheres. Ora, o próprio ideário dos Direitos Humanos
integra o "direito à autodeterminação das nações" como um dos
seus valores. Com isto, não se pretende negar a nenhum povo a prerrogativa de
estabelecer os seus próprios regramentos. Este mesmo ideário, entretanto, é
incompatível com a oferta de dor e sofrimento a quem quer que seja e nos
oferece elementos suficientes para um juízo moral a respeito daquela prática
de mutilação que é, também, sustentada por uma cultura amplamente
repressora frente às mulheres. Estamos, então, diante de um conflito ético
que justapõe dois valores absolutamente imponderáveis: a consideração pela
independência e autonomia, de um lado, versus a intolerância diante da violência,
de outro. Apenas a ética universalista dos Direitos Humanos pode manter a
exigência de respeito e luta pela afirmação dos dois valores. Se, pelo
contrário, tomarmos como suficiente a aceitação cultural de determinadas práticas
nesta ou naquela comunidade situada historicamente – abandonando, portanto,
a perspectiva universalista – estaríamos absolutamente desarmados teórica
e politicamente para questionar o mal radical produzido com grande aceitação
"interna" pelo nazismo na Alemanha, por exemplo. Além da imensa
desvantagem epistemológica pressuposta, estaríamos nós mesmos ameaçados
pela condição indesejável de sermos cúmplices da barbárie.
JS – A determinação
contemporânea do Estado pelos Diretos Humanos – algo que o modelo
hobbesiano, por exemplo, prescindia, pois não havia uma vinculação necessária
entre a democracia e Direitos Humanos – traz um critério de julgamento e
justificação da ação do Estado, a partir de um parâmetro normativo específico:
os Direitos Humanos, como princípio do qual se deduzem novas regras políticas
e sociais. As sociedades democráticas não têm deixado de observar esses
princípios quando criam critérios de exclusão, selecionando tipos de
portadores de direitos? Caso dos imigrantes na Europa?
M.R. – As
chamadas "sociedades democráticas" são, na verdade, herdeiras da
tradição política liberal. Esta tradição está na base dos primeiros
movimentos em favor dos Direitos Humanos e conforma, mesmo, a "primeira
geração" daqueles direitos, de natureza civil e política. Acredito que
a democracia, tal como a entendemos modernamente, expressa uma síntese política
de toda a primeira geração dos Direitos Humanos e, neste sentido, é ela
mesma um valor universalizante. Qualquer tentativa de constituição de um
regime político mais avançado do que aquele que nos é oferecido pela tradição
liberal haverá de, necessariamente, recolher e alargar seus próprios
pressupostos; vale dizer: haverá de desenvolvê-los e não negá-los. Ocorre
que a plataforma atualizada dos Direitos Humanos integra, também, os chamados
direitos "de segunda e terceira geração", respectivamente e de
forma simplificada os direitos sociais e os direitos dos povos. Neste
particular, temos, ainda, um largo caminho a percorrer. Eu poderia afirmar que
com a possível exceção de algumas experiências de Estado de Bem Estar
Social ainda vigorosas, notadamente aquelas dos países nórdicos, nenhum país
do chamado primeiro mundo pode ser tomado como uma referência de respeito aos
Direitos Humanos. O caso das restrições impostas aos imigrantes em algumas
nações européias parece confirmar esta assertiva.
JS – Embora a Revolução
Francesa tenha dado forma aos Direitos da Pessoa, foram os fenômenos totalitários
do Século XX que trouxeram, simbólica e materialmente, o aprofundamento do
debate dos Direitos Humanos?
M.R. – Penso,
com Hannah Arendt, que o fenômeno do totalitarismo constituiu a principal
experiência política da modernidade. Ele nos trouxe a convicção da existência
do mal radical como possibilidade política e não me parece casual que ela só
se tenha feito concreta sobre a anunciada ruína dos Direitos Humanos. Assim,
qualquer que seja a avaliação crítica sobre o totalitarismo será necessário
que ela fortaleça a idéia dos Direitos Humanos. Penso que este movimento
ocorreu e que há, em torno dele, um significativo consenso teórico.
JS – Fatos sociais deste
final de século, como o fortalecimento do fundamentalismo no seio de
sociedades democráticas, não podem representar uma forma de violar, sem
desrespeitar o ordenamento jurídico, os Direitos Humanos?
M.R. – Há um
conjunto extraordinariamente amplo de "fatos sociais" que violam os
Direitos Humanos sem que haja, explicitamente, qualquer pretensão política
de desconstituição da ordem jurídica vigente nas sociedades democráticas.
O crescimento do fundamentalismo não me parece, em si mesmo, um destes fatos
sociais visto que sua pretensão explícita é a desconstituição da ordem
jurídica democrática como de resto a desconstituição de qualquer ordem política
possível. O fundamentalismo propõe, em verdade, uma "ordem
revelada" o que consagra uma visão heterônoma da própria sociedade
cujo caráter regressivo parece mais do que evidente.
JS – Por que a categoria
Direitos Humanos dificilmente foi utilizada como bandeira política da
Esquerda? A influencia da "vulgata" marxista foi determinante?
M.R. – Não só
a influência da "vulgata" marxista foi determinante, como, também,
a influência do próprio marxismo como movimento político e/ou teórico. Não
se deve esquecer que Marx tem um texto célebre em "A Questão
Judaica" onde discorre negativamente sobre a idéia dos Direitos Humanos.
Suas afirmações jamais foram desmentidas por suas obras posteriores e, o que
me parece mais grave, nem contestadas pela tradição marxista. Isto não
serve para qualquer apreciação definitiva sobre a obra de Marx, é evidente.
Ela mesma, independente dos seus erros ou acertos, é atravessada por um apelo
de sentido radicalmente humanista. Não obstante, não há como desconsiderar
passagens como aquelas, nem como menosprezar suas implicações políticas. De
modo geral, a perspectiva dos Direitos Humanos oferece à atividade política
um conjunto bastante claro de princípios e idéias reguladoras. O compromisso
com estes princípios e idéias de sentido moral devem subordinar quaisquer
imperativos de "ordem tática" e se sobrepor a quaisquer interesses
particularistas. Deste desafio deriva uma imensa dificuldade política que é
sentida também pela esquerda e, particularmente, pela tradição marxista.
Os Direitos Humanos
no Brasil
JS – Os Direitos
Humanos nunca "emplacaram" no Brasil, seja como prática sócio-política
dos agentes da sociedade civil ou como discurso programático dos agentes políticos.
Quais as raízes estruturais dessa não incorporação dos Direitos Humanos na
práxis política brasileira?
M.R. – Penso
que elas se vinculam, primeiramente, à nossa própria formação econômico-social.
Ao contrário da tradição européia ou norte-americana, por exemplo, a
introdução do capitalismo no Brasil deu-se por um viés extraordinariamente
conservador, sem qualquer processo de ruptura com os valores e tradições do
passado pré-capitalista. Estes valores foram, em nossa história, aqueles
legados pela herança da colonização portuguesa e do regime escravista. De
outra parte, não conseguimos consolidar uma tradição democrática no período
republicano. As aspirações nacionais e populares estiveram, no Brasil,
tradicionalmente apartadas das exigências democráticas; processo que se
confirmou nas experiências ditatoriais e na própria vertente populista. Tudo
isto fez com que em nossa cultura existisse um padrão hegemônico de
"civilização" bastante reticente à idéia de Direitos Humanos,
fenômeno que é bastante sensível ainda hoje.
JS – Com a
"consolidação democrática", a atuação das ONGs, das Pastorais
da Igreja Católica, da Universidade (como o Núcleo de Estudos da Violência
da USP, coordenado pelo cientista político Paulo Sérgio Pinheiro), das
Comissões de DHs do Poder Legislativo publicizaram o debate sobre os DHs. Há
uma mudança na linguagem do poder?
M.R. – Pode-se afirmar que
sim. Por si só, acredito que esta mudança seja positiva e represente um
progresso político considerável. É de todo modo preferível que a polarização
política seja feita entre aqueles que sustentam os Direitos Humanos
concretamente e aqueles que o fazem apenas discursivamente, ou de modo formal.
Tanto quanto é preferível que no cenário político atual todos os
principais sujeitos políticos mantenham compromissos com o ideal democrático.
Ainda que haja uma dose bastante grande de cinismo ou hipocrisia nas declarações
oficiais em favor dos Direitos Humanos, elas vão legitimando uma luta que só
tende a avançar socialmente.
JS – E a atuação do
Governo FHC, no campo das políticas públicas, quanto à questão da Justiça
e dos Direitos Humanos?
M.R. – Até
agora, o governo FHC tem mantido uma postura basicamente formal em favor dos
Direitos Humanos. Sua mais importante iniciativa na área foi o lançamento do
Plano Nacional de Direitos Humanos em 13 de maio de 1996. O Plano possui um
conjunto de medidas importantes e , no fundamental, corretas. Entretanto,
passado um ano desde o seu anúncio oficial, quase nada foi efetivamente
realizado pelo governo. Os poucos avanços que tivemos no período, como, por
exemplo, a tipificação do crime de tortura ou a transferência do julgamento
dos crimes praticados por policiais militares para a justiça comum, foram
alcançados graças à repercussão nacional dos episódios de Diadema. A atuação
do governo, por outro lado, tem se caracterizado por uma absoluta
insensibilidade diante do drama da exclusão social e sua política econômica
tem agravado problemas muito sérios como, por exemplo, o desemprego.
JS – O Poder Judiciário
e o Ministério Publico têm instrumentalizado a eficácia dos Direitos
Humanos? Quais são seu papéis mais importantes?
M.R. – O Ministério
Público teve suas atribuições ampliadas e fortalecidas desde o advento da
nova Constituição. Os Promotores de Justiça podem, hoje, exercer um papel
fundamental na consolidação da democracia e na afirmação da cidadania.
Muitos deles, efetivamente, o fazem. A possibilidade, por exemplo, de
ajuizamento de ações civis públicas contra governos que descumprem a
legislação protetora de direitos fundamentais confere ao Ministério Público
uma extraordinária prerrogativa e, também, um razoável poder político. As
principais debilidades na atuação do Ministério Público continuam sendo
aquelas que limitam a ação dos sujeitos políticos individualmente.
Compromissos de natureza conservadora ou a falta de coragem cívica resultam
em uma ação tímida e subserviente frente às próprias injustiças; por
outro lado, a convicção em favor dos menos favorecidos e a determinação em
assegurar seus direitos produzem ações de caráter transformador. Como regra
geral, pode-se dizer o mesmo quanto à atividade dos magistrados. No Poder
Judiciário, convivem, lado a lado, posturas diferenciadas que produzem
resultados também distintos. No RS, cabe destacar a presença de uma
sensibilidade crescente entre os Juizes para com os Direitos Humanos.
JS – A mídia no Brasil
contribui decisivamente para difundir no senso comum uma idéia negativa e
estereotipada dos Direitos Humanos- vinculando-a, por exemplo, à "defesa
dos bandidos"?
M.R. –
Determinados segmentos da mídia tem oferecido, de forma mais nítida, esta
contribuição à afirmação de estereótipos quanto aos Direitos Humanos. Não
há, entretanto, como generalizar. Graças à mídia, também, grande parte
das violações aos Direitos Humanos tem se tornado conhecidas o que, na
maioria das vezes, constitui a melhor possibilidade de enfrentamento do
problema. Sem as cenas de Diadema, por exemplo, seguramente não teríamos a
tipificação do crime de tortura e, muito menos, um debate nacional sobre o
papel das polícias. Aquilo que chamamos de "mídia" conforma, na
verdade, um fenômeno bastante complexo e contraditório.
JS – A sociedade
brasileira é marcada pelo autoritarismo. A violência observada no campo, nas
prisões e em episódios pontuais como a morte do índio em Brasília por
jovens de classe media, traduzem a distância entre o Estado Democrático de
Direito e realidade vivenciada por setores excluídos da sociedade formal.
Como viabilizar o discurso dos Direitos Humanos numa sociedade tão desigual e
autoritária como a nossa?
M.R. – É
preciso travar insistentemente uma disputa na sociedade em favor dos Direitos
Humanos e, às vezes, travar esta disputa contra posições majoritariamente
aceitas por ela e que sustentam práticas violentas ou preconceitos. O
discurso em favor dos Direitos Humanos não é "pragmático".
Trata-se, não obstante, de uma das construções mais racionais já
oferecidas à sociedade, o que nos confere imensas possibilidades no debate público.
De resto, não há receitas de eficácia nesta luta. O fundamental é saber
que a sociedade brasileira não irá superar o autoritarismo impregnado em sua
cultura, nem suas desigualdades, sem a disposição de travar o "bom
combate" em favor do modelo de civilização que nos define.
Direitos Humanos e
Direitos Sociais
JS – A crise do Estado
de Bem-Estar, com a hegemonia do princípio do mercado, neste final de século
"pós-keynesiano" coloca em xeque os Direitos Sociais, os chamados
direitos de segunda geração?
M.R. –
Percebe-se, hoje, na Europa e nos Estados Unidos um determinado tensionamento
produzido por políticas de sentido neo-liberal que visam erradicar certas
conquistas sociais que sempre caracterizaram o Estado de Bem Estar Social. Em
todos os lugares, entretanto, há uma grande resistência popular a estas
modificações. As últimas eleições na Inglaterra e na França estão a
demonstrar que as soluções mais "agressivas" contra os direitos
sociais não parecem possuir o fôlego que pretendiam. Penso que dificilmente
será possível consolidar programas "neoliberais" nos países do
chamado primeiro mundo. Com isto quero dizer que não acredito na viabilidade
de retrocessos significativos nos direitos sociais já alcançados naqueles países
e mesmo nos EUA. A situação mais provável parece ser a de uma disputa política
em torno da natureza dos "ajustes" necessários no Welfare State. A
realidade das nações – Brasil incluso – é, por suposto, bem distinta.
JS – No Brasil podemos
falar que há uma crise nesse sentido, se as conquistas sociais da Carta
Constitucional de 1988 ainda são meras pretensões formais?
M.R. – Nosso país
jamais conheceu algo que pudesse se aproximar da realidade de um "Estado
de Bem Estar Social". Nosso modelo sempre foi o do "Mal Estar
Social". Neste sentido, não há como se falar em "crise" no
sentido da pergunta anterior. Não me parece, entretanto, correto caracterizar
as conquistas sociais da Constituição como meras "pretensões
formais" . Esta caracterização peca por um "abuso crítico"
que tende a desconsiderar a importância das próprias conquistas
constitucionais referidas. Não por acaso, grande parte da disputa política
presente com os projetos situados à direita dá-se em torno das reformas
constitucionais. Isto está a indicar, pelo menos, que aquelas conquistas
inscritas na Constituição, mais do que "pretensões formais" de
direitos, têm oferecido limites às pretensões bastante claras dos grupos
mais poderosos, o que, por si mesmo, já é uma forma "operante".
JS – A concepção teórica
de Direitos Humanos expressa no Relatório Azul não é firmada nos Direitos
Civis e Individuais, colocando os Direitos Sociais numa condição marginal?
M.R. – Por
certo há, no Relatório Azul, como de resto no trabalho da Comissão de
Direitos Humanos da AL/RS, uma tônica nos direitos civis e políticos.
Trata-se, entretanto, de uma opção que se impôs pela própria natureza de
nosso trabalho. Como regra, a ênfase nos direitos sociais tem sido a característica
do discurso político tradicional produzido pêlos Partidos Políticos, pelos
movimentos sociais e pela maior parte das instituições operantes em
sociedade, dos sindicatos à Igreja. A rigor, nenhuma destas instituições,
entretanto, é permeável às demandas individuais daqueles que são violados,
agredidos, humilhados. Desde quando assumi a presidência da CCDH, há 4 anos,
tomamos a decisão de abrir um serviço em Direitos Humanos com atendimento diário
ao público. Com isto estruturamos nosso trabalho a partir de uma relação
direta com as vítimas da violência no RS que nos procuram. A cada ano, são
milhares de atendimentos realizados, o que nos oferece a "matéria
bruta" do nosso trabalho, informa nossos encaminhamentos, define nosso
tempo de ação, etc... Temos, de qualquer forma, produzido um discurso que
procura vincular os fenômenos que tratamos – de violência sobre seres
humanos concretos – às questões de natureza política, por um lado, e ao
próprio modelo econômico e social vigente no país, por outro. Acredito que,
com esta conduta, temos oferecido resultados sem paralelos no estado e
referenciado politicamente o trabalho de muitas ONGs e comissões
parlamentares de Direitos Humanos em todo o país. Independentemente desta
importância – que, de resto, pode ser relativizada – parece-me fascinante
poder lidar sempre com "casos" individuais. Eles nos permitem
lembrar, com toda a radicalidade, que nosso compromisso político mais amplo
com as transformações sociais seria pouco mais do que um discurso genérico
se descompromissado com o destino real e irredutível de cada ser humano. Mais
do que isso, são os casos que tratamos que nos oferecem a doce lição de que
não há solidariedade "em tese", nem generosidade virtual, nem
justiça que se afirme como promessa.
Marcos Rolim - 1997
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