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OUVIDORIA SÓ PARA
OUVIR...
Hélio Bicudo
A Ouvidoria de Polícia
do Estado de São Paulo, implantada nos termos da lei
complementar nº 826/97, vem, a partir daí, prestando
relevantes serviços à comunidade, empenhando-se no aperfeiçoamento
das instituições policiais, ao provocar, com a análise que
faz sobre a pertinência das denúncias que lhe são
apresentadas, a instauração de inquéritos, sindicâncias e
outras medidas disciplinares que possam caber. Os trabalhos
desenvolvidos pela Ouvidoria paulista serviram de inspiração
à criação de órgãos similares em outros Estados da Federação,
sendo de notar que o próprio governo federal já está
adotando providências para instalar a Ouvidoria da Polícia
Federal.
É evidente que semelhante atuação pode -e isso naturalmente
acontece- trazer descontentamentos nos aparelhos policiais,
sejam militares, sejam civis. Isso porque, para atender às
suas finalidades, a Ouvidoria vem apontando claros defeitos na
ação policial, no seu conjunto. Os relatórios publicados ao
longo destes dois últimos anos evidenciam, sem dúvida
alguma, que a polícia paulista ainda não conseguiu
apartar-se dos vícios acumulados em quase 20 anos de ditadura
militar, quando servia ao Estado e reprimia a população. A
prestação de segurança ao povo ainda é um objetivo algo
distante.
Uma tal atitude é altamente salutar, pois demonstra, à
saciedade, que o atual modelo, de duas polícias, uma militar
e outra civil, não mais corresponde às necessidades de
segurança, se é que em algum momento correspondeu, desde que
comprometido pelo altíssimo número de eliminações
praticadas por elas, sobretudo pela militar.
Trata-se de um modelo esgotado, que se mantém pela força de
um corporativismo incompatível com o bom trato da coisa pública.
E nem se diga que as ouvidorias interferem no controle externo
que o Ministério Público deveria exercer, mas de fato não
exerce, da atividade policial, como imposição
constitucional. A Ouvidoria não controla, mas propõe a ação
dos órgãos disciplinares das polícias e leva ao
conhecimento do Ministério Público as violações dos
direitos dos cidadãos encontradas.
Exatamente porque a Ouvidoria de São Paulo está cumprindo,
com inteiro êxito, sua missão, busca-se anulá-la. Nesse
sentido, deputada do PMDB, por sinal antiga delegada de polícia,
apresentou o projeto de lei complementar nº 23, de 2000,
alterando a lei que criou a Ouvidoria, para, praticamente,
transformá-la num órgão anódino, inteiramente atrelado à
Secretaria da Segurança Pública do Estado, que não mais
poderá propor a instauração de sindicâncias ou de inquéritos,
não terá condições para garantir o sigilo das fontes de
informação e nem sequer de proceder à proteção dos
denunciantes. Trata-se, como se vê, de matéria diretamente
inspirada pelas corporações em causa: mantém-se a Ouvidoria,
contudo sem a necessária autonomia para desempenhar suas funções.
A Assembléia Legislativa, que apoiou o projeto que se
transformou na lei complementar nº 826/97, modelando um novo
órgão que busca canalizar a ação policial em favor da
segurança do povo, não poderá acolher as emendas que o
neutralizam e desfiguram.
Lamentavelmente, quando as instituições que defendem o povo
passam a funcionar e com isso a incomodar os poderosos, surgem
sempre iniciativas para anulá-las ou delas retirar a substância
que qualifica sua autonomia. Foi assim com a chamada Lei da
Mordaça; é, agora, quando se procura amordaçar a Ouvidoria
paulista, que, segundo o projeto da ex-delegada, só poderá
ouvir, mas não poderá falar.
Hélio Bicudo
Jornalista e Advogado, presidente da Comissão
Interamericana de Direitos Humanos da OEA
Extraído do site do jornal Folha de São Paulo
Incluído no site em 28/04/2000
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