LUTAR PELA IMPLANTAÇAO DO
SOCIALISMO
ATÉ O ÚLTIMO DIA DAS
NOSSAS VIDAS
Palavras finales de Frei Betto
Manuel Piñeiro sempre nos
apoiava, se inte-ressava pelas pautas da revista. Era colaborador da revista e
sobretudo nos dizia, entre tantas dificul-dades que temos para manter viva a América
Livre, que deveríamos continuar. Nosso último encontro foi em janeiro de
98. Ele faleceu em março de 98 em Havana. Eu lo vi por ocasião da visita do
Papa. Eu havia sido convidado pelo governo cubano para prestar uma assessoria
teológica, no qual estava também Giulio Girardi e outros companheiros na área
de igre-ja. Piñeiro era um internacionalista nato, e aí, tal vez, a gente
possa fazer um paralelo curioso com a padroeira das missões. A padroeira das
missões da igreja católica é uma monja que nunca saiu do mos-teiro, Santa
Teresinha do Menino Jesus.
Piñeiro praticamente nunca
saiu de Cuba, mas eu não conheço outro cubano tão internacionalista quanto
ele. Com a maneira de como ele conduziu esta política de solidariedade
internacional com a revolução cubana, inclusive grupos, em seus próprios países,
grupos e partidos se quer mantinham o dialogo entre eles, graças a magia política
de Piñeiro, aqueles dois grupos quando se tratava de soli-dariedade à Cuba
se faziam presentes. Então eu queria que a gente fizesse, uma salva de palmas
em homenagem ao exemplo do companheiro Manuel Piñeiro.
Vamos permanecer de pé mais um
momento para homenagear mais dois companheiros que completam datas redondas
este ano. Compa-nheiros que tombaram lutando pelos mesmo ideais, as mesmas
utopias que consistiram nas nossas discussões dos debates destes dias. O
companheiro Miguel Enriquez que foi secretario geral no MIR de Chile, que
tombou em combate há vinte e cinco anos. Uma salva de palmas ao companheiro
Miguel Enriquez.
E este ano estamos comemorando
no Brasil, tivemos agora em outubro e novembro homenagens intensas em varias
cidades brasileiras, trinta anos da caída, do assassinato do companheiro
Carlos Marighella. Carlos Marighella foi comunista do Partido Comunista
Brasileiro. Esteve preso durante a ditadura de Getulio Vargas. Terminada a
dita-dura foi eleito deputado para a assembléia cons-tituinte. Quando
novamente o PCB, o Partido Co-munista, foi obrigado a retornar à
clandestinidade, ele se tornou um dos mais expressivos dirigentes na organização
dos trabalhadores, sobretudo do estado de São Paulo. E após o golpe militar
de 1964, rompeu com a linha pacifista do partido, que ao seu ver era
concordista com a ditadura militar. Participou da famosa conferência em
Havana e ao retornar criou no Brasil o agrupamento comunista que se torna
conhecido na história por Ação Liber-tadora Nacional (ALN). Eu guardo a
honra de ter sido militante da Ação Libertadora Nacional, de ter convivido
com Marighella e ter recebido dele, por coincidência, a missão de me
deslocar de São Paulo para o Rio Grande do Sul e organizar aqui neste estado
um esquema de fronteira, de fuga de companheiros militantes que participavam
de ope-rações armadas, através das fronteiras deste estado com a Argentina
e o Uruguai.
Aqui me mantive ao longo de
quase um ano, tendo tido a alegria de tirar do país por essas vias, os
companheiros responsá veis pelo primeiro seqüestro político da historia da
esquerda, o seqüestro do embaixador norteamericano em se-tembro de 1969. Então
eu queria que nós também prestássemos uma homenagem aos trinta anos do
assassinato do companheiro Carlos Marighella.
Nós homenageamos todos aqueles
outros companheiros que lutaram na América Latina, no Caribe, que derramaram
o seu sangue para que o nosso ideal libertador permaneça vivo e que novas
relações possam se integrar nesta luta, como é o exemplo hoje de tantos
jovens do Movimento do Sem Terra no Brasil, que já despontam como combatentes
corajosos, decididos, sem temor, enfrentando, nas ocupações que realizam
tanto na terra, quanto nos prédios públicos e praças públicas, as forças
policiais e o governo Fernando Henrique, que estão a serviço dos interesses
do FMI, governo do capital, em nosso país.
Ao final deste seminário, cada
um de nós sai com o coração cheio, primeiro de gratidão. Gratidão pelo
esforço, pelo trabalho, pela dedicação dos com-panheiros e companheiras do
estado do Rio Grande do Sul, mas em especial dos companheiros e companheiras
da prefeitura de Caxias do Sul. Nós somos muito gratos a Isabel Freitas e sua
equipe que desde de Porto Alegre ajudaram articular este evento, a Luis
Brambatti e sua equipe, que aqui em Caxias nos propiciaram desde la alimentação
à possibilidade de ocuparmos este espaço durante estes quatro dias, e em
especial agradecemos ao governador Olívio Dutra, ao vice governador Miguel
Rosseto. Agradecemos ao prefeito Pepe Vargas, a vice-prefeita Marisa Lavequia
pela acolhida, mas sobretudo pela maneira interessada e a sintonia política,
ideológica, que tiveram com os nossos tra-balhos nestes dias. Até este seminário,
eu pensava que, em se tratando de eventos internacionais, o único dirigente
político que não tinha o que fazer durante o evento era Fidel Castro. Porque
nos eventos de Cuba, Fidel participa da primeira à ultima hora, dia por dia,
como se o mundo todo parasse e ele não tivesse que se preocupar com mais
nada. Mas agora eu vejo que a Marisa e o Pepe Vargas também são capazes de
fazer parar a roda da história em Caxias para estar aqui durante quatro dias,
de manha até a última hora da noite, convivendo e participando dos nossos
trabalhos. Eu queria uma salva de palmas.
Um agradecimento especial na
pessoa de Clau-dia Korol, ao grupo da redação da revista América Livre
na Argentina, não só de Buenos Aires. Há pessoas de Rosário e de Córdoba,
de outras provín-cias da Argentina, que são os verdadeiros artistas de todo
este processo. Eu sou apenas o diretor virtual. Vocês sabem que existe hoje
cidadania virtual, ética virtual, democracia virtual que predomina em toda a
América Latina e há entre o virtual e o real uma grande distancia. Inclusive
na teologia a gente tem um grande problema hoje de como qualificar o peca-do,
o adultério virtual. O sujeito que namora a vizi-nha pelo computador. Então,
eu sempre falo: sou o diretor virtual. A gente tem que reconhecer que a
revista e estes seminários têm sido possível pelo em-penho de equipes da
Argentina, de Cuba e de tantos países que tornam realidade este sonho. E por
isso, na reunião que fizemos ontem da revista, junto com a coordenação do
encontro, decidimos mudar um pouco o sistema da pauta de direção da revista.
A revista possui uma secretaria executiva que acompanha os trabalhos e que é
a Claudia Korol, eu sou o diretor da revista e do conselho de redação.
Agora dividimos o conselho em
conselho de redação e conselho de direção, de modo que aqueles que estão
mais próximos das nossas atividades e partici-pam efetivamente dos nossos
projetos e das nossas decisões passem a integrar o conselho de direção da
revista. E eu queria anunciar a admissão de dois novos membros, porque os
conselhos da revista não são integrados por entidades, partidos, sindicatos
ou movimentos, são integrados por pessoas que, efeitivamente, trazem, de sua
pratica em seus países, uma representatividade. Então, eu tenho a honra de
anunciar a integração nos nossos conselhos o integrante da Frente
Zapatista de Libertação Nacional, do México, o companheiro Javier
Elorriaga. E por parte do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra do
Brasil, o companheiro João Pedro Stédile.
Companheiros, nós vamos
partir, depois de 4 dias de reflexões, de debates, de estudos, preservando o
caráter especifico, singular e precioso de América Livre que é a
nossa unidade na pluralidade. Os nossos seminários, como a nossa revista, são
de todos nós, de todas as nossas organizações, partidos, sindicatos e
movimentos. Não são do Vaticano, em-bora o diretor seja um frade, não são
deste ou daquele partido, deste ou daquele movimento. A riqueza de América
Livre é este espaço ecumêni-co de discussão onde procuramos
intensamente tra-zer uma pauta de questões importantes, pertinentes com a
conjuntura que estamos vivendo no momento, mas deixando que cada companheiro,
cada companheira ao retornar para o seu país, ao retornar para o seu trabalho
de base, leve as teses que absorveu, as teses que assimilou, as teses que
aderiu, para que possamos ir tecendo nesta pluralidade de forças libertadoras
latinoamericanas e caribenhas o futuro da transformação radical deste
continente e da implantação do socialismo que queremos.
Foram dias muito ricos. Dias
que a solidarie-dade se efetivou, aqui, através da troca de expe-riência,
mas sobretudo através da sensibilidade tocada pelos relatos daqueles
companheiros e compan-heiras que estão neste momento mais na linha de frente.
Não vou citar todos, mas eu me lembro dos companheiros que hoje são
prisioneiros políticos na Argentina, os companheiros e companheiras que estão
combatendo nas selvas da Colômbia, daqueles que integram o Exército
Zapatista de Libertação Nacional, daqueles que tentam na Venezuela construir
um novo projeto político nacional, daqueles que aqui no Brasil realizam ocupações
de terra e ocupações do solo urbano. Tudo isto se constitui um quadro que
deixa vivo para todos nós o que é um pacto. A luta continua. Não estamos
aqui pensando no que vamos fazer, nós estamos fazendo. Viemos de uma prática
e vamos retornar abastecidos, fortalecidos, enriquecidos para esta prática.
Uma prática complexa, que não tem nada de geo-métrica, cristalina,
cartesiana, porque a realidade em que vivemos no continente latinoamericano e
caribenho é uma realidade complexa e talvez falte em nosso discurso, em
nossas teorias, mas sobretudo em nossa prática, a capacidade de abarcar toda
esta complexidade que nos foi chamada a atenção aqui. Ainda nos falta
trabalhar melhor os nossos gritos de luta com os povos indígenas do
continente. Povos que no próximo ano, o Brasil vai comemorar, a palavra
comemorar significa fazer memória, 500 anos do genocídio promovido pelos
portugueses ao invadir o nosso país na sua empresa colonizadora. Aqui viviam
cinco milhões índios, hoje reduzidos para um pouco mais de 300 mil. Uma
riqueza antropológica única.
Quando me perguntam no
ex-terior, o Brasil é um país tão grande, quantas línguas, quantos idiomas
se falam no Brasil? Com muito orgulho, eu respondo 187, porque um é o português,
porque os povos indígenas brasileiros falam 186 diferentes idiomas. Agora,
riqueza para qual inclusive nós da esquerda ainda não prestamos a devida
atenção. Precisamos avançar também na questão dos negros. O movimento
negro se articula, cresce nos países da América Latina, sobretudo naqueles
que tiveram o processo da escravatura trazida pelos colonizadores, com a
mescla de nossas raças, que são Cuba e Brasil. Pessoas do Brasil que nunca
foram a Cuba, quando me perguntam como é Cuba, a resposta mais simples é que
Cuba é uma Bahia que deu certo. Porque há uma semelhança muito grande entre
a vida e a alma do povo cubano e a vida e a alma do povo baiano. O Brasil é a
segunda nação negra do mundo, depois da Nigéria, nós somos 163 milhões de
habitantes dos quais mais de 50 milhões são negros. Mas o Brasil guarda a
marca profunda de ser, de todos os países das três Américas, aquele que
suportou o mais longo período de escravatura, trezentos e vinte anos. E foi
por força das elites brasileiras, que sempre impediram este país de realizar
Reforma Agrária ao ser decretada a abolição oficial da escravatura, porque
todavia ainda existe o trabalho escravo neste país, sobretudo na Amazônia.
Aos negros foi negado o acesso à terra, principalmente as melhores terras do
país nesta região sul para onde foram trazidos, como diz bem as expre-ssões
culturais, imigrantes europeus, sobretudo italianos e alemães. Daí a maioria
da população negra do nosso país permanecer duplamente margi-nalizada, por
ser negra e por ser pobre.
Temos que avançar na questão
da mulher e das relações de gênero. Ainda a esquerda é herdeira de
categorias próprias do racionalismo europeu da primeira metade deste século,
onde não se sabia como se enquadrar o índio, o negro, os movimentos sociais
e também a questão das relações de gênero e especificamente da mulher. Ou
seja, talvez umas das maneiras mais explícitas e cruéis que o capitalismo
utiliza para reforçar a sua dominação ideológica, sem duvida nenhuma é o
uso da figura da mulher na sua publicidade e na sua produção de filmes. O
uso degradante, humilhante, onde a mulher é reduzida a mero objeto de consumo
e isto reforça as nossas estruturas patriarcais e machistas que passam também
pelos nossos movimentos, pelos nossos sindicatos, pelas nossas igrejas, em
especial pela católica, onde a mulher pode ser cultuada no altar como santa,
pode ser proclamada doutora da igreja, mas não pode ser padre, não pode ser
bispo, não pode ser cardeal, não pode ser Papa. E por que se ela é tão
criação de Deus quanto o homem? Por mero patriarcalismo e machismo, e isso
passa pelos nossos partidos políticos.
Uma questão também da maior
importância na conjuntura que vivemos neste fim de século e milênio, mas
que lamentavelmente não se tocou aqui, é a questão ecológica, da preservação
do meio ambiente. Esta é uma bandeira que nós da esquerda não podemos
deixar nas mãos da direita, porque se deixarmos nas mãos da direita as crianças
vão continuar chorando porque a televisão mostrou os peixinhos sujos de
gasolina no Alasca ou no Golfo, mas não vão continuar sensibilizadas pela
destruição da principal espécie em extinção que é o bicho homem e o
bicho mulher, que estão sendo extintos pela fome como resultado da exploração
e da globocolonizaçao.
Ecologia é a do Chico Mendes,
ecologia é aquela que abarca a natureza tendo como o centro a libertação do
homem e da mulher. Ecologia é aquela que nos integra neste processo holístico
em que nenhum ser pode ser separado do outro, seja ele considerado vivo ou não
vivo. Somos todos frutos da mesma maravilha de evolução do universo, disto
que os gregos chamam de cosmos, que é a mesma raiz de cosmético, aquilo que
trás beleza. No entanto somos os únicos seres que pelos nossos olhos e pela
nossa inteligência permite ao universo contemplarse a si mesmo e reconhecer a
própria beleza. E se mais belo não é, não é por culpa do Criador e muito
menos das leis da evolução, é por culpa da nossa ambição, do nosso egoísmo,
mas sobretudo das estruturas de dominação, exploração e humilhação que
hoje estão fortalecidas pela face neoliberal do capitalismo.
É este o nosso compromisso e
desafio, sair da-qui com a disposição de combater o sistema capitalista e
lutar pela implantação do socialismo até o último dia das nossas vidas,
ainda que cada um de nós tenha, como eu tenho, a convicção subjetiva de que
não vamos participar da colheita, mas estamos dispostos a correr como
sementes. Este é o desafio. Neste processo, companheiros, é muito importante
que façamos uma profunda autocrítica do que significou o socialismo no leste
europeu. Não devemos ter vergonha nem de reconhecer os erros daqueles que nos
precederam, para com um melhor reconhecimento do passado evitar a repetição
dos mesmos erros do presente, de modo a construir um futuro melhor. Para isso
nós precisamos sim, fazer uma auto-crítica profunda. Em que medida os nossos
grupos, os nossos movimentos, os nossos partidos ainda trazem marcas de
autocracias, de burocratismos, de teoricismos? Em que medida, o povo é um
conceito na nossa boca ou faz parte do nosso compromisso de vida, das nossas
atividades cotidianas, da nossa consagração de vida? Em que medida, nós
enchemos nossa cabeça de teorias revolucionarias, mas na nossa cotidianeidade
não somos capazes de viver uma ética, um compromisso da comunhão com
aqueles que efetivamente são os oprimidos, os excluídos?
Precisamos passar por isso,
para que, a partir desta auto-crítica, sejamos capazes de construir uma
alternativa latinoamericana efetivamente viável. Chega de equívocos que
sacrificam gerações. Chega de sangue derramado por erros que poderiam ser
evitados. Chega de entusiasmo que não é acompanhado de análises profundas,
mas chega também de movimentos que se fazem da vaidade pessoal, daqueles que
acabam colocando o partido em função da sua carreira política individual e
trocam o nós pelo eu, esquecendo que ele é um processo coletivo, onde não
se trata de chegar ao poder fulano ou sicrano, se trata de trazer o poder na mão
do povo de maneira que a gente construa com o socialismo uma democracia real.
Este desafio, nós vamos
enfrentálo, não rein-ventando a roda e nem reinventando processos de orientação.
Vamos enfrentálo incorporando à nossa memória, à nossa pratica, o patrimônio
revolucio-nário e teórico da esquerda na América Latina e também em outros
países do mundo. Não podemos de maneira alguma ignorar este patrimônio. Não
podemos de maneira alguma ficar à espera que um novo iluminado surja para
fazer uma obra melhor do que a de Marx. A obra do Marx, como foi dito aqui, é
de suma importância para nossa atuação revolucionária, como a obra do
Gramsci, como a obra do Che, como a obra de tantos outros companheiros que
embora sejam menos conhecidos, mas têm obras importantes e companheiros que
hoje, me permitam dizer, publicam ensaios de transcendental impor-tância para
a nossa luta, na nossa revista América Livre. Vamos incorporar este
patrimônio e ao mesmo tempo saber conciliar a nossa teoria revolucionária
com os nossos princípios subjetivos. Para isso é preciso que os nossos esforços
atinjam, isto que tanto foi falado e discutido principalmente nos trabalhos de
grupo, a nossa subjetividade como ser humano. É aí, no trabalho da nossa
realidade espiritual, que poderemos, também, no dia-a-dia da nossa prática,
através do processo social, criar, desde agora, não à espera da revolução
que virá, mas desde agora, o homem e a mulher novos, que sejam dignos e
ca-pazes de fazer da revolução, de fazer do socialismo, uma obra de amor.
|